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As durações do devir: como construir objetos-problema com a cartografia

The durations of the becoming: how to building problem-objects with cartography

Resumos

Como podemos falar de objetos, duração e estabilidade em um mundo feito de vertigem e puro fluxo? Este artigo propõe a problematização do conceito de objeto na prática cartográfica para pensar a formação do cartógrafo. Para tanto, necessitamos ultrapassar o dualismo entre estável e instável. Por meio de conceitos como os de tensão e complexidade podemos produzir uma ontologia metaestável. Para produzir esta ontologia relacional, criativa e complexa, vamos usar uma caixa de ferramentas conceitual advinda de dois autores. De Henri Bergson tomaremos os conceitos de duração, intuição, seleção e sentido. De A. N. Whitehead tomaremos os conceitos de preensão, sentires e criação. A partir desses conceitos produziremos um conceito de objeto adequado ao empirismo transcendental e suas virtualidades, um conceito de objeto que ultrapasse os dualismos entre os fluidos e os sólidos: objeto-acontecimento, objeto-problema.

cartografia; empirismo transcendental; objeto; duração; preensão


How can you talk about objects, during and stability and a world made of vertigo and pure fluxes? This article proposes a question about the concept of object in the cartography, to work the formation of the researcher. We need to go beyond the dualism between stable and instable. With concepts like tension and complexity we can produce a metastable ontology. To elaborate this relational, complex and creativity ontology we will use some concepts that can be very useful like a tool box. From Henri Bergson we will catch the following concepts: duration, intuition, selection and felt. From Alfred North Whitehead, we will catch the concepts of prehension, feelings, creation. Working a complexity and relational ontology with this concepts, we will be producing an object without form and substance, beyond the dualism and the necessary essential. An object with a virtual dimension, on a transcendental empiricism: the event-object, the problem-object.

cartography; transcendental empiricism; object; duration; prehension


Tania Mara Galli FonsecaI; Luis Artur CostaII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS - Brasil. Psicóloga. Possui Doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Pós-doutorado pela Universidade de Lisboa. Atualmente é Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, docente e pesquisadora dos Programas de Pós-Graduação em Piscologia Social e Institucional e de Informática na Educação, dirige a Coleção Cartografias editada pelas editoras UFRGS e Sulina. E-mail: tfonseca@via-rs.net

IIUniversidade Federal de Pelotas, Pelostas, RS - Brasil. Psicólogo. Possui Mestrado em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Doutorado em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com período sanduíche em Universitat Autònoma de Barcelona. Docente do curso de Psicologia da Universidade Federal de Pelotas. Endereço: Universidade Federal de Pelotas, Unidades e Cursos de Graduação, Curso de Psicologia. Avenida Duque de Caxias, 250 - Fragata. Pelotas, RS - Brasil. CEP: 96030001. E-mail: nemseiquem@gmail.com

RESUMO

Como podemos falar de objetos, duração e estabilidade em um mundo feito de vertigem e puro fluxo? Este artigo propõe a problematização do conceito de objeto na prática cartográfica para pensar a formação do cartógrafo. Para tanto, necessitamos ultrapassar o dualismo entre estável e instável. Por meio de conceitos como os de tensão e complexidade podemos produzir uma ontologia metaestável. Para produzir esta ontologia relacional, criativa e complexa, vamos usar uma caixa de ferramentas conceitual advinda de dois autores. De Henri Bergson tomaremos os conceitos de duração, intuição, seleção e sentido. De A. N. Whitehead tomaremos os conceitos de preensão, sentires e criação. A partir desses conceitos produziremos um conceito de objeto adequado ao empirismo transcendental e suas virtualidades, um conceito de objeto que ultrapasse os dualismos entre os fluidos e os sólidos: objeto-acontecimento, objeto-problema.

Palavras-chave: cartografia; empirismo transcendental; objeto; duração; preensão.

ABSTRACT

How can you talk about objects, during and stability and a world made of vertigo and pure fluxes? This article proposes a question about the concept of object in the cartography, to work the formation of the researcher. We need to go beyond the dualism between stable and instable. With concepts like tension and complexity we can produce a metastable ontology. To elaborate this relational, complex and creativity ontology we will use some concepts that can be very useful like a tool box. From Henri Bergson we will catch the following concepts: duration, intuition, selection and felt. From Alfred North Whitehead, we will catch the concepts of prehension, feelings, creation. Working a complexity and relational ontology with this concepts, we will be producing an object without form and substance, beyond the dualism and the necessary essential. An object with a virtual dimension, on a transcendental empiricism: the event-object, the problem-object.

Keywords: cartography, transcendental empiricism, object, duration, prehension.

PERCORRENDO O PROBLEMA: PARA ALÉM DA OPOSIÇÃO OBJETO E ACONTECIMENTO

A criação de uma ontologia fluida, na qual nos vemos em meio a uma vertigem de devires em ação, não é uma novidade para os profissionais que trabalham com a perspectiva da filosofia da diferença e da cartografia. Faz parte já da formação usual de um cartógrafo preparar seu olhar para desfazer os "objetos" (coisas), deslizando de suas fronteiras aparentemente rígidas para uma concepção expressionista do mundo, tal como em um quadro de Van Gogh, Munch ou Pollock: as linhas se apresentam informes, selvagens em sua vibração intensa que explicita o ser como agenciamento de modos de ser que constitui estilísticas (por sua vez também agenciamentos de agenciamentos em uma regressão infinita e paradoxal). Assim, vemos com Heráclito e Crátilo que "tudo flui" e aprendemos então a permitir a fluidez do mundo com o olhar do cartógrafo rompendo fronteiras. Tratamos nosso corpo como uma grande abertura, um abismo invertido que nos lança para o mundo em uma miríade de ações em relação (COSTA; FONSECA, 2008). Tentamos nos desfazer da tentação de vislumbrar nossas delimitações tão nossas, abrindo as dobras em relações para permitir nossa desterritorialização do bom senso que nos isola do mundo em um "nós mesmos" ensimesmado no senso comum, criando diversos binarismos: eu e eles, sujeito e objeto etc.

No entanto, em tal perspectiva de afirmação dos fluxos desterritorializados há também a afirmação didática de um novo binarismo: fluidez e estabilidade. Deleuze e Guattari (1995) já nos alertaram logo no primeiro dos seus mil platôs da necessidade de formarmos binarismos temporários para nos auxiliar na compreensão, por exemplo, da distinção entre a árvore e o rizoma, ou entre molaridade e molecularidade (DELEUZE; GUATTARI, 1996): assim, criamos novos binarismos para nos permitir a problematização dos anteriores, deslocando nossa questão para uma nova perspectiva (fazendo um novo binarismo entre a árvore e o rizoma em vez de permanecer no velho binarismo interno à arvore entre ciência e não-ciência, por exemplo). Mas esses autores também chamaram a atenção para a importância de nos desvencilharmos de tais binarismos tão logo compreendamos as distinções por eles estabelecidas, o que se dá por meio da formação de paradoxos e arranjos complexos que nos impedem de persistir simplificando a relação entre os termos a partir de oposições duais. Deleuze e Guattari (1996) nos demonstram isso perfeitamente no seu texto sobre a micropolítica e suas segmentariedades ao ultrapassarem as simplificações binárias entre molar e molecular, tão usuais em diversos autores,1 1 Como, por exemplo, em Baremblitt (1996). Ainda que o autor pontue diversas vezes sua intenção em não estabelecer tal divisão dual e simplista, suas advertências perdem força diante de uma enxurrada de exemplos onde o molecular sempre é identificado com os devires, fugas e revoluções, enquanto o molar é atrelado aos seus opostos. através da problematização das pequenas hordas nazistas em sua dureza suicida, molecular e estriada. Desfeitas estas oposições, somos obrigados a produzir arranjos complexos entre uma multiplicidade de termos: não se trata, por exemplo, do fluido, liso e molecular contra o duro, estriado e molar, mas sim de complexos arranjos entre estas estilísticas. Desse modo, o presente artigo tem como principal intuito ultrapassar as oposições entre fluidez e permanência para problematizar como o cartógrafo constitui seus objetos-problema, ou seja, como o cartógrafo erige a consistência ontológica das concepções por ele afirmadas em sua pesquisa-intervenção sem apelar a substâncias, formas ou essências. Como falamos que há "algo ali", o "aliquid" dos estoicos (TIRADO, 2011), sem apelar às essências em geral atreladas às definições do ser? Como nos apresentamos uma "istidade" (hecceidade) apesar de suas velocidades vertiginosas?

