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A tecnologia de gestão coletiva dos sonhos* * Apoio financeiro FAPERJ, CAPES e CNPq (bolsa de Iniciação Científica).

Collective management technology of dreams

Resumo

Desde a Antiguidade e em diversos povos, o homem se ocupa dos sonhos. Ao lado das abordagens dos sonhos de Artemidoro e Freud, apresentamos a “gestão coletiva dos sonhos”, mais próxima da tecnologia coletiva dos Warlpiri (trazida pela antropóloga Barbara Glowczewski), dando um enfoque metodológico. São examinados resultados parciais da pesquisa com catorze participantes que narram sonhos, em cinco encontros em grupo semanais, no SPA - Serviço de Psicologia Aplicada da UFF - Universidade Federal Fluminense. O enfoque teórico é dado por autores como Felix Guattari, Gilles Deleuze, Jean-Paul Sartre, Georges Simondon e Michel Foucault. O método inovador aqui elaborado abandona a busca da verdade oculta nos sonhos e os conflitos psicológicos da infância e abraça as cenas noturnas como criações dramáticas, aquilo que os negros Warlpiri da Austrália consideram condições de formação de tudo o que existe. A pesquisa tem o objetivo de propor a gestão coletiva dos sonhos como uma técnica de ativação dos elementos instituintes da vida cotidiana e de criação de método de intervenção no campo da subjetivação. Os resultados mostram que a gestão coletiva dos sonhos é, nesse sentido, viável.

Palavras-chave:
sonhos; psicologia social; psicoterapia; psicanálise, Warlpiri

Abstract

Since antiquity and in diverse peoples the human mind dreams. The classic methods of approach of dreams Artemidorus and Freud we present the technology of collective management of dreams, inspired by the Warlpiri collective technology (Barbara Glowczewski). Partial results of the survey are presented with 14 participants who report dreams in five weekly meetings, in SPA - Serviço de Psicologia Aplicada (Applied Psychology Service) of the Universidade Federal Fluminense. The theoretical approach is given by authors such as Felix Guattari, Gilles Deleuze, Jean-Paul Sartre, Georges Simondon e Michel Foucault. The innovative method elaborated here abandons the search for the truth hidden in dreams and childhood psychological conflicts and embrace the night scene as dramatics creations, what blacks Warlpiri of Australia consider conditions of formation of everything that exists. The research aims to propose collective management of dreams as a technique of activation of the criatives elements of everyday life and method of intervention in the field of subjectivation. The results show that the collective management of dreams is feasible.

Keywords:
dreams; Social Psychology; psychotherapy; psychoanalysis; Warlpiri

Introdução

Este artigo traz os resultados de um percurso de pesquisa a que nos dedicamos. Nele, apresentamos a onirocrítica de Artemidoro, por se tratar de uma abordagem antiga, bem estruturada, que não se restringe ao campo psicológico, e mostrar como o sonho se relaciona aos acontecimentos da cidade e seu interesse para o cuidado do cidadão envolvido na polis. Tomamos também a abordagem de Freud, pela importância que ela ofereceu às ciências humanas e ao desenvolvimento das práticas de interpretação dos fenômenos psíquicos. A teoria de Jung não foi abordada, pois consideramos que ela não traz contribuições aos objetivos da pesquisa, uma vez que, embora traga inúmeras diferenças das anteriores, também busca decifrar o conteúdo onírico e encontrar a “verdade implacável” (JUNG, 1999JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999., p. 19) da vida interior. Em seguida, apresentamos a abordagem dos Warlpiri (trazida pela antropóloga Barbara Glowczewski), que nos inspirou na pesquisa e na construção de uma abordagem nova dos sonhos, a “gestão coletiva dos sonhos”, que é o foco deste estudo. Nesta nova abordagem, o processo onírico não representa a realidade nem repete mecanismos psicológicos. O sonho é criador de cenas e imagens. Na oficina, o coletivo de participantes, fazendo uso de relatos de sonhos, ativa elementos da vida cotidiana para possibilitar o sentido de criação permanente da subjetivação. Para isso traremos contribuições de autores como Guattari, Deleuze, Sartre, Simondon e Foucault. O que almejamos com este estudo é abrir uma possibilidade de cuidar das pessoas fazendo uso do que lhes aparece em seus sonhos, sem contudo restringir o processo onírico a conflitos interiores. Os sonhos serão tomados com processos de criação.

