Acessibilidade / Reportar erro

Algumas informações biográficas sobre L. S. Vigotski: será que, algum dia, a névoa se dissipará?

Some biographical information about L. S. Vygotsky: will the fog disappear some day?

Resumos

Neste artigo discutem-se informações biográficas de L. S. Vigotski, extraídas de trabalhos de uma pesquisadora russa que investigou os arquivos da família do autor. É traduzido um trecho de artigo da pesquisadora no qual ela transcreve anotações inéditas de Vigotski, feitas em cadernetas e pedaços de papel. As informações referem-se à sua relação com a doença que o acometeu; à presença forte de Hamlet nos períodos de crise e internação; à sua relação com a família; ao compromisso com a Revolução de Outubro; ao processo de elaboração de sua teoria, destacando-se algumas indicações de suas preocupações com a questão judaica.

L. S. Vigotski; teoria histórico-cultural; informações biográficas


In this paper some biographical information of L. S. Vygotsky is presented, drawn from the work of a Russian researcher who conducted investigations into the family archives. An excerpt from the reseacher’s paper, in which she transcribes unpublished notes by Vygotsky, is translated. This information refers to his relationship with his illness; to the strong presence of Hamlet in periods of crisis and hospitalization; to his relationship with family; to his commitment to the October Revolution; and to the development of his theory. Some indications of his concerns with the Jewish question are highlighted.

L. S Vigotski; historical-cultural theory; biographical information


A grandeza de um cientista não se deve medir pelo volume de obras que escreveu ou publicou. No entanto, ao conhecer a obra deixada por Vigotski, é difícil não se impressionar exatamente com esse aspecto. Segundo Guita Lvovna, sua filha mais velha, ele se ocupava da ciência e como cientista desenvolveu pesquisas metodológicas, teóricas e experimentais (VIGODSKAIA, 2006VIGODSKAIA, G. L. Tekst vispuplenia na IV Mejdunarodnirh tcheniarh pamiati L.S.Vigotskogo (Moskva, TGGU, noiabr, 2003). Vestnik RGGU, Moskva, n. 1, p. 16-22, 2006.). Entre suas atividades estavam trabalhos experimentais, quando reunia e analisava pessoalmente material coletado na escola, na clínica, no laboratório e em casa; também podem ser incluídas entre suas atividades científicas as conversas com seus colegas e estudantes para discutir os resultados de alguma pesquisa, do trabalho que estava em curso ou o planejamento de futuras ações; um destaque merecem as aulas e palestras que proferia e que já podiam conter algum dado novo advindo de pesquisas em desenvolvimento; e, como não poderia deixar de ser, a leitura de textos científicos também fazia parte de sua dedicação à ciência. Como diz Guita, ele não tirava férias da ciência: “Como lembram seus colegas, sua rara capacidade para o trabalho estava no limiar do total esquecimento do dia e da noite, dos cuidados consigo mesmo, com sua saúde” (VIGODSKAIA, 2006VIGODSKAIA, G. L. Tekst vispuplenia na IV Mejdunarodnirh tcheniarh pamiati L.S.Vigotskogo (Moskva, TGGU, noiabr, 2003). Vestnik RGGU, Moskva, n. 1, p. 16-22, 2006., p. 16).

Sem dúvida, essa dedicação quase exclusiva ao trabalho científico contribuiu enormemente para a sua extensa produção teórica, pois, ainda segundo sua filha, ele fazia ciência em qualquer situação, sem se importar com as condições. Seu amigo e colaborador Aleksandr Romanovitch Luria, ao falar sobre as condições em que Vigotski trabalhava, disse que a casa da família vivia cheia de gente estranha, ele não sabia negar ajuda a ninguém e ainda viajava muito para proferir palestras e se reunir com colaboradores e alunos (VIGODSKAIA; LIFANOVA, 1996VIGODSKAIA, G. L.; LIFANOVA, T. M. Lev Semionovitch Vigotski: jizn, deiatelnost, chtrirri k portretu. Moscou: Smisl i Smisl, 1996.).

Como é sabido, Vigotski sofria de tuberculose e vivenciou diversas crises da doença em diferentes fases de sua vida. À época da primeira crise, teve a sensação de que iria morrer. Então, temendo o pior, pediu ao amigo S. F. Dobkin, segundo narra Iarochevski (2007)IAROCHEVSKI, M. G. L. S. Vigotski: v poiskarh novoi psirrologuii. Mosckva: URSS, 2007., que levasse seu manuscrito sobreHamlet, trabalho monográfico de final de curso da Universidade Popular Chaniavski, até o professor Airrenvald, que havia prometido publicá-lo. Felizmente, o pior não aconteceu naquele momento, mas o texto foi publicado apenas 40 anos depois. Segundo A. A. Anikst, estudioso da obra de Shakespeare, a análise de Vigotski é uma das mais originais por apresentar uma abordagem nova sobre a obra do escritor inglês.

O manuscrito O sentido histórico da crise na psicologia – outra produção teórica importante – também está ligado a uma das crises da doença. Segundo A. R. Luria (apud VIGODSKAIA, 2006VIGODSKAIA, G. L. Tekst vispuplenia na IV Mejdunarodnirh tcheniarh pamiati L.S.Vigotskogo (Moskva, TGGU, noiabr, 2003). Vestnik RGGU, Moskva, n. 1, p. 16-22, 2006.), quando foi acometido pela segunda crise, os médicos não lhe deram mais do que três ou quatro meses de vida. Então, internado no sanatório, escreveu intensamente para “deixar uma obra”, segundo ele, após sua morte. Hoje, esse trabalho é considerado fundamental para o desenvolvimento da psicologia soviética.

A última crise abateu-se enquanto escrevia o livro Pensamento e fala. Algumas fontes dizem que o seu estado de saúde estava fragilizado e ele corria contra o tempo para não deixar inacabada a sistematização de anos de estudo. Por isso, para não interromper o trabalho, ditou a uma datilógrafa as partes finais do livro. Mais uma vez, a dedicação à ciência estava em primeiro plano. Curiosamente, esse último trabalho não teve o mesmo destino de vários outros e foi publicado alguns meses após sua morte, ainda em 1934.

Observando esses fatos da vida de Vigotski, pode-se supor que a consciência da doença exerceu certo papel impulsionador para sua produção científica. Em épocas de crise, tinha pressa, queria deixar uma obra, sistematizar pesquisas e trabalhos experimentais que nasciam de anotações prévias realizadas das mais variadas formas, de conversas com seus alunos e colaboradores, de leituras intensas.

Apesar de ter tido uma vida muito breve, ainda há opiniões divergentes sobre o início da sua trajetória científica. Alguns estudiosos e até mesmo colegas consideram que seu início se deu apenas em janeiro de 1924, quando ele surgiu na tribuna do II Congresso de Psiconeurologia, em Petrogrado. T. M. Lifanova (VIGODSKAIA; LIFANOVA, 1996VIGODSKAIA, G. L.; LIFANOVA, T. M. Lev Semionovitch Vigotski: jizn, deiatelnost, chtrirri k portretu. Moscou: Smisl i Smisl, 1996.), por sua vez, diz que é preciso considerar os anos que ele trabalhou em Gomel, antes de se mudar para Moscou, aceitando o convite de Kornilov e Luria. Provavelmente, deve-se dar razão à Lifanova, pois, para um teórico do porte de Vigotski, dificilmente os cinco anos de trabalho nas escolas e cursos de formação de professores não deixariam marcas e não dariam origem a pesquisas. Seja lá como for, o que chama a atenção é que estamos, na verdade, falando de, aproximadamente, 15 anos de trabalho científico.