A filosofia da diferença puxa o tapete de ao menos duas soluções clássicas da filosofia para definir seus entes, objetos e sujeitos e sustentar suas afirmações sobre o mundo: as essências formais do idealismo racionalista e as essências substanciais (físicas ou metafísicas) do nominalismo (COSTA; DUTRA; FONSECA, 2011), ambas saídas fáceis para a definição de um "Ser" escrito com maiúsculas (ou seja, dotado de uma essência necessária, permanente, identitária). Se não temos as entidades gerais e perfeitas (ideias) que garantem a comunidade unívoca de certos grupos de indivíduos a partir da sua definição universal (o homem, o cavalo, a mesa, o carro, a mula), e tampouco temos as substâncias únicas e indivisíveis dos seres individuais (este homem X, este cavalo Y, esta mesa A, esta mula B) para provermos o mundo de conjuntos fechados definidos por essências necessárias (que sobrevivam inalterados às mudanças das contingências, dos acidentes), como poderíamos então falar sobre essas "coisas" (que "coisas" já não são mais)? Em nossas proposições sobre o mundo já não nos sustentamos na definição de um conjunto fechado que delimite o designado (referente) ou o significado (definição universal); antes nos sustentamos na multiplicidade de sentidos possíveis a cada proposição (DELEUZE, 1975). Desse modo, subvertemos a possibilidade de uma indução (unir os semelhantes em um campo empírico para delimitar conjuntos categoriais) e de uma dedução (definir o campo empírico a partir de princípios de simetria preestabelecidos) puras, ao retirar delas seus operadores fundamentais: a essência geral abstrata e a essência individual empírica. Para Aristóteles, a filósofos que se colocassem de tal modo frágeis perante o mundo, restava apenas vegetar com as plantas, abnegando-se de desferir qualquer palavra ou gesto, pois qualquer palavra ou gesto teria implícito um conjunto identitário, uma essência necessária (ARISTÓTELES, 1945). Mas como nós retomamos, então, a possibilidade de erigir afirmações, proposições, no mundo para além dessas consistências ontológicas baseadas em essências? Como constituímos sentidos no mundo sem depender de significados ideais ou referentes individuais (ambos fechados em si mesmos)?

Ainda que seja fundamental na formação do cartógrafo se desfazer da díade sujeito-objeto, baseada em tais essências (idealistas ou nominalistas) da nossa metafísica gramatical (NIETZSCHE, 1999), é-nos também importante compreender como podemos formar objetificações e durações, ao cartografar arranjos complexos, os quais, em sua tensão relacional, nos provêm de uma determinada gama de sentidos. Como constituímos com a cartografia nossos objetos-problemáticos que delimitam (contingencialmente, não categoricamente) os devires vertiginosos em perspectivas afiadas a afirmar suas diferenças no plano de imanência? Como se constitui um estilo coeso que nos serve de modulador de nosso modo de relação na constituição de uma pesquisa-intervenção? Como se pensa "coesão", "consistência", "coerência", entre outros conceitos em meio a uma realidade destituída de essências necessárias? Ou seja, como fazemos para constituir estabilidades, ou melhor, metaestabilidades2 2 Apesar de ser um conceito utilizado por Simondon (2003; 2009) estritamente para organismos vivos, por conta de sua reserva pré-individual que lhes possibilita (e impinge) constantes alterações em seus modos atuais de individuação, utilizamos aqui metaestabilidade de modo similar, mas sem outorgá-la exclusivamente aos seres vivos; pensamos nas relações das intensidades virtuais deslocando constantemente os arranjos atuais. Assim, a metaestabilidade se apresenta como conceito possível para arregimentar a estabilidade e o fluxo em um empirismo transcendental, ou seja, um empirismo que não se restringe ao dado pois está pleno de virtualidades e devires. em meio a um mundo em que tudo flui?

Para elaborar esta problematização nos utilizaremos aqui principalmente das soluções dadas por dois autores importantes para a filosofia da diferença: Henri Bergson e Alfred North Whitehead. Ambos deram corpo a um mundo em que a criação e a diferença são sempre primeiras, mas no qual se estabelecem durações e coerências no decorrer da dança. Um mundo em que a relação e a transformação são as únicas constantes, mas no qual nem tudo se relaciona com tudo, existindo seleções, subtrações, preensões negativas, modulação de estilísticas singulares, enfim, um mundo de potências, mas também um mundo de contingências, de indeterminações e de condições de possibilidade.

ENTRE A FLUIDEZ E A PERMANÊNCIA: TEMPO, SÉRIES E DURAÇÃO

Meu corpo é, portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa medida, a maneira de devolver o que recebe (BERGSON, 1999, p. 14).

A seleção do mundo, a criação de coerência pela assimilação-eliminação que cria modos de relação específicos, singulares em sua configuração. Modos os quais se perpetuam no tempo em um contágio de si que forma uma série de variações: contágio de si para si que produz um "si outro". Neste modo de variar a si em outro, os modos forjam um estilo entre a diferença e a repetição: uma cadeia contingente de acontecimentos a formar uma complexa trama que dá corpo ao que denominamos "mundo". Assim sendo, é a este modo de variações contingentes, este estilo, que se apresenta a nossa sensibilidade e inteligência enquanto relações estáveis com as quais existimos. "Os objetos que cercam meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles" (BERGSON, 1999, p. 15). É na relação (percepção) que constituo com a matéria (conjunto de imagens) que se dá a delimitação do meu mundo tal campo é definido pelo "o que eu posso", minhas possibilidades de ação (futuro) mescladas à minha memória (passado) definem as tensões atuais do meu campo do atual (experiência presente), aquilo que existe e como existe. No entanto, tal movimento de "seleção" não se dá fechado em um ser essencial em si, um ser continente de uma representação de mundo-conteúdo, tampouco podemos, assim, pensar em um homem-sistema nervoso central, o qual apenas cria para si em sua mente um mundo simplificado com o qual interagir. Não. É na própria interação entre os fluxos moleculares do mundo que geramos nossos movimentos-imagens de mundos possíveis para possíveis ações. O organismo aqui não é uma totalidade, mas antes sempre uma relação entre relações: "Mas é possível conceber o sistema nervoso vivendo sem o organismo que o alimenta, sem a atmosfera onde o organismo respira, sem a terra banhada por essa atmosfera, sem o sol em torno do qual a terra gravita?" (BERGSON, 1999, p. 19). Desse modo, assim como as ideias não estão no cérebro e as sensações não são mera reprodução do objeto por nossos sentidos, a concepção do objeto não é também um conteúdo do cérebro-consciência continentes, os objetos tampouco são substâncias conteúdos-continentes de si: são definidos a todo momento nesse movimento de salto entre a memória e a ação possível, nesse tempo vivido da duração.

