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Corpo-si: a construção do conceito na obra de Yves Schwartz

The construction of the concept of selfbody on the work of Yves Schwartz

Resumo

Este artigo trata do processo de construção do conceito de corpo-si na obra do filósofo Yves Schwartz, apreendendo a atividade humana como dramáticas de uso do corpo-si. Buscando conferir visibilidade e sistematização ao percurso de construção desse conceito, são feitas alusões ao modo como Schwartz vem retomando criticamente as contribuições de diferentes autores. Entende-se que o conceito de corpo-si contribui para a compreensão da dimensão subjetiva do trabalho, sem oferecer respostas fechadas, indicando que só é possível contribuir para a compreensão e transformação do trabalho alheio, construindo-se uma parceria que seja tanto de projeto epistêmico quanto de construção de uma sociedade comum.

Palavras-chave:
psicologia do trabalho e organizacional; atividade de trabalho; trabalho e subjetividade; corpo-si; ergologia

Abstract

This article deals with the process of constructing the concept of selfbody in the work of the philosopher Yves Schwartz, seizing human activity as “dramatics use of the body-self.” Seeking to give visibility and systematization to the course of construction of this concept, allusions are made to the way in which Schwartz has critically recaptured the contributions of different authors. It is understood that the concept of selfbody contributes to the understanding of the subjective dimension of work, without offering closed answers, indicating that it is only possible to contribute to the understand and transformation of the work of others, building a partnership that is both an epistemic project as well as the construction of a common society.

Keywords:
work and organizational psychology; work activity; work and subjectivity; body-self; ergology

A dimensão subjetiva do trabalho tornou-se uma problemática importante da psicologia do trabalho e organizacional como exemplificam as obras de autores como Clot (2010CLOT, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2010.) e Dejours (2012DEJOURS, C. Trabalho vivo: sexualidade e trabalho. Brasília: Paralelo 15, 2012. v. 1.). Schwartz (2014SCHWARTZ, Y. Motivações de conceito de corpo-si: corpo-si, atividade, experiência. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 3, p. 259-274, jul./set. 2014.) traz mais uma contribuição ao fornecer o conceito de atividade como “dramáticas de uso do corpo-si” que auxilia a ver tal dimensão com o cuidado epistemológico e ético necessário para evitar reducionismos e dicotomias. Pretende-se neste artigo, abordar o processo de construção do referido conceito na obra desse autor. 1 1 Procurou-se trazer os títulos originais em francês na sequência cronológica em que foram publicados na França, mas privilegiamos informar como referências bibliográficas as traduções brasileiras para facilitar o acesso dos leitores. Ao mesmo tempo, procura-se trazer recortes da contribuição de autores que serviram de referência para Schwartz (2014)SCHWARTZ, Y. Motivações de conceito de corpo-si: corpo-si, atividade, experiência. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 3, p. 259-274, jul./set. 2014. nesse desenvolvimento conceitual, buscando conferir alguma visibilidade e sistematização a esse dinâmico percurso. Para realizar este trabalho nos valemos do conhecimento que temos da obra desse autor e dos diálogos que temos estabelecido com o mesmo desde 1999, quando dois dos autores desse texto realizaram doutorado-sandwich no departamento de Ergologia. Priorizamos trabalhar numa sequência cronológica de textos para tentar evidenciar os diferentes temas que o autor vem associando ao conceito. Depois que fizemos um primeiro levantamento de referências, enviamos ao Prof. Yves Schwartz o esboço inicial da proposta de artigo e as referências já propostas. O mesmo atenciosamente nos encorajou no desenvolvimento do trabalho indicando ainda outras referências que foram incluídas no estudo.

Um primeiro texto importante é o capítulo denominado “Travail et usage de soi”2 2 Trabalho e uso de si. (SCHWARTZ, 2000aSCHWARTZ, Y. Trabalho e uso de si. Pro-posições, Campinas, v. 1, n. 5(32), p. 34-50, jul. 2000a.), publicado pela primeira vez em 1987 no livro Je: sur L’individualité,3 3 Eu, sobre a individualidade, abordagens práticas/aberturas marxistas. approches pratiques/ouvertures marxistes. O livro reúne textos de intelectuais franceses empenhados em pensar a questão da individualidade a partir do patrimônio marxista. No referido capítulo, Schwartz retoma a reflexão sobre a organização taylorista do trabalho e reafirma que, mesmo em contexto de trabalho extremamente repetitivo, a dimensão subjetiva está presente, pois não existe trabalho que seja apenas execução, mas “dramáticas do uso de si por si e por outros” (SCHWARTZ, 2000aSCHWARTZ, Y. Trabalho e uso de si. Pro-posições, Campinas, v. 1, n. 5(32), p. 34-50, jul. 2000a.). Ainda não há nessa obra o uso do conceito de corpo-si, mas a problemática que vai levar ao desenvolvimento do conceito está presente no texto em duas referências: a Nietzsche e a Canguilhem. Num dos tópicos do capítulo, Schwartz (2000a)SCHWARTZ, Y. Trabalho e uso de si. Pro-posições, Campinas, v. 1, n. 5(32), p. 34-50, jul. 2000a. se pergunta como abordar o si, e começa a perseguir essa questão retomando Nietzsche (2011)NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. quando este afirma que o si é um sábio desconhecido. Esta afirmação é feita no livro Assim Falou Zaratustra, especificamente em um dos discursos de Zaratustra, denominado “Dos desprezadores do corpo”:

Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido - ele se chama Si-mesmo. Em teu corpo habita ele, teu corpo é ele.

Há mais razão em teu corpo que em tua melhor sabedoria. E quem sabe porque teu corpo necessita justamente de tua melhor sabedoria? (NIETZSCHE, 2011NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 35).

A presença, em plena organização de trabalho taylorista, de um trabalho diferente da prescrição revela uma atividade que não é fruto apenas de uma mão ou de uma mente separados. É efeito de um si, que se apresenta com sua complexidade e possibilidade de intervenção, como corpo que é também alma e que está para além da dicotomia trabalho intelectual e trabalho manual. Isso indica que não é simples compreender essa atividade porque ela não é evidente nem ao próprio trabalhador. Daí ser pertinente a referência a um sábio desconhecido. O autor propõe que para abordar o si é necessário considerá-lo sob três ângulos: como parte dos seres vivos, como formado na trama do trabalho social e como singularizado no desafio privado da hominização.

Já a referência a Canguilhem evoca tanto o livro Normal e Patológico (CANGUILHEM, 2011CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 7. ed. Rio de Janeiro: Gen/Forense Universitária, 2011.) como o texto O meio e normas do homem no trabalho (CANGUILHEM, 2001CANGUILHEM, G. O meio e normas do homem no trabalho. Pro-posições. v. 12, n. 2-3, p. 109-121, jul. /nov. 2001.). Do diálogo que estabelece com esse autor, Schwartz destaca a importância de trazer para a reflexão sobre a atividade de trabalho o reconhecimento de que trabalhadores e trabalhadoras elaboram normas próprias, realizam escolhas dentre as opções normativas disponíveis, em consonância com um debate de valores que também lhes são próprios. Além disso, com Canguilhem, Schwartz compreende o si dentro da temática da saúde como normatividade, na produção de um meio de trabalho com valores que afirmam a vida, como se pode ver:

Pode-se compreender então que é este mesmo ‘sábio desconhecido’, o desejo de saúde, o desejo de abrir no mundo cotidiano espaços onde ser norma instituinte por pouco que se o deseje, que pode tornar possíveis as transferências de afetos e de símbolos entre heranças e coerções do desafio infantil e coerções, heranças e possíveis ofertas pelas atividades humanas em cada momento da história; e de tal sorte que esta segunda ordem de realidade não seja simples repetição, mas um retrabalho com profundidade do primeiro (SCHWARTZ, 2000aSCHWARTZ, Y. Trabalho e uso de si. Pro-posições, Campinas, v. 1, n. 5(32), p. 34-50, jul. 2000a., p. 47).