Também há divergências a respeito da divisão dos períodos de produção do autor. Alguns estudiosos apontam apenas dois, outros três e também é diferente a indicação dos anos limites ou de transição entre um e outro período (ZAVERCHNEVA, 2006ZAVERCHNEVA, E. I. K voprosu o periodizatsii nautchnoi biografii L. S. Vikotskogo. Vestnik RGGU, Moskva, n. 1, p. 284-293, 2006.). A periodização mais precisa, ainda de acordo com Zaverchneva, foi elaborada por Iarochevski que estabelece três períodos: 1. Psicorreflexológico; 2. Da psicologia instrumental ou da psicologia centrada no signo; 3. Quando teve início a criação da psicologia em termos de drama, em que a unidade fundamental tornou-se o significado e, posteriormente, a vivência (perejivanie), conceito com que Vigotski se aproxima muito da síntese de afeto e intelecto (ZAVERCHNEVA, 2006ZAVERCHNEVA, E. I. K voprosu o periodizatsii nautchnoi biografii L. S. Vikotskogo. Vestnik RGGU, Moskva, n. 1, p. 284-293, 2006.). No entanto, o livro de Iarochevski é muito criticado por estudiosos da obra de Vigotski, pois, segundo eles, há muitos equívocos factuais e imprecisões relacionadas à ausência de uma análise, principalmente, sobre a influência das ideias de Gustav Gustavovitch Chpet no pensamento dele.1 1 G.G. Chpet foi professor de Vigotski à época de seus estudos na Universidade Popular Chaniavski. Segundo Guita Vigodskaia, foi por meio de suas aulas que o pai descobriu os estudos de Potiebnia. Alguns estudiosos afirmam que, apesar de conter divergências ideológicas, é possível observar um sincronismo entre as ideias de Vigotski e Chpet. Vladimir Petrovitch Zintchenko destaca que, apesar de ainda pertencer à terra incógnita, Chpet desempenhou um papel fundamental no momento em que estava em pauta a criação de uma nova psicologia. Pouco se conhece também o fato de que ele foi um dos criadores do Instituto de Psicologia, juntamente com G. I. Tchelpanov, e trabalhou com Vigotski na mesma época na 2ª Universidade de Moscou. Muitos futuros colegas e colaboradores de Vigotski, entre eles L. I. Bojovitch, A. V. Zaporojets, R. E. Levina, N. G. Morozova, L. S. Slavina, foram também alunos de Chpet (ZINTHCENKO, 2000).

Há alguns anos, na Rússia, a família de Vigotski, juntamente com pesquisadores russos, vem se dedicando à organização da Obra completa dele, que deve ser composta não apenas do que já se publicou, mas também de suas anotações pessoais que, segundo relatos de quem teve em mãos o material cuidadosamente guardado por Guita Lvovna, nunca haviam sido publicados e sequer lidos (ZAVERCHNEVA, 2008ZAVERCHNEVA, E. I. Zapisnie knijki, zametki, nautchnie dnevniki L.S.Vigotskogo: rezultati issledovania semeinogo arrriva. Jurnal Voprosi Psirrologuii, Moskva, n. 1, p. 132-145, 2008.). Os textos escritos em folhas de papel inteiras, mesmo os que mais sofreram com o passar do tempo, estão em estado bem melhor do que as anotações pessoais. As anotações, ainda segundo Zaverchneva, eram feitas em folhas separadas, em cartões, no verso de formulários, em folhas de provas de impressões e, até mesmo, nas margens de folhas de jornal. Eram anotações pessoais e não eram escritas para serem publicadas ou lidas por outras pessoas (ZAVERCHNEVA, 2008ZAVERCHNEVA, E. I. Zapisnie knijki, zametki, nautchnie dnevniki L.S.Vigotskogo: rezultati issledovania semeinogo arrriva. Jurnal Voprosi Psirrologuii, Moskva, n. 1, p. 132-145, 2008.). Existem testemunhos da época que falam sobre o déficit de papel, mas o que impressionou os pesquisadores foi a verdadeira atração de Vigotski por cadernetinhas e pequenos pedaços de papel que, muitas vezes, não tinham mais que 3 centímetros de largura e, normalmente, eram preenchidos com sua letra dos dois lados. Muitos de seus trabalhos nasceram dessas ininterruptas anotações (VIGODSKAIA, 2006VIGODSKAIA, G. L. Tekst vispuplenia na IV Mejdunarodnirh tcheniarh pamiati L.S.Vigotskogo (Moskva, TGGU, noiabr, 2003). Vestnik RGGU, Moskva, n. 1, p. 16-22, 2006.), iniciadas ainda em 1912, quando tinha apenas 16 anos.

A análise das anotações permitiu observar mudanças na letra de Vigotski ao longo de sua vida. Observando essa mudança na escrita, pôde-se, às vezes com precisão, definir a data de uma determinada anotação ou de algum manuscrito não datado e que serviu de base para algum trabalho posterior. Assim, o volumoso material que era o foco principal do trabalho dos pesquisadores, composto de cadernetas e anotações em diferentes formatos e que permaneceu guardado em seis ou sete pastas separadas, sem nenhuma sistematização, começou a ser catalogado e a forma da letra do autor ajudou a atribuir datas aos escritos. Um aspecto importante destacado também pelos pesquisadores é que o material fornece a possibilidade de observar o desenvolvimento do pensamento do autor, que não são, conforme aponta Zaverchneva (2008)ZAVERCHNEVA, E. I. Zapisnie knijki, zametki, nautchnie dnevniki L.S.Vigotskogo: rezultati issledovania semeinogo arrriva. Jurnal Voprosi Psirrologuii, Moskva, n. 1, p. 132-145, 2008., correntes de raciocínios e sim saltos de ideias, rupturas inesperadas na argumentação. Ela narra da seguinte forma o início do trabalho de pesquisa com os arquivos:

Ao iniciar a sistematização dos materiais dos arquivos, demarcamos duas tarefas: 1. A busca de trabalhos desconhecidos de L. S. Vigotski, 2. A reconstituição da redação autoral de textos anteriormente publicados. Era evidente que o arquivo abriria uma multiplicidade de novos fatos da vida de L. S. Vigotski. No entanto, até mesmo os resultados prévios da pesquisa superaram todas as expectativas. Foram encontrados manuscritos de L. S. Vigotski, complementada a bibliografia de suas obras, sistematizadas as anotações pessoais preciosas, desde seus cadernos da juventude (1912-1916) até as anotações dos últimos meses de vida (1933-1934). Nos arquivos, particularmente, foram encontradas mais de duas dezenas de estenogramas desconhecidos de suas aulas e que não estão na bibliografia (incluindo a aula Problemas da percepção, de 25 de abril de 1934 e Os problemas principais da idade pré-escolar, de 7 de maio de 1934, proferidas por L. S. Vigotski um mês e meio antes de falecer). Entre as edições raras estão: um número da revista Veresk, editada pelo jovem Vigotski, em Gomel, no início de sua carreira e conservado maravilhosamente bem, e Fundamentos da pedologia, publicado em 1934, depois de sua morte, entre outros. Até o momento, foram lidas e preparadas para a publicação as anotações A tragicomédia das buscas, dedicadas ao Eclesiastes e que é um dos primeiros textos de Vigotski (1912); os rascunhos de Hamlet, resenhas teatrais e filológicas do período de Gomel (encontradas por G. L. Vigodskaia e T. M. Lifanova ainda nos anos de 1980), versões desconhecidas dos relatórios apresentados no II Congresso Russo de Psiconeurologia e no Congresso SPON (com esses relatórios o jovem professor de Gomel, em 1924, entrou, triunfantemente, para a psicologia), artigos sobre a psicologia e o marxismo (meados dos anos de 1920) e sobre a psicologia das minorias nacionais (1928-1931) e muitas outras coisas. Além disso, foi reconstituído o texto autêntico de O sentido histórico da crise na psicologia2 2 Atualmente, o Núcleo de Tradução, Estudos e Interpretação de obras dos representantes da Teoria histórico-cultural (NUTHIC) está traduzindo do original russo esta obra de Vigotski com a reconstituição feita por E. Zavercheneva. do qual foram retiradas as referências aos autores “desconfortáveis” (L. D. Trotski, N. I. Burrarin, K. B. Radek). Pelos rascunhos manuscritos também foi reconstituído o esboço da monografia Fundamentos da defectologia, etc. (ZAVERCHNEVA, 2008ZAVERCHNEVA, E. I. Zapisnie knijki, zametki, nautchnie dnevniki L.S.Vigotskogo: rezultati issledovania semeinogo arrriva. Jurnal Voprosi Psirrologuii, Moskva, n. 1, p. 132-145, 2008., p. 133).