Em um mundo em que tudo é fluxo e movimento, como explicamos as estabilidades dos objetos? É aí que Bergson (1999) nos coloca uma questão muito importante para pensarmos nosso conhecimento: como podemos estar seguros da relação entre a existência dos objetos e nossa percepção dos mesmos? Em geral colocamos diante do juízo duas opções: ou bem as coisas existem por si (podendo ou não serem percebidas por nós tal como elas são), ou, então, as coisas são tal como são graças à percepção que temos delas (e sua coerência é garantida por algum Deus vigilante que jamais fecha os olhos, ou por algum outro princípio de harmonia pré-estabelecida sustentado na exigência de perfeição do universo). Podemos, com Bergson (1999), denominar esta última de "perspectiva idealista" e a anterior de "perspectiva realista". Enquanto no idealismo tentamos definir o universo a partir da centralidade de nossa perspectiva, no realismo buscamos afirmar a completa independência do universo de nossas relações com o mesmo; no entanto, tais posições dependem basicamente de uma cisão entre mente e corpo, à qual Whitehead (1994) denominou "bifurcação da natureza". Com tal bifurcação torna-se inviável compreender as relações complexas que se dão entre nós e as coisas do mundo, sem impor uma antecedência substancial a algum dos termos (ideia e percepção ou matéria e substância).

Para Bergson é pela ação de indeterminação (virtualidade) do querer (em sua afirmação de uma perspectiva) diante da ilimitada complexidade do mundo, que se dá a definição da estreita relação entre cérebro e percepção em sua seleção das imagens por meio da operação de subtração. Assim, para Bergson, a relação dentro-fora seria similar à relação parte-todo: não apenas não há uma diferença de substância entre dentro e fora como resta como única diferença a modulação de subtração (esquecimento de algumas relações em prol da memória de outras) operada pelo "dentro" a partir das ações virtualmente possíveis do querer sobre as relações do mundo (afirmação de uma perspectiva). Vamos, então, pela reflexão, coordenar as imagens por nós isoladas na subtração-perceptiva, restabelecendo parte da sua concretude (relações) abstraída. Com esse movimento de estabelecer as relações complexificando-as, obtemos uma experiência mais coerente, coesa, ainda que menos vasta e variante do que a miríade de relações estabelecidas entre as imagens do mundo: "Tínhamos razão, portanto, em dizer que a coincidência da percepção com o objeto percebido existe mais de direito do que de fato" (BERGSON, 1999, p. 69).

E, ainda que tentemos encontrar a tal percepção pura, na qual o objeto atingiria nossos sentidos instantaneamente, uma experiência imediata de natureza completamente distinta e oposta da lembrança para Bergson, nos defrontaremos com um grave empecilho: a impossibilidade de conceber um instante puro, sem duração qualquer, instante vazio do tempo abstrato newtoniano que nos permitiria a "percepção pura" sem qualquer participação da nossa duração na constituição da sua experiência. Tal percepção do instante vazio é pouco afeita à vida concreta das relações e devires densos em um empirismo transcendental pleno de virtualidades: "há na matéria algo além, mas não algo diferente, daquilo que é atualmente dado" (BERGSON, 1999, p. 75). O associativismo do empirismo restrito cria um litígio entre a estabilidade e a instabilidade, colocando no primeiro polo a memória e no segundo a percepção como se fossem coisas isoladas, segmentos distintos de processos diferentes e até opostos (lembrar e imaginar contra o perceber, dentro contra fora, coisa contra imagem). Já Bergson cria uma linha de continuidades descontínuas (não se trata de mero aumento ou diminuição de intensidade, seus modos mesmos são diferentes, mas tampouco se trata de universos segmentados)3 3 No entanto, cabe aqui dizer que em uma ontologia modal a distinção entre diferença de natureza e de grau se torna obsoleta, posto que em um ser sem essência, constituído pelas contingências que lhe forjam um estilo, qualquer variação, pouco importando o fato de ser ínfima, numérica, de deslocamento, de intensidade, etc., altera a modulação do ser, o qual, por ser modulação, altera seu ser mesmo (sua antes denominada "natureza"). A distinção de natureza aqui pontuada por Bergson fala mais de uma hierarquia ontológica imposta às sensações contra a matéria, remetendo inclusive à divisão entre propriedades primeiras e segundas: interessa a imanência de imagens, coisas, percepções e afetos. Pois aqui, quando falarmos de diferenças e mudanças, falaremos sempre de diferenças de modulações, e não de origem, substância ou essência (três das clássicas acepções de "natureza"). Desse modo, pouco importa se tratar de uma mudança medida em mais ou menos (mais ou menos alegre; mais ou menos neurótico), ou uma mudança de um a outro (alegria ou tristeza; neurose ou psicose), todas variações são variações dos modos de ser, variações de suas relações. Antes de serem diferenças de grau ou de natureza são cálculos de relações entre singularidades híbridas. Não existem continuidades ou descontinuidades absolutas em tal perspectiva, e toda e qualquer contingência é constituinte da modulação do modo de ser, nos importando mais os modos de relação entre as diferentes diferenças do que sua categorização dual nestas clássicas categorias. Se fôssemos obrigados a tomar uma das polaridades como constituinte das diferenças no mundo melhor seria considerar as diferenças de natureza e impedir a ordenação linear crescente-decrescente das diferenças de grau: mais vale, então, tomar toda e qualquer variação como variação de natureza, sempre, pouco importando o quão ínfima e contingente. O que sempre se quer evitar aqui é a hierarquização das diferenças a partir da constituição de um centro que se pretende geral, ordenando as demais variações em um leque ou pirâmide a partir dele. Para ver mais detalhadamente o trabalho conceitual de elaborar um conceito de natureza desnaturada ver Costa (2012). entre a memória pura e a percepção, sendo ambas impossíveis sem ter uma à outra. Trata-se da relação virtual-atual: não há um polo estável e outro instável, ambos se encontram em tensão, modificando-se na relação que constituem. Que não há uma continuidade homogênea (crescente ou decrescente) entre virtual e atual é evidente na sua diferenciação; no entanto, tampouco há oposição ou cisão entre estes modos distintos da nossa experiência do mundo.

[...] o princípio do associacionismo pretende que todo estado psicológico seja uma espécie de átomo, um elemento simples. Daí a necessidade de sacrificar, em cada uma das fases que foram distinguidas, o instável pelo estável, ou seja, o começo pelo fim [...] Na concorrência que o associacionismo institui assim entre o estável e o instável, a percepção destituirá sempre a lembrança-imagem, e a lembrança-imagem a lembrança pura (BERGSON, 1999, p. 175).

O presente vivido se diferencia do instante, momento matemático abstrato que dividiria o presente do passado e do futuro com uma lâmina tão afiada que seria o próprio vazio. Enquanto tal instante pressupõe um tempo abstraído como vazio e "instantâneo", o presente vivido possui sempre uma "duração" (BERGSON, 1999), uma "contemporaneidade" (COSTA; FONSECA, 2007). "Nós só percebemos, praticamente, o passado, o presente puro sendo o inapreensível avanço do passado a roer o futuro" (BERGSON, 1999, p. 176). Desse modo, nossa experiência, a duração, se dá entre a instabilidade imprevisível das singularidades nômades e a estabilidade advinda dos planos de ação futuras assentadas sobre a memória: entre a intempestiva impossibilidade de prospecção futura e as modulações da complexidade ilimitada real pela memória. Assim, diferença e repetição se unem na duração.