Percebemos também a afirmação de que a vivência da atividade humana não seria mera repetição dos desafios da vida infantil, mas uma possibilidade de transformação subjetiva a partir da atividade das heranças do passado. Daí a exigência de um cuidado da parte dos coletivos de pesquisa e intervenção com a produção de conhecimento, para não negar essa vida como experiência e buscar aprender como se refaz, em cada um, uma apreensão inédita e mais ou menos eficaz sobre o mundo. Uma ciência que reduzisse os humanos a modelos e estatísticas, não considerando sua singularidade, seria usurpadora e redutora do potencial normativo.

Oito anos passados da aparição de “Travail et usage de soi”, Schwartz (1995SCHWARTZ, Y. De l’inconfort intellectuel, ou: comment penser les activités humaines? In: COURS-SALIES, P. (Coord.). La liberté du travail. Paris: Syllepse, 1995. p. 99-149.) publica um capítulo no livro La Liberté du travail4 4 A liberdade do trabalho. denominado “De l’inconfort intellectuel, ou: comment penser les activités humaines?”,5 5 Do desconforto intelectual, ou como pensar as atividades humanas? no qual abordará o conceito de corpo-si. Essa abordagem advém da retomada da discussão epistemológica e filosófica a que se dedica o autor, reconhecendo o desafio que envolve a produção de conhecimento sobre o trabalho em sua historicidade. Por um lado, as atividades sempre em parte singularizam uma situação, por outro, os conceitos têm por vocação neutralizar as variáveis tempo e lugar desses processos.

A partir dessa reflexão, o autor busca estabelecer uma relação entre normas antecedentes, entidades coletivas e o indivíduo humano. Vale a pena observar que Schwartz (1995SCHWARTZ, Y. De l’inconfort intellectuel, ou: comment penser les activités humaines? In: COURS-SALIES, P. (Coord.). La liberté du travail. Paris: Syllepse, 1995. p. 99-149.) não aborda o indivíduo do modo criticado por Barros (2007BARROS, R. B. Grupo: a afirmação de um simulacro. Porto Alegre: Sulina/UFRGS, 2007.), em que esta noção significaria a menor parcela indivisa da sociedade, produzindo uma dicotomia entre indivíduo e sociedade. A autora critica também uma concepção de que haveria uma essência subjetiva de cada indivíduo que seria produto única e exclusivamente de sua história pessoal. Schwartz (1995)SCHWARTZ, Y. De l’inconfort intellectuel, ou: comment penser les activités humaines? In: COURS-SALIES, P. (Coord.). La liberté du travail. Paris: Syllepse, 1995. p. 99-149. defende exatamente que não há história de um humano singular dissociada de história social, e que cada humano vive em sua atividade múltiplos debates de normas, longe de um essencialismo. Ele afirma que, sem as entidades coletivas, não há pontos de apoio para se fazer a história das normas antecedentes. Seguindo essa linha de raciocínio, afirma que a renormatização puramente singular “se apaga com seu herói” (SCHWARTZ, 1995SCHWARTZ, Y. De l’inconfort intellectuel, ou: comment penser les activités humaines? In: COURS-SALIES, P. (Coord.). La liberté du travail. Paris: Syllepse, 1995. p. 99-149., p. 117). No entanto, existem formas específicas de normas que se constituem por meio de contribuições individuais múltiplas e simultâneas ao patrimônio coletivo. Para Schwartz, os indivíduos humanos não podem trabalhar, e mesmo viver, sem contribuir para esse patrimônio coletivo, o que compreende também contribuir para si mesmo.

Pensar nessas contribuições individuais ao patrimônio coletivo remete pensar em relação a percursos biográficos individuais. O autor concorda que o entendimento dos processos vividos pelos humanos na cena do trabalho como o prazer, a dor e “os processos identificatórios” não é suficiente nem para compreender a construção das entidades coletivas nem para saber o porquê de a atividade industriosa ter tomado a forma socializada, econômica que assume hoje. Porém, alerta que é preciso indagar sobre o que faz com que aquilo que se trama na história social tenha pertinência sobre os dramas psíquicos de cada um e vice-versa (SCHWARTZ, 1995SCHWARTZ, Y. De l’inconfort intellectuel, ou: comment penser les activités humaines? In: COURS-SALIES, P. (Coord.). La liberté du travail. Paris: Syllepse, 1995. p. 99-149., p. 119). Para abordar essa questão, Schwartz (1995SCHWARTZ, Y. De l’inconfort intellectuel, ou: comment penser les activités humaines? In: COURS-SALIES, P. (Coord.). La liberté du travail. Paris: Syllepse, 1995. p. 99-149.) convoca ao debate a noção de ressonância simbólica de Dejours (1993DEJOURS, C. Inteligência operária e organização do trabalho: a propósito do modelo japonês de produção. In: HIRATA, H. (Org.). Sobre o modelo japonês. São Paulo: EDUSP, 1993. p. 281-309.) que afirma a importância de existir uma analogia de estrutura e de forma entre o teatro psíquico herdado da infância e o teatro do trabalho, ou ainda uma relação entre contexto diacrônico (história singular do trabalhador) e contexto sincrônico (história coletiva). Essa é uma das condições importantes para a mobilização de uma inteligência astuciosa, também chamada inteligência do corpo. Ele destaca a importância dessa contribuição de Dejours para tornar mais evidente ainda a presença dessa astúcia dos trabalhadores em situação de trabalho. Ao mesmo tempo, salienta que essa diferenciação entre inteligência prática e inteligência teórica pode contribuir para cristalizar uma oposição própria a categorias socioprofissionais polarizadas, embora reconheça o cuidado de Dejours ao ressaltar que essa inteligência prática está presente mesmo nas tarefas intelectuais. Schwartz (1995)SCHWARTZ, Y. De l’inconfort intellectuel, ou: comment penser les activités humaines? In: COURS-SALIES, P. (Coord.). La liberté du travail. Paris: Syllepse, 1995. p. 99-149. ressalta como a possibilidade de produzir conceitos, de pensar a experiência com auxílio do conhecimento amplia essa atividade de um corpo-si de projetar diferentes possibilidades e, assim, poder decidir mudar os destinos a viver no trabalho.