Considerações metodológicas

Nesta pesquisa, abandonamos a perspectiva da pergunta metodológica platônica reducionista “o que é?”, qual verdade do passado, do presente ou do futuro o sonho quer dizer, e preferimos variar as perguntas, como sugere o método da dramatização. Para Deleuze (2006DELEUZE, Gilles. O método da dramatização. In: ______. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 129-154.), as figurações se revelam melhor nas perguntas “quem?”, “com quem?”, “como?”, “em quais circunstâncias?”, “quando?” e “onde?” Questões que forçam a aparição de dramas, a liberação de singularidades, e não enclausuram o ser em seu movimento de atualizar-se e diferenciar-se de si mesmo. A pluralidade das perguntas, tal como vemos ocorrer nas oficinas, induz à produção dramática, enquanto os sonhadores narram. Nas oficinas de sonhos, seguindo a proposta metodológica de Deleuze, queremos nos aproximar da figura, dos movimentos, da cena, distingui-los, ver suas diferenças, sua irredutibilidade dramática, estética e imagética.

Nesse caso, precisamos suportar as cenas oníricas, seu não-sentido, sua não-direção, sua simplicidade, multiplicidade e estranheza. Poder descrever o que no sonho é singular e fazer aparecer o processo de criação das suas figurações é o que marca a tecnologia da gestão coletiva que tentamos construir.

A tecnologia dos sonhos de Artemidoro

Artemidoro de Daldis, grego do século II, cita e comenta várias teorias sobre os sonhos e apresenta a sua própria arte de interpretá-los, a “onirocrítica”, e se dispõe a encontrar a verdade do sonho para o benefício do cidadão que pretendia bem conduzir sua vida. Há os “sonhos simples” (provocados pela lembrança presente) e os “sonhos oníricos” (que dizem do ser, to on éirei). Estes dizem diretamente o que vai acontecer ou precisam de deciframento (ARTEMIDORO, 2009ARTEMIDORO. Sobre a interpretação dos sonhos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. Trabalho original publicado no século II.). O sonho é uma extensão da cena social e nessa direção se dará o trabalho do onirocrítico. A técnica detalhada de interpretação desse autor será descrita em outro momento. Por ora, queremos só ressaltar que, em Artemidoro, os sonhos dizem respeito ao indivíduo, à família, aos vizinhos e aos amigos, e podem mesmo ter desfecho importante para o povo e para a cidade, como nos sonhos políticos, e ainda ter relações com as transformações da natureza, como nos sonhos cósmicos. As visões noturnas não remetem exclusivamente ao mundo privado do homem, mas ao bem público e ao interesse de todos, à polis.

Considerando isso, ter uma técnica de interpretação segura é, segundo Artemidoro, indispensável como ferramenta útil para o cidadão. Gerir a própria existência e se preparar para os acontecimentos que virão é importante, pois o sonho diz a respeito do futuro da pessoa, da cidade ou da natureza. O livro de Artemidoro e sua prática respondem às necessidades de uma época empenhada no cuidado de si e que fez disso um traço cultural extenso dos séculos I e II na Grécia e em Roma (FOUCAULT, 2009FOUCAULT, Michel. O método de Artemidoro. In: ______. História da sexualidade: o cuidado de si. São Paulo: Graal, 2009. v. 3, p. 13-42.).