"Porque o ácido clorídrico age sempre da mesma maneira sobre o carbonato de cálcio - seja o mármore ou ocre - , dir-se-á que o ácido distingue entre as espécies os traços característicos de um gênero?" (BERGSON, 1999, p. 187). Da instabilidade sensória e sua miríade a acariciar nossos sentidos com vertigens, nosso corpo constitui hábitos motores e de pensamento, obtendo com isso uma estabilidade de lembrança para repetir suas (rel)ações no mundo: "[...] o próprio hábito, remontando da esfera dos movimentos à do pensamento" (BERGSON, 1999, p. 188). Da multiplicidade de lembranças na memória pura a fragmentar e dispersar unidades, constituímos, pelas ideias gerais, a estabilidade de gestos e palavras. As relações entre estabilidade e instabilidade não apenas existem, como são o próprio processo de constituição do nosso mundo (da relação que institui um sujeito psicológico e seu objeto de experiência). Desse modo, em vez de analisarmos as extremidades do processo (ou de estabelecer um centro harmônico) devemos nos ater ao movimento entre tais extremidades que não existem de modo separado nem em oposição, mas apenas em revolução no paradoxo.

Na verdade, o eu normal não se fixa jamais em nenhuma das posições extremas; ele se move entre elas, adota sucessivamente as posições representadas pelas seções intermediárias, ou, em outras palavras, dá a suas representações o suficiente de imagem e o suficiente de idéia para que elas possam contribuir utilmente para a ação presente (BERGSON, 1999, p. 191).

O que interessa-nos aqui a partir das concepções de Bergson são as tensões virtuais que forçam e constituem nossa atualidade. A "tensão" não é fluxo instável nem coisa estável, trata-se de um fluido espesso que obtém sua densidade da relação de tensão mesma, das condições, disposições, disjuntivas impostas a ela por suas configurações mesmas. A necessidade e o querer, a percepção e a memória, o passado e o futuro, não são polos, mas sim elementos constituintes-constituídos por relações de tensão que produzem uma gama variada de sentidos, de movimentos por vir. A cisão das relações e suas tensões incorreria, então, para Bergson, em diversas patologias decorrentes do afrouxamento da tensão que nos produz em nosso mundo, levando nossa experiência a um dos seus extremos, como, por exemplo, no caso da perda da noção de uma realidade, que seria identificada na época pelo conceito de "alienado" (BERGSON, 1999, p. 205). Tensão e duração seriam, portanto, operadores conceituais bergsonianos que nos permitiriam ultrapassar o dualismo entre estável e instável por intermédio de densidades, seleções e lentidões.

ENTRE A FLUIDEZ E A PERMANÊNCIA: PREENSÃO, SENTIRES E DEVIR

Separando falazmente el fluir de la permanencia nos vemos llevados al concepto de un Dios enteramente estático, con realidad eminente, en relación con un mundo enteramente fluente, con realidad deficiente. Pero si los opuestos estático y fluente fueron explicados ya en el sentido de que caracterizan por separado actualidades diversas, la interacción entre la cosa que es estática y las cosas que son fluentes entraña contradicción a cada paso de su explicación [relação entre Deus transcendente e mundo imanente]. Esas filosofías tienen que incluir la noción de "ilusión" como principio fundamental: la noción de "mera apariencia". Este es en última instancia el problema platónico (WHITEHEAD, 1956, p. 465).

Para vencer o dualismo entre essência e aparência, Whitehead irá produzir um Deus não apenas imanente, mas inacabado, menor. Assim, nos livra não apenas da transcendência como Espinosa, mas também da cisão entre essência e aparência, substância e modos, realidade e ilusão. Para Whitehead, Deus é apenas a primeira contingência oriunda da criação, não sendo assim transcendente, mas tampouco sendo a totalidade da imanência como em Espinosa. E, por ter sido contingência primeira, influencia a toda a criação posterior, do mesmo modo que, ao virar em uma esquina ao acaso, temos esta esquina doravante participando de todo restante de nossa vida. Deus é filho da criação, e não pai, e ao modo de um irmão mais velho ele nos incute sua influência: para Whitehead Deus é o desejo do mundo. Deus é a fome que faz com que o avanço do passado em devorar o futuro ganhe a forma de concrescência (aumento de relações) e progresso (conceito que em Whitehead se refere ao avanço da concrescência e não a um suposto aumento de perfeição). Deus é a força mundana do desejo e nos incute a ânsia de satisfação, ou seja, a ânsia de conectar-se aos demais em uma operação amorosa que tem o fim em si mesma: "El amor no gobierna ni es inmóvil; es también un tanto olvidadizo en materia de moral. No mira hacia el futuro, pues encuentra su propia recompensa en el presente inmediato" (WHITEHEAD, 1956, p. 460). A ânsia de satisfação4 4 Aumento de satisfação para Whitehead é o aumento das relações possíveis de um ser, desse modo, ele intensifica suas preensões e correspondentemente seus sentires. Tal operação do desejo nos seres vivos os leva a um vetor-dobra, afirmando-se como sujeitos-de-preensão em relações várias onde delimitam "objetificações" (vetores objetais na preensão). É um conceito semelhante ao de aumento de potência em Espinosa (1973) ou de concreção e naturalidade em Simondon (2007). que dá forma ao modo subjetivo é nossa herança divina: desejo de criar relações, potência vital. O desejo de potencializar intensidades, aumentando a satisfação com a produção de organismos mais coerentes é nossa fagulha divina (sendo que, mais coerência é o mesmo que mais relações, que é o mesmo que mais intensidade dos sentires).5 5 "Sentires", são a unidade ontológica e epistêmica mínima na ontologia de Whitehead. O mundo para este filósofo é um mar vaporoso de relações no qual os sentires são suas gotas: condensações de experiências. E experiência, aqui, é tão concreta quanto o corpo, posto que ontologia e epistemologia são um só acontecimento. Os sentires acompanham a composição ou decomposição de nossas relações, e nossas relações são tijolos e cimento do mundo. Desse modo, temos uma ontologia modal, onde modos de experiênciar são as oscilações do mundo mesmo em seus devires. Aqui Deus não é "A Natureza" como em Espinosa (1973), mas sim seu primeiro filho e, portanto, primeiro "legislador contingente" da natura e suas leis. Por sua anterioridade na série de variação do mundo (mais além dele só a força criadora, o devir), finda por ser onipresente em todas as ocasiões atuais consequentes de modo condicionante parcial, ou seja, jamais onipotente e muito menos onisciente, apenas infimamente presente. Coloca-se, então, para além da dualidade entre móvel e imóvel à qual em geral é relegada a figura "divina". Deus é natureza, mas não "a" natureza (toda) como em Espinosa, pois a natureza é deveras maior que deus. Deus aqui não apenas não é totalidade como também não é estável; está também a fluir com o mundo e, incutir concrescências no mesmo (diferente do Deus espinosista, posto que este é imanente, mas total e estável, já que, na média geral das relações de composição e decomposição o cômputo é zero, a perfeição sempre é garantida). Com este Deus de Whitehead nos livramos da necessidade do conceito de ilusão para cessar a vertigem dos fluxos.6 6 No entanto, nem tudo é tão belo quanto aparenta aos olhos contemporâneos ávidos por paradoxos que não se querem solutos. Whitehead nos dirá, em um rompante de completude, que, por fim, com as múltiplas concreções finitas da atualidade, com suas satisfações de relacionarem-se coerentemente, nós mesmos, o mundo, completamos a este deus incompleto, segundo uma ordem eterna que é a "'sabiduria' absoluta final" (WHITEHEAD, 1956, p. 466). Ou, ainda, na página seguinte, nosso filósofo dá uma leve inclinada nas relações entre estabilidade e fluidez ao dizer-nos que deus é antes perene e depois fluido, ao contrário do mudo que é antes fluido e depois perene em sua natureza. No entanto, façamos vistas grossas a tais detalhes e cultivemos a preensão negativa dessas afirmações, em busca de satisfação com a coerência paradoxal por nós aqui buscada.

Desse modo, a reprodução, a repetição da natureza, não é mera reprodução-estabilidade (repetição pura sem diferença), mas sim um processo de acumulação-transformação (acumulação intensa que aumenta a trama com novas relações ao modo das superfícies barrocas a aumentarem sua área com as dobras). Com a constante criação do devir restringida pela condicionalidade de suas contingencialidades (virtualidades e possíveis), com a irreversibilidade do tempo e imortalidade objetiva (nada se finda, tudo se transforma e por isso persiste) obtemos uma acumulação virtual e atual do mundo em si, tramando suas tramas cada dia mais densas de criações. É no equilíbrio rítmico das relações (preensões)7 7 "Preensão" é não apenas um modo de composição do conhecimento, mas também o modo como se compõe os seres. Nessa relação, um ser afeta ao outro com sua própria singularidade, no encontro, sem contudo desfazer a singularidade própria a esses elementos envolvidos na dita preensão (sendo fundamental ressaltar que cada um dos elementos é também, ele mesmo, um complexo tornado coerente por uma preensão). Ou seja, simplificando ao conceito podemos considerar a "preensão" uma relação de composição ontológica e epistêmica entre termos diversos e singulares os quais também, por sua vez, são constituídos por preensões. que se estabelecem que o mundo adquire e sustenta sua consistência e estabilidade (metaestável) em uma determinada "natureza": "La constancia de los desígnios físicos [sentires conceituais integrados a sentires físicos básicos] explica la persistência del orden de la naturaleza y en especial de los 'objetos persistentes'" (WHITEHEAD, 1956, p. 372). Trata-se de uma composição e decomposição por afinidades e desafinidades na qual o mundo atual em suas preensões (positivas e negativas)8 8 Preensões positivas são as relações onto-epistêmicas já descritas em nota acima, enquanto as negativas são as relações de não-ter-relação, ou seja, são as preensões (também acompanhadas de sentires) que garantem ao mundo a ausência de uma "identidade total" (tudo é tudo), elaborando desterritorializações, permitindo brechas, fugas e deslocamentos, vãos sobre os quais podemos afirmar a diferença e singularidade de cada preensão e seus sentires. Ainda que se constituam como uma espécie de virtualidade (reservatório intenso de relações-criações), não constituem exatamente este papel na filosofia de Whitehead, posto que este é outorgado aos chamados "potenciais" ou "objetos eternos" (WHITEHEAD, 1956), os quais constituem um campo sutil de variações com o qual se erigem as atualizações das preensões positivas e negativas. serve de causa eficiente de tal conjunção, enquanto a "aspiração subjetiva" (impulso a formar coerências, relações, para intensificar sentires/ satisfação) serve como causa final para a mesma: "Sigue-se que la complejidad equilibrada es el resultado de esta categoria final de aspiración subjetiva" (WHITEHEAD, 1956, p. 374). Ou seja, as coerências das estilísticas dos modos de ser com as composições-decomposições das relações (preensões positivas e negativas) são constituídas (moduladas) a partir do desejo de criar relações e da fruição estética (satisfação) de intensificar os sentires de tais relações pelo incremento de seus contrastes (diferenças de diferenças). Desse modo, não há "A Ordem" ou mesmo "ordem" no mundo, mas sim uma miríade de estilísticas ilimitadas operadas por preensões-sentires.9 9 Bem verdade que os conceitos de apetite e satisfação parecem, por vezes, servir para coordenar uma ordem ideal na ontologia de Whitehead, uma ordem ideal que vê na integração coerente através da preensão positiva seu rumo. Ou seja, da primeira contingência vieram as condições produtoras de coerência no mundo (não devido a uma sobrenaturalidade desta, mas sim pela mera antecedência temporal na criação). "Lo inexorable en Dios es la valoración como aspiración al orden" (WHITEHEAD, 1956, p. 332).

Segundo Whitehead (1956), Leibniz se defrontou com o mesmo problema de erigir uma unidade complexa para a natureza, mas, em vez de confrontar esta dificuldade ontológica, apenas a tamponou com "una no analisada doctrina de la 'confusión'" (WHITEHEAD, 1956, p. 341). Já para Whitehead, é a partir de um processo de valoração dos sentires e suas potências para os nexos (modo de valoração condicionado pelos entes atuais, em suas relações) que se "decide" (decisão é aqui uma operação ontológica de corte, de definição de um estilo a partir de suas condições, é uma decisão "cega", ou seja, inconsciente em sua maior parte) se tal sentir se integrará ou não (preensão positiva ou negativa) a tal unidade complexa: "Por lo tanto, 'adversión' y 'aversión' son tipos de decisión" (WHITEHEAD, 1956, p.344). Evidentemente tais procedimentos seriam capitaneados pela fome de satisfação que conjuga os sentires buscando uma ressonância (coerência) entre estes, a qual não estaria baseada em relações de semelhanças, posto que a intensificação da fruição estética da satisfação se dá com o aumento dos contrastes: tensões diferenciais entre preensões as quais geram potência de novas preensões ainda mais complexas.

Não temos aqui uma totalidade (nem mesmo Deus), mas sim uma multitude de contrastes, ou seja, preensões que afirmam diferenças pelas diferenças (e não pelas semelhanças) de modo similar à operação da transdução de Gilbert Simondon (2003), contraste de contrastes e assim sucessivamente (complexidade) sem que sejam necessárias atenuações dessas diferenças para que elas componham tais contrastes, o que permite a maximização da potência desses contrastes (intensificar as relações entre as diferenças pelas diferenças).

Temos, então, a garantia de metaestabilidade na produção de concrescências, na integração de elementos distintos em um conjunto complexo em que as relações se dão a partir das diferenças não análogas (analogia é a diferença oriunda da comparação entre semelhanças). Esta integração não ocorre de qualquer modo, pelo acaso dos encontros nem em busca de uma homogeneização da diferença em "Mesmo". O anseio (o desejo como criação, a fome de satisfação por nós herdada de Deus) por formar organismos (concrescências, nexos de relações de relações) não quer apenas equilíbrio e harmonia, ele exige antes de tudo complexidade (contraste, diferença entre diferenças): busca ambos em um equilíbrio complexo (paradoxal e metaestável). Integração, coerência, consistência, etc., portanto, falarão de aumentar conexões e não de subordiná-las a uma lógica central homogeneizante. Ligar o que estava separado, e não submeter um ao outro delimitando um conjunto. O ponto é a criação de contrastes, e o "[...] contraste se obtiene por médio de las diferencias" (WHITEHEAD, 1956, p. 375). A satisfação provém da intensificação das diferenças (contrastes, complexidade não harmônica), das composições paradoxais e não das composições tautológicas. Ou seja, a natureza se constitui como um fato estético movido pelo desejo-criação. As "leis da natureza" são antes de tudo categorias da composição estética dependentes das especificidades de cada criação: "Una experiencia intensa es un hecho estetico, y sus condiciones categoriales tienen que generalizarse a base de leyes estéticas de las artes particulares" (WHITEHEAD, 1956, p. 376). O mundo dado, atual, é ele mesmo uma obra de arte, um work in progress: "un hecho actual es un hecho de experiencia estetica" (WHITEHEAD, 1956, p. 376).

Assim, vislumbramos como erigimos um mundo com o qual nos relacionamos ao mesmo tempo em que criamos um "nós mesmos" que se relaciona com este mundo, sem que ambos se percam em uma miríade não conectada ou conectada por completo (caos puro, caos ideal):10 10 Tanto a conexão quanto a desconexão totais são aqui consideradas caos, pois, apenas ao erigir (selecionar, decidir, valorar, etc.) modos específicos e singulares (criar preensões), é que se dá a criação da natureza, das ordens em devir. erigimos com essas relações em séries os modos que definem as estilísticas metaestáveis do mundo. Falamos assim de uma ontologia, posto que é (ser), mas uma ontologia que não responde à questão "o que é", posto que esta pergunta tem fome de estabilidade essencial. Desse modo, não abandonamos a problematização ontológica ao sair em busca por uma natureza desnaturada, mas ao encontrá-la somos levados a abrir o "o que é" essencial e necessário em uma série ilimitada de perguntas encadeadas contingencialmente e voltadas às relações (preensões) que constituem esta outra concepção do ser: quando, como, onde, cor, sabor, amigos, inimizades, amores, tédios, com quem etc. Essa cadeia de contingências, de acidentes-acontecimentos, passa a tecer um arranjo móvel que constitui a ontologia.

POR UMA ONTOLOGIA CARTOGRÁFICA: TENSÃO, COMPLEXIDADE, ESTILO E CONSISTÊNCIA

A composição dos sentidos na intuição ou preensão produz nossos objetos, ou seja, o objeto-problema está para além do significado (ideias, abstrações, conjuntos, generalizações) ou do referente (designações, substâncias, indivíduos dados), está nos sentidos arranjados de modo complexo em um problema, findando, em sua tensão, por definir um movimento, um estilo, uma relação, algo que possui alguma coerência complexa por estabelecer um arranjo estético (nem simétrico ou harmônico), uma contemporaneidade, uma duração, um sentir de uma preensão. Assim, a definição de uma "objetificação" na práxis cartográfica não se opera por meio da delimitação de conjuntos (fechamentos lógicos categorial-identitáros em grupos binários), mas sim de tensões-estilos (variações de variações em contínua descontinuidade).

Desse modo, adotamos aqui a existência de objetos em nossas relações com o mundo, ou seja, adotamos um realismo conforme Whitehead e Bergson. No entanto, isso não nos leva a considerar que devamos guiar a elaboração de nossas proposições sobre o mundo (incluindo aí a constituição de objetos-problema e suas tensões estilísticas) a partir do juízo, posto que não nos centramos no significado11 11 Condição de possibilidade para separar o verdadeiro do falso a partir da delimitação de seus sentidos únicos gerais e fechados em si. e tampouco nos designantes,12 12 Referentes, que decidem pela falsidade ou veracidade de uma proposição a partir do momento em que esta se une ou não a estes elementos mas sim nos centramos nos sentidos (os quais prescindem da distinção do juízo entre falso e verdadeiro, posto que o falso possui a potência de criar sentidos vários) e sua afirmação estética de um estilo.

Assim (para demonstrar com um exemplo metodológico a complexidade dessa concepção de realismo), nessa perspectiva a ficção torna-se uma estratégia de extrema importância para a cartografia e sua operação de complexificar e intensificar nossas relações singulares com o mundo, dando corpo a sutilezas possíveis, atmosferas de uma especial densidade nebulosa ao expressar as múltiplas relações possíveis de cada agenciamento ao qual denominamos cotidianamente "objeto", fazendo-o delirar (FONSECA et al., 2010). Com o desenvolvimento das capacidades de preensão do sujeito (ou da capacidade de relação com as imagens para Bergson) pela ficção, temos um incremento na capacidade do sujeito de se relacionar (preender para Whitehead) com os "objetos". Assim, aumentamos a indeterminação das nossas relações com tais entes, os quais adquirem nuances fugidias e complexas, não se tratando mais de uma ligação ação-reação direta mediada pela medula em arco-reflexo.

Ao falarmos de realismo (mesmo que seja em um empirismo transcendental ou realismo especulativo) e de objetos (mesmo que sejam objetos-problema e modulações-estilísticas) nos vemos levados a falar em ontologia. E, assim sendo, como pensamos aqui a construção dessa ontologia em sua metaestabilidade? Como se dá mesmo a consistência da afirmação desses entes-fluxos aos quais nos referimos quando de uma pesquisa cartográfica? Podemos elaborar a partir dos conceitos e autores trabalhados acima, que a consistência ontológica se dá em uma dupla operação: a complexidade e a tensão na elaboração de estilísticas. Podemos considerar que são uma e a mesma operação, ainda que distintas, pois apenas estaríamos atentando para características extensivas ao denominar complexidade (atentando para a multiplicidade da trama relacional) e intensivas ao denominar tensão (atentando para as forças que se afirmam nas relações). A consistência vista do viés da complexidade nos leva à concepção de que a metaestabilidade ontológica dos modos-de-ser é diretamente proporcional à realização de intensas tensões (contrastes) no maior número de relações possíveis, pois, assim, o modo estabelece sua duração não como uma coerência una e autocentrada, mas sim na quantidade e intensidade de relações que a sustenta (e vice-versa): consistência produzida com multiplicidade heterogênea e não com unidade homogênea.

A tensão dessas relações é garantida pela força afirmada pela diferença nessas relações. O conceito de tensão na física é obtido pela relação entre a intensidade da força e área da superfície. Constitui-se, desse modo, como uma espécie de densidade aberta, sem referência a um organismo fechado em si (como no caso da densidade, posto que esta é oriunda da relação entre a força gravitacional e o volume de um corpo, ou seja, refere-se a uma materialidade particular). A tensão, então, é a densidade da multiplicidade, da trama de forças constituindo superfícies expressivas em fluxo. Falamos, com a tensão, de uma densidade dos fluidos baseada no díspar, a qual possui intensidades variadas e variantes.13 13 A viscosidade, por exemplo, é a resistência do fluido à tensão: quanto menos se altera diante de uma tensão nova que com ele se relaciona, maior sua viscosidade. Trata-se de uma propriedade decorrente de sua consistência (tensão da trama que o constitui), no presente caso da ontologia relacional, é diretamente dependente da quantidade e intensidade de relações que constituem um determinado objeto-problema. "El adjetivo concreto usado tecnicamente por los antiguos alquimistas, equivale a viscoso" (TIRADO, 2011, p. 103). A viscosidade faz com que o escoamento dos fluxos se organize em estratos, enquanto o escoamento dos fluidos com menor grau de viscosidade se dá de forma turbulenta: a viscosidade diminui o mreservatório pré-individual, as virtualidades indeterminantes da individuação. Quando aumenta a viscosidade do objeto-problema, este tende a definir estratos de sentidos estabelecidos os quais delimitarão as possibilidades de sentidos possíveis nas relações deste (sempre permanecendo possível um sentindo tangente que altere toda a configuração atual); já quando se diminui a viscosidade dos fluidos estes abrem e complexificam cada vez mais seus sentidos relacionais possíveis. A viscosidade nos aproxima do bom senso e do senso comum na medida em que a fluidez nos aproxima do intempestivo e da fuga.

A tensão é, portanto, a permanência da impermanência, a continuidade da descontinuidade, a constante de variação. Trata-se da potência mesma a disparar devires, acontecimentos. Potência que se mantém pelo paradoxal movimento da tensão e suas intensidades. A unidade dessa ontologia é, portanto, uma unidade disjuntiva, um ponto que não é ponto, mas linha, um fundamento que não funda um princípio: trata-se do eterno retorno operado pelo paradoxo. A tensão do paradoxo é constante, uma agonística sem antagonismos que permite a criação constante. O que nos possibilita a construção de objetos-problema são essas duas operações: o paradoxo e a complexidade. Ambos modos de obter consistência para além da densidade estável, são movimentos que proporcionam essa consistência.

A tensão na modulação dos fluxos é um dos principais operadores das suas estilísticas (e mais ainda no que se refere às variações metaestáveis dessas), sendo, portanto, um operador estético. No entanto, tal operador constitui essas modulações concebendo seu ritmo como em sua acepção grega reo, ou seja, fluir, e não na releitura formalizante latina (aritmos, ou seja, número): pois enquanto esta última fala da matemática como princípio do fluxo, a primeira acepção toma o fluxo como primeiro, sendo a sua matematização uma possibilidade posterior de operação sobre os fluxos (NOVAES, 1994). Isso se dá pelo fato de a tensão ser intensa e não extensa. "Duração [enquanto período], acento melódico e intensidade [tensão]: dos três elementos que caracterizam a prosódia da silaba latina, este último é, sem dúvida, o mais difícil de quantificar" (NOVAES, 1994, p.55). Logo, a tensão na constituição de estilísticas, disparação por saturação nos diria Simondon (2009), fala da produção de um ritmo (fluxo) e não de uma coisa dada por sí (númeno). A tensão e a estilística disparada não são a forma (e muito menos a substância), não são o númeno (referente em si, independente e para além das afirmações), mas, sim, antes o informe, pois estão plenas de direções-sentidos possíveis, são a nuvem de possibilidades virtual em sua relação de condição de possibilidade com o atual. A tensão é o excesso da estilística que aponta sempre um por vir, tal qual em uma melodia, pintura ou fotografia: trata-se do fragmento, denso, intenso, que nos leva a criar um movimento que não há. Seja uma canoa ou rosto pela metade insinuando movimento e dramaticidade, um acorde ascendente que aguarda uma resolução possível e nos leva a uma infinidade delas na sua irresolução, um aforismo perdido a pulsar mais páginas na página em que se encontra, enfim, a densidade da tensão é uma relação de criação, instituínte e não instituída.

A partir desse ultrapassamento das divisões entre sólidos e fluidos, instável e estável, podemos pensar no objeto como um acontecimento: "Por tanto es cierto que el objeto es un no sé qué con cierta permanência y estabilidad, pero su principal marca es la sorpresa" (TIRADO, 2011, p.7). Ele nos chega de modo intempestivo, lançando-nos questões, provocando desejos, deslocando nosso campo de experiência. Ele é "Un horizonte extraño que interpela sin descanso" (TIRADO, 2011, p.7). É uma hecceidade, ou melhor, uma istidade, ou seja, aquele evento que nos permite falar em "isso" sem perder a singularidade do acontecimento. Permite-nos dizer que "isso é isso, e não aquilo" sem apelar a formas e substâncias, mas sim a modulações de estilos, tendências a propiciar certos modos de relação: "Una estación, una primavera, uma canción... poseen su individualidad [hecceidade], no se confunde con nada y no pasa por la fundamentación de uma cosa o sujeto" (TIRADO, 2011, p.141). Apresenta-se na tensão entre a contração do hábito em uma estabilidade e o acontecimento que irrompe intempestivo desfazendo nossas relações em outras, disparando-nos a produção de novos sentidos. Trata-se do objeto concebido como objeto-problema, tensão entre díspares a disparar novas individuações no ser-conhecer, modulando a sua e a nossa metaestabilidade nesta relação preensão. Por isso, nessa ontologia estética, importa-nos pensar "o que podem?" (a potência, a tensão) as estilísticas e não sedimentá-las em um conjunto fechado que nos responda "o que é?", apoiado sobre uma substância, forma ou assemelhado identitário.

Obtemos, então, uma consistência que permite ao cartógrafo referir-se a objetos sem que veja a fluidez se perder nesta delimitação. O cartógrafo em formação pode então se utilizar das ferramentas conceituais acima definidas, em especial tensão, complexidade, consistência, estilo e viscosidade, para inserir mais uma vez o paradoxal em sua experiência de mundo, impedido-o de elevar novas estrias simétricas duais entre o fluido e o estável. Sem retomar a essência necessária aristotélica e sua operação de formação de um claro conjunto identitário, mas sem abandonar a possibilidade de delimitar objetos e referir-se a estes em suas cartografias. Assim, o cartógrafo enfrenta os riscos de abrir-se a um "tudo é tudo" em sua aposta no devir, no rizoma, com o risco de operar tensões tão duras que venham a formar conjuntos fechados. O cartógrafo aguça o paradoxo em seu olhar ao se preocupar em produzir consistências fluidas através das modulações das relações que constituem os objetos-problema e que estes, por sua vez, constituem com os demais fluxos. Oscilando constantemente entre os abismos o cartógrafo opera com o paradoxo a constituição dos seus objetos-problemas.

NOTAS

Recebido em: 05 de maio de 2013

Aceito em: 17 de julho de 2013

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  • COSTA, L. A.; FONSECA, T. M. G. Do contemporâneo: o tempo na história do presente. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 59, n. 2, p. 110-119, 2007.
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  • WHITEHEAD, A. N. O conceito de Natureza São Paulo: Martins Fontes, 1994.
  • As durações do devir: como construir objetos-problema com a cartografia

    The durations of the becoming: how to building problem-objects with cartography
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    Como, por exemplo, em Baremblitt (1996). Ainda que o autor pontue diversas vezes sua intenção em não estabelecer tal divisão dual e simplista, suas advertências perdem força diante de uma enxurrada de exemplos onde o molecular sempre é identificado com os devires, fugas e revoluções, enquanto o molar é atrelado aos seus opostos.
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    Apesar de ser um conceito utilizado por Simondon (2003; 2009) estritamente para organismos vivos, por conta de sua reserva pré-individual que lhes possibilita (e impinge) constantes alterações em seus modos atuais de individuação, utilizamos aqui metaestabilidade de modo similar, mas sem outorgá-la exclusivamente aos seres vivos; pensamos nas relações das intensidades virtuais deslocando constantemente os arranjos atuais. Assim, a metaestabilidade se apresenta como conceito possível para arregimentar a estabilidade e o fluxo em um empirismo transcendental, ou seja, um empirismo que não se restringe ao dado pois está pleno de virtualidades e devires.
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    No entanto, cabe aqui dizer que em uma ontologia modal a distinção entre diferença de natureza e de grau se torna obsoleta, posto que em um ser sem essência, constituído pelas contingências que lhe forjam um estilo, qualquer variação, pouco importando o fato de ser ínfima, numérica, de deslocamento, de intensidade, etc., altera a modulação do ser, o qual, por ser modulação, altera seu ser mesmo (sua antes denominada "natureza"). A distinção de natureza aqui pontuada por Bergson fala mais de uma hierarquia ontológica imposta às sensações contra a matéria, remetendo inclusive à divisão entre propriedades primeiras e segundas: interessa a imanência de imagens, coisas, percepções e afetos. Pois aqui, quando falarmos de diferenças e mudanças, falaremos sempre de diferenças de modulações, e não de origem, substância ou essência (três das clássicas acepções de "natureza"). Desse modo, pouco importa se tratar de uma mudança medida em mais ou menos (mais ou menos alegre; mais ou menos neurótico), ou uma mudança de um a outro (alegria ou tristeza; neurose ou psicose), todas variações são variações dos modos de ser, variações de suas relações. Antes de serem diferenças de grau ou de natureza são cálculos de relações entre singularidades híbridas. Não existem continuidades ou descontinuidades absolutas em tal perspectiva, e toda e qualquer contingência é constituinte da modulação do modo de ser, nos importando mais os modos de relação entre as diferentes diferenças do que sua categorização dual nestas clássicas categorias. Se fôssemos obrigados a tomar uma das polaridades como constituinte das diferenças no mundo melhor seria considerar as diferenças de natureza e impedir a ordenação linear crescente-decrescente das diferenças de grau: mais vale, então, tomar toda e qualquer variação como variação de natureza, sempre, pouco importando o quão ínfima e contingente. O que sempre se quer evitar aqui é a hierarquização das diferenças a partir da constituição de um centro que se pretende geral, ordenando as demais variações em um leque ou pirâmide a partir dele. Para ver mais detalhadamente o trabalho conceitual de elaborar um conceito de natureza desnaturada ver Costa (2012).
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    Aumento de satisfação para Whitehead é o aumento das relações possíveis de um ser, desse modo, ele intensifica suas preensões e correspondentemente seus sentires. Tal operação do desejo nos seres vivos os leva a um vetor-dobra, afirmando-se como sujeitos-de-preensão em relações várias onde delimitam "objetificações" (vetores objetais na preensão). É um conceito semelhante ao de aumento de potência em Espinosa (1973) ou de concreção e naturalidade em Simondon (2007).
  • 5
    "Sentires", são a unidade ontológica e epistêmica mínima na ontologia de Whitehead. O mundo para este filósofo é um mar vaporoso de relações no qual os sentires são suas gotas: condensações de experiências. E experiência, aqui, é tão concreta quanto o corpo, posto que ontologia e epistemologia são um só acontecimento. Os sentires acompanham a composição ou decomposição de nossas relações, e nossas relações são tijolos e cimento do mundo. Desse modo, temos uma ontologia modal, onde modos de experiênciar são as oscilações do mundo mesmo em seus devires.
  • 6
    No entanto, nem tudo é tão belo quanto aparenta aos olhos contemporâneos ávidos por paradoxos que não se querem solutos. Whitehead nos dirá, em um rompante de completude, que, por fim, com as múltiplas concreções finitas da atualidade, com suas satisfações de relacionarem-se coerentemente, nós mesmos, o mundo, completamos a este deus incompleto, segundo uma ordem eterna que é a "'sabiduria' absoluta final" (WHITEHEAD, 1956, p. 466). Ou, ainda, na página seguinte, nosso filósofo dá uma leve inclinada nas relações entre estabilidade e fluidez ao dizer-nos que deus é antes perene e depois fluido, ao contrário do mudo que é antes fluido e depois perene em sua natureza. No entanto, façamos vistas grossas a tais detalhes e cultivemos a preensão negativa dessas afirmações, em busca de satisfação com a coerência paradoxal por nós aqui buscada.
  • 7
    "Preensão" é não apenas um modo de composição do conhecimento, mas também o modo como se compõe os seres. Nessa relação, um ser afeta ao outro com sua própria singularidade, no encontro, sem contudo desfazer a singularidade própria a esses elementos envolvidos na dita preensão (sendo fundamental ressaltar que cada um dos elementos é também, ele mesmo, um complexo tornado coerente por uma preensão). Ou seja, simplificando ao conceito podemos considerar a "preensão" uma relação de composição ontológica e epistêmica entre termos diversos e singulares os quais também, por sua vez, são constituídos por preensões.
  • 8
    Preensões positivas são as relações onto-epistêmicas já descritas em nota acima, enquanto as negativas são as relações de não-ter-relação, ou seja, são as preensões (também acompanhadas de sentires) que garantem ao mundo a ausência de uma "identidade total" (tudo é tudo), elaborando desterritorializações, permitindo brechas, fugas e deslocamentos, vãos sobre os quais podemos afirmar a diferença e singularidade de cada preensão e seus sentires. Ainda que se constituam como uma espécie de virtualidade (reservatório intenso de relações-criações), não constituem exatamente este papel na filosofia de Whitehead, posto que este é outorgado aos chamados "potenciais" ou "objetos eternos" (WHITEHEAD, 1956), os quais constituem um campo sutil de variações com o qual se erigem as atualizações das preensões positivas e negativas.
  • 9
    Bem verdade que os conceitos de apetite e satisfação parecem, por vezes, servir para coordenar uma ordem ideal na ontologia de Whitehead, uma ordem ideal que vê na integração coerente através da preensão positiva seu rumo. Ou seja, da primeira contingência vieram as condições produtoras de coerência no mundo (não devido a uma sobrenaturalidade desta, mas sim pela mera antecedência temporal na criação). "Lo inexorable en Dios es la valoración como aspiración al orden" (WHITEHEAD, 1956, p. 332).
  • 10
    Tanto a conexão quanto a desconexão totais são aqui consideradas caos, pois, apenas ao erigir (selecionar, decidir, valorar, etc.) modos específicos e singulares (criar preensões), é que se dá a criação da natureza, das ordens em devir.
  • 11
    Condição de possibilidade para separar o verdadeiro do falso a partir da delimitação de seus sentidos únicos gerais e fechados em si.
  • 12
    Referentes, que decidem pela falsidade ou veracidade de uma proposição a partir do momento em que esta se une ou não a estes elementos
  • 13
    A viscosidade, por exemplo, é a resistência do fluido à tensão: quanto menos se altera diante de uma tensão nova que com ele se relaciona, maior sua viscosidade. Trata-se de uma propriedade decorrente de sua consistência (tensão da trama que o constitui), no presente caso da ontologia relacional, é diretamente dependente da quantidade e intensidade de relações que constituem um determinado objeto-problema. "El adjetivo concreto usado tecnicamente por los antiguos alquimistas, equivale a viscoso" (TIRADO, 2011, p. 103). A viscosidade faz com que o escoamento dos fluxos se organize em estratos, enquanto o escoamento dos fluidos com menor grau de viscosidade se dá de forma turbulenta: a viscosidade diminui o mreservatório pré-individual, as virtualidades indeterminantes da individuação. Quando aumenta a viscosidade do objeto-problema, este tende a definir estratos de sentidos estabelecidos os quais delimitarão as possibilidades de sentidos possíveis nas relações deste (sempre permanecendo possível um sentindo tangente que altere toda a configuração atual); já quando se diminui a viscosidade dos fluidos estes abrem e complexificam cada vez mais seus sentidos relacionais possíveis. A viscosidade nos aproxima do bom senso e do senso comum na medida em que a fluidez nos aproxima do intempestivo e da fuga.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Set 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2013

    Histórico

    • Recebido
      05 Maio 2013
    • Aceito
      17 Jul 2013
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