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Deleuze e a constituição do diagrama de controle

Deleuze and the constitution of the control diagram

Resumo

Este estudo teórico tem como objetivo investigar o desenvolvimento da noção de diagrama de controle no pensamento do filosofo francês Gilles Deleuze, para discutir sua emergência e elaboração. Este diagrama tornou-se conhecido pelo texto intitulado “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. Realizamos uma revisão bibliográfica em toda a obra de Deleuze para mapear o desenvolvimento desse conceito. Constatamos que foram necessárias quatro linhas para que o filósofo francês chegasse à elaboração do diagrama de controle: o pensamento pós-moderno, a mutação das máquinas técnicas, a modificação das formas jurídicas na história da filosofia e o recurso à literatura beatnik norte-americana. Também discutimos a relação entre este diagrama e a emergência do fascismo.

Palavras-chave:
poder; sociedade de controle; diagrama; Deleuze; Foucault

Abstract

The purpose of this study is to investigate the development of the notion of diagram of control in the thought of the French philosopher Gilles Deleuze, to discuss its emergence and elaboration. This diagram became known by the article entitled “Postscript on the societies of control”. We conducted a literature review in the whole work of Deleuze, to map the development of this concept. We conclude that the French philosopher created this concept from four different lines: the postmodern thought, the transformation of the technical machines, the changing of the legal forms in the history of philosophy and the resource to American beatnik literature. We also discuss the relationship between this diagram and the emergence of the fascism.

Keywords:
Power; society of control; diagram; Deleuze; Foucault

Um pequeno texto de Gilles Deleuze datado de 1990 e intitulado como “Post-scriptum sobre as sociedades de controle” tornou-se leitura obrigatória para os teóricos sobre a sociedade. Nele, a partir de uma distensão de uma discussão iniciada com Michel Foucault sobre a biopolítica, instaura um debate sobre como funciona a maquinaria de poder na atualidade, considerando que estamos num novo momento, que denomina de sociedades de controle.

Variadas análises e comentários já foram realizados sobre o funcionamento das sociedades de controle (cf. LAZZARATO, 2006LAZZARATO, M. Políticas del acontecimiento. Buenos Aires: Tinta Limón, 2006.; HARDT; NEGRI, 2005HARDT, M.; NEGRI, A. Imperio. Barcelona: Paidós/Surcos, 2005.; TIRADO; DOMÈNECH, 2006TIRADO, F. J.; DOMÈNECH, M. Extituciones: del poder y sus anatomías. Política y sociedad, v. 36, p. 183-196, 2006.; HUR, 2013HUR, D. U. Da biopolítica à noopolítica: contribuições de Deleuze. Lugar comum, n. 40, p. 201-215, 2013. Disponível em: Disponível em: http://uninomade.net/wp-content/files_mf/111012130335Da%20biopol%C3%ADtica%20%C3%A0%20noopol%C3%ADtica%20contribui%C3%A7%C3%B5es%20de%20Deleuze%20-Domenico%20Hur.PDF . Acesso em: 8 ago. 2014.
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). De forma geral, Deleuze enuncia que há uma terceira maquinação que não aparece de forma tão explícita na obra foucaultiana, mas que já está lá. Primeiramente afirma que no trabalho de Foucault há um desenvolvimento demarcado entre os regimes de soberania e disciplinar. Entretanto, constata que na própria teorização de Foucault já havia a constituição de um outro tipo de funcionamento, dando pistas ao surgimento de um novo diagrama. Mas o que nos chama atenção é que o próprio desenvolvimento do diagrama de controle por Deleuze também é envolto de dúvidas e hesitações.

Foucault trabalhou as questões referentes à disciplina e à biopolítica principalmente nos livros Vigiar e Punir, de 1975 (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, M. Vigiar e Punir (1975). Petrópolis: Vozes, 1984.), e a Vontade de saber, de 1976 (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, M. História da sexualidade: A vontade de saber (1976). Rio de Janeiro: Graal, 2006. v. 1.). A denominada “trilogia do biopoder” (FOUCAULT, 1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes , 1999., 2008aFOUCAULT, M. Segurança, Território, População: Curso no Collège de France (1977-1978). São Paulo: Martins Fontes , 2008a., 2008bFOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica: Curso no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes , 2008b. ), transcrição das aulas de Foucault em Collège de France entre 1975 e 1979, também apreende de forma bastante desenvolvida estas questões. Deleuze dedica seu penúltimo curso a Foucault, um ano após sua morte, no período letivo de 1985 e 1986 (DOSSE, 2010DOSSE, F. Gilles Deleuze & Félix Guattari: biografia cruzada. Porto Alegre: Artes Médicas, 2010.). Nos três módulos do curso - respectivamente “saber”, “poder” e “subjetivação”, publicados pela Cactus Editorial, Argentina (DELEUZE, 2013DELEUZE, G. El saber: curso sobre Foucault. (1985). Buenos Aires: Cactus , 2013. t. 1., 2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., 2015DELEUZE, G. La subjetivación: curso sobre Foucault (1986). Buenos Aires: Cactus , 2015. Tomo 3.) -, entre variadas questões acerca do trabalho foucaultiano, Deleuze questiona se há a emergência de uma terceira mecânica de poder. A princípio discorda, mas posteriormente passa a elaborá-la associando distintos elementos, até dizer que o regime disciplinar acabou e que estamos num novo diagrama (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2.). Entretanto, no livro publicado sobre Foucault (DELEUZE, 1988DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.), lançado após seu curso, não há nenhuma referência ao diagrama de controle. Não sabemos se o livro foi enviado para impressão antes da realização do curso, ou se Deleuze preferiu não colocar essas novas reflexões na obra, por não estar tão seguro delas. Mas o fato é que apenas quatro anos após a realização do seu curso e do seu livro sobre Foucault é que Deleuze publica sua reflexão sobre as sociedades de controle.

Dessa forma, o objetivo deste estudo teórico é conhecer as reflexões empreendidas por Deleuze sobre o diagrama de controle, para discutir como se deu sua emergência e elaboração. Não buscamos apenas comentar o conteúdo presente no texto citado de Deleuze (1990/1992DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle (1990). In: ______. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 219-226.), mas sim realizar uma análise do desenvolvimento de suas idéias filosóficas relacionadas a esta temática, para entender como o pensador chegou a esta elaboração conceitual.

Para tanto realizamos uma revisão bibliográfica (CRESWELL, 2010CRESWELL, J. W. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Artmed, 2010.) em toda sua obra, ou melhor, uma cartografia (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCOSSIA, L. Pistas do método da cartografia. Porto Alegre: Sulina, 2009.), que pode ser denominada como uma cartografia bibliográfica (HUR, 2016HUR, D. U. Poder e potência em Deleuze: forças e resistência. Mnemosine, v. 12, n. 1, p. 210-232. Disponível em: Disponível em: http://mnemosine.com.br/ojs/index.php/mnemosine/article/view/490 . Acesso em: 8 ago. 2016.
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). Nela, atuamos tal como um agrimensor em um novo território a ser demarcado. Buscamos mapear e rastrear os principais textos nos quais aparece a temática, ou seu gérmen, sobre as sociedades de controle. Visamos construir regimes de sentidos a partir do mapeamento dos rastros e pistas no sobrevôo sobre o território da literatura consultada. Deste mapeamento encontramos três principais fontes de análise. Primeiro, a transcrição de suas aulas sobre Foucault: “El Poder: curso sobre Foucault” (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2.). Segundo, o livro intitulado Foucault (DELEUZE, 1988DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.) e, finalmente, a obra Conversações (DELEUZE, 1990/1992DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle (1990). In: ______. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 219-226.).

Destes três livros, nossa principal fonte para discutir o desenvolvimento da proposição das sociedades de controle é o módulo sobre o poder do curso de Deleuze sobre Foucault. Vale ressaltar que compreendemos que livro e aula são dois agenciamentos bastante distintos, em que a forma de conteúdo e de expressão do conhecimento aparecem sob diferentes disposições. Um livro é um trabalho que parte de uma expressão escrita, que pode ser lido, relido e reescrito várias vezes, até adquirir sua forma final aprovada e revisada pelo autor. Uma aula, mesmo que seja a leitura de um texto previamente escrito, é uma produção resultante da expressão oral, em que pode haver associação de idéias novas e diferentes relacionadas ao plano inicial. Com o conteúdo transmitido mesclam-se hesitações, incertezas, inseguranças, piadas e novas associações. A partir da participação e perguntas do público há um agenciamento que convoca o professor a trabalhar seu pensamento a limites impensados. Mesmo que um professor permita a gravação e o registro da aula, ele provavelmente não a escuta e nem relê a transcrição, caso seja registrada em texto escrito por um terceiro. Então a aula transcrita é um material textual que provavelmente não é revisado pelo autor para publicação, principalmente se é póstuma. É um material bruto, cheio de arestas, que ainda não foi lapidado. Para nós, pesquisadores da esquizoanálise,1 1 A esquizoanálise é um campo de saberes plural e difuso criado por Gilles Deleuze e Félix Guattari na década de 1970 e que se pauta na Filosofia da diferença e das multiplicidades. Porta leitura original sobre os processos psíquicos articulados aos agenciamentos sociopolíticos e instaura uma série de novos conceitos e proposições nos campos da Filosofia, Artes, Política, Clínica etc. Como leitura introdutória sugerimos os livros Mil Platôs (DELEUZE; GUATTARI,1980/1995) e Introdução à Esquizoanálise (BAREMBLITT, 1998). este é um material privilegiado, pois é nele que podemos constatar as variações e desenvolvimentos de ideias, hipotetizações e reflexões.

Deleuze utiliza como método de análise o foco nos movimentos, os fluxos, as forças, em vez de se ater às formas estratificadas. Tal modo de operação está presente em toda sua obra. Pode-se dizer que o método de análise deleuzeano sobre o funcionamento social está baseado na leitura dos maquinismos, de como funcionam as máquinas desejantes, técnicas e sociais. Então ele está muito mais focado em como determinado aspecto funciona, ao invés de abordar o que é, ou sua substância.

Desenvolvimento do diagrama de controle

Para a elaboração da reflexão do conceito de diagrama, Deleuze mantém o mesmo método utilizado na análise dos maquinismos. Mas nessa empreitada não segue a mesma trindade estabelecida com Guattari, dos selvagens-bárbaros-civilizados, sobre a História Universal (DELEUZE; GUATTARI,1972/2010DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O Anti-Édipo (1972). São Paulo: Editora 34 , 2010.); utiliza outros diagramas de poder. O filósofo afirma que Foucault cunhou o termo de diagrama, mas pouco o utilizou ao abordar os mecanismos disciplinares e biopolíticos.

Para Deleuze, o diagrama é o plano em que operam as distintas forças, sempre em relação. É uma máquina abstrata, virtual, que se diferencia de suas formações atualizadas, como as máquinas concretas, os dispositivos, estratos e estrutura. O diagrama é “a apresentação das relações de força que caracterizam uma formação; é a repartição dos poderes de afetar e dos poderes de ser afetado; é a mistura das puras funções não-formalizadas e das puras matérias não-formadas” (DELEUZE, 1988DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988., p. 80). É um mapa, uma cartografia, das relações de poder, sempre instável e em variação (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2.). Caracteriza-se por uma configuração de esquemas de forças, que são extremamente variáveis e mutantes. Neste mapa as forças podem se compor de distintos modos, configurando-se assim diferentes diagramas. O diagrama é uma máquina abstrata que agencia distintas relações de forças e que tem em sua outra polaridade, sua atualização em máquinas concretas. É a configuração de vetores de forças que precedem suas formações concretas. Então, cada diagrama se correlaciona com distintas formações sociais, que são os estratos atualizados desse agenciamento de forças. Portanto, os estratos sociais são os resultantes dos diagramas de poder, são a matéria formada e atualizada do virtual informe. Deleuze (1988DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.) inicialmente discrimina dois diagramas de forças na obra foucaultiana: soberania e disciplina. Estes dois diagramas têm como formações sociais correlatas as sociedades de soberania e sociedades disciplinares. Abaixo citamos a distinção que realiza entre as duas formações.

Nossas sociedades disciplinares passam por categorias de poder (ações sobre ações) que podem ser definidas assim: impor uma tarefa qualquer ou produzir um efeito útil, controlar uma população qualquer ou gerir a vida. Mas as antigas sociedades de soberania se definiam por outras categorias igualmente diagramáticas: confiscar (ação de se apropriar de ações ou produtos, força de confiscar forças) e decidir a morte (“causar a morte ou deixar viver”, o que é bem diferente de gerir a vida) (DELEUZE, 1988DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988., p. 91).

Deleuze (1988DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.) entende que havia o diagrama antigo, da soberania, relacionado às formações sociais imperiais, enquanto atualmente há o diagrama disciplinar, que expressa o surgimento de uma outra mecânica de poder que atua pelo primado das disciplinas e das tecnologias do saber. As sociedades de soberania estão articuladas a um diagrama de extração, confisco, do decidir a morte e do fazer morrer, enquanto as sociedades disciplinares referem-se a um diagrama de composição de forças, da constituição de disciplinas para gerir a vida. A partir de sua cartografia das relações de forças, Deleuze afirma que na História também houve uma infinidade de outros diagramas. Houve o diagrama da cidade grega, que se pautava pela rivalidade dos homens livres; o diagrama das sociedades primitivas, que operava pelas redes de alianças; o diagrama do poder pastoral, que opera pelo governo dos outros como se fosse um rebanho etc. Mas nos chama atenção que no livro sobre Foucault, Deleuze (1988DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.) não aborda em nenhum momento a constituição do diagrama de controle.

É apenas no curso sobre Foucault que Deleuze (1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2.) começa a supor que estaríamos vivendo em um outro diagrama, após o diagrama disciplinar (aula de 14/01/1986). É o primeiro momento em que se questiona se há uma outra mecânica de poder, quando faz uma observação que chama de exercícios de imaginação. Nesse exercício especulativo, pergunta se ainda vivemos sob o diagrama da disciplina:

Hoje ainda estamos sob um diagrama disciplinário? Seguindo, por exemplo, os partidários do pós-moderno, poderia se afirmar que a informática e as disciplinas conexas representam uma mutação do diagrama e nos fazem passar a outro tipo de sociedade que já não é disciplinária, não menos cruel e dura, mas uma sociedade onde as relações de forças já não passam pelo diagrama disciplinário? Para mim não me parece muito, muito interessante, mas enfim... Haveria que se ver se os métodos atuais de controle tomam ainda o velho modelo das disciplinas, ou se tomam modelos novos, e que modelos novos2 2 Todas as citações da obra de Deleuze (1986/2014) neste artigo foram traduzidas por nós do castelhano para o português. (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 87).

Este trecho nos é importante, pois mostra o pensamento de Deleuze em operação, pelo qual se questiona sobre a possibilidade de um novo diagrama - por mais que o autor pareça não concordar a princípio, por não achar tal discussão interessante. Incitado pelos pensadores pós-modernos, reflete se as reconfigurações trazidas pela informática e pelas máquinas cibernéticas portam ou não uma mudança do diagrama. E ressalta que deveria ser analisado se os novos métodos de controle ainda estão relacionados ao diagrama disciplinar, ou a algum outro. Talvez Deleuze refutasse um pouco essa ideia por vir do pensamento pós-moderno, bastante criticado por ele e principalmente por seu companheiro Guattari (2000GUATTARI, F. Cartografias esquizoanalíticas. Buenos Aires: Manatial, 2000.). Além do pós-moderno manter-se na matriz estruturalista do pensamento e adotar perspectiva relativista, Guattari (2000GUATTARI, F. Cartografias esquizoanalíticas. Buenos Aires: Manatial, 2000., p. 55) considera-o como um pensamento bastante despolitizado, entendendo-o como “o paradigma de todas as submissões, de todos os compromissos com o status quo existente”.

Na aula da semana seguinte (21/01/1986), Deleuze retoma essa questão, sobre se entramos num novo diagrama, ou não. Cita que para os partidários do pensamento pós-moderno, entramos numa nova era, portanto “segundo eles o diagrama já mudou” (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 107). O filósofo não desenvolve essa temática, pois em seguida passa a refletir sobre o diagrama de diferentes sociedades e seu funcionamento. Mas obviamente foi inspirado pelas proposições de J. F. Lyotard (1979/2006LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna (1979). Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.) sobre uma condição pós-moderna, e principalmente por Paul Virilio (1977/1996VIRILIO, P. Velocidade e política (1977). São Paulo: Estação Liberdade, 1996.), com suas discussões acerca do movimento, dos dromomanes3 3 Virilio entende que o movimento paradigmático da contemporaneidade é o deslocamento contínuo. Então é como se os indivíduos portassem uma compulsão (mania) pelo deslocamento e velocidade (dromos), costituindo-se como dromomanes. e do policiamento sobre as fronteiras e a circulação. Obras que o levam a conjecturar a possibilidade da constituição de um novo diagrama de poder e de controle a céu aberto, e não mais no espaço totalizado das instituições disciplinares.

No entanto, nas aulas seguintes Deleuze continua a entender que estamos no diagrama disciplinar. Mas ao longo do seu curso, ao discutir a História da Filosofia, a obra “As palavras e as coisas” (FOUCAULT,1966/1990FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas (1966). 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990.) e a transição da morte do homem para a constituição do super-homem (aula de 04/03/1986), anima-se a pensar novamente na mudança do diagrama. Também discute a transição da segunda geração de máquinas técnicas para uma terceira, discorrendo sobre a substituição de um elemento químico por outro: o carbono pelo silício.

Deleuze define que o “super-homem” caracteriza-se por ser um “ser finito”, mas com um ilimitado número de combinações, agenciando-se com distintos elementos e forças, sejam técnicos, ou referentes ao vivo de uma forma geral. E a nova força que o homem defronta-se é o computador, com todas as inovações e mudanças que esta máquina pode trazer. O filósofo recapitula assim as três gerações de máquinas técnicas, referentes a três diferentes períodos. A polia e os mecanismos de relojoaria, que se referem às máquinas de primeira geração, da Idade Clássica. As máquinas de vapor, de combustão e energéticas, de segunda geração, referentes ao século XIX. E as máquinas informáticas e de calcular, de terceira geração, de nossos tempos atuais.

O sujeito, ou o composto, é o sistema chamado homem-máquina. A máquina energética não formava com o homem um sistema homem-máquina. O que forma com o homem um sistema homem-máquina são as máquinas de terceira geração, nossas máquinas, as máquinas de nossa idade, a idade do silício (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 236).

Dentro da discussão das máquinas técnicas, Deleuze (1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 236) privilegia a transição de um elemento químico a outro: “O silício ultrapassa o carbono com as máquinas de terceira geração”. Então se as máquinas técnicas e energéticas da segunda geração se pautavam na combustão do elemento carbono, as máquinas técnicas da terceira se pautam no constituinte do hardware dos computadores: o silício. Deste modo há uma nova configuração do trabalho, a partir de outro elemento químico. No primeiro momento temos máquinas de tração, mecânicas; no segundo, máquinas energéticas e no terceiro, máquinas cibernéticas. O primeiro, baseado na potência animal, humana, ou de elementos ambientais, como a força dos ventos e da água; o segundo na combustão do carbono e o terceiro, nas operações que se fazem a partir do silício.

Na aula da semana seguinte (11/03/1986) Deleuze recapitula esta questão com grande animação. Afirma que o trabalho contemporâneo se agrupa em torno às máquinas de terceira geração. Hoje no silício:

O que hoje há de interessante nas histórias das novas máquinas? As novas máquinas são a revanche do silício. É estupendo! O silício volta para nós. Havíamos preferido o carbono, e então pum! Por uma volta, um rodeio tecnológico se dá a grande revanche do silício. Não se fazem memórias com carbono, se fazem memórias com silício. [...] A vida é carbono, há revanche do silício (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 272).

Portanto na reestruturação das máquinas técnicas e de seus elementos primordiais há uma reconfiguração das forças e do trabalho, na qual o silício ocupa lugar fundamental. O silício torna-se emblema desse terceiro momento no discurso deleuzeano. As máquinas de terceira geração passam a possuir “memória”, isto é, agenciam processos informacionais que vão muito além da combustão do carbono. É como se o silício levasse a vida a outro patamar. A discussão de características referentes a esse terceiro momento filosófico, do super-homem, traz elementos fundamentais para que Deleuze pense na constituição de um novo diagrama, em substituição ao disciplinar. Vale ressaltar que no pensamento do filósofo francês há uma convergência entre as três formas jurídicas que estipula na história da filosofia, Deus, homem e super-homem, com os três diagramas discutidos, soberania, disciplina e controle, o último ainda em elaboração. Então a atualização da transmutação das relações de forças se dá nos mais diferentes âmbitos. Se no campo do trabalho Deleuze ressalta a transição das máquinas energéticas às máquinas cibernéticas, no campo da Biologia há o deslocamento para a Biologia Molecular, no qual o código genético surge como uma nova leitura da vida. E no campo da Linguagem, a literatura ultrapassa a filologia, pois emerge como forma possível de ir além da finitude da linguística. Deleuze (1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 337) nos ensina que: “A literatura devém a partir de então uma força real”. Pois a literatura, tal como a arte, não é mera representação da realidade, mas sim sua dramatização, seu agenciamento e performatização.

Consideramos que é o próprio recurso à literatura que é o arremate para Deleuze se convencer da existência de um novo diagrama. Em alguns momentos de sua extensa obra, cita e elogia o método literário dadaísta do cut-up do escritor beatnik William Burroughs (DELEUZE; GUATTARI, 1980/1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (1980). São Paulo: Editora 34 , 1995. v. 1-5.), como uma forma de escapar das totalizações e realizar outras dobras de possível. Deleuze (1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 305) considera que: “A obra de Burroughs se apresenta como um agrupamento da linguagem para libertar a linguagem”. E que “é feita em nome de uma luta contra os terríveis novos poderes de controle” do período pós-guerra (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 306). Então o filósofo transversaliza o campo da Filosofia e das máquinas técnicas para o campo da literatura, para a aquisição de novos saberes e perspectivas. Burroughs, o escritor norte-americano que assassinou sua esposa, drogado no espaço urbano (1956/2009BURROUGHS, W. S. Junky (1956). Rio de Janeiro: Ediouro , 2009.) e nas selvas sul-americanas (BURROUGHS; GINSBERG,1963/2008BURROUGHS, W. S.; GINSBERG, A. Cartas do yage (1963). Porto Alegre: L&PM, 2008.), nômade e marginal em Tanger (BURROUGHS, 1959/2005BURROUGHS, W. S. O almoço nu (1959). Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.), cartografou com sua escrita os novos mecanismos de poder e de controle que estavam se constituindo. Burroughs, sem saber, batizou o terceiro diagrama de poder: o diagrama de controle.

A partir daí, Deleuze se convence da existência de um terceiro diagrama. Na penúltima aula do módulo de poder (08/04/1986), finalmente considera que o auge da biopolítica das populações se encontra num momento posterior ao do disciplinamento do corpo:

Não poderíamos formar a partir dos textos de Foucault a seguinte hipótese de três formações jurídicas e não de duas? Em primeiro lugar, formação de soberania, que termina com a Revolução Francesa, que corresponde a grandes traços em parte à Idade média e em parte à Idade clássica, monarquia absoluta. Em segundo lugar, formação disciplinária, o período posterior à Revolução, Napoleão e o século XIX. E já começando neste período, obviamente, aparição de uma terceira formação, fundada por sua vez sobre uma biopolítica das populações, que se esboça no século XIX e explode no século XX. Vejam aonde quero chegar com isto: conforme estas três formações haveria três sujeitos de direito muito diferentes, três formas jurídicas muito diferentes (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 364).

Se no Deleuze (1988DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.) do livro Foucault, anatomopolítica e biopolítica estão dentro do diagrama disciplinar, naquele do curso sobre o poder (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2.) anatomopolítica está na disciplina e biopolítica neste novo diagrama. Deleuze chama essa terceira mecânica de “poder de controle”, numa alusão direta à Burroughs.

As sociedades de controle

Neste tópico desenvolvemos algumas características desta terceira mecânica de poder corporificada no que Deleuze denominou de sociedades de controle. Primeiramente citamos passagens do curso sobre Foucault (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2.) sobre este diagrama e posteriormente do texto que popularizou esse termo (DELEUZE, 1990/1992DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle (1990). In: ______. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 219-226.).

Se no diagrama de soberania trata-se de extrair e deliberar pela morte, e na disciplina trata-se de traçar uma anatomopolítica para a composição de forças e o adestramento dos corpos, no controle trata-se de gerir e administrar a vida de multiplicidades quaisquer no campo aberto. As forças imperantes não são de extração, nem de composição, mas sim da administração e gestão. Então neste diagrama há a presença do espaço aberto e de multiplicidades em que os limites são infinitos, por isso são geridas pelo cálculo das probabilidades.

Deste modo, o desenvolvimento do cálculo das probabilidades no sentido social, e no sentido de controle social das probabilidades: probabilidades de casamentos em uma nação, probabilidade de mortalidade, probabilidade de natalidade. Planificação: expansão dos cultivos de cereais, colheita dos vinhedos, etc. Vinhedos e cereais também são populações. Não apenas os homens são populações. Trata-se verdadeiramente de administrar as populações em espaços abertos (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 366).

Então, Deleuze convence-se que é um diagrama distinto do anterior, do disciplinar. Há o governo e administração de populações humanas e não humanas em espaços não delimitados: a gestão do vivo. Como não se trata mais de instituições fechadas com limites demarcados, mas sim do campo aberto, a operação de gestão da vida passa pelas escalas probabilísticas, ou seja, zonas de probabilidades. Entretanto esta gestão no espaço aberto apresenta mecanismos mais mordazes e complexos de domínio:

A terceira época já não se trata do encerro, o encerro já não tem nada o que fazer aí, tendo em vista que os limites demarcados são substituídos pelas zonas de freqüência. Qual é a necessidade de encerrar as pessoas se a probabilidade assegura que se encontre a todos sobre a estrada tal dia a tal hora? (risos) É óbvio que o encerro é absolutamente inútil. Inclusive neste aspecto se torna caro, estúpido, socialmente irracional. O cálculo das probabilidades é aí muito melhor que os muros de uma prisão (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 367).

Para Deleuze o diagrama disciplinar já não é eficaz na gestão das multiplicidades. Faz tal afirmação a partir de várias evidências que mostram a ineficácia das instituições sociais em relação às suas tarefas. Exemplifica que a prisão não é mais adaptável ao castigo, a fábrica ao trabalho e a escola ao ensino. “Portanto, é o fim dos meios disciplinares, que eram meios de encerro para multiplicidades aritméticas. Faltam meios de controle abertos sobre multiplicidades probabilísticas” (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 368). Por tais razões o filósofo afirma taxativamente: “Acabou-se a idade da disciplina, acabou-se” (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 368).

Então há a propagação de uma série de mecanismos de controle no espaço aberto, como a utilização do cartão magnético, ou mesmo de controles a domicílio, via hospitais-dia ou moradias assistidas. Deleuze retoma novamente as proposições de Virilio sobre a questão da circulação e o controle das vias e da velocidade. A polícia ocupa lugar central nesse mecanismo pelos seus deslocamentos pelas ruas.

Muitos desses mecanismos de controle tornam-se bem mais visíveis após os escritos de Deleuze. Os drones, por exemplo, são pequenos dispositivos mecânicos voadores, que são guiados à distância por controle remoto e tem acoplado em si instrumentos de vigilância, como uma câmera portátil. Podem percorrer e alcançar lugares de difícil acesso, sendo um instrumento de controle a céu aberto, que está em constante movimento. Se um drone é alvejado e destruído, não se tem acesso a quem o controla. Seguem assim a mesma lógica de controle no espaço aberto enunciada por Deleuze e Virilio. Baremblitt (2014BAREMBLITT, G. F. Dilemas de los aprendices de hechiceros (dudas en la pragmática auto-inventiva de los jóvenes esquizoanalistas y esquizodramatistas). Teoría y crítica de la Psicología, v. 4, p. 24-50, 2014. Disponível em: Disponível em: http://teocripsi.com/documents/4BAREMBLITT2.pdf . Acesso em: 8 ago. 2014.
http://teocripsi.com/documents/4BAREMBLI...
, p. 40) cita também outros dispositivos móveis que têm funções militares e de controle: mísseis teleguiados, os aviões de reconhecimento em vôo contínuo, a rede de satélites, porta-aviões e submarinos, que são parte de uma maquinaria de controle característica deste diagrama de poder. E a estratégia nuclear contraditoriamente é o dispositivo mortífero que tenta assegurar uma ordem mundial, para que uma nação não aniquile a outra.

As sociedades de controle gestionam e administram o vivo, as populações humanas e não humanas. Deleuze afirma que nessa gestão do vivo passa a haver uma administração da vida em que não é mais permitida a pena de morte. Mas ao mesmo tempo em que há a abolição da pena capital, há a ocorrência do extermínio de coletividades, conhecido como genocídio. Para o filósofo o fascismo é uma das primeiras expressões do surgimento do diagrama de controle:

É o fascismo, que responde exatamente à definição de Foucault: biopolítica das populações. E aqui, parece-me, a trindade do fascismo: biopolítica racial; reclamação do espaço vital, isto é, do espaço aberto, de um espaço de expansão; e denúncia do inimigo, não como outra pessoa, mas como agente biológico perigoso, como agente infeccioso, ou seja, capaz de contaminar a raça ou a civilização, a cultura, etc. Portanto, o genocídio se faz em função das condições de sobrevivência da população que o comete. Trata-se de libertar-se dos agentes infecciosos. E é em nome da vida no homem e da sobrevivência no homem que se efetua o genocídio (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2., p. 376).

Para o filósofo, o fascismo foi uma das formas iniciais de governo das coletividades em espaço aberto neste novo diagrama. E o fascismo concebeu que para a sua própria sobrevivência, o inimigo deveria ser aniquilado, como se fosse um corpo infeccioso. Da mesma forma que Deleuze afirma que Napoleão expressou a transição das sociedades de soberania às sociedades disciplinares, enuncia Hitler como a dobradiça, como quem expressou a transição da disciplina ao controle. Deleuze considera que o fascismo foi a pré-figuração desse poder de controle, mecânica de poder que atinge seu ápice na atualidade.

Poucos meses após seu curso, Deleuze publica seu livro sobre Foucault, mas como já citado acima, sem a referência ao diagrama de controle. No final do curso estava convencido de seu surgimento, mas no livro nada aparece. Apenas quatro anos depois, no primeiro de maio de 1990, um pequeno texto é publicado em um jornal, em comemoração ao Dia do trabalho, trazendo uma síntese atualizada sobre essa discussão. O ensaio é estruturado em três partes: histórico, lógica e programa. A primeira parte traça rapidamente o contexto em que surgiu, após as sociedades de soberania e disciplinares. Enquanto na segunda e terceira, apresenta uma análise de como funciona a lógica do controle, diferenciando-a da lógica disciplinar. Se o confinamento, um dos aspectos da disciplina, é um molde, o controle é uma modulação das condutas, uma moldagem autodeformante que muda a cada instante, como uma peneira cujas malhas mudam de um ponto a outro (DELEUZE, 1990/1992DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle (1990). In: ______. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. p. 219-226., p. 221). A comparação entre as duas lógicas é feita de uma forma mais concreta, abordando as mutações das formações sociais e dos estratos, exemplificadas na transição da fábrica à empresa, da escola à formação permanente, do hospital ao hospital-dia, da prisão às penas alternativas, da vigilância ao controle do marketing, enfim, nesse processo que é denominado “crise das instituições”.

Deixa de haver assim o predomínio da fixidez das condutas, da codificação, pois estas passam a ser marcadas pela variação contínua. A prática do exame, comum à disciplina, é substituída pelo controle contínuo. O modelo do panóptico, como diagrama de poder, passa a ser substituído pelo modelo de rede, que se situa além das fronteiras institucionais e é marcado pelas contínuas conexões e desconexões (HUR, 2013HUR, D. U. Da biopolítica à noopolítica: contribuições de Deleuze. Lugar comum, n. 40, p. 201-215, 2013. Disponível em: Disponível em: http://uninomade.net/wp-content/files_mf/111012130335Da%20biopol%C3%ADtica%20%C3%A0%20noopol%C3%ADtica%20contribui%C3%A7%C3%B5es%20de%20Deleuze%20-Domenico%20Hur.PDF . Acesso em: 8 ago. 2014.
http://uninomade.net/wp-content/files_mf...
, p. 209).

Neste pequeno texto Deleuze articula a emergência das sociedades de controle com as próprias mutações do capitalismo e do mercado, embora não desenvolva tão explicitamente essa relação. Compreendemos que este terceiro diagrama está relacionado à intensificação da axiomática do capital, na qual há uma prevalência dos fluxos capitalistas de financiamento sobre os fluxos de renda/pagamento (DELEUZE,1971-1972/2005DELEUZE, G. Derrames: entre el capitalismo y la esquizofrenia (1971-1972). Buenos Aires: Cactus, 2005.). Não se trata mais da mera produção e concentração de mercadorias, em que se compra matéria-prima e vende-se o produto. O capitalismo, agora, é de sobreprodução: vendem-se serviços e compram-se ações, opera-se eminentemente sobre os fluxos de investimento e especulação, tornando-se assim mais imaterial e difuso. Ressalta-se que esta reflexão de articulação do controle ao capitalismo não estava presente no curso sobre Foucault (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2.). Por outro lado, toda a discussão de uma biopolítica racial, do fascismo e do genocídio relacionada a este terceiro diagrama e que foi desenvolvida no curso, não apareceu neste texto mais recente. Seguramente em tempos de cruzadas anti-islâmicas, da adoção européia de estratégias militaristas para conter o fluxo de imigrantes e dos processos independentistas étnicos que beiram ao fascismo, é um tema de pesquisa que merece ser multiplicado e mais desenvolvido.

Considerações finais

Neste estudo buscamos cartografar passagens no pensamento deleuzeano referentes à constituição do que denominou como sociedades de controle. Visamos mostrar que inicialmente não estava tão propenso a essa proposição, ficando na dupla polaridade enunciada por Foucault. Tanto que no seu livro sobre Foucault, Deleuze (1988DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.) enuncia apenas o regime de soberania e o regime disciplinar, em que a biopolítica fazia parte deste.

Posteriormente, a partir de análise sobre as próprias pistas deixadas por Foucault e de outras referências, desenvolve uma terceira mecânica do poder: biopolítica das populações, sociedades de controle, diagrama de controle. Resolve separar a anatomopolítica e a biopolítica, ficando a primeira no diagrama disciplinar e a segunda no novo diagrama de controle. Mas consideramos que não foi uma trajetória simples. Além das discussões foucaultianas sobre o poder, constatamos que foram necessárias quatro linhas para que Deleuze chegasse à elaboração do diagrama de controle: o pensamento pós-moderno, a mutação das máquinas técnicas, a mutação das formas jurídicas na história da filosofia e o recurso à literatura beatnik norte-americana.

As proposições do pensamento pós-moderno sobre um novo diagrama instaurado pela existência das máquinas informáticas e sobre o controle do movimento e das velocidades no espaço aberto foram a linha de partida para sua hipotetização. Consideramos que foram colocações fundantes, mas não suficientes para a elaboração do diagrama de controle. A segunda linha foi uma reflexão sobre a mutação no trabalho, em que as máquinas de terceira geração acarretam uma grande transformação nas relações de trabalho e na própria relação entre homem-máquina. O advento das máquinas cibernéticas e computadores fizeram com que houvesse um novo agenciamento homem-máquina e novas produções. Acompanhando essa transformação, no âmbito da Química, Deleuze afirma que houve a substituição do carbono pelo silício. O filósofo dedica-se a dissertar longamente sobre as implicações da substituição de um elemento pelo outro, em que o silício aparece como emblema deste novo momento. A terceira linha refere-se à sua reflexão sobre a história da filosofia, em que discute as três formas jurídicas de três momentos distintos, especificados por Deus, o homem e o super-homem. Deleuze concatena a emergência do super-homem com elementos característicos do diagrama de controle. A linha final, que pareceu definir o pensamento de Deleuze, veio do campo da arte, da literatura, a partir dos escritos de Burroughs sobre os novos mecanismos de controle pelos quais a existência cotidiana está marcada. Burroughs descreveu de forma inédita esse diagrama, passando a criar um novo regime de enunciados que nos permitiu compreender melhor a sociedade contemporânea. Serviu de inspiração direta a Deleuze, e talvez para Foucault (DELEUZE, 1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2.), razão pela qual o filósofo utilizou o termo cunhado pelo escritor para denominar este diagrama e sua formação social correlata. A partir de tais movimentos, Deleuze criou este terceiro diagrama, e sua forma social atualizada, as sociedades de controle. Deleuze afirma que a mecânica do controle não é melhor que as outras duas: devemos encontrar novas formas de luta contra ela.

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  • VIRILIO, P. Velocidade e política (1977). São Paulo: Estação Liberdade, 1996.
  • 1
    A esquizoanálise é um campo de saberes plural e difuso criado por Gilles Deleuze e Félix Guattari na década de 1970 e que se pauta na Filosofia da diferença e das multiplicidades. Porta leitura original sobre os processos psíquicos articulados aos agenciamentos sociopolíticos e instaura uma série de novos conceitos e proposições nos campos da Filosofia, Artes, Política, Clínica etc. Como leitura introdutória sugerimos os livros Mil Platôs (DELEUZE; GUATTARI,1980/1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia (1980). São Paulo: Editora 34 , 1995. v. 1-5.) e Introdução à Esquizoanálise (BAREMBLITT, 1998BAREMBLITT, G. F. Introdução à esquizoanálise. Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari, 1998.).
  • 2
    Todas as citações da obra de Deleuze (1986/2014DELEUZE, G. El poder: curso sobre Foucault. (1986). Buenos Aires: Cactus , 2014. t. 2.) neste artigo foram traduzidas por nós do castelhano para o português.
  • 3
    Virilio entende que o movimento paradigmático da contemporaneidade é o deslocamento contínuo. Então é como se os indivíduos portassem uma compulsão (mania) pelo deslocamento e velocidade (dromos), costituindo-se como dromomanes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018
  • Data do Fascículo
    Ago 2018

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2015
  • Aceito
    14 Jul 2017
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