Um exemplo da complexidade do trabalho realizado por Zaverchneva nos arquivos de Vigotski é precisamente a obra mais conhecida com o título O sentido histórico da crise na psicologia. Até mesmo os materiais dos arquivos não permitiram, ainda, desvendar a data correta em que Vigotski escreveu esse texto. Publicado pela primeira vez no Tomo I das Obras escolhidas em seis volumes, em 1982, os dados sobre data e circunstâncias de sua produção ainda são bastante pobres. Como vimos anteriormente, o próprio Luria afirmava que Vigotski o escreveu quando estava internado. Essa é a informação que consta de diversas fontes (LEONTIEV, 1990LEONTIEV, A. A. L. S. Vigotski. Moskva: Prosveschenie, 1990.; VIGODSKAIA; LIFANOVA, 1996VIGODSKAIA, G. L.; LIFANOVA, T. M. Lev Semionovitch Vigotski: jizn, deiatelnost, chtrirri k portretu. Moscou: Smisl i Smisl, 1996.; IAROCHEVSKI, 2007IAROCHEVSKI, M. G. L. S. Vigotski: v poiskarh novoi psirrologuii. Mosckva: URSS, 2007.) e, ainda hoje, é difícil de ser confirmada ou negada. A análise do manuscrito guardado nos arquivos da família partiu da necessidade de reconstituição do texto original, de corrigir as referências e as citações e comparar os rascunhos encontrados com a versão final.

Ao detalhar as especificidades do trabalho com os arquivos, a pesquisadora destaca a “individualidade” de cada pedacinho de papel. Inicialmente, foi feita a separação do material por tipo de papel e, desse modo, conseguiu-se evidenciar alguns grupos de documentos que facilitaram as sistematizações seguintes: 1. Tipo e formato do papel; 2. Tipo de tinta (lápis); especificidades da letra (inclinação, forma, grau de abreviações, entre outras); 4. Numeração das páginas, numeração das teses (localização na página, parêntesis, pontos, tipo de números etc.); 5. Citações frequentes, locuções utilizadas e que eram características daquele período, aforismos repetidos, expressões latinas, alemãs e francesas utilizadas com frequência; 6. Menção a sobrenomes de colaboradores, colegas, alunos, indicação de acontecimentos conhecidos pela literatura biográfica dedicada a Vigotski; polêmica com os principais oponentes científicos, naquele período; 7. O tema das anotações e sua relação com os temas centrais daquele período, refletidos em textos publicados e não publicados de Vigotski, referências a seus próprios trabalhos; 8. Relação com os principais temas das anotações num determinado grupo (núcleo do problema) e entre os grupos.

Zaverchneva também relata que as características formais e de conteúdo ajudaram não só na seleção dos documentos, mas também auxiliaram na sua datação, pois, como é sabido, Vigotski frequentemente não escrevia a data. Por isso, quando se encontrava um documento datado, esse fato guiava o trabalho de datação dos outros materiais, seguindo a lógica de semelhança entre os textos e outros aspectos enumerados acima. Outro fato importante considerado no trabalho foi a utilização por Vigotski de inúmeras abreviações. Em função disso, foi elaborada também uma lista delas que também desempenharam um papel importante no estabelecimento da cronologia dos textos, pois suas características mudaram em diferentes períodos.

Muitas anotações encontradas nos arquivos representam um valor não apenas como documentos históricos para a psicologia, mas também podem revelar e esclarecer algumas ideias que haviam sido apenas esboçadas por Vigotski. As primeiras anotações começaram a ser feitas por ele em 1912, mas, como diz Zavercheneva, nem todos os períodos da sua biografia aparecem com regularidade e a maior parte das anotações guardada nos arquivos refere-se ao período entre 1931 e 1934, sendo muito significativo o ano de 1932.

Em seu trabalho inicial de sistematização das anotações pessoais de Vigotski, Zaverchneva optou por analisar, primeiramente, os cadernos, blocos, anotações separadas e algumas cartas. A cada documento do arquivo foi atribuído um nome que corresponde à primeira linha da anotação feita por seu autor. O trabalho realizado pela pesquisadora representa um valor inestimável para quem estuda a trajetória de vida e obra de Vigotski, pois, entre as descrições do próprio material, são transcritas algumas anotações. A seguir, apresentamos a tradução de uma parte do artigo de Zaverchneva em que ela comenta os documentos encontrados nos arquivos e um fragmento de anotações de L. S. Vigotski.

Ao longo da tradução do artigo de Zaverchneva, não mantivemos os colchetes utilizados por ela para mostrar as palavras abreviadas utilizadas pelo autor. Preferimos escrever por extenso as palavras para facilitar a leitura.

Início do trecho do artigo de Zaverchneva.

* * *

Anotações datadas de 1912 a 1930

Cadernos e blocos

Os cadernos de 1 a 3 desvendam páginas pouco conhecidas da obra de L. S. Vigotski entre 1912 e 1915.

1. A tragicomédia das buscas – o caderno com a data de 1912 representa um esboço de um texto (supostamente) extenso, dedicado à interpretação do livro Eclesiastes. L. S. Vigotski planejava apresentar uma interpretação filosófica e psicológica do Eclesiastescomo “um símbolo eterno” da história que se repete nas buscas espirituais de cada pessoa, um tipo de odisseia existencial. Ele destacava três períodos na vida do Eclesiastes e demonstrava que a tragédia principal da vida humana, vivenciada como impossibilidade de atingir a completude da existência, surge porque “o mundo tem que ser todo justificado” para que nele se possa viver (aqui, Vigotski cita F. M. Dostoievski). Mas, somos obrigados a existir em condições de um mundo partido, polarizado, cujas contradições não são pacificadas; “pedimos, sabendo previamente, que será impossível para nós; batemos na porta do conhecimento fechada por séculos, sabendo previamente que ela não se abrirá para nós; procuramos, sabendo de antemão, que nunca teremos”, escreveu o autor de 16 anos. No entanto, o livroEclesiastes, repleto de mistérios, mostra que a resposta pode ser encontrada: apesar de ainda ninguém ter “desembaraçado a vida”, é possível fazer as pazes com ela se não se buscar o temporário, mas o eterno com sua completude inacessível e íntegra que se projeta para o nível de vida terrestre como uma luta de contrários. O texto foi escrito com a grafia anterior à reforma. Entre os autores citados estão V. G. Belinski, F. M. Dostoievski, K. D. Balmont, H. Steinthal, entre outros. O tom e o conteúdo das anotações (a tragédia da existência no mundo partido, a tristeza pelo absoluto), sem dúvida, ecoam com a Tragédia de Hamlet.

2. Cadernos com esboços (rascunhos) para um texto extenso em que se discute o destino do povo judeu, a possibilidade de criação de um país separado – Israel. L. S. Vigotski critica as ideias das correntes políticas radicais antissemitas e pró-judaicas (em particular, o sionismo, o nacionalismo, o autonomismo etc.) O documento é datado de 1915 e a ortografia é pré-reforma. Mais da metade da página é ocupada por citações de obras de filósofos, políticos, jornalistas, escritores que falavam da questão judaica (I. Halevi, H. N. Bialik, N. A. Berdiaev, S. M. Dubnov, D. M. Pasmanik). O texto é repleto de referências, mas, no final do quinto caderno, há um fragmento dedicado à tragédia do povo judeu no tempo da primeira guerra mundial, durante a qual Vigotski escreveu essas linhas e que impressiona por sua profundidade. Parece que pressentiu os futuros acontecimentos do holocausto. No povo judeu estão as marcas do destino trágico e, ao mesmo tempo, da providência Divina, destaca ele. Na última página do quinto caderno, colou um recorte do jornal Russkoie slovo:

“Ao final, apresento um pequeno episódio dessa guerra que à luz de acontecimentos grandiosos se eleva à altura de um símbolo geral:

Irmão para irmão.