Ainda sobre o conceito de ressonância simbólica, Schwartz (1995SCHWARTZ, Y. De l’inconfort intellectuel, ou: comment penser les activités humaines? In: COURS-SALIES, P. (Coord.). La liberté du travail. Paris: Syllepse, 1995. p. 99-149.) reconhece que este contribui para compreender como elementos da história psíquica anterior se confrontam com o real do trabalho, mobilizando ou bloqueando a atividade do trabalhador. Porém, argumenta que seria preciso complementar o raciocínio, questionando como as dramáticas do trabalho fazem ressonância na construção histórica desse psiquismo. Como já apontava no texto de 1987, a atividade retrabalha as heranças psíquicas da história singular de cada humano. Por fim, o autor afirma que a problemática do corpo é tomada como fundamental para pensar os desafios e possibilidades no trabalho e que o corpo no qual se enraíza fundamentalmente a inteligência astuciosa é sem dúvida o ponto maior desta amarração incerta:

O corpo, este mesmo corpo, que tenta fazer face em todas as situações da vida, este si do uso de si, à provação de todas as circulações entre trabalho e fora do trabalho, trabalho e não trabalho, este corpo que liga o sincrônico ao diacrônico, é todo conjunto o corpo biológico, o corpo biográfico que porta os estigmas de sua tentativa de inscrição no ser social, o corpo falante e significante, o corpo cultural e histórico. Este corpo-si é bem o lugar onde deve se pensar esta articulação das dramáticas e se há bem um enigma de trabalho, ele nos parece repousar inicialmente e antes de tudo lá (SCHWARTZ, 1995SCHWARTZ, Y. De l’inconfort intellectuel, ou: comment penser les activités humaines? In: COURS-SALIES, P. (Coord.). La liberté du travail. Paris: Syllepse, 1995. p. 99-149., p. 122).

Dois anos depois da divulgação do “De l’inconfort intellectuel...”, Schwartz publica em 1997 na revista Education Permanente o artigo “Les ingrédients de la compétence: un exercice nécessaire pour une question insoluble”6 6 Os ingredientes da competência: um exercício necessário para uma questão insolúvel. que contribuirá no debate sobre a possibilidade de se fazer um “balanço das competências” convocadas para o trabalho. Propõe tratar a questão pensando as competências como ingredientes da arte culinária. Dentre os seis ingredientes apresentados, faz-se pertinente aqui o de número dois que é o estar incorporado de historicidade, de ressingularização das normas antecedentes. Mas é necessário levar a palavra “incorporação” até o seu sentido próprio: a negociação pressuposta nesse ingrediente de competência é também uma maneira de negociação obscura com seu próprio corpo. Não há um agir em competência sem a onipresença desse corpo-si na gestão eficaz da variabilidade do trabalho. Dois corpos não se educam da mesma forma numa mesma situação de vida e de trabalho, e essa complexidade não pode ser desprezada ao se avaliar as propostas de formação profissional (SCHWARTZ, 1998SCHWARTZ, Y. Os ingredientes da competência: um exercício necessário para uma questão insolúvel. Educação e Sociedade, Campinas, v. 19, n . 65, p. 101-139, dez. 1998.).

Essa problemática será retomada em 2000 na conclusão do livro Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe (SCHWARTZ, 2000bSCHWARTZ, Y. Conclusion générale: ergologue est-ce um métier? In: ______. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse, Octarès, 2000b. p. 641-738),7 7 O paradigma ergológico ou um ofício de filósofo. com o auxílio de vários autores, entre eles, três neurocientistas: Berthoz, Vincent e Damásio. Berthoz traz uma contribuição importante ao desenvolver a premissa de que o cérebro não representa a realidade, ele a antecipa e a emula. Além disso, o cérebro não é o gerente do corpo, mas parte indissociável dele:

Mas esta disposição a antecipar, a adivinhar, a apostar não reenvia somente a um sistema nervoso computacional e calculador, sede das manipulações simbólicas que apenas se utiliza do corpo; através dos captores e o universo disseminado das atividades neurais, é o conjunto do corpo que participa dessa onipresente propensão a emular e antecipar (BERTHOZ apud SCHWARTZ, 2000bSCHWARTZ, Y. Conclusion générale: ergologue est-ce um métier? In: ______. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse, Octarès, 2000b. p. 641-738, p. 643).

Além disso, ele sustenta que a direção do olhar está relacionada a esta antecipação: “Esta capacidade de explorar ativamente o espaço se opera pelos movimentos de orientação produzidos em função dos projetos do sujeito e não em resposta aos estímulos do ambiente” (BERTHOZ apud SCHWARTZ, 2000bSCHWARTZ, Y. Conclusion générale: ergologue est-ce um métier? In: ______. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse, Octarès, 2000b. p. 641-738, p. 644).

Os estudos e constatações de Berthoz vão ao encontro do que postula Canguilhem no que se refere a sua afirmação de que o meio do ser vivo é organizado e produzido por ele em função de suas necessidades. É próprio da vida, como atividade, não ficar indiferente ou inerte. O meio próprio do homem não é neutro, mas construído em relação a valores.

Por sua vez, Wisner (apud SCHWARTZ, 2000bSCHWARTZ, Y. Conclusion générale: ergologue est-ce um métier? In: ______. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse, Octarès, 2000b. p. 641-738), com a Antropotecnologia (WISNER, 1994WISNER, A. Inteligência no trabalho: textos selecionados de ergonomia. São Paulo: Fundacentro, 1994.), demonstrará como esse modo de construção do corpo é situado histórica e culturalmente. Ele valoriza Berthoz e lembra que, segundo defende o autor, não se pode compreender a atividade psicológica apenas com a neurofisiologia. O cérebro, com suas inúmeras possibilidades apresenta formas de funcionamento cognitivo diversas em contextos diferentes. As experiências de transferência de tecnologia de países industrializados para países em vias de industrialização ensinam como os operários reconstroem os procedimentos e precisam lidar com variabilidades que não são as mesmas dos países de origem. Paradoxalmente, o que há de universal é essa ressingularização que possibilita fazer funcionar sistemas técnicos em contextos diversos.

Exemplos de competência adquirida em um determinado meio de vida que é transplantada para outras situações de trabalho ajudam a compreender bem a construção social do corpo-si. Um deles é o clássico exemplo do trabalhador que conseguia detectar problemas de qualidade em garrafas numa fábrica (MECKASSOA apud WISNER, 1994WISNER, A. Inteligência no trabalho: textos selecionados de ergonomia. São Paulo: Fundacentro, 1994.). Ao conhecer sua história de vida, descobriu-se que pescava peixes com lança em sua terra natal, o que exigia prestar atenção num vulto quase imperceptível: era o peixe que deveria ser pego rapidamente. Isso exigia também antecipar os movimentos do animal. Anos vivenciando essa atividade desenvolveram nesse homem, certamente, competências diferentes das de outros trabalhadores que não tinham tido a mesma formação sociocultural.

Sobre esse ponto, Schwartz (2000SCHWARTZ, Y. Trabalho e uso de si. Pro-posições, Campinas, v. 1, n. 5(32), p. 34-50, jul. 2000a.) avalia que a Antropotecnologia, com um método diferente da neurociência, descobre outros aspectos que enriquecem a compreensão da construção desse corpo-si, ao mesmo tempo em que reconhece uma atividade que se antecipa ao mundo e a problematiza em função dos projetos do trabalhador. Como no exemplo trazido acima, é todo o corpo do trabalhador controlador de qualidade que se mobiliza para, em função de seu projeto, retrabalhar competências adquiridas em outros contextos, colocando-as a serviço de novos problemas.

Já a contribuição de Vincent ao debate (apud SCHWARTZ, 2000bSCHWARTZ, Y. Conclusion générale: ergologue est-ce um métier? In: ______. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse, Octarès, 2000b. p. 641-738, p. 667) está em sua recusa em “distinguir, de um lado, um cérebro cognitivo capaz de julgamento, de outro, um cérebro passional submetido cegamente aos imperativos do corpo”. Schwartz (2000bSCHWARTZ, Y. Conclusion générale: ergologue est-ce um métier? In: ______. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse, Octarès, 2000b. p. 641-738) traz também para a discussão a contribuição de Damásio (2011DAMÁSIO, A. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011.), principalmente no que se refere à premissa de que a lógica, segundo a qual as melhores decisões são tomadas à distância das emoções, não encontra apoio nas pesquisas atuais da neurociência. Sobre esse tema, na obra O erro de Descartes,Damásio (2011)DAMÁSIO, A. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011. relata os casos clínicos de pacientes que tiveram afetada uma região do cérebro sem que, no entanto, tivessem tido qualquer dano à sua memória, linguagem ou inteligência. Um dos pacientes obteve resultados normais nos testes realizados em laboratórios. Porém, apresentou várias dificuldades profissionais e de relacionamento. Damásio (2011)DAMÁSIO, A. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. Lisboa: Círculo de Leitores, 2011. conclui que, na vida, os problemas aparecem de forma diferente daquela que se apresenta em laboratório, o que, às vezes, demanda uma sequência de microdecisões que podem levar a novos desafios com a exigência de novas decisões. Sem o contato com elementos que possam evocar alguma emoção, tornava-se difícil para o participante da experiência de laboratório valorar as consequências de cada decisão, o que, nesse caso, resultava na falta de critérios de valor para estabelecer referência.

Schwartz (2000bSCHWARTZ, Y. Conclusion générale: ergologue est-ce um métier? In: ______. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse, Octarès, 2000b. p. 641-738) associa essa ideia de “vida real” trazida por Damásio à de “meio”, do modo como foi postulada por Canguilhem, entendido como o que permanentemente coloca em tensão nossa normatividade, enfim, nossa saúde. “Contrariamente ao meio animal onde a relação variabilidade do meio/labilidade das respostas é de fraca amplitude, o meio humano, saturado de cultura e de história, é fundamentalmente constituído por convocações para que escolhas sejam feitas” (SCHWARTZ, 2000bSCHWARTZ, Y. Conclusion générale: ergologue est-ce um métier? In: ______. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse, Octarès, 2000b. p. 641-738, p. 670).

Contudo, Schwartz (2000bSCHWARTZ, Y. Conclusion générale: ergologue est-ce um métier? In: ______. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse, Octarès, 2000b. p. 641-738) vê limites nessa abordagem de Damásio, pois segundo o filósofo, embora ele utilize a noção de valor, se liga à ideia de valores morais relacionados a convenções sociais. Ao não integrar uma problemática que considere os valores sem dimensão, sua perspectiva impõe limites “à reunificação das neurociências do corpo-si” (SCHWARTZ, 2000bSCHWARTZ, Y. Conclusion générale: ergologue est-ce um métier? In: ______. Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe. Toulouse, Octarès, 2000b. p. 641-738, p. 671) e ainda fica caracterizada como uma abordagem biologizante das emoções e dos afetos. Na crítica que faz, o autor lembra a importância de se considerar, como elementos de historicidade que integram os debates de normas e valores na atividade, questões do bem comum, de justiça, de produção e de repartição de recursos no planeta, de preservação do próprio meio de vida humano a partir de preocupações com o ecossistema. Outra obra que nos ajuda a entender o percurso de construção do conceito de corpo-si, objetivo deste artigo, é o livro Travail et ergologie: entretiens sur l’activité humaine,8 8 Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. publicado na França em 2003 e tendo sua tradução publicada no Brasil em 2007 e segunda edição em 2010. Nesse texto, Schwartz (2010a)SCHWARTZ, Y. Anexo ao capítulo 1. Reflexão em torno de um exemplo de trabalho operário. In: ______. DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. 2. ed. Niterói: EdUFF, 2010a. p. 37-46. retoma o tema do trabalho e uso de si, num diálogo com Louis Durrive. Eles vão afirmar que, muito embora “os outros” estejam presentes no uso que cada pessoa faz de si no trabalho, ninguém é substituível, porque cada um realiza uma contribuição singular. Essas duas afirmações são fundamentais porque afastam tanto o risco de uma individualização dos problemas do trabalho quanto o de uma ideologia de que os trabalhadores e trabalhadoras seriam facilmente descartáveis, já que se acreditaria que qualquer um poderia realizar as tarefas exatamente do mesmo modo.

Outro ponto importante de se trazer a essa discussão diz respeito novamente às entidades coletivas relativamente pertinentes. Elas não se constroem por meio de prescrições, e sim no desenrolar da atividade. Nesse processo vão sendo construídos ajustes, debates de normas, formas de cooperação e é por essa razão que essas entidades são relativamente pertinentes e frágeis. Esse aspecto relativo e frágil resulta do fato de ser necessário aprender a negociar a sua concepção de eficácia com a de outros. Ou seja, tem de acontecer um verdadeiro trabalho em comum que exige, inclusive, certo tempo para sua constituição.

Essa característica dessas entidades coletivas leva esses autores a ponderarem que talvez o termo “cooperação” não seja o melhor para fazer referência a esse trabalho de ajustamento recíproco. Assim, optam por denominá-lo com o termo “sinergia”, “porque comporta um pouco mais de obscuridade do que o anteriormente referido”. E isso é necessário para não se imaginar que esses processos sejam facilmente “operacionalizáveis”, descritíveis e identificáveis.

No anexo ao primeiro capítulo desse mesmo livro, Trabalho e Ergologia, Schwartz (2010aSCHWARTZ, Y. Anexo ao capítulo 1. Reflexão em torno de um exemplo de trabalho operário. In: ______. DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. 2. ed. Niterói: EdUFF, 2010a. p. 37-46.) enuncia as quatro proposições ergológicas e afirma, na terceira proposição, que quem faz a arbitragem do debate de normas é o corpo-si. No capítulo 7, ele novamente observa que é no corpo que se dão as escolhas, mas não em um corpo separado da mente. E vai afirmar que prefere denominar “corpo-si” essa entidade que faz arbitragens, a usar os termos “subjetividade” e “sujeito”. Não será ainda nesse texto que explicará suas restrições ao emprego da palavra “sujeito”, mas será enfático em ressaltar o efeito sedutor que produz o uso da palavra “subjetividade”, atribuindo-lhe uma espécie de vocação de iludir, como se um trabalhador pudesse se olhar no espelho e se reconhecer naquela moldura, dizendo “esta é a minha subjetividade desvelada pelo pesquisador”, o que reduziria em muito a complexidade daquilo que nos ultrapassa tanto pesquisadores como trabalhadores:

Então este é o problema: seja no universo intelectual ou no universo dito gerencial, para ser breve, existe sempre o risco muito profundo de tentar cortar as vias ao que nos ultrapassa a todos e ao que nos defrontamos todos na igualdade da condição humana, poder-se-ia dizer.

Quer sejam os valores ou a maneira pela qual o corpo-si trata os valores, permanentemente e a seu nível, é o tipo de coisa que ninguém poderá colocar totalmente em palavras.

Há uma obscuridade, eu diria, que coloca a distância toda a objetivação do sujeito [...] O essencial é restituir a forma pela qual o sujeito escapa sempre, a seu jeito, de ser objetivado - e a atividade é isso que ela nos diz! [...] jamais ninguém poderá encerrá-lo em uma moldura, por mais sedutora que ela seja (SCHWARTZ, 2010bSCHWARTZ, Y. Trabalho e uso de si. In: ______. DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. 2. ed. Niterói: EdUFF, 2010b. p. 189-204., p. 197).

O corpo-si representa um elemento de transgressão dos modos como a filosofia tem abordado o corpo. Isso porque tradicionalmente havia um esforço de separação das faculdades, dos poderes no ser humano. Mas a atividade transgride em todos os lugares, já que o mais simples e sutil dos atos de trabalho não é avaro em acontecimentos. No gesto, por exemplo, de uma costureira ao enfiar a linha na agulha para pregar um botão que se soltou, há o envolvimento dela com um processo que não envolve apenas um corpo físico, mas que é encontro sempre singular de três dimensões: a dela como vivente, em comunhão com a história dos seres vivos neste planeta; como produzida por e produtora de uma história social que produz normas sociais diferentes das normas vitais e, por último, como alguém com uma história psíquica, concernente à maneira como ela nasceu, cresceu e um dia vai morrer. Assim, seria mutilador pensar o corpo-si sem levar em conta essa alquimia de histórias que está sempre produzindo uma atividade singular.

Nessa mesma obra, Yves Schwartz retoma também o diálogo com Damásio, salientando que, apesar de considerar relevante o trabalho que esse médico neurocientista português fez de mostrar como as emoções são importantes para as tomadas de decisão, observa que o mesmo não deixou claro o lugar da dimensão de transgressão e síntese da atividade. “Mas, precisamente, essa transgressão é uma unidade do heterogêneo, do corpo e da alma, do cálculo racional e do afetivo, transgressão totalmente enigmática!” (SCHWARTZ, 2010bSCHWARTZ, Y. Trabalho e uso de si. In: ______. DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. 2. ed. Niterói: EdUFF, 2010b. p. 189-204., p. 202). A atividade faz a síntese de todo esse conjunto nos enfrentamentos com as situações de vida. Além dessa crítica, Schwartz reitera a necessidade de se levar em conta, nesse contexto, a problemática dos valores. Cada decisão ínfima está relacionada a valores da ordem do político, das relações interpessoais, da ética, do como conseguir viver com saúde. Assim, o problema fundamental para ele é se interrogar sobre o tipo de relações que se estabelecem entre os valores, o viver e a imanência dessa relação. Em consequência surge uma afirmação ética e política da maior importância para os que pesquisam ou intervém sobre a vida dos outros:

Então, não há mais aqueles que estudam e aqueles que são estudados, não há mais os experts e aqueles que não sabem o que fazem. Há valores sobre os quais todos os humanos são iguais em seu questionamento: o que fazemos em face dessas possibilidades diferentes de construir uma vida em comum? (SCHWARTZ, 2010bSCHWARTZ, Y. Trabalho e uso de si. In: ______. DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. 2. ed. Niterói: EdUFF, 2010b. p. 189-204., p. 203).

Assim, compreendemos que toda intervenção e pesquisa sobre o trabalho envolvem sempre uma construção política, trata-se de tomar decisões que não dizem respeito apenas a vida de cada trabalhador ou pesquisador, mas de toda a coletividade de viventes sejam eles humanos ou inumanos (as descobertas científicas sobre aquecimento global e outras preocupações ecológicas nos alertam de como nossa atividade pode contribuir para destruir vidas neste planeta).

No ano de 2009, Schwartz e Durrive publicam o livro L’activité en dialogues: entretiens sur l’activité humaine II,9 9 A atividade em diálogos: conversas sobre a atividade humana II. e o primeiro diálogo envolve Nicole Mencacci e Yves Schwartz. O tema da conversa é justamente a trajetória profissional de Yves Schwartz e uma exploração das decisões conceituais que foi tomando ao longo de sua carreira. Novamente, é retomada a justificativa sobre a escolha de ver a atividade como a dramática de uso de si por outros e de uso de si por si. Durante essa conversa, Schwartz explica que era preciso abordar a entidade responsável por fazer com que o trabalhador não se limitasse a cumprir o que estava prescrito, criando novos modos de realizar o trabalho. A conceituação de “sujeito” não se mostrava adequada por designar sempre uma entidade ligada a uma disciplina: o sujeito da psicologia, o sujeito da sociologia etc. Além disso, não acredita que essa palavra facilite a compreensão de que há uma história não só pessoal, mas também coletiva perpassando essa entidade. Em síntese, buscava um conceito cuja vocação não fosse de apresentar soluções, e sim problemas. É nisso que o conceito de corpo-si ajuda: a mostrar que não se pode saber se é verbal ou não verbal, se é mental ou corporal (no sentido reduzido dos termos), se é consciente ou inconsciente. Porque, na verdade, é tudo isso e, por isso mesmo, é muito complexo e oferece resistência a sua compreensão (MENCACCI; SCHWARTZ, 2016MENCACCI, N.; SCHWARTZ, Y.; Diálogo 1. Trajetórias e uso de si. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e Ergologia II: diálogos sobre a atividade humana. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2016. p. 17-53.).

Quando alguém trabalha, é convocado por outros - que podem ser patrões, chefes, colegas de trabalho - a se engajar de uma determinada maneira na situação. Não se está totalmente sozinho e isento de ser influenciado ao realizar a atividade. Porém, a pessoa que trabalha deve fazer uma espécie de “punção” de si, ou seja, fazer uso das diversas capacidades de sua memória, de sua psicomotricidade, de sua inteligência e, por fim, de seus aprendizados com os debates de normas num mundo de valores, bem como de sua capacidade de confrontar as normas antecedentes às circunstâncias que se apresentam no desenrolar de sua atividade, avaliando a coerência destas em relação aos valores que lhe são caros e ao coletivo pertinente com o qual trabalha (MENCACCI; SCHWARTZ, 2016MENCACCI, N.; SCHWARTZ, Y.; Diálogo 1. Trajetórias e uso de si. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e Ergologia II: diálogos sobre a atividade humana. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2016. p. 17-53.). Há também que se puncionar mesmo aquilo que não é entendido como interioridade própria, mas é parte da história dos viventes e dos humanos que estão incorporados àquela determinada situação. O que está contido nessa ideia de “punções” representa um desafio para a análise do trabalho humano, porque, ao mesmo tempo em que comporta uma crítica à ilusão da psicologização e da individualização, não envereda pelo caminho que talvez pudesse parecer fácil desprezar: considerar que essa corporificação de histórias produz um vivente singular que valora a sua experiência no mundo e que desenvolve mais umas competências que outras.

Mencacci introduz nesse diálogo a visão de que a astúcia, a Métis, é necessária para que se possa contornar as normas antecedentes e criar outras. Porém, Schwartz alerta para o cuidado que se deve ter para que a compreensão sobre o uso dessa astúcia não se restrinja apenas àquelas situações em que se deva transgredir as regras existentes. Há situações para as quais não se tem norma nenhuma e será justamente com o uso da astúcia que elas serão inventadas. Mencacci insiste em que, mesmo nos casos em que se está burlando as prescrições, há de se inventar o novo caminho, sob pena de se ficar estagnado na recusa. Assim, é importante fazer a leitura da resistência às normas não apenas como um caso de oposição gratuita, mas prestando-se atenção ao movimento de construção de novas normas e de novos modos de viver em conjunto, o que representaria o que ele chama de “reservas de alternativas”: “[...] ali aonde eu quero ir é, mais ou menos, o lugar onde eu quero que nós estejamos todos juntos. Se há valores sem dimensões é para fazer acontecer um mundo comum” (MENCACCI; SCHWARTZ, 2016MENCACCI, N.; SCHWARTZ, Y.; Diálogo 1. Trajetórias e uso de si. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e Ergologia II: diálogos sobre a atividade humana. Belo Horizonte: Fabrefactum , 2016. p. 17-53., p. 31).

Como último destaque para o conteúdo desse primeiro diálogo, vale citar a diferenciação estabelecida entre normas e valores. Os interactantes nessa conversa explicam que é possível reconhecer a existência de um “debate” de normas, porque elas podem se anular. Ou eu respeito o sinal vermelho parando o automóvel, ou o ultrapasso infringindo a regra de trânsito. Já com relação aos valores, não se pode falar em anulação ou em debate porque eles se imbricam, e é pela forma como eles são hierarquizados que uma norma adquire sentido na atividade. Um motorista de táxi, por exemplo, pode ter ultrapassado o sinal de trânsito para salvar a vida de um passageiro que começou a passar mal em seu carro, ou para evitar um assalto numa região reconhecidamente perigosa. Uma modelo pode escovar os dentes guiada por um valor que é a sua saúde pessoal, mas pode ser também porque seu sorriso é parte de sua profissão, que exige um determinado padrão estético. Por fim, uma mesma norma pode estar sendo sustentada por diferentes valores. O corpo-si vivencia então essa prova de si, de se experimentar em consonância com os valores que dão sentido a sua vida. Assim, “as dramáticas de uso do corpo-si” são esse permanente debate de normas na atividade, que por sua vez está inscrito num mundo de valores. É preciso arbitrar junto com os outros, retrabalhar os valores a que se depara por meio da concretização das normas escolhidas. É nesse sentido que trabalhar envolve um destino a viver, porque não é possível antecipar totalmente como vamos fazer, por exemplo, para que o valor saúde dos usuários na atividade dos profissionais de um serviço em particular seja efetivamente alcançado.

Neste mesmo livro, encontra-se o diálogo entre Schwartz e Bernadete Venner que aprofunda as questões do primeiro diálogo. Schwartz e Venner (2016SCHWARTZ, Y.; VENNER, B. Diálogo 2. Debates de normas, “mundo de valores” e engajamento transformador. In: ______. DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e Ergologia II: diálogos sobre a atividade humana. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2016. p. 55-149.) discutem como a atividade é sempre de um ser humano ao qual eles preferem denominar “corpo-si”, jamais comparável a um outro. Explicam que as entidades coletivas relativamente pertinentes têm de lidar com um amplo espectro de normas, normas estas que são intermediárias entre as normas antecedentes do tipo prescrição formal e as normas endógenas de funcionamento, estando fortemente ligadas à história e às renormatizações entranhadas no corpo-si.

Eles retomam o conceito de “dramáticas do uso de si por outros e por si”, a fim de contrapô-lo a duas visões reducionistas: aquela que pressupõe uma atividade totalmente impedida ou uma atividade totalmente livre. Na atividade, os humanos fazem escolhas que constroem uma história de seu meio de vida e de trabalho, mas também história de suas próprias vidas. E isso não é simples porque envolve o encontro com normas coletivas, com situações de trabalho que muitas vezes vêm sendo secularmente construídas. Isso exige um esforço ativo, ao mesmo tempo, de encarar as normas e ter disposição para singularizá-las, de criticá-las e de construir outras no debate coletivo. Nesse sentido, é melhor examinar os debates de normas, evitando um foco privilegiado na obstrução das atividades, já que a atividade é exatamente esse exercício de viver a crise, de se deparar com a insatisfação, mas sem que se fique inerte e passivo aos acontecimentos. O esforço de viver consiste exatamente nesse esforço de lidar com as infidelidades do meio. E no caso humano, isso envolve deparar-se e esforçar-se a lidar com normas sociais que foram, por vezes, construídas por outras gerações. No dizer de Schwartz:

O que, em todo caso, é importante é que há o uso de si por meio da necessidade de decidir, portanto de escolher, pão quotidiano de todas as atividades de trabalho [...]. Escolhe-se a si mesmo, escolhe-se seu si no tempo. Pouco a pouco, constrói-se esse si, que é também um corpo-si porque uma parte passa pelo não consciente, pelo não verbalizável ou pelo dificilmente verbalizável. Ele é construído por esse “por meio da experiência” [...] A esse respeito, é o que chamam de subjetividade, espécie de construção relativamente estável que se pode chamar a pessoa, que se forja através dessas dramáticas de uso de si sucessivas e que faz com que não sejam abordados, sem a história de seu corpo-si, os novos momentos sucessivos de agir. Mas, ao mesmo tempo, esses novos momentos sucessivos, mais ou menos, através das arbitragens conscientes ou no infinitamente pequeno, no invisível, na penumbra, no inconsciente, contribuem para fazer de novo, a história desse corpo-si (SCHWARTZ; VEINER, 2016SCHWARTZ, Y.; VENNER, B. Diálogo 2. Debates de normas, “mundo de valores” e engajamento transformador. In: ______. DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e Ergologia II: diálogos sobre a atividade humana. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2016. p. 55-149., p. 81).

A atividade é nesse sentido matriz de histórias. E essa produção de histórias será retomada em um artigo de Schwartz em parceria com Elisa Etchernacht denominado “Le corps-soi dans les milieux de travail: comment se spécifie sa compétence à vivre?”10 10 O corpo-si nos meios de trabalho: como se especifica sua competência para viver? (SCHWARTZ; ECHTERNACHT, 2009SCHWARTZ, Y.; ECHTERNACHT, E. Le corps-soi dans les millieux de travail: comment se spécifie sa compétence à vivre? Corps, n. 6, p. 31-37, 2009.). Nessa obra, os autores retomam a discussão sobre a relação do vivente com seu meio, abordada por Canguilhem (2012CANGUILHEM, G. O conhecimento da vida. Rio de Janeiro: Gen/Forense Universitária , 2012.) no livro O conhecimento da vida, afirmando que o vivente não se limita a responder aos estímulos do meio, mas ele produz o seu meio de vida.

Enfatizando novamente a historicidade desse corpo-si, afirmam que se trata de “um sujeito encarnado, ao seio do qual psique e soma se integram através da coerência estabelecida entre cada pessoa e seu meio, entre vida individual e social” (SCHWARTZ; ECHERNATCH, 2009SCHWARTZ, Y.; ECHTERNACHT, E. Le corps-soi dans les millieux de travail: comment se spécifie sa compétence à vivre? Corps, n. 6, p. 31-37, 2009., p. 33). Nos humanos, as normas fisiológicas e as normas sociais estão em debate e a atividade humana é o terreno sobre o qual esse debate tem lugar, o que confere uma dupla inscrição do corpo si: inscrição do meio em si e de si mesmo no meio. O corpo humano, enquanto “matriz da atividade humana”, é atravessado por este debate e se constitui a partir dele, reafirmando a vida como potência de singularização e de produção de normas. Para os autores, “o corpo-si vê aqui sua origem” (SCHWARTZ; ECHERNATCH, 2009SCHWARTZ, Y.; ECHTERNACHT, E. Le corps-soi dans les millieux de travail: comment se spécifie sa compétence à vivre? Corps, n. 6, p. 31-37, 2009., p. 33). Ele é, portanto, matriz de história enquanto memória sedimentada e organizada na miríade de circuitos da pessoa; e é também matriz de energia geradora de ineditismo.

O penúltimo texto que é trazido para o percurso reflexivo a que nos propusemos aqui é “Quel sujet pour quelle expérience?”11 11 Qual sujeito para qual experiência? publicado em 2010. Nele Schwartz (2011SCHWARTZ, Y. Qual sujeito para qual experiência? Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva - O Trabalho em Saúde, Brasília, v. 5, n. 1, p. 55-67, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.tempusactas.unb.br/index.php/tempus/article/view/916 . Acesso em: 20 maio 2017.
http://www.tempusactas.unb.br/index.php/...
) explica que o vivente humano busca sua saúde num mundo social saturado de normas e valores e, embora reconheça a sua historicidade, não seria correto desprezar a sua dimensão biológica. Esses aspectos configuram os desafios epistemológicos já que

A complexidade humana do corpo-si, atravessando todas as dimensões da experiência humana ou do encontro de um ser humano com um meio saturado por toda sorte de normas, fazia prontamente escapar o suporte da experiência [...] de toda recuperação simplificante por qualquer disciplina constituída. A política, a ética, a gestão, as ciências da linguagem..., como a psicologia cognitiva, a psicanálise, as neurociências..., tinham todas algo a dizer sobre a atividade humana, mas certamente não a propor ou impor de uma teoria da subjetividade (SCHWARTZ, 2011SCHWARTZ, Y. Qual sujeito para qual experiência? Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva - O Trabalho em Saúde, Brasília, v. 5, n. 1, p. 55-67, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.tempusactas.unb.br/index.php/tempus/article/view/916 . Acesso em: 20 maio 2017.
http://www.tempusactas.unb.br/index.php/...
, p. 64).

Schwartz (2011SCHWARTZ, Y. Qual sujeito para qual experiência? Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva - O Trabalho em Saúde, Brasília, v. 5, n. 1, p. 55-67, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.tempusactas.unb.br/index.php/tempus/article/view/916 . Acesso em: 20 maio 2017.
http://www.tempusactas.unb.br/index.php/...
) confirma sua não concordância em distinguir atividade e subjetividade. Afinal, ao longo de uma vida, é o corpo-si que se historiciza, enfrenta os debates de normas, faz escolhas de uso de si mesmo, o que o leva a ser singular e a continuar a pertencer ao conjunto dos viventes, construindo sua história de vida. Mas se o corpo-si é o lugar de entrecruzamento dos debates de normas, esse encaixamento de normas não pode ser verdadeiramente controlado por nenhuma instância em nós, restando sempre algo enigmático e obscuro, para quem quer que queira categorizar. Porém, ao se definir a atividade como encaixamento de normas e afirmar que ela é produtora de história, durante vários momentos da vida, não se está dizendo que o ser que vive constrangimentos e solicitações desaparece. Como há escolhas a fazer nesses debates de normas, somos sempre reenviados a nós mesmos e a um universo de valores a partir do qual construímos as renormatizações.

Então, certamente, qualquer dos momentos de nossa vida, desde nosso nascimento, tem o mesmo poder de reconfigurar, via debates de normas, nosso corpo-si. Criam fidelidades fundamentais, acumulações de debates de normas que nos armam face aos que teremos pela frente a viver (SCHWARTZ, 2011SCHWARTZ, Y. Qual sujeito para qual experiência? Revista Tempus Actas de Saúde Coletiva - O Trabalho em Saúde, Brasília, v. 5, n. 1, p. 55-67, 2011. Disponível em: Disponível em: http://www.tempusactas.unb.br/index.php/tempus/article/view/916 . Acesso em: 20 maio 2017.
http://www.tempusactas.unb.br/index.php/...
, p. 65).

Reunindo elementos para o enfrentamento dos desafios epistemológicos que suscitam as conceitualizações no campo da atividade humana, o artigo de Schwartz, publicado em 2012, “Pourquoi le concept de corps-soi? Corps-soi, activité, experience”12 12 Por que o conceito de corpo-si? Corpo-si, atividade, experiência. é essencial para a compreensão da construção do conceito de corpo-si. Essencial porque traz, ainda que brevemente, a história de como se procedeu a passagem da apresentação da atividade de trabalho como “uso de si” para a expressão “dramática de uso do corpo-si”, considerada por ele mais completa. No percurso que traçou, a noção de corpo-si veio se “impondo” numa dinâmica de produção conceitual povoada de interrogações e interpelações. Buscou, ao propor essa noção, “evitar armadilhas advindas do fato de seguir por caminhos já demasiado demarcados, nos quais o que se tem a dizer pode se perder” (SCHWARTZ, 2014SCHWARTZ, Y. Motivações de conceito de corpo-si: corpo-si, atividade, experiência. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 3, p. 259-274, jul./set. 2014., p. 260). Mas não foi apenas isso. Elaborar e recorrer ao conceito de corpo-si significou a recusa de uma diferença de natureza, frequentemente instituída, entre o trabalho manufatureiro e industrial e o realizado no setor de serviços. Nessa lógica dicotômica, como a produção material é a meta, o envolvimento do corpo é considerado como dominante. Já no caso do trabalho nos serviços, ao contrário, a presença do corpo parece relegada.

Um ponto importante dessa trajetória de construção do conceito foi a constatação de que subestimar o corpo em ação nas atividades de serviço comportava um duplo risco: o de não se entender a verdadeira natureza do uso de si nesse tipo de atividade e o de criar uma dicotomia entre dois usos da atividade industriosa humana. Neste último caso, a dicotomia se refere a

Um [uso] em que o corpo é ativo diante da matéria inerte e outro no qual as conexões nervosas cerebrais são mobilizadas em seu confronto com um campo social imaterial, supondo-se que o corpo físico aí permanecesse relativamente inerte e intercambiável (SCHWARTZ, 2014SCHWARTZ, Y. Motivações de conceito de corpo-si: corpo-si, atividade, experiência. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 3, p. 259-274, jul./set. 2014., p. 262).

No entanto, dados sobre a incidência de distúrbios musculoesqueléticos são reveladores de um dos aspectos mais salientes desse engajamento do corpo em atividades consideradas “não-corporais”, efeito provável de dramáticas do uso do corpo-si. Em situações em que aparentemente não haveria nenhuma grande solicitação ao corpo, na verdade, não é raro ocorrer a expressão de sintomas corporais, porque nelas existem exigências de decisões difíceis que são vivenciadas em todo o corpo. Citemos o caso de um médico perito que não entendia porque um gerente de banco teria desenvolvido um sintoma de lesão por esforço repetitivo, embora em suas tarefas não houvesse nenhum indício de movimento corporal repetitivo. O problema é que, na verdade, em seu trabalho, o gerente tinha de tomar decisões sobre situações variadas, no quadro de um protocolo bastante restritivo quanto à possibilidade de variar essas decisões. A dor e a inflamação corporal expressavam esse impedimento de tomar uma decisão em que se mantivesse uma coerência de base entre normas e valores sem dimensão.

É justamente nesse aspecto que se compreende uma das fontes que nutre a busca de Schwartz pela delimitação do conceito de corpo-si. Trata-se da noção de “corpo produzido”, formulada por Canguilhem (2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a Medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.), cuja gênese se encontra na noção de “corpo dado”. O corpo, no pensamento de Canguilhem, é ao mesmo tempo um dado e um produto. Para ele, o corpo dado corresponde a todas as informações do genótipo, considerado um efeito necessário e singular de um patrimônio genético. A saúde aparece assim associada à existência em si, de um organismo, “sua verdade é uma segurança” (CANGUILHEM, 2005CANGUILHEM, G. Escritos sobre a Medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005., p. 43). A má saúde aparece como efeito da restrição das margens dessa segurança orgânica, de limitação do poder de tolerância e de compensação das agressões do meio ambiente. A noção de corpo produzido remete à atividade de inserção de um vivente em um meio característico - o modo de vida escolhido ou imposto - o que contribui para dar forma a seu fenótipo, ou seja, contribui para modificar sua estrutura morfológica e, por conseguinte para singularizar suas capacidades.

Esse corpo produzido humano vai ser o cerne de um encaixamento de debates de normas, que por sua vez corresponde aos diferentes modos de operacionalizar na vida concreta valores sem dimensão. A arbitragem desse debate de normas vai se diferenciar, caso se trate, por exemplo, de um trabalhador veterano que já herdou e construiu projetos-herança que servem de referências para as decisões a tomar no trabalho, ou de um novato que começa a conhecer e a construir os projetos, e que tem o desafio de recentrar o meio de acordo com seus valores de forma cooperativa (ou não?) com os colegas de trabalho.

Conclusões

Buscando concluir, ainda que inicialmente, esse esforço de explicitação dos caminhos percorridos nessa busca de precisar o sentido da noção de corpo-si, observa-se que Schwartz (2014SCHWARTZ, Y. Motivações de conceito de corpo-si: corpo-si, atividade, experiência. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 3, p. 259-274, jul./set. 2014.) faz referência ao corpo-si como uma estranha entidade. Entidade esta cuja definição é polissêmica: tem uma tríplice ancoragem (biológica, histórica e singular); é suporte de nossa própria polarização valorativa de nossos meios de vida (como os meios de trabalho); e experiencia o esforço de conhecer que também é um esforço de viver.

As leituras realizadas de diversos trabalhos de Schwartz tiveram como objetivo esclarecer o modo como esse autor vem abordando a dimensão subjetiva no trabalho, e, ao mesmo tempo perceber as riquezas dos diálogos13 13 É importante ressaltar que, neste texto, o uso, do termo diálogo não se restringe à ideia de trocas comunicacionais em uma interação situada, mas evoca o conceito bakhtiniano do “dialogismo” que pressupõe sempre uma tessitura de discursos que se interpenetram, ecoando ou destoando, preservando as ressonâncias de outros ditos em outros tempos e lugares (BAKHTIN, 1997). que este estabelece com diversos interlocutores. Assim, corpo-si nos aparece antes de tudo como um conceito produzido para estimular os debates acadêmicos. Em nenhum momento, Schwartz o assume como solução perfeita ou definitiva para as questões levantadas. Pelo contrário, é um conceito que ajuda a produzir questões e de certa forma ajuda também a enfrentá-las.

Deve-se pontuar aqui que um dos limites deste artigo foi não ter apresentado os debates do autor com os autores da didática profissional (RABARDEL; PASTRÉ, 2005RABARDEL, P.; PASTRÉ, P. (Org.). Modèles du sujet pour la conception: dialectiques activités dévelopement. Toulouse: Octarès, 2005.) presentes nos dois últimos textos abordados aqui. Esta é certamente uma interlocução promissora que merece ser abordada em um trabalho mais cuidadoso em outro momento.

Schwartz (2014SCHWARTZ, Y. Motivações de conceito de corpo-si: corpo-si, atividade, experiência. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 3, p. 259-274, jul./set. 2014.) chama a atenção para o risco da usurpação, no momento em que se tenta separar a dimensão axiológica e a dimensão epistêmica da vida, abordando a atividade das pessoas de forma pretensamente neutra, como se os saberes fossem separados dos valores que norteiam a vida social. Assim, corpo-si é um conceito que lembra que o esforço de viver está intrinsecamente relacionado com o esforço de saber, não há norma sem saberes e vice-versa. É um conceito que convoca os profissionais de psicologia do trabalho e organizacional, bem como o de outras disciplinas que têm a atividade humana como objeto, a aceitar o desconforto intelectual, a inquietação e exigência de que só podemos contribuir para a compreensão e transformação do trabalho de outros, se construirmos com os mesmos uma parceria que é ao mesmo tempo de projeto epistêmico e projeto de construção de uma sociedade comum.

Referências

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  • SCHWARTZ, Y. Motivações de conceito de corpo-si: corpo-si, atividade, experiência. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 49, n. 3, p. 259-274, jul./set. 2014.
  • SCHWARTZ, Y.; ECHTERNACHT, E. Le corps-soi dans les millieux de travail: comment se spécifie sa compétence à vivre? Corps, n. 6, p. 31-37, 2009.
  • SCHWARTZ, Y.; VENNER, B. Diálogo 2. Debates de normas, “mundo de valores” e engajamento transformador. In: ______. DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e Ergologia II: diálogos sobre a atividade humana. Belo Horizonte: Fabrefactum, 2016. p. 55-149.
  • WISNER, A. Inteligência no trabalho: textos selecionados de ergonomia. São Paulo: Fundacentro, 1994.
  • 1
    Procurou-se trazer os títulos originais em francês na sequência cronológica em que foram publicados na França, mas privilegiamos informar como referências bibliográficas as traduções brasileiras para facilitar o acesso dos leitores.
  • 2
    Trabalho e uso de si.
  • 3
    Eu, sobre a individualidade, abordagens práticas/aberturas marxistas.
  • 4
    A liberdade do trabalho.
  • 5
    Do desconforto intelectual, ou como pensar as atividades humanas?
  • 6
    Os ingredientes da competência: um exercício necessário para uma questão insolúvel.
  • 7
    O paradigma ergológico ou um ofício de filósofo.
  • 8
    Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana.
  • 9
    A atividade em diálogos: conversas sobre a atividade humana II.
  • 10
    O corpo-si nos meios de trabalho: como se especifica sua competência para viver?
  • 11
    Qual sujeito para qual experiência?
  • 12
    Por que o conceito de corpo-si? Corpo-si, atividade, experiência.
  • 13
    É importante ressaltar que, neste texto, o uso, do termo diálogo não se restringe à ideia de trocas comunicacionais em uma interação situada, mas evoca o conceito bakhtiniano do “dialogismo” que pressupõe sempre uma tessitura de discursos que se interpenetram, ecoando ou destoando, preservando as ressonâncias de outros ditos em outros tempos e lugares (BAKHTIN, 1997BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes. 1997. p. 277-326).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
  • Data do Fascículo
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2017
  • Aceito
    17 Jan 2018
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