A tecnologia dos sonhos de Freud

Em Freud é o pensamento diurno privado e secreto que coincide com as visões da noite. Freud tende inequivocamente para o mental e participa do contexto burguês no qual os indivíduos são instados ao individualismo (FIGUEIREDO, 1994FIGUEIREDO, Luis Claudio. A invenção do psicológico. São Paulo: Escuta/Educ, 1994.) e a sentirem vergonha de seus instintos e suas funções corporais (ELIAS, 1994ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: J. Zahar , 1994.). O homem urbano, tomado da angústia de existir como ser isolado, precisa ser civilizado, e sua suposta liberdade “original” é má, como dirá o pensamento burguês. As visões mentalistas da experiência humana e dos conflitos da cidade triunfam.

É nesse contexto que Freud propõe, em 1900, sua tecnologia da interpretação dos sonhos. Os embates instintivos da vigília despertam à noite e marcam a vida onírica (FREUD, 1922/1976FREUD, Sigmund. Dois verbetes de enciclopédia (1922). In: SALOMÃO, Jayme (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 18, p. 285-318. Edição Standard Brasileira., 1900/1987FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos (1900). In: SALOMÃO, Jayme (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago , 1987. v. 7, p. 11-650. Edição Standard Brasileira.). Os sonhos são revalorizados ao serem trazidos para a dimensão psicológica e tornados representações dos conflitos mentais. Essa tecnologia dos sonhos torna-se o método mais eficaz de acessar o mais fundo da alma, as forças arcaicas secretas, indomáveis e transgressivas. É técnica de interpretação do segredo dos homens. A razão de ser do sonho baseia-se no cotidiano privatizado dos indivíduos, e o objetivo da interpretação é reinserir o sentido dos sonhos no contexto da vida anímica (FREUD, 1900/1987FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos (1900). In: SALOMÃO, Jayme (Org.). Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago , 1987. v. 7, p. 11-650. Edição Standard Brasileira.). Desde o século XVIII, torna-se consenso no pensamento psiquiátrico europeu que a vida anímica ancora-se em um contexto mental infantil; este culmina com a teoria freudiana, que enfoca os elementos arcaicos discretos da biografia do indivíduo e está ligada à formação de controles das subjetividades contraburguesas e à experiência da loucura (FOUCAULT, 1978FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978. ).

Na tradição mentalista da psicanálise, o sonho repete eternamente a inscrição das forças mentais, nas quais toda experiência se contém e se constitui. Ele está encapsulado no drama familiar patriarcal mítico, que se tornou a chave do desvelamento das loucuras e da subjetivação. O drama do qual o indivíduo sente culpa e vergonha está sob recalque e só aparece na simbologia dos sonhos após ser reanimado na vigília do dia anterior sem ser percebido. A imagem onírica é passiva e receptáculo das pulsações mentais.

A tecnologia de interpretação dos sonhos de Freud e sua inequívoca eficácia técnica e seu êxito social deram à ciência o modelo formal para entender a subjetividade. Ao mesmo tempo, apurou um olhar ora acolhedor e libertário, ora judiciante das séries de subjetividades inassimiláveis, em função de reiteração de estratégias de subjetivação dominantes, como salienta Orlandi (1995ORLANDI, Luiz Benedito Lacerda. Pulsão e campo problemático. In: MOURA, Arthur Hipólito de. As pulsões. São Paulo: Escuta/Educ, 1995. p. 147-195.). Já não diz respeito ao contexto da cidade, ou polis, e aos acontecimentos do mundo, como na antiguidade greco-romana, mas ao controle dos desarranjos subjetivos.