Em uma das últimas batalhas no rio San, o soldado judeu feriu com um golpe de baioneta o atirador austríaco no coração e também se feriu. Quando chegou ao hospital de campanha, o atirador recusou-se a sair do vagão. Pediu às irmãs de caridade e ao médico que não o tocassem e permanecia calado diante de perguntas. Convidaram um rabino a quem o moribundo contou: “Quando desferi o golpe no peito do inimigo, ele, ao cair, gritou: ‘Chma, Isroel!’ (Ouça, Israel!), - as palavras, pronunciadas por judeus antes da morte ou em momentos de grande perigo. Então, decidi que, apesar de eu lutar por dever e honra militar, não posso mais viver” (“Russkoie slovo”)

Nesse fato-símbolo revelaram-se todos os aspectos da história judaica que, como numa mágica, foram interpretados por ele e ardem à luz de grandes acontecimentos. Dois judeus (“quem diz ‘Shma Isroel’ é judeu” – diz o Talmude e na loucura de um e na dor percebe-se que os dois são judeus, o judaísmo está nessa dor) – nessa tragédia insolúvel, como instrumentos cegos de forças obscuras, um está morto, o outro enlouqueceu e do caixão, da loucura (dos limites do comum) anunciam o sentido desse absurdo trágico.”

1.Caderno sem data que está relacionado a um trabalho extenso sobre a obra de F. M. Dostoievski que começa na página 33 e não está terminado (não foram encontradas a primeira e a última página do manuscrito). A capa é do mesmo tipo que a dos cadernos “A tragicomédia das buscas”, a ortografia é pré-reforma (as anotações podem ter sido feitas entre 1914 e 1916). O tema principal é a opinião de F. M. Dostoievski sobre a questão judaica e as imagens literárias de judeus em suas obras. Vigotski nega a opinião difundida de que Dostoievski era um “antissemita comum” e mostra a profunda penetração do escritor na essência da questão e diz que, apenas com um olhar superficial poderia perceber em F. M. Dostoievski um extremismo nacional. Ao analisar a cena de suicídio de Svidrigailov, no romance Crime e Castigo, L. S. Vigotski escreve:

“Porque, depois do terror de Svidrigailov, foi exatamente um judeu que se revelou ‘testemunha oficial’ de sua morte? Seria isso casualmente? Ou é a continuação do terror? [...]

Há um sentido misterioso, inexplicável e simbólico nessa imagem, cuja realidade se transfere para o fantástico. [...] o traço genial da força terrível e nunca vista que atribui uma aparência estranha a todo o quadro e que o completa com o sentido simbólico.

Em todo caso, esse é o traço inesquecível: o quadro real e, ao mesmo tempo, fantástico, terrível, delirante, repleto de uma luz matinal estranha, misteriosa, afunda na neblina leitosa e densa, funde-se com essa neblina e já não consegue mais se separar o estranho e incrível (e ao mesmo tempo real) “homenzinho pequeno, enrolado num paletó cinza de soldado e com um capacete de Aquiles de ferro”, fundindo-se com a tristeza da noite que falece “tristeza secular rabugenta” em seu rosto e soa, soa, soa triste, alarmente e assustadora...: “aqui no lugar!” e se ampliam mais e mais as pupilas tristes judaicas...”

L. S. Vigotski mostra como F. M. Dostoievski reúne num todo os pontos de vista típicos do senso comum a respeito das especificidades do caráter e da aparência judaicos para, com isso, criar a imagem de um personagem simbólico, purificado de traços casuais que tem uma relação mística e própria com a morte e o destino. Infelizmente, no manuscrito há apenas um trecho da segunda parte do trabalho e é difícil julgar suas formulações conclusivas. Pode-se supor que o presente texto é uma versão preparatória para o artigo pouco conhecido de L. S. Vigotski,Os judeus e a questão judaica nas obras de F. M. Dostoievski,que foi publicado pela primeira vez, em 1997, no jornal Vesti (Israel). O manuscrito desse artigo, segundo B. S. Kotik-Fridgut, está no arquivo familiar de S. F. Dobkin, companheiro de L. S. Vigotski da época de Gomel.

4. Bloco com a data de verão de 1925. Um livrinho minúsculo com as folhas douradas e que é o diário de L. S. Vigotski em sua viagem ao exterior. O assunto é sua única viagem para o exterior por ocasião de participação no Congresso, em Londres, cujo tema referia-se aos problemas de crianças surdas-mudas. Anteriormente, dispúnhamos apenas de informações isoladas sobre essa viagem que, agora, foram complementadas. O bloco foi presenteado a L. S. Vigotski por sua noiva. Naquela época, em 1921, R. N. Smerrova ainda não era sua mulher. Com a letra dela, na contracapa, está um verso de A. Arrmatova e, logo abaixo, uma frase com a letra de L. S. Vigotski que faz recordar a troca de mensagens entre Kitti e Levin (de Anna Karenina, de Lev Tolstoi) e que é citada por ele em Pensamento e fala. Nessa frase, estão presentes apenas as letras iniciais das palavras que são dirigidas à sua esposa e data de 1925. A maior parte do bloco contém anotações de caráter particular. Apesar de todos os dias de Vigotski em Londres e Berlin terem seguido uma agenda rígida (ele apresentou-se em conferências, encontrou-se com psicólogos, defectólogos e pedagogos), ele pensava permanentemente na família, sentia saudades da mulher e da filha recém-nascida (início de maio de 1925). A viagem ao exterior, escreveu L. S. Vigotski, tornou-se para ele um dos mais importantes acontecimentos em sua vida; com uma agudeza excepcional, viu toda sua vida passada e o seu futuro:

“Em um país estranho, no ar (aeroplano), no mar, sente-se uma estranha alienação de tudo. Revisão de toda a vida, revisão da alma. De repente, olha-se para toda sua vida de outro lado, como de um minuto da morte.

Como é sofrível. –

[...] No meu destino isso é a marca de futuras grandes provações.

Se temo. É claro que temo, sinto medo, mas o mantenho na sela.

Ainda estou com força e poder.

Let be (uma citação curta de Hamlet – E.Z.)

[...] Minha viagem é maravilhosa e o sentido dela é muito mais importante e maior do que seu aspecto oficial”.

No entanto, o pessoal mostra-se intimamente entrelaçado com o impessoal; entendendo o que o destino lhe havia reservado, escreveu sobre isso com simplicidade, sem falsa modéstia, unindo com sinceridade o destino da Rússia e o seu:

“... é um acesso enorme às principais correntes submersas da vida. A viagem é “o juízo de si mesmo”. É a vida fracionada por instantes, mas também sub specie aeternitatis.3 3 Do ponto de vista da eternidade (E.Z).

Essencialmente, a Rússia é o primeiro país do mundo. Revolução é um grande feito. Nesse auditório apenas 1 pessoa sabe o segredo da verdadeira educação de surdos-mudos e essa pessoa sou eu. Não porque sou mais estudado do que os outros, mas fui enviado pela Rússia e falo em nome da Revolução”.

Essas palavras, ditas a si mesmo, estando só, no bloco conservado por um milagre, confirmam a relação não de aparência (e muito menos encomendada), mas profundamente pessoal de L. S. Vigotski com tudo que estava ocorrendo em seu país naquele momento.

O bloco também contém informações sobre os eventos que ele frequentou na Inglaterra, na Holanda, na Alemanha, os endereços e os telefones dos colegas de diferentes países da Europa, referências de catálogos bibliotecários e suas impressões sobre a visita ao Museu Britânico etc.

Esse bloco de anotações revelou-se o mais difícil de ser analisado; suas páginas estão muito engorduradas, o lápis apagou-se em alguns lugares, não será possível reconstituir, pelo visto, alguns fragmentos. No entanto, foi possível ler aproximadamente 80% do texto.

5. Bloco sem título, a data corresponde à primeira metade de 1926. O texto extenso contém valiosas anotações que lançam luz em um dos períodos mais complexos da biografia científica de L. S. Vigotski – elaboração da teoria histórico-cultural no próprio sentido da palavra. O bloco começa com anotações que complementam Psicologia da arte eTragédia de Hamlet (análise de fábulas, novas teses e citações, referências à resenha do livro de I. E. Babel de 1926, referência ao número da revista Krasnaia, Nov. de 1926), com paixão discute-se a ideia de Adler sobre a supercompensação: “É o conjunto central de ideias ao qual eu me junto na psicologia da arte, não de Freud, não dosformalistas. Em sua essência, é o princípio dialético de caráter filosófico e de conhecimento”. É preciso destacar que mais ou menos na mesma época L. S. Vigotski escreveu uma série de artigos em que analisa as ideias de A. Adler e o seu significado para a psicologia e defectologia contemporâneas. A tese de Adler sobre a supercompensação, provavelmente, era um tipo de “anomalia” (termo de I. Lakatoss), exigindo de L. S. Vigotski uma melhor explicação e, com isso, contribuía com o andamento do programa científico de investigação.

Entre os oponentes de L. S. Vigotski estavam J. Watson, W. James, W. Stern, A. Bergson, G. I. Tchelpanov, G. V. Plerranov; são mencionados I. E. Babel, Iu. N. Tinianov, K. S. Stanislavski, N. U. Burrarin, K. N. Kornilov, entre outros. No entanto, o tema central do bloco são as questões sobre a correlação entre a ideia e a palavra (em que se percebe a influência de A. A. Potiebnia), sobre o significado da palavra (! – o tema é desenvolvido por L. S. Vigotski apenas em 1930), sobre a consciência como um sistema internalizado de relações sociais (cita ativamente Marx), sobre a consciência como um diálogo interno (L. S. Vigotski refere-se a L. V. Scherba).4 4 De acordo com a última tese, é necessário destacar que a questão sobre a citação direta dos trabalhos de M. M. Barrtin ou a respeito de ter ou não este conhecido L. S. Vigotski ainda permanece nebulosa. Em nenhuma referência pudemos observar o nome de M. M. Barrtin, nem citações de seus textos. No entanto, durante a reconstituição do texto autêntico do famoso artigo Psique, consciência, inconsciente revelou-se que os redatores haviam retirado uma referência ao trabalho de V. N. Volochin - Marxismo e filosofia da língua (a autoria desse texto até hoje não foi estabelecida. No entanto, sem dúvida, M. M. Barrtin participou da sua elaboração). Apresentamos um pequeno fragmento do bloco em que L. S. Vigotski escreve sobre o papel guia da fala na estruturação da consciência e também planeja um ciclo de artigos (ou capítulos de um livro) dedicados ao pensamento e à fala:

“2. A diferença entre a reação da voz e a da fala não está na simbologia que da mesma forma existe nas duas: os estímulos condicionais da voz e da fala são simbólicos, incondicional um e o outro simbólico. A diferença, em geral, não está na relação entre as coisas. A palavra não é a relação entre o som e o objeto que ela significa. É a relação entre o falante e o ouvinte, a relação entre as pessoas, direcionadas para o objeto; é a reação interpsíquica que estabelece a unidade de dois organismos em uma direção para o objeto. A linguística faz fetiche da palavra. O psicólogo desmascara: por trás das relações visíveis entre as coisas estão as relações entre as pessoas (ex: Marx fetiche da mercadoria). Significa a unidade das reações de 2 pessoas ou 2 reações, e não de estímulos.

3. Consciência = fala em si, ... fala consciente é sempre diálogo (Scherba). Consciência é diálogo consigo. Aquilo que a criança ouve e compreende anteriormente e depois é ensinada à consciência da fala mostra que: 1. a consciência surge da experiência , 2. falando consigo = agindo conscientemente, a criança coloca-se no lugar do outro, relaciona-se consigo como com o outro, imita o outro que fala para ela, substitui o outro em relação a si [...]

5. O significado da palavra (meaning of word) não é aquele objeto que ela substitui, mas o diálogo (função de ouvir e falar); a relação entre as pessoas é fala; entre os objetos é símbolo; entre cada um dos falantes e a palavra (objeto) é vtchuvstvovanie (sentimento em si). Um dos artigos deveria terminar com a apresentação do problema da seguinte epígrafe para todo o livro: formas e essências, segundo Marx, I – Zoon politikon,5 5 “Animal político” – definição antiga do homem em que “político” significa tudo aquilo que é relativo à “polis” como uma estrutura racional da vida social das pessoas (E.Z.) II – Freud palavra e consciência, III – Lipps – sentimento em si faz os organismos sociais. O título de todo o livro Zoon politikon, Chave para a psicologia do homem”.

Ao final do bloco, estão as teses que foram desdobradas em O sentido histórico da crise na psicologia, incluindo as referências a V. N. Ivanovski e as ideias sobre o método secundário em que deveria se apoiar a psicologia científica. A letra, em alguns lugares, falha, não é firme, as marcações de caráter pessoal revelam que L. S. Vigotski tinha acabado de vivenciar uma fase aguda e pesada da tuberculose e, provavelmente, uma crise de visão, semelhante à de 1917-1918, mencionada em correspondência com os amigos de Gomel. O ímpeto para a nova teoria ocorreu, no sentido literal da palavra, à beira da morte (novamente o tema de Hamlet na vida de L. S. Vigotski). O final do bloco coincide com a alta do hospital:

“Eu respirei tanto as impressões da morte em seis meses que passei nessa casa, onde a morte era um fenômeno tão diário e comum como o café da manhã e a visita do médico, que eu tendo à morte, assim como uma pessoa cansada tende ao sono.

Antes da viagem

18.5.26”

No entanto, em vez de cansaço e paralisação inicia-se uma nova e poderosa fase de disposição. Os temas do bloco são amplos: vemos como L. S. Vigotski passa para o ataque em todas as frentes e como, cada vez com mais e mais clareza, soam as formulações da nova concepção: “Então, a diferença da palavra: ela é um estímulo artificialmente criado (ex. técnica), ela é instrumento do comportamento, ela pressupõe dois sujeitos e um objeto. O comportamento verbal e o não verbal se diferenciam como o trabalho da adaptação do animal”. Nessa citação está a questão decisiva para a psicologia sobre as características específicas do homem e o esquema futuro do ato instrumental que foi, posteriormente, demarcada com precisão no relatório O método instrumental. Temos, de fato, provas de que L. S. Vigotski, já em 1926, formulara as bases da abordagem histórico-cultural e as primeiras teses foram apresentadas para a discussão apenas em dezembro de 1927 e janeiro de 1928, no relatório O desenvolvimento da criança difícil e seu estudo (I Congresso Russo de Pedologia). As premissas da abordagem, é claro, estão em todos os trabalhos de início de carreira de Vigotski. No entanto, em 1926, foram juntados e, dessa forma, criou-se um núcleo duro da concepção, ou seja, uma série de postulados em que se sustentaria todo o programa científico de investigação e que, posteriormente, seriam detalhados e receberiam novas formulações. Em 1930, a eles é acrescentado o princípio de sistema e, em 1932, o de estrutura do sentido da consciência. Sugerimos, exatamente, esse critério como início da concepção histórico-cultural no próprio sentido da palavra: a síntese de duas ideias que, até 1926, eram elaboradas sem uma relação precisa entre si (princípio da mediação do signo, que sofre alterações significativas e que passa para a função de fundo da concepção, e a ideia de desenvolvimento cultural da psique). Anteriormente, supunha-se que a fase crítica, o ano de transição, era 1927; a correspondência de L. S. Vigotski com os colegas forneceu fundamentos para concluir que as investigações experimentais seguindo o novo método de dupla estimulação já eram realizadas no verão de 1927, mas não foram publicadas. Agora, sabemos que as bases teóricas dessas investigações foram formuladas um ano antes.

Anotações separadas

1. Série de anotações sobre a questão judaica em folhas de cadernos. Contem, no geral, trechos de obras de outros autores (D. S. Merejkovski, A. O. Smirnova-Rosset, F. M. Dostoievski), listas de hebraísmos na língua russa, planos de artigos (O problema dos novos judeus, O movimento socialista judeu, entre outros). A data é por volta de 1915, a ortografia é pré-reforma.

2. Alguns versos escritos por L. S. Vigotski em diferentes anos(1915, 1921). Pela forma, os versos são com sílabas métricas; pelo estilo, são próximos à poesia do simbolismo.

3. Série de apontamentos para a Psicologia da arte em pequenas tiras de papel. Textos preparatórios para os capítulos sobre o ditado, o dito popular, a parlenda e listas de ditados russos. Sem data, aproximadamente, 1925.

4. Apontamentos para o trabalho de S. Freud Moisés e o monoteísmo sem possibilidade de estabelecimento de data, mas não deve ser depois de 1926 (possivelmente, é de 1925). Pelo conteúdo, são próximos de Psicologia da arte, por exemplo, a tese (15): “A arte é um instrumento técnico para a transformação das emoções.” O texto está dividido em três partes: o tema de Moisés, o tema de caráter das tragédias de Shakespeare e observações. Além de S. Freud, são mencionados A. Adler e O. Rank. A história de Moisés, que retornou com as tábuas do mandamento e que encontrou seu povo no pecado, é analisada no exemplo da famosa obra de Michelangelo que está na Basílica de São Pedro, em Roma. L. S. Vigotski é categoricamente contrário ao tratamento dado a essa obra-prima por S. Freud:

“Não foi Moisés da Bíblia e as tradições (homem afetivo). Não é histórico. Moisés, que Michelangelo retrabalhou com os motivos das tábuas quebradas, não quebra-as pela ira, mas quebra nelas a ira. Com isso foi introduzido o novo, super-humano: uma enorme massa do corpo e a forte musculatura, expressão corpórea para a ação psíquica superior que é possível para a pessoa. Minha teoria da arte. Uma única descarga de energia. Moisés transformado”.

5. Uma curta anotação “NB. A vontade (ideia central)”, feita na parte superior do bloco “Osborne Hotel” (2, Gordon Place, London, W. C. 1). Foi impossível estabelecer a data precisa do fragmento. Como já foi mencionado, L. S. Vigotski esteve em Londres, em 1925. No entanto, isso não significa que a anotação seja daquele ano. Pelo tema, tem uma ligação direta com o trabalhoA história do desenvolvimento das funções psíquicas superiorese com as futuras tentativas de relacionar o afeto (a tendência emocional-motivacional) com o pensamento (o princípio de unidade intelecto e afeto). Os termos da primeira frase são encontrados com frequência em trabalhos dos anos 1924 e 1925 e a ideia de organização social dos centros cerebrais é desenvolvida em 1934. Não há fundamentos para excluir, propriamente, o ano de 1925, apesar de uma formulação precisa da ideia de “transferência para dentro das relações sociais” aparecer nos apontamentos, pelo visto, apenas em 1926 (em nossa opinião, essa anotação pode ter sido feita entre 1926 e 1928). A anotação tem um valor muito grande, pois nela são anunciadas as ideias que são características para os trabalhos do último período de vida de L. S. Vigotski. Também vemos que o tema da vontade aparece muito cedo, enquanto nos trabalhos impressos a realização dessas ideias surge mais tarde. Há uma citação abreviada de um aforismo “nature parendo vincitur” (a sua tradução, sem abreviações, é “Só se governa a natureza obedecendo-lhe”) de F. Bakon e que é utilizado nos apontamentos a partir de 1928 (por exemplo, nas anotações de 3.04.1928: “NB! Flashes do pensamento spinozista, etc.) Apresentamos a primeira parte do apontamento.

“NB

A vontade (ideia central) deve ser retirada da subordinação e auto-regulação dos centros (córtex e subcorticais) e processos (dominante, subdominante) e posta nas relações sociais transferidas para dentro e encarnadas na atividade dos centros com a utilização da subordinação natural, orgânica (categoria retirada, o mecanismo de realização, parendo vincitur). Que relações são essas?

Comandos de subordinação

Cf. Blondel: o mecanismo da vontade e a máxima subordinação coincidem.

[Na margem esquerda há uma anotação a lápis. – E.Z.] Nietzsche: afeto do comando.”

6. Um tema semelhante foi abordado em outro documento O método instrumental e a vontade que deve ser, aproximadamente, de 1928 (não depois de 1930). Aqui, vemos formulações típicas de 1928 e 1929, semelhantes às teses do relatório O método instrumental para as quais é característica uma interpretação bastante rígida e, de certa forma, mecânica do desenvolvimento cultural (L. S. Vigotski abandona-as, depois de 1930). O ato instrumental aqui se apresenta como o ponto de apoio de Arquimedes que, se encontrado, pode mover o mundo.

“NB! Porque é importante o método instrumental para a instrução, para a criança anormal, etc.

Encontramos na função instrumental de utilização do signo a raiz comum de todo o cultural (= desenvolvimento intelectual superior). Quem não tem capacidade para a função instrumental também não a tem para a aritmética, a língua, a escrita, a mnemotécnica, etc., etc. Denominaremos esse X, essa função, de vontade, ou seja, o intelecto que atinge tal desenvolvimento que é voltado para si.

Cf. Spinoza. Int et vol. Iden.6 6 Pensamento e vontade são um só (E.Z.)

Essa anotação é importante, antes de tudo, porque evidencia a definição da vontade (que, aliás, não é explicitada até mesmo em A história das funções psíquicas superiores) que se dá por meio de processos do pensamento que, pela primeira vez, é capaz de observar a si mesmo (reflexiva). É claro que os outros processos, em particular, a atenção e até mesmo a ação prática terão uma natureza volitiva e intelectual (ver, por exemplo, o Capítulo 12 de A história das funções psíquicas superiores). A vontade e o pensamento estão colocados no centro do sistema psicológico que se mantém também no poder total da operação de signos. Na anotação do arquivo de 1930 (Odarionnost – Talento), de forma aforística, revela-se o otimismo psicotécnico do jovem L. S. Vigotski: “Tudo pode ser substituído – Binet: nisso está a garantia do desenvolvimento ilimitado”. Dois anos depois, o tratamento do processo de desenvolvimento muda visivelmente. É possível dominar apenas aquilo que se possui, escreverá L. S. Vigotski em Pensamento e fala. Pelo visto, a psique não é eternamente suscetível à intromissão de fora e a operação com signos ocorre numa base de certa forma preparada e, enraizando-se nela, transcorre cada vez de maneira diferente, dependendo do caráter da base. Ao criar a sua concepção de relação entre a natureza e a cultura, da hereditariedade e meio, L. S. Vigotski, como se sabe, introduziu, em seguida, o conceito de zona de desenvolvimento iminente que fornece a medida do possível, do alcançável com a ajuda do ato instrumental.

7. Apontamentos sobre a denominação da concepção (“NB! O nome que nos falta”) são particularmente interessantes porque, até hoje, não tínhamos nenhuma prova, de fato, a respeito de como L. S. Vigotski chamava sua teoria. No documento da mesma data que o manuscrito A história das funções psíquicas superiores (ou seja, aproximadamente de 1930 a 1931), podemos ler:

“NB! O nome que nos falta, uma denominação. Não deve ser um letreiro (intuitismo). Não é instrum., nem cultural, nem signif., nem constr., etc. Não apenas pela confusão com as outras teorias, mas em função da pouca clareza interna: por exemplo, a ideia de analogia com instrum. = somente os andaimes, uma diferença essencial. Cultura: mas de onde vem a própria cultura (ela não é primária e isso está oculto).

Então:

1). Para o método uma denominação

Método de dupla estimulação;

2). Para o estudo como um todo

a) psicologia das funções superiores, ou seja,

b) psicologia histórica ou

c) teoria histórica das funções psicológicas superiores.

Pois, o conceito central para nós – é o conceito de função superior:

nele está contido o estudo

a) sobre o seu desenvolvimento, b) sobre sua natureza psicológica, c) sobre o método de sua investigação”.

Ao discutir a denominação, L. S. Vigotski detém-se na versão 2c. No entanto, não se pode esquecer que, aqui, ele caracteriza a própria abordagem do modelo de 1930-1931, ou seja, analisa-o às vésperas de mudanças radicais. Um ano depois, o conceito de função psíquica superior, gradativamente, perderá seu caráter de instrumento direcionado, de termo guia, apesar de permanecer na carcaça conceitual da teoria.

Cartas

Ao período de 1912 a 1930 também estão relacionadas cartas de A. Ia. Birrovski, V. B. Chklovski, I. G. Erenburg, V. N. Ivanovski, K. N. Kornilov e A. R. Luria que foram encontradas nos arquivos. Os documentos mais interessantes são duas cartas de K. N. Kornilov que, naquela época, era um cientista famoso e diretor do Instituto de Psicologia Experimental, dirigidas ao jovem funcionário de 2º nível L. S. Vigotski. K. N. Kornilov, pelo visto, compreendia muito bem o grau de genialidade de L. S. Vigotski; em suas cartas, não há uma marca sequer do tom de chefe e, com sinceridade e abertamente, expressa sua admiração pelaPsicologia da arte (vale lembrar que esse manuscrito era o trabalho dissertativo de L. S. Vigotski e sua defesa deveria ocorrer no Instituto de Psicologia Experimental). Uma das cartas aqui apresentadas, L. S. Vigotski recebeu no hospital (em abril de 1926). No entanto, Kornilov superavaliou a semelhança entre seu ponto de vista e o ponto de vista científico de L. S. Vigotski. Um ano depois, L. S. Vigotski passa a fazer críticas à reatologia de K. N. Kornilov, apesar de manter com ele uma relação pessoal cordial. Até mesmo depois da morte de L. S. Vigotski e da triste resolução de 1936 Sobre as deturpações pedológicas no sistema do Comissariado do Povo para a instrução (Narcompros), K. N. Kornilov permaneceu entre os poucos que tinham a coragem de defender os trabalhos do pensador. Transcrevemos abaixo alguns trechos da carta de 12 de outubro de 1925:

“Se eu não tivesse lido sua Dissertação (acabei a leitura, neste minuto), eu me referiria ao senhor de forma comum ‘prezado’. Mas, agora, quero dizer do modo como pede todo o meu ser – ‘querido’. E eis porque. [...]

A sua utilização do princípio de dispêndio unipolar de energia em relação ao campo das emoções é extremamente boa; eu não cheguei a pensar nessa interpretação de utilização desse princípio.7 7 Sobre esse princípio L. S. Vigotski escreveu em Psicologia da arte duas vezes. “Entre os psicólogos existe duas opiniões a respeito do assunto se a emoção, sob a influência das imagens afetivas, é reforçada ou enfraquecida. (...) Se aplicar a essa questão o principio de dispêndio unilateral de energia, introduzido pelo Professor Kornilov, na interpretação dos processos intelectuais, ficará evidentemente claro que nos sentimentos, assim como nos atos do pensar, qualquer reforçamento da descarga no centro leva ao enfraquecimento da descarga nos órgãos periféricos”. “Esse retardo e enfraquecimento das manifestações intraorganicas e extrenas das emoções é que, me parece, necessário analisar como um caso particular da ação da lei geral de dispêndio unipolar de energia em emoções e a essência disso resume-se no fato de que na emoção o dispêndio de energia realiza-se predominantemente em um dos dois polos – ou na periferia ou no centro – e o reforço da atividade em um dos polos leva, imediatamente, ao seu enfraquecimento no outro polo. Parece-me que apenas deste ponto de vista é possível analisar também a arte que parece despertar em nós sentimentos extremamente fortes, mas estes sentimentos, com isso, não se expressam em nada. Essa diferença misteriosa do sentimento artístico do comum, parece-me, deve-se compreender de tal forma que isso é o mesmo sentimento, mas que se realiza com a atividade extremamente reforçada da fantasia” (Nota de E.Z.) (Os trechos são de VIGOTSKI, L. S.Psirrologuia iskusstva. Minsk: Sovremennoie slovo, 1998, p. 51; 233-234. Tradução de Zoia Prestes).

Mas o que me impressionou de verdade foi a simultaneidade da abordagem pelo senhor e por mim da questão sobre as reações explosivas. Enquanto o senhor chegou às reações explosivas pelo raciocínio teórico sobre a arte, eu, como o senhor sabe, cheguei a esta questão de forma puramente experimental, como uma continuação direta das reações de ordem mais complexas. [...]

Essa coincidência dos resultados com a utilização de métodos completamente diferentes foi o que me impressionou: isso é a melhor prova de proximidade ideológica entre nós. E, pela primeira vez, para mim se desenha de forma muito nítida na consciência que, se tivéssemos a oportunidade de trabalharmos mais alguns anos juntos, sem dúvida, seríamos um coletivo ideologicamente fundido e exclusivo. E, de repente, pensei que ninguém mais que o senhor, com sua natureza criadora, poderia enraizar-se organicamente nesse coletivo, conservando ao mesmo tempo toda a riqueza de sua individualidade. Eis porque é extremamente sofrido para mim sentir a sua ausência temporária por força de seu adoecimento. Vamos esperar que isso seja temporário e que logo o senhor se restabeleça. Lamento muito por não podermos organizar uma defesa pública de sua dissertação para termos a oportunidade de dizer diante de todos o valor exclusivo dela. Mas, penso eu que, exatamente agora, quando sua doença se agravou, poderemos correr com as formalidades do colegiado e outras instâncias. Assim que o senhor se fortalecer, nós, independentemente das formalidades, organizaremos a discussão pública do seu trabalho. Faremos, mas, por enquanto, vamos possibilitar ao senhor gozar de todos os seus direitos relacionados ao seu trabalho e esse direito é inquestionável.

Durante uma semana, eu fiquei lendo o seu trabalho, estudando com o senhor a interpretação da reação estética, como ela deve ser dada do ponto de vista da nossa posição. O senhor fez isso de forma maravilhosa e eu estou infinitamente feliz porque tenho um companheiro assim de trabalho conjunto e essa alegria me deu o direito de chamá-lo de “querido” e espero que o senhor não lamente por isso.

Com meu profundo e sincero respeito,

K. Kornilov.

P.S. Não precisa de resposta, pois sei que qualquer esforço, nesse momento, deve ser evitado pelo senhor. Falaremos depois”.

Ao que foi dito pode-se acrescentar apenas que também vimos um documento em que estão registradas as circunstâncias da defesa à distância do trabalho dissertativo Psicologia da arte. O restante fala por si.

Do trabalho de tratamento dos textos que foram mencionados acima participaram L. E. Tuzovskaia (manuscrito Tragicomédia das buscas, bloco de 1926) e M. E. Ossipov (cartas). A autora expressa seu agradecimento pela ajuda no trabalho com os documentos.

* * *

Aqui termina o trecho do artigo de Zaverchneva (2008)ZAVERCHNEVA, E. I. Zapisnie knijki, zametki, nautchnie dnevniki L.S.Vigotskogo: rezultati issledovania semeinogo arrriva. Jurnal Voprosi Psirrologuii, Moskva, n. 1, p. 132-145, 2008. que traduzimos. Ele apresenta algumas informações importantes para a compreensão da vida e obra desse grande homem: sobre a sua relação com a doença que o acometeu e a presença forte e constante de Hamletnos períodos de crise e internação; sobre sua relação com a família; sobre seu compromisso com a Revolução de Outubro; sobre dúvidas e ideias no processo de elaboração de sua teoria e, com destaque, algumas indicações de suas preocupações com a questão judaica.

No que tange à questão judaica, vale realçar o que já foi apontado por Blanck (2003)BLANCK, G. Prefácio. In: VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. Tradução de Claudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 2003. p. 15-32. que, a despeito de Vigotski ter sido um estudioso do judaísmo e dos evangelhos, quase nunca se menciona esse fato em suas biografias, sabendo-se que isso teve fortes implicações em momentos decisivos de sua vida e carreira. Sua família era judia, ainda que não religiosa, mas respeitava as tradições, o que se evidencia no fato de ele ter tido o seu bar mitzva. Que o judaísmo teve importante papel em sua vida e obra atesta-se pela influência de Spinoza em seu pensamento. Além disso, seria mesmo altamente improvável que, tendo vivido episódios fortes, e até mesmo muito violentos, especialmente em sua infância e juventude, isso não o tenha influenciado e sensibilizado para a questão judaica. Conforme Blanck (2003BLANCK, G. Prefácio. In: VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. Tradução de Claudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 2003. p. 15-32., p. 30), ele viveu noRayon:

No Império Russo, os judeus tinham de residir obrigatoriamente noRayon, um gueto gigantesco que abrangia vários países e do qual alguns comerciantes, profissionais independentes e os poucos estudantes que tinham conseguido ingressar nas universidades russas podiam sair. (Rayon é uma palavra francesa que designava a “zona de estabelecimento dos judeus” na Rússia de Vigotski. [...] Era perigoso viver no Rayon, porque às vezes havia pogroms. Este termo provém do vocábulo russopogrom, que significa “ataque em massa” (contra os judeus). Os pogroms eram organizados pelo governo czarista. Durante eles, os cossacos martelavam pregos nas cabeças dos velhos, arrancavam olhos, torturavam crianças, estupravam mulheres e roubavam tudo o que podiam durante três dias – no quarto dia, as tropas regulares czaristas saíam às ruas para “restabelecer a ordem”. Era muito perigoso sair do Rayon sem permissão [...] Durante a infância de Vigotski, houve dois pogroms em Gomel, em 1903 e 1906. Seu pai participou da autodefesa judia do primeiro, um dos poucos em que os cossacos não triunfaram.

Certamente, quando for acessível o material que se encontra no arquivo da família de Elena Kravtsova, sua neta, novas portas serão abertas para a compreensão da importância do judaísmo na constituição do pensamento de Vigotski.

Referências

  • BLANCK, G. Prefácio. In: VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica Tradução de Claudia Schilling. Porto Alegre: Artmed, 2003. p. 15-32.
  • IAROCHEVSKI, M. G. L. S. Vigotski: v poiskarh novoi psirrologuii. Mosckva: URSS, 2007.
  • LEONTIEV, A. A. L. S. Vigotski Moskva: Prosveschenie, 1990.
  • VIGODSKAIA, G. L. Tekst vispuplenia na IV Mejdunarodnirh tcheniarh pamiati L.S.Vigotskogo (Moskva, TGGU, noiabr, 2003). Vestnik RGGU, Moskva, n. 1, p. 16-22, 2006.
  • VIGODSKAIA, G. L.; LIFANOVA, T. M. Lev Semionovitch Vigotski: jizn, deiatelnost, chtrirri k portretu. Moscou: Smisl i Smisl, 1996.
  • ZAVERCHNEVA, E. I. K voprosu o periodizatsii nautchnoi biografii L. S. Vikotskogo. Vestnik RGGU, Moskva, n. 1, p. 284-293, 2006.
  • ZAVERCHNEVA, E. I. Zapisnie knijki, zametki, nautchnie dnevniki L.S.Vigotskogo: rezultati issledovania semeinogo arrriva. Jurnal Voprosi Psirrologuii, Moskva, n. 1, p. 132-145, 2008.
  • ZINTHCENKO, V. P. Misl i slovo Gustava Chpeta Moskva: Izdatelstvo YRAO, 2000.
  • 1
    G.G. Chpet foi professor de Vigotski à época de seus estudos na Universidade Popular Chaniavski. Segundo Guita Vigodskaia, foi por meio de suas aulas que o pai descobriu os estudos de Potiebnia. Alguns estudiosos afirmam que, apesar de conter divergências ideológicas, é possível observar um sincronismo entre as ideias de Vigotski e Chpet. Vladimir Petrovitch Zintchenko destaca que, apesar de ainda pertencer à terra incógnita, Chpet desempenhou um papel fundamental no momento em que estava em pauta a criação de uma nova psicologia. Pouco se conhece também o fato de que ele foi um dos criadores do Instituto de Psicologia, juntamente com G. I. Tchelpanov, e trabalhou com Vigotski na mesma época na 2ª Universidade de Moscou. Muitos futuros colegas e colaboradores de Vigotski, entre eles L. I. Bojovitch, A. V. Zaporojets, R. E. Levina, N. G. Morozova, L. S. Slavina, foram também alunos de Chpet (ZINTHCENKO, 2000ZINTHCENKO, V. P. Misl i slovo Gustava Chpeta. Moskva: Izdatelstvo YRAO, 2000.).
  • 2
    Atualmente, o Núcleo de Tradução, Estudos e Interpretação de obras dos representantes da Teoria histórico-cultural (NUTHIC) está traduzindo do original russo esta obra de Vigotski com a reconstituição feita por E. Zavercheneva.
  • 3
    Do ponto de vista da eternidade (E.Z).
  • 4
    De acordo com a última tese, é necessário destacar que a questão sobre a citação direta dos trabalhos de M. M. Barrtin ou a respeito de ter ou não este conhecido L. S. Vigotski ainda permanece nebulosa. Em nenhuma referência pudemos observar o nome de M. M. Barrtin, nem citações de seus textos. No entanto, durante a reconstituição do texto autêntico do famoso artigo Psique, consciência, inconsciente revelou-se que os redatores haviam retirado uma referência ao trabalho de V. N. Volochin - Marxismo e filosofia da língua (a autoria desse texto até hoje não foi estabelecida. No entanto, sem dúvida, M. M. Barrtin participou da sua elaboração).
  • 5
    “Animal político” – definição antiga do homem em que “político” significa tudo aquilo que é relativo à “polis” como uma estrutura racional da vida social das pessoas (E.Z.)
  • 6
    Pensamento e vontade são um só (E.Z.)
  • 7
    Sobre esse princípio L. S. Vigotski escreveu em Psicologia da arte duas vezes. “Entre os psicólogos existe duas opiniões a respeito do assunto se a emoção, sob a influência das imagens afetivas, é reforçada ou enfraquecida. (...) Se aplicar a essa questão o principio de dispêndio unilateral de energia, introduzido pelo Professor Kornilov, na interpretação dos processos intelectuais, ficará evidentemente claro que nos sentimentos, assim como nos atos do pensar, qualquer reforçamento da descarga no centro leva ao enfraquecimento da descarga nos órgãos periféricos”. “Esse retardo e enfraquecimento das manifestações intraorganicas e extrenas das emoções é que, me parece, necessário analisar como um caso particular da ação da lei geral de dispêndio unipolar de energia em emoções e a essência disso resume-se no fato de que na emoção o dispêndio de energia realiza-se predominantemente em um dos dois polos – ou na periferia ou no centro – e o reforço da atividade em um dos polos leva, imediatamente, ao seu enfraquecimento no outro polo. Parece-me que apenas deste ponto de vista é possível analisar também a arte que parece despertar em nós sentimentos extremamente fortes, mas estes sentimentos, com isso, não se expressam em nada. Essa diferença misteriosa do sentimento artístico do comum, parece-me, deve-se compreender de tal forma que isso é o mesmo sentimento, mas que se realiza com a atividade extremamente reforçada da fantasia” (Nota de E.Z.) (Os trechos são de VIGOTSKI, L. S.Psirrologuia iskusstva. Minsk: Sovremennoie slovo, 1998, p. 51; 233-234. Tradução de Zoia Prestes).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    jan-apr 2015

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2013
  • Aceito
    11 Nov 2014
Universidade Federal Fluminense, Departamento de Psicologia Campus do Gragoatá, bl O, sala 334, 24210-201 - Niterói - RJ - Brasil, Tel.: +55 21 2629-2845 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista_fractal@yahoo.com.br