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Subjetividade, alteridade e desamparo nos tempos atuais

Subjectivity, alterity and abandonment on contemporary

Resumos

Este trabalho vai ao encontro do que foi realizado ao longo da teoria freudiana: contextualizar o homem em sua ordem social circundante e pensar as relações que se estabelecem na configuração do laço social. O objetivo é refletir sobre as possibilidades de outras articulações metapsicológicas, que permitam compreender a relação dos dispositivos contemporâneos criados para lidar com odesamparo, e as implicações de seu uso recorrente na condição desejante.Para tanto, nos deteremos a propósito das tensões entre as três instâncias do aparelho psíquico: id, ego e superego. Analisando as relações que estruturam o laço social, conseguimos repensar proposições psicanalíticas consagradas, tais como alteridade, desejo, pulsão e seus destinos.

Psicanálise; subjetividade; contemporaneidade; alteridade


This research agrees to Freud's concept: contextualizing the man in its surrounding social order and to analyze human relations that are established in the configuration of social bond. This article has the main objective to think about a different metapsychological articulation to help us to understand the relation of contemporary arrangements created to deal with the feeling of abandonment and its results within the desire condition. Therefore, we think about tensions between all three instances of the psychic apparatus: id, ego and superego. Analyzing relationships that structure the social bond, we can rethink psychoanalytic propositions, such as alterity, desire, pulsing and their vicissitudes.

Psychoanalysis; ubjectivity; contemporary; alterity


A contemporaneidade produz modos de subjetivação que cada vez mais se distanciam dos pacientes analisados por Freud durante a era vitoriana. Em sua obra, Freud descreve um homem vivendo a derrocada de um sistema que impu tava à razão a grande salvaguarda do mundo. Um tempo que já sinalizava o fim de uma era excessivamente repressora da vida sexual, que se expressava dramaticamente na figura da histérica, na qual o sintoma figurava como manifestação do resto pulsional não silenciado pelo processo civilizatório.

As incessantes transformações ocorridas ao longo do último século permitiram o surgimento de distintas formas de subjetivação (BAUMAN, 1998BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.; BIRMAN, 2003bBIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003b.; MAIA, 2003MAIA, M. S. A máquina de expressão: corpo, subjetivação e clínica psicanalítica. In: PEIXOTO JÚNIOR, C. A. (Org.). Formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004. p. 115-134.), o que de modo algum nos permite afirmar a dissolução da subjetividade vienense de meados do século XIX. A fim de pensar tais transformações é necessário que se empreenda uma reflexão acerca das vicissitudes do desejo na contemporaneidade.

O que propomos neste estudo é refletir sobre as possibilidades de uma distinta apreensão metapsicológica do sujeito contemporâneo. Objetivamos assim, compreender a relação dos dispositivos contemporâneos criados para lidar com o desamparo, e as implicações de seu uso recorrente na condição desejante. Nessa análise, articulamos as formas assumidas pelo desejo, sua relação com o desamparo primordial e os distintos arranjos subjetivos. Buscamos pensar as relações que se estabelecem intra e intersubjetivamente, bem como sedimentar nossa hipótese quanto a exigência de uma nova configuração à estruturação psíquica humana produzida nos tempos atuais.

A presentações do desejo na contemporaneidade: percursos da fluidez

Para articular a discussão aqui pretendida, propomos repensar a configuração adquirida pelo desejo contemporâneo sob a seguinte indagação: terá o desejo, nos tempos atuais, a mesma aparência daquele descrito por Freud (1996b[1900])FREUD, S. A interpretação de sonhos (1900). In: ______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud.. Rio de Janeiro: Imago, 1996b. Edição Standard Brasileira, v. IV e V, p.1-734. como algo capaz de reinvestir uma imagem-lembrança de caráter identitário, colocando o aparato psíquico em movimento?

A contemporaneidade revela uma intrincada rede imagética que aloca o desejo em uma condição de fluidificação intensa, conduzida às últimas consequências por um psiquismo que luta intensamente para se rearranjar a fim de acompanhar tal velocidade. Não queremos, com isso, afirmar que as moções pulsionais – que se representam por meio do desejo – não tenham sido descritas por Freud com um caráter fluído. Pelo contrário, é justamente em sua moldura identitária que se encontra o ímpeto da fluidez, visto ser a probabilidade do devir, ao ir ao encontro da ordem identitária, o fator que permite perceber as mais gritantes manifestações de sofrimento psíquico: precisamente aí se aloja o sujeito, entre a continuidade do mesmo e a possibilidade de se reinventar. Não é de forma despretensiosa que o desejo serve-se "da" e "à" insatisfação para lidar com o impossível da castração.

Em relação ao "desejo", podemos pensar que o que o caracteriza e difere da "falta", percebida nas necessidades básicas dos animais inferiores, é de fato a natureza do desejo (GARCIA-ROZA, 2002GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana: a interpretação do sonho. 6. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002. v. 2.). No caso do animal, o desejo remete a uma falta em específico, a uma falta naturalmente predeterminada por um objeto ausente – por exemplo, o alimento. O que irá realizar a necessidade do animal já está dado antes mesmo dele surgir no mundo. Já o desejo humano está remetido a um vazio que não se faz primordial, mas que se constrói em uma espécie de fenda intersubjetiva. O que é propriamente humano escapa da ordem do natural. Como nos lembra Garcia-Roza (2002FREUD, S. Neurose e psicose (1923). In: ______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996e. Edição Standard Brasileira, v. XIX, p. 162-213., p. 192, grifo do autor):

No caso do desejo humano ocorre algo completamente diferente. Ele é "desejo de desejo", e não desejo de objeto. Ou se preferirmos: o objeto do desejo humano é outro desejo. Mesmo que se expresse sob a forma de desejo de objeto, esse objeto só é desejado porque objeto de desejo de outro sujeito. O que o homem deseja, sempre, é o desejo do outro. Neste caso, o que vai "preencher" o vazio do desejo não é um objeto, mas um outro vazio. Portanto, não há, como no desejo animal, falta de objeto, mas sim um vazio essencial e insuperável.

Essa condição de desejo é fundamentalmente marcada pela moção móvel que ele ganha ao referir-se sempre a um outro. O desejo é, desse modo, continuamente colocado na condição de referência a uma exterioridade que busca, fatidicamente, tamponar uma lacuna interior. Ainda de acordo com o referido autor, "é a linguagem que distingue o desejo, de forma irredutível, o desejo animal do desejo humano. É pela linguagem que o reconhecimento pelo outro será possível" (GARCIA-ROZA, 2002GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana: a interpretação do sonho. 6. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002. v. 2.. p. 192). A linguagem é o que define o desejo humano enquanto a busca de um não-realizável. Pois bem, se foi dito anteriormente que o desejo contemporâneo distanciou-se daquele descrito por Freud (1996b[1900])FREUD, S. A interpretação de sonhos (1900). In: ______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud.. Rio de Janeiro: Imago, 1996b. Edição Standard Brasileira, v. IV e V, p.1-734. em A interpretação dos sonhos , a linguagem também sofreu uma considerável mudança no decorrer desse processo.

A linguagem é definida pelo processo de alteridade, ou seja, reconhecimento da diferença como característica necessária para a formação subjetiva. É somente por meio da mediação de um Outro – enquanto um suposto que serve, com o vazio de seu desejo, como aparato entre um sujeito e o mundo que o circunda – que se torna possível criar novos destinos à pulsão. Esta, por nossa condição humana, pode ser privilegiada pela presença de um suporte que advém da cultura. No entanto, devemos ser cautelosos como nos alerta Eagleton (1998)EAGLETON, T. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. ao apontar para a condição basal humana como não cultural – como nos faz querer crer o discurso libertário discurso pós-moderno – mas natural do ser. Somos levados a buscar a cultura como forma de escapar à morte. A cultura é justamente o que pode vir preencher o vazio, o real intransponível da castração humana. Daí a alteridade como salvaguarda e mal-estar na neurose.

Pensar tal condição de mal-estar, já apontada por Freud (1996f[1930])FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: ______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996f. Edição Standard Brasileira. v. XXI, p. 67-150 em O mal-estar na civilização, nos faz levantar questões sobre os modos de lidar com a alteridade nos tempos atuais. No texto freudiano os relacionamentos humanos estão colocados como uma das três fontes de mal-estar, ao lado da imprevisibilidade da natureza e da deterioração do corpo. Tais relacionamentos muitas vezes podem estar compelidos ao fracasso, haja vista sua dupla função, permitir a sobrevivência neurótica e recriar constantemente um mal-estar, dada nossa condição simbólica castrada. Como em toda época histórica, o mundo contemporâneo promove também uma frenética busca pelo estado de "limpeza da sujeira" e dos resíduos imundos (BAUMAN, 1998BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.). Isto, inevitavelmente promove um total recalcamento do outro do reconhecimento, ou seja, do outro da diferença. A falência da modernidade em promover um estado de purificação dos sujeitos acelerou-se no período contemporâneo, bastando observar os híbridos encontrados na atualidade. Tais sujeitos encontram-se em um estado liminar, de para-além da normalidade/anormalidade, e assim criam um permanente estado confusional, visto buscarem uma negação da tradição (assim como na modernidade) e procurarem se despojar da interferência coletiva no destino da individualidade. .

Para lidar com tal situação, monta-se uma busca desenfreada por tornar a estranheza desses híbridos, e das demais "impurezas" que habitam a sociedade hodierna, plena semelhança por meio da homogeneização do coletivo. Ao se traçar, como máximo objetivo contemporâneo, a felicidade fugaz e a qualquer custo, a plasticidade e o movimento, implanta-se um regime de sustentação da individualidade e liberdade como um bem comum. De tal sorte, manda-se para um limbo qualquer (recalque) a mínima possibilidade de diferença, visto ser o sinistro experimentado como invasivo e aterrorizante.

Ao considerarmos que a inserção do sujeito na cultura se dá pela dupla via que articula submissão e diferença singular, a cultura da imagem e do espetáculo, cultuada de maneira na contemporaneidade, contribuiu sobremaneira para o movimento de recalque do outro, compositor da relação de alteridade fundamental. Para entendermos como se dá esse movimento, é necessário lançarmos mão de uma tentativa de uma apreensão metapsicológica do psiquismo para podermos considera-lo na atualidade.

Para isso lançaremos mão do pensamento freudiano e de sua consideração a propósito do sistema de registros mnêmicos, esboçado na Carta 52 endereçada a Fliess. Nela ele faz a seguinte revelação:

Assim, o que há de essencialmente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a memória não se faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de indicações. [...] Não sei dizer quantos desses registros há: três, pelo menos, provavelmente mais (FREUD, 1996a[1986]FREUD, S. Carta 52 (1986). In: ______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. .Rio de Janeiro: Imago, 1996a. Edição Standard Brasileira, v. I, p. 193-197., p. 195).

Essas formas de apreensão do registro psíquico, as percepções (Wahrnehmungen), indicam as apreensões do real que não se inscrevem em um sistema de traços psíquicos, não guardam registro enquanto memória. São impressões ligadas ao sistema perceptivo, no qual claramente Freud mantém a sua ideia de um sistema psíquico perpassado por uma rede neuronal. A primeira forma de registro (Wahrnehmungszeichen) refere-se às indicações de percepção, ou signos de percepção, que são uma primeira transcrição de impressões que não caminham por si só até à consciência e que não deixam traços mnêmicos, mas se mantêm apreendidas no aparato psíquico, na forma de intensidade. A segunda forma de registro (Unbewusstsein) corresponde à inconsciência, que é onde se encontram as representações que não são passíveis de livre acesso à consciência. A terceira (Vorbewusstsein) e última possibilidade de registro descrita por Freud refere-se à pré-consciência, onde se encontram as representações verbais passíveis de atingir a consciência (MAIA, 2003)MAIA, M. S. A máquina de expressão: corpo, subjetivação e clínica psicanalítica. In: PEIXOTO JÚNIOR, C. A. (Org.). Formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004. p. 115-134..

O que é interessante observar, para reforçar o argumento aqui proposto, é a disposição em que se encontram as primeiras formas de registro perceptivos – os signos de percepção. É justamente essa questão de seu não registro enquanto inscrição psíquica e sim enquanto signo de percepção que constitui a pedra angular para sustentar a argumentação aqui proposta. Tais signos não compõem um sistema de traços mnêmicos que marcam o psiquismo (MAIA, 2004)MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008..

Esses signos de percepção são responsáveis por apreender tudo o que se passa ao redor do indivíduo, uma vez que, segundo Freud (1996d[1923])FREUD, S. O ego e o id (1923). In: ______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996d. Edição Standard Brasileira, v. XIX, p. 9-76., o id possui uma forma de abertura ao campo somático. Não obstante, estes não guardam em si capacidade de significação. Mantêm-se inscritos enquanto forma de intensidade, como uma marca, que exige constante trabalho psíquico, e não enquanto traços constituintes. Por não terem como característica principal sua inscrição enquanto memória-lembrança e sim como intensidade, esses signos não são transcritos enquanto cadeia significante. Permanecem como sinal e provocam índices terrificantes de angústia. Tais signos são as impressões. E as impressões são "marca(s) da irrupção do real, como forma de presentificação da libido ou, mais adequadamente, da pulsão de morte" (GARCIA-ROZA, 2002GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana: a interpretação do sonho. 6. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002. v. 2., p. 55).

Se mantidas como energia desprovida de ligação, tais impressões carregam consigo a baliza da angústia e põem todo o aparelho psíquico em movimento. Há um esforço e dispêndio de energia psíquica para que se minimize tal angústia, visto ser esta sentida como mortífera, justamente por não ser vivenciada de forma antecipatória, mas sim por irromper do real sobre o sujeito.

A contemporaneidade, em sua recusa ao desamparo inerente ao devir humano, tem cada vez mais colocado o aparato psíquico em um movimento a-histórico. O movimento coletivo de busca de arrefecimento da angústia inundou o corpo social – por meio do alargamento do campo de afetação imagético – com cada vez maiores quantidades de impressões que atingem violentamente o indivíduo. Tais impressões reduzem-se à produção e manutenção de formações de signos de percepção que, enquanto intensidade duradoura, exige trabalho psíquico. Assim, transbordam-se para além de qualquer possibilidade de formação de barreiras de contato, que visem à realização do desejo, visto que essas só são passíveis de formação por meio de inscrição de traços psíquicos, capazes, portanto, de produção de um texto psíquico.

O sujeito contemporâneo cada vez mais produz desconcertantes manifestações de passagens ao ato,1 1 Birman (2003a, p. 67) afirma que, na passagem ao ato, há "uma descarga de excitabilidade que, por sua inespecificidade, não segue linhas de uma cena simbólica". como medida defensiva desse transbordamento pulsional provocado pelo incremento massivo destes signos de percepção advindos do real. Vive-se intensamente em uma ordem de conectividade às mais diversas atividades que promovam aumento dessas intensidades que não se constituem enquanto história-lembrança.

Como Eagleton (1998)EAGLETON, T. As ilusões do pós-modernismo. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998. nos faz lembrar, o discurso pós-moderno ao afirmar a possibilidade de desprendimento do passado como determinante de nossa estruturação psíquica, serve como sustentáculo a estes modos de subjetivação que aqui estamos tratando. Esquecimento do espólio de um passado e apagamento de projetos futuros, a fim de atender à lógica da busca do prazer a qualquer custo, de maneira rápida e intensificada, em que "a felicidade se configura como sinônimo de euforia" (MAIA, 2002MAIA, M. S. Um tapete vermelho para a angústia: Considerações sobre a clínica psicanalítica e a contemporaneidade. In: PLASTINO, C. A. (Org.). Transgressões. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002., p. 88). Tal dinâmica do desejo irá proporcionar uma das mais gritantes manifestações de sofrimento psíquico: o retorno.

O clamor do retorno: o desmentido e a desestruturação

A aceleração da fluidez do desejo, garantida durante os tempos que correm, faz uma espécie de cobrança ao psiquismo. Esta não se realiza como um pedido suave, mas como um grito, um apelo que, por meio de um denso estardalhaço, faz-se sentir de forma atordoante no psiquismo. Tal atordoamento deve-se, sumariamente, à insustentabilidade psíquica e afetiva em que o sujeito se encontra. Com a fluidificação do desejo, as barreiras entre eu-outro também se modificam de modo marcante e fundamental. Ao adentrar o terreno do recalque do outro da diferença, ou seja, ao buscar a homogeneização do agir e do pensar, o indivíduo deixa de reconhecer a alteridade, condição essencial da estruturação psíquica. Afinal, é na relação com o outro que o sujeito torna-se capaz de sustentar-se enquanto ser do desamparo.

Ao aniquilar esse outro entra-se em um terreno do desmentido, ou melhor, desautorizado (FIGUEIREDO, 2001FIGUEIREDO, L. C. Modernidade, trauma e dissociação: a questão do sentido hoje. In: BEZERRA Jr. B.; PLASTINO, C. A. (Org.). Corpo, afeto, linguagem: a questão do sentido hoje. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 219-244.; MAIA, 2003MAIA, M. S. A máquina de expressão: corpo, subjetivação e clínica psicanalítica. In: PEIXOTO JÚNIOR, C. A. (Org.). Formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004. p. 115-134.), no qual o outro, que deveria servir de anteparo à pulsão, é apagado em sua capacidade de extrair novos sentidos da experiência sensorial. De acordo com Maia (2003MAIA, M. S. Um tapete vermelho para a angústia: Considerações sobre a clínica psicanalítica e a contemporaneidade. In: PLASTINO, C. A. (Org.). Transgressões. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002., p. 152),

o desmentido rompe com o circuito introjetivo propiciador dos sentidos compartilhados. Tem-se então a ruptura de qualquer possibilidade de atribuição de sentidos; o que faz com que a vivência traumática se constitua como violência.

O trauma é estruturante no processo do desenvolvimento subjetivo, visto ser a fenda criada entre a incapacidade de acolher a experiência e a possibilidade de atribuição de novos sentidos à experiência, fundamental para alavancar o crescimento emocional. No entanto, à medida que há uma contínua falha (desmentido) do mundo externo, incapaz de acolher as angústias desencadeadas por essa fenda entreaberta, instalam-se vivências de violência emocional.

A capacidade de acolher a experiência emocional é, cada vez mais, diminuída pela aniquilação dos estranhos, da diferença subjetiva inerente aos sujeitos sociais. A hipermodernidade constrói uma história de igualdades, ao passo que arrefece a angústia que possa ser gerada pelas vivências ante o estranho. Devemos lembrar que a angústia é um componente psíquico que serve de alerta à possibilidade de vivências traumáticas. Ela age como promotora de um estado emocional que se prontifica em garantir a sobrevivência psíquica do ser. Ao aniquilar a angústia, exige-se o preço da vivência traumática em sua forma mais violenta.

Desse modo, na sociedade da contemporânea que mantém o indivíduo conectado a meios que possam aliviar-lhe a angústia e propiciar momentos de "paz" artificial, assiste-se a um retorno por tal estado de alienação psíquica. O que é recalcado – o outro da diferença – faz um retorno ao exigir do psiquismo que se entre em um estado de "vazio funcional" – distinto do "vazio primordial"2– capaz de acompanhar a velocidade das transformações e intensidade dos prazeres que, obrigatoriamente, deve-se conquistar. Esse estado de "vazio funcional" – aqui proposto por nós – põe o psiquismo, cada vez mais, em ação, ou seja, os sujeitos "funcionam" muito bem para acompanhar a insaciabilidade das ações que o mundo lhes exige. No entanto, tais ações, normalmente, caem em um profundo vazio, uma vez que se vêm impossibilitadas de adquirir sentido emocional. Sendo assim, constroem-se novas modalidades de funcionamento subjetivo, em que a ação substitui o desejo que exige, como finalidade última, o ato. A intensificação dos atos, ou melhor, as passagens ao ato, são manifestações de uma espécie de retorno daquilo que foi relegado ao limbo e exigem do sujeito mecanismos defensivos, asseguradores de sobrevida psíquica.

Frente aos mínimos estados de diferença, busca-se, cada vez mais, evadir-se da experiência, agindo de maneira compulsiva. De acordo com Maia (2003, p. 238, grifo da autora)MAIA, M. S. Um tapete vermelho para a angústia: Considerações sobre a clínica psicanalítica e a contemporaneidade. In: PLASTINO, C. A. (Org.). Transgressões. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2002., "no 'agir a dor', temos um psiquismo inundado por intensidades. O 'agir a dor' não é voluntário, nem contém qualquer intenção. O 'agir a dor' nem sempre envolve um movimento colérico e 'barulhento'". Tais passagens ao ato guardam, em si, a dimensão de vazio, pois o sujeito age incessantemente, mas não compõe história. O psiquismo transborda pelas bordas do corpo, que, em contrapartida, passa a agir desenfreadamente.

Em tal estado de "vazio funcional",o sujeito é um excelente operador externo, capaz de realizar atividades cotidianas de alta complexidade. Tal situação é terreno fecundo para o aparecimento dos estados de normopatia que de acordo com Ferraz (2002FERRAZ, F. C. Normopatia: sobreadaptação e pseudonormalidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002., p. 12)

o que ocorre na normopatia é, na verdade, uma cisão entre a realidade interna e externa, a primeira sendo praticamente suprimida e a segunda sobre-investida de modo compensatório. O sujeito perde o contato consigo mesmo, passando a funcionar à moda de um robô.

O normótico é a personificação do sujeito empobrecido da linguagem, ou melhor, a presença do normótico, nos dias de hoje, é o grito do retorno subjetivo que, enquanto característica fundante do humano, não pode ser recalcado. Em outras palavras, há o retorno em direção ao vazio primordial, uma vez que este, apesar de massacrado e minado pelo estado de obsessão pela evasão da experiência subjetiva – que é o corolário da atualidade – não deixa de se fazer presente enquanto força constante que ativa e exige trabalho psíquico.

Id, ego e superego: sobre a possibilidade de uma distinta articulação

Tomando as estruturas da segunda tópica, discorreremos sobre conjecturas que pensamos ser pertinentes para uma cartografia metapsicológica do sujeito nos tempos atuais.

De acordo com Laplanche e Pontalis (2001LAPLANCHE, J; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicanálise. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 219): "O id constitui o polo pulsional da personalidade. Os seus conteúdos, expressão psíquica das pulsões, são inconscientes, por um lado hereditários e inatos e, por outro, recalcados e adquiridos". Na sociedade atual, observa-se, em detrimento dos processos de recalque, um afluxo do uso da clivagem egóica como forma defensiva do ego. Este fato pode ser facilmente observado quando, por exemplo, negamos várias situações de violência do cotidiano (contra crianças que morrem de fome; contra a mulher em suas múltiplas formas; a tão conhecida impunidade das elites; o crime organizado etc) que insistem em se fazer valer e que são simplesmente relevadas e não simbolizadas. De tal sorte, pensamos haver uma sensível restrição do material oriundo do recalque – visto a primazia das clivagens –, compositor do polo pulsional representado pelo id. Deste modo o recalque perde em espessura vertical e ganha em achatamento horizontal, numa diagramação de perda de profundidade (inscrição psíquica) e alargamento extensivo-intensivo (intensidade dos "signos de percepção").

Devemos lembra que o material que compõe o id não se restringe somente às experiências que passaram por inscrição psíquica, mas também estende-se ao conjunto de experiências que permanecem carentes de registro (BIRMAN, 1989BIRMAN, J. Freud e a experiência psicanalítica. Rio de Janeiro: Taurus-Timbre, 1989.). Pode-se afirmar haver uma ordem de acontecimentos que estão para além do inconsciente recalcado e que circulam na dimensão corporal. Tal dimensão é responsável por articular as inscrições desses signos à polissemia de sentidos.

Freud (1996d[1923])FREUD, S. O ego e o id (1923). In: ______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996d. Edição Standard Brasileira, v. XIX, p. 9-76. nos lembra que há uma abertura na terminação do id ao campo somático, justamente onde pode se fazer sentir o universo polissêmico dos sentidos. Não obstante, ocorre que essas múltiplas possibilidades de sentidos só podem ser adquiridas se houver um outro que as compartilhe nesse mesmo campo corporal. Uma alteridade que insira o sujeito da linguagem, compositor de discursividade semântica, para além da afetação somática. Somente a partir daí é que se abre a possibilidade de historicização do sujeito discursivo. Ocorre que, na atualidade, há cada vez uma maior carência desse campo afetivo-outro enquanto alteridade de reconhecimento, como já citado anteriormente. Portanto há de se pensar haver um afluxo desenfreado desses signos perceptivos, oriundos de um campo imagético de invasividade do real, nas raízes da formação do id do sujeito contemporâneo. De tal forma, fica patente a ideia de um id superabundado por uma via de mão única que transborda à afetação somática. O sujeito atual vive sob um inusitado domínio no qual não se faz mais presente, de forma intensiva, um espaço onde o desejo se articula à pulsão representada psiquicamente pelo id, mas muito de maneira somática. Este id encontra-se inundado por inscrições do sítio imagético, carentes de possibilidade de outros sentidos, que não o transbordamento ao corpo e a a-historicidade presente em viva carne crua. Pode-se dizer que, enquanto a história não se compõe, o corpo passa a ser palco privilegiado para as vivências afetivas.

Se, por um lado, há o sobrepujamento das possibilidades de representação da energia pulsional por meio do desejo em sua forma identitária – visto estar o id carente de material proveniente do recalque – a instância psíquica superegóica comporta-se de forma distinta. Retomando Laplanche e Pontalis (2001LAPLANCHE, J; PONTALIS, J. B. Vocabulário da psicanálise. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001., p. 497), o papel do superego "é assimilável ao de um juiz de valor ou um censor relativamente ao ego. Freud vê na consciência moral, na autoobervação, na formação de ideais, funções do superego". Sendo o superego também inconsciente, provindo do material oriundo do recalque, se encontra submetido a uma distinta (como proposta neste trabalho) possibilidade de articulação.

Com a antecipação do mecanismo defensivo da clivagem egóica e o enfraquecimento do recalque, observamos cada vez mais na sociedade contemporânea, maneiras de se negar parte da realidade. Tal componente recusado é na maioria das vezes aquilo que provoca maior sofrimento ao sujeito (MAIA, 2003)MAIA, M. S. A máquina de expressão: corpo, subjetivação e clínica psicanalítica. In: PEIXOTO JÚNIOR, C. A. (Org.). Formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004. p. 115-134.. De tal sorte, há também uma quase ausência de possibilidades de autoobservação, já que o que resta a ser observado é justamente aquilo que é lícito ser vivido na hipermodernidade: uma estetização hipervalorizada do que é novo, prático e belo aos padrões contemporâneos. Abre-se, portanto, um espaço para se pensar a oposição criada entre os ideais egóicos e a manutenção a todo custo, de um eu idealizado. Este, responde como gozo (olhado, escutado) do superego que "nada deixa passar" e, metaforicamente, mantém seu dedo em riste no duplo imperativo de gozar; de um lado, o eu idealizado, espiado pelo olhar do outro (não alteritário, mas sim homogêneo), e, por outro, o superego ostenta sua condição ditatorial hipermoderna.

Cabe lembrar o modo de duplo funcionamento do superego: interdição e gozo. Se por um lado a função do superego é ser um elemento de interdição, inserido-o enquanto ser da cultura num universo de relações regulamentadas, por outro lado, seu funcionamento é sempre uma exigência imposta ao Ego. Lacan (2008[1973]LACAN, J. O Seminário: mais, ainda (1973). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. livro 20., p. 11), em relação ao gozo nos lembra que "nada força ninguém a gozar, senão o superego. O superego é o imperativo de gozo – Goza!". Assim, o superego é a instância que aponta para as relações que são regulamentadas a partir de uma exigência de gozo, que, como tal, "não serve para nada" (2008[1973]LACAN, J. O Seminário: mais, ainda (1973). Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. livro 20., p. 11).

Se, como dissemos anteriormente, a atual sociedade transformou-se em excessivamente permissiva, onde as noções de lei, autoridade e costumes se enfraqueceram em termos de rigidez (LEBRUN, 2010LEBRUN, J-P. O mal-estar na subjetivação. Porto Alegre: CMC, 2010.; MELMAN, 2008MELMAN, C. O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.), o que resta à atualidade é tão somente a função de exigência. Mas afinal exigência de quê?

Consideramos aqui essa condição ditatorial um desvio do superego no curso formador da estrutura neurótica. Tal condição impossibilita espaço de abertura e maleabilidade à exigência que se inscreve no palco conflitivo entre as demandas pulsionais advindas do id e do componente egóico. Instala-se um regime de unilateralidade que, cego a qualquer outra alternativa que não o posicionamento enrijecido em busca de uma condição gozosa efêmera, faz da própria categoria mais uma imagem a ser valorizada. Enrijecer-se em um mundo de padrões também rígidos3 3 Não podemos correr um sério risco de confundir a maleabilidade do sujeito com a rigidez dessa própria condição. Maleabilidade e flexibilidade, também em suas condições extremas, são padrões enrijecidos, de formas de agir. é extrair gozo da condição de responder assertivamente ao que é exigido na atualidade: não permitir o mínimo espaço de manobra a alternativas criativas de se transformar a existência. A ditadura do superego é consigo mesmo um "efeito rebote" às exigências impostas ao ego. Assim, a exigência que se instala pela monção superegóica é de fazer da própria vida um constante campo de gozo. Gozo não mais correspondente às leis de uma sociedade patriarcalista repressora, mas que tem como primazia a ausência de identidades fixas e abertura permissiva à tudo aquilo do que se possa extrair constante gozo.

De tal sorte, o superego alcança uma tessitura ímpar em sua forma de articular-se, pois fica remetido a uma condição basal, primitiva, de sua estrutura ao ser um categórico "rebote". Consolida-se uma condição de encarnação de desejos gozosos em que não se faz barragem, mas sim exigência de extração de prazeres. Toda e qualquer tentativa de se refrear o gozo é buscada, incorporando-se cada vez mais objetos não simbolizáveis. Estes, ao não servirem de aplacamento à angústia advinda do real – justamente por não serem passíveis de simbolizar a angústia –, servem não mais como um freio, mas como acelerador à instância desejante.

Com isto, alcançamos uma concepção da estrutura superegóica como, numa velha presentificação da alegoria do "retorno" freudiano, um funcionamento psíquico de um superego excessivamente rígido. Este, espreita o ego ao máximo, pois agora se eliminam as possibilidades de estabelecimento de acordos. Tais acordos dão lugar a um regime superegóico ditatorial em que não há possibilidades de metaforização. Entra-se, portanto em uma lógica produtiva de intensidade ímpar, pondo o psiquismo à mercê de uma estrutura que exige, a todo custo, a manutenção estética de uma imagem.

Portanto, observamos na contemporaneidade um ego que não mais articula com a representação do desejo, manifestada pelo polo pulsional do id, capaz de satisfazer a instância superegóica. A neurose na atualidade mostra-se como um conflito entre instâncias enfraquecidas que, num complexo paradoxo, se enrijecem a fim de manter um mínimo estado de satisfação gozosa. Retomando Freud (1996e[1923]FREUD, S. Neurose e psicose (1923). In: ______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996e. Edição Standard Brasileira, v. XIX, p. 162-213., p. 167-168),

a neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id [...]. Não é contradição que, empreendendo a repressão, no fundo o ego esteja seguindo as ordens do superego, ordens que, por sua vez, se originam de influências do mundo externo que encontraram representação no superego.

Por um lado as moções desejantes provenientes do id, que não conseguem encontrar escoamento através do campo discursivo – da linguagem – e desaguam sobre o corpo. Por outro lado, o superego, num campo delimitado pela carência de conteúdo, advinda da não inscrição mnêmica inconsciente, suplanta outras possibilidades que não a exigência desesperada de manutenção da idealização egóica; estando este ego entregue às demandas que o afetam, haja vista a obscuridade do desejo. Portanto, abre-se, uma nova possibilidade de articulação do desejo na neurose, nos tempos atuais. Temos um ego fragilizado em meio ao campo de batalha, travado, por um lado, pela intensidade pulsional proveniente do id – inarticulada enquanto campo de significação – e, por outro, pelo regime supraterritorial superegóico. Este, busca campos de territorialização sobre um desejo-ausente enquanto vazio, mas que se presentifica enquanto falta. Em outras palavras, o ego tem de cumprir a (im)possibilitada função de servir a algo que não se inscreve no campo de um desejo por desejo, mas sim enquanto intensidade, e satisfazer, por outro lado, uma instância que demanda a manutenção da imagem-espetáculo.

Para tanto, oferece-se a possibilidade de incorporação, por parte do fragilizado ego, de "faltas" e não de busca de "vazios". Sintomaticamente o ego não pode se estruturar enquanto afirmação de vida, pois está abarcado por uma exigência que não se faz enquanto possibilidade de realização; exigência desarticulada de representação – pulsão de morte.

Freud (1996d[1923])FREUD, S. O ego e o id (1923). In: ______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996d. Edição Standard Brasileira, v. XIX, p. 9-76. em O ego e o id , faz uma apreensão sobre a gênese e o funcionamento das estruturas do aparelho psíquico: id, ego e superego. Para o autor, o ego é formado não somente a partir do contato das pulsões advindas do id com a realidade externa, mas, sobretudo, das primeiras identificações que passam a ser introjetadas pelo pequeno infante (FREUD, 1996c[1914])FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução (1914). In: ______ Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. . Rio de Janeiro: Imago, 1996c. Edição Standard Brasileira, v. XIV, p. 77-110.. De tal modo a passagem do estado narcísico primário para o narcisismo secundário ocorre a partir de um armazenamento em si de todo um repertório vivencial advindo das gerações anteriores. Pelo mecanismo de introjeção, o sujeito deixa de ter a necessidade sempre constante do objeto materno e torna-se capaz de ir ao encontro do mundo enquanto potencialidade desejante, constituindo-se assim enquanto sujeito.

Contudo, vemos, cada vez mais, subjetividades destituídas narcisicamente. Quando o mecanismo de introjeção falha, o mecanismo de incorporação se faz guia-mestre na estruturação subjetiva (HERZOG; SALZTRAGER, 2003HERZOG, R.; SALZTRAGER, R. A formação da identidade na sociedade contemporânea. In: PINHEIRO, T. (Org.). Psicanálise e formas de subjetivação contemporâneas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003. p. 27-42.). Incorpora-se ao ego qualquer possibilidade de trazer para si o desejo, não mais inscrito num campo simbólico, passível de deslocamento da libido. O que temos é um ego operando num afluxo estancado de energia libidinal. Há a constante busca do sujeito por manter junto de si uma identidade incorporada que não diz respeito à condição historicizada do sujeito. O que existe é a incorporação de qualquer coisa – seja de objetos eletrônicos, psicofármacos e até pessoas – junto ao ego, obliterando uma fratura narcísica que busca a recompensa externa como modo de suprir tal fragmentação.

A base do alicerce da identidade hipermoderna encontra-se desmentida por um espaço social em constante falência, que não oferece possibilidades de vivência do sofrimento, inerente ao reconhecimento de um "espaço-outro". Para tanto, a ditadura superegóica mantém um padrão de como se deve agir em prol da mimetização do movimento observado no espaço psicossocial, pois, nesse campo, há apreensão tanto da imagem a ser sustentada quanto da forma como esta imagem deve ser obrigatoriamente mantida.

A subjetividade no Ocidente, durante as últimas décadas, vem-se constituindo de maneira fragmentada. Tal fragmentação serve como forma de entendimento de novos modos de subjetivação, mas também e, sobretudo,

serve como matéria-prima por meio da qual outras modalidade de subjetivação são forjadas. Em todas essas novas maneiras de construção da subjetividade, o eu se encontra situado em posição privilegiada. [...] o que agora está em pauta é uma leitura da subjetividade em que o autocentramento se conjuga de maneira paradoxal com o valor da exterioridade. Com isso, a subjetividade assume uma configuração decididamente estetizante, em que o olhar do outro no campo social e mediático passa a ocupar uma posição estratégica em sua economia psíquica (BIRMAN, 2003b, p. 23)BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003b..

Este olhar do outro que passa a ocupar posição privilegiada é justamente a porção socioadquirida superegóica à qual Freud aludiu no momento da formulação do conceito de superego. A fragmentação do sujeito vem nos mostrar justamente a posição ocupada por suas instâncias psíquicas (id, ego, superego) conforme a influência desse outro não que não comporta alteridade. Como nos lembra Birman (2003bBIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003b., p. 25), "o sujeito vive permanentemente em um registro especular, em que o que lhe interessa é o engrandecimento grotesco da própria imagem. O outro lhe serve apenas como instrumento para o incremento da autoimagem". Portanto, esse outro, passível de alijamento, é justamente a diferença que não se inscreve, mas que exerce uma forte influência, enquanto bomba de pressão, a fim de inflar a instância superegóica, na ditadura de dever sustentar uma imagem que nega qualquer possibilidade erótica de relações.

Portanto, a fragmentação egóica pós-moderna é representada justamente numa imagem desautorizada de autocentramento do eu. Este eu que responde enquanto imperativo superegóico "tudo posso, tudo devo realizar", nada mais é que a completa manifestação de uma subjetividade suficientemente fragmentada a ponto de não ser capaz de lidar com o que lhe é mais comum e inerente; seu desamparo (MAIA, 20030MAIA, M. S. A máquina de expressão: corpo, subjetivação e clínica psicanalítica. In: PEIXOTO JÚNIOR, C. A. (Org.). Formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004. p. 115-134.; BIRMAN 2003bBIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003b.). Portanto, o modo de subjetivação neurótico da atualidade, responde a um desejo que se articula somente em forma também hiper, do excesso. É justamente o excesso da busca da estetização do existir que leva essa subjetividade a se fragmentar, ostentando uma imagem falseada pela própria fluidez, para além de qualquer limite do desejo.

É importante observar que estar aquém da capacidade de estabelecer acordos simbólicos entre as instâncias psíquicas move o corpo subjetivo não às mais evidentes manifestações de sofrimento. Pelo contrário: com esse total desacordo, aplaca-se o sofrer gerado por estados de contato consigo mesmo, visto o "si-mesmo" desaparecer. Não há forma mais angustiante de experimentar a existência do que através da vivência de estados de autorreflexão. A consciência sobre a impossibilidade de autorregulação pela natureza, entre os registros da civilização e da liberdade (BIRMAN, 2003bBIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003b.), lança o ser humano ao mais funesto desamparo. Tal condição coloca o sujeito menos em um estado estético que em uma condição de construir um estilo para o próprio devir.

Portanto, a promoção da anestesia do viver e da amplidão do comportamento mimético, fluido, vazio e efêmero, é um meio de anular possibilidades de sofrimento. Até se criam espaços de vivência para a dor e angústia psíquicas, no entanto o "sofrer", enquanto experiência compartilhada, fica cada vez menos possibilitado de ser inscrito no cotidiano hodierno.

Notas

  • 1
    Birman (2003aBIRMAN, J. Reviravoltas na soberania. In: ARÁN, M. (Org.). Soberanias. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2003a. p. 57-74., p. 67) afirma que, na passagem ao ato, há "uma descarga de excitabilidade que, por sua inespecificidade, não segue linhas de uma cena simbólica".
  • 2
    "Vazio primordial", na acepção utilizada neste texto, refere-se àquela ideia enunciada anteriormente a respeito da condição de desamparo humano, em que o desejo sempre está em referência a um desejo de outro, remetido ao impossível da castração. Não há um objeto que define a priori o que está sendo desejado, visto sempre haver um "desejo de desejo" (GARCIA-ROZA, 2002GARCIA-ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana: a interpretação do sonho. 6. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002. v. 2., p. 192). A alteridade aqui é colocada como fundamental a esta condição.
  • 3
    Não podemos correr um sério risco de confundir a maleabilidade do sujeito com a rigidez dessa própria condição. Maleabilidade e flexibilidade, também em suas condições extremas, são padrões enrijecidos, de formas de agir.

Referências

  • BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade Rio de Janeiro: J. Zahar, 1998.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    02 Jul 2012
  • Aceito
    24 Jul 2014
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