A tecnologia dos sonhos dos Warlpiri

Longe dos propósitos decifratórios e mentalistas da tradição europeia, encontra-se a tecnologia dos Sonhares (Jukurrpar) dos Warlpiri, povo negro do deserto da Austrália, descrita na etnografia de Barbara Glowczewski (GLOWCZEWSKI; GUATTARI, 1987GLOWCZEWSKI, Barbara.; GUATTARI, Félix. Les Warlpiri: espaces de rêves. Chimères, Paris, n. 1, p. 4-37, 1987.). Para os Warlpiri, o Sonhar é um ancestral que lhes vem falar. O Sonhar não reitera a individualidade, mas compõe a cartografia da cultura, das instituições, dos anseios, dos interditos, dos seus itinerários e do seu território de viagens. O sonho não remete a um desejo recalcado nem a um tempo das origens, mas à condição cósmica de todas as transformações possíveis. O tempo do sonho é o presente, não um tempo histórico, porém um tempo no qual todas as formas, o passado e o futuro, existem no presente. O sonho não fala de uma forma ou tempo particulares, mas sim da dinâmica da transformação e das metamorfoses. Território “do passado, do presente e do futuro, no sonho estão estocadas todas as combinações possíveis dos elementos da existência [...] o sonho é todo o possível” (GLOWCZEWSKI; GUATTARI, 1987GLOWCZEWSKI, Barbara.; GUATTARI, Félix. Les Warlpiri: espaces de rêves. Chimères, Paris, n. 1, p. 4-37, 1987., p. 16-17), o meio, a condição da vida e das transformações, o ponto de origem da existência e seu sentido.

Assim, os Warlpiri rejeitam o corte clássico entre sonho e realidade. Todas as manhãs eles se reúnem para expressar os sonhos pela linguagem das mãos, das palavras, dos traçados na areia, da dança e do canto ou dos desenhos do corpo e definir o que farão do dia, em uma gestão coletiva dos sonhos, com evidente supremacia da dimensão pragmática e experimental, isto é, o importante não é que o sonho seja dito ou explicado nem seja a busca de um sentido oculto, mas que seja “vivido por cada indivíduo e pelo conjunto do grupo” (GLOWCZEWSKI; GUATTARI, 1987GLOWCZEWSKI, Barbara.; GUATTARI, Félix. Les Warlpiri: espaces de rêves. Chimères, Paris, n. 1, p. 4-37, 1987., p. 19) corporalmente em sua dimensão de produção. A tecnologia coletiva dos sonhos dos Warlpiri é meio de gestão do seu cotidiano e constituição do seu território existencial, dos arranjos de vida e dos itinerários. Segundo Barbara Glowczewski, é a gestão da vida feita através da produção onírica que possibilitou aos Warlpiri afirmarem o nomadismo intensivo e sobreviverem aos imperativos genocidas da colonização inglesa na Austrália, que os sedentarizou, e a encontrar saídas para a organização de sua resistência social, cultural e política.

Na modernidade de Freud, o sonho foi valorizado como experiência interior, modo de conhecer os conflitos e sofrimento interiores; foi desvinculado do contexto político e histórico-social da cidade. Em Artemidoro o sonho tinha conexão cósmica com o presente e o futuro, com o espaço da cidade, com a natureza e a cultura; o sonho se oferecia como elemento que desvenda a vida social e o mundo. Nos Warlpiri o sonho também tem conexão com o cósmico, o tempo e o espaço, embora não se trate da polis; o onírico aqui tem o estatuto da ancestralidade, está relacionado ao coletivo, à condução, no cotidiano, do grupo étnico como um todo e ao enfrentamento da dominação colonial. A concepção de que o sonho contém a potência de criação e transformação de tudo que existe e os encontros matinais dos Warlpiri instigaram a nossa abordagem.

A tecnologia da gestão coletiva dos sonhos

Apresentamos até então algumas versões de como lidar com os sonhos, de como o sonho é constituído, de como se debruçar sobre suas imagens. Agora, vamos expor um trabalho que vem sendo desenvolvido com inspiração na tradição Warlpiri. Não se trata de praticar os rituais de Sonhares dos australianos, mas de criar, a partir da sua concepção, uma técnica particular.

Os participantes das oficinas, as etapas e as consignas

Um grupo de catorze sujeitos realizou uma sequência de cinco encontros, uma vez por semana, durante três horas, em uma sala ampla com cadeiras em círculo, no Serviço de Psicologia Aplicada (SPA), para falar dos sonhos. Os participantes eram vinculados ao Instituto de Ciências Humanas: o coordenador da pesquisa, uma professora de Serviço Social, alunos ligados à equipe de pesquisa, alunos dos cursos de Psicologia, Letras e Serviço Social e um aluno da pós-graduação em Psicologia, além de duas participantes que faziam psicoterapia no SPA. O número de participantes em cada oficina variou entre oito e doze, assim distribuídos: seis pessoas participaram de todas as oficinas; quatro pessoas participaram de quatro oficinas; três pessoas participaram de duas oficinas; e uma pessoa participou de apenas uma oficina. Ao todo foram catorze sujeitos que participaram das oficinas. As oficinas seguiram um padrão, e por isso descreveremos o trabalho do primeiro encontro, uma vez que os demais a este se assemelha, apesar da variação do conteúdo dos sonhos e da produção estética em cada encontro.

As oficinas de sonhos ocorreram em quatro etapas: 1) exercícios de relaxamento; 2) relatos de sonhos; 3) produção estética a partir do conteúdo ou dos afetos decorrentes do material relatado; 4) avaliação da oficina. Nestas etapas, seguimos três consignas básicas, como se verá um pouco mais adiante. Assim se constitui a oficina como dispositivo expressivo. Um dispositivo engendra uma produção, e o que dele emerge está marcado pelas condições desse dispositivo, seu contexto, seus traços internos e aquilo que dele não participa. O dispositivo faz aparecer os objetos, os torna perceptíveis (DELEUZE, 1990DELEUZE, Gilles. ¿Que és un dispositivo? In: DELEUZE, Gilles et al. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990. p. 155-161.). A oficina de sonhos é o dispositivo que traz as condições para que o sonho ganhe um novo sentido.

A primeira consigna refere-se à liberação do sonho da biografia do sujeito que o conta (o sonhador não deve associar o relato do sonho a sua vida desperta); a segunda, à liberação dos sonhos das significações (o sonhador deve relatar o sonho sem dar a ele nenhum significado); a terceira convida todos os participantes a explorar o relato do sonho. Essas consignas têm efeito performativo, ou seja, elas mesmas colocam as condições para a realização daquilo a que se propõem. Com isso queremos dizer que as oficinas, como dispositivo, não recuperam a verdade dos sonhos, mas engendram uma determinada experiência dos sonhos na qual uma criação nova é visada, como sugere o conceito da meditatio. Além disso, o processo da oficina vai do relato individualizado do sonhador para a escuta e a interlocução com os demais participantes, que interferem no próprio relato a partir de perguntas feitas e ainda mais na produção estética. Esse processo, inspirado na tradição Warlpiri, constitui um coletivo que aborda os sonhos, e por isso trata-se de um dispositivo que pratica uma “gestão coletiva dos sonhos”.

Iniciamos com os exercícios de relaxamento de 20 minutos e seguimos para a segunda etapa, que é o relato de sonhos. A terceira etapa é a da produção estética. Nos primeiros quatro encontros, nesta etapa, foram produzidos, sequencialmente: um desenho coletivo em papel pardo; uma dramatização; movimentos de danças; e pintura facial. Na quinta oficina cada participante escreveu um texto sobre o modo como cada um a experimentou, o que cada pessoa quis dizer da vivência. Em todas as cinco sessões vimos surgir uma criação do coletivo da oficina. Entretanto, apenas o resultado da primeira oficina foi discutido neste artigo, como foi dito acima.

Desde o início, os relatos de sonhos vieram com vivacidade e alegria, e os ouvintes sentiram-se incitados a se pronunciar, relatar outros sonhos, perguntar, fazer comparações, associações com outros sonhos e experimentar os sonhos (meditatio). Havia sonhos leves e pesados, com morte e afetos de angústia, mas a atenção de todos e as perguntas criavam o bom clima da oficina. O coordenador buscava promover um ambiente acolhedor. As consignas liberaram os sonhos das biografias dos sonhadores, da interpretação, e coletivizaram as experiências oníricas individualizadas. Cada oficina cumpria um círculo completo em torno de si e nada deixava para encontros posteriores.

O relato costuma trazer um mínimo de contextualização do sonho: se é sonho atual, antigo ou de infância, se foi único ou vários parecidos. Às vezes, inicia por expressar uma concepção do que é o processo onírico ou insinuar uma interpretação. A apresentação dos sonhos abaixo pretende descrever as imagens oníricas dos sonhadores evitando repetições, cacoetes de linguagem e o excessivo tamanho da história. Um único sonho contado e comentado durante 15 minutos oferece tantas imagens e detalhes que torna inviável sua apresentação exaustiva. O viés que podemos assumir é o de trazer a história de um sonho, os movimentos e afetos que produziu no sonhador e nos ouvintes, e das novas imagens suscitadas no contexto do seu relato. O viés é poder apresentar a produção de diferenças que o processo onírico porta, como nos sugere o método da dramatização acima exposto, e o conceito de dispositivo. Todos os sonhos narrados no primeiro dia da oficina estão aqui apresentados.

Narrativas de sonhos

O sonho de N

Oito sonhadores se encontraram, no primeiro dia, para narrar seus sonhos.

Sonhei que estava numa floresta, como aquela do conto de João e Maria, [dispara um relato]. Por um tubo dourado, chego lá em cima, encontro um rapaz com roupa de cavaleiro. “Quem é você?”, pergunto. “Você sabe quem sou”, ele me responde, mas não sei nada dele. Ele me guia e a gente atravessa as nuvens até um castelo, com caminho de pedras e escadaria, com rosas nos muros, frutas, comidas, flores. Olho uma bacia com água até conseguir ver o fundo, que me fugia. Logo estou num quarto de novela mergulhando meus pés machucados numa bacia com água. Meus dedos machucados ficam curados.

O sonho longo e detalhado é criador de imagens e situações. O relato se estica ainda mais com as intervenções, os comentários e as perguntas: “Quem era o moço?”, “Isso foi em uma noite só?”, “Estava escuro?”, “Só vocês dois?”, “Como isso aconteceu?”, “Por que não conseguia ver o fundo?”, “Ele acompanhou você o sonho inteiro?” Sem que os participantes conheçam o método de Deleuze, as perguntas se multiplicam. A atenção e as perguntas trazem o relato individualizado para a experiência coletiva, multiplicam as linhas do sonho, puxando-o para o presente e para o encontro coletivo. As falas iam nos afetando e dirigindo os relatos oníricos do “mundo privado” para o mundo grupal, uma gestão coletiva ia se constituindo em meio às perguntas que conduziam não a uma verdade, mas às figurações dramáticas, como aparecem nos outros relatos abaixo. Desde a primeira oficina, era perceptível que um sonho chamava o outro, e sem demora um novo relato vinha ocupar a conversa. O dispositivo da oficina coloca outro modo de compreender o sonhar e de lidar com o relato do sonho.

O sonho de P

Eu já tive sonhos procurando desesperadamente alguém que eu não sabia quem era e, do nada, eu me encontro numa sala, numa casa em que nunca estive, mas é a minha casa”. Alguém interrompe a narrativa e o relato vai se coletivizando: “O sonho de cada um poderia ter ocorrido comigo”. Dissipam-se as referências à realidade biográfica e ficamos com a imagem como criação do processo onírico. O sonho inventa os lugares, as casas e os personagens. Provoca espantos, surpresas, interjeições e muitos risos. É todo um coletivo que se volta para os relatos do sonho que, deixando de se referenciar à vigília e livres da interpretação que o encaixaria numa verdade interior, torna o sonho possível de ser sonhado por qualquer outra pessoa, uma vez que ele é visto como invenção.

Novamente alguém intervém, retomando a narrativa do sonho de P: “De repente, ficou tudo florido, que bonito!” A narrativa era contagiante no grupo e surgia a vontade de sonhar e de relatar seus sonhos. Um participante chegou a imaginar que fôssemos dormir para realizar a sessão de sonhos. “Na parte da pedra, fiquei aflita também; achei muito sombrio”, comentavam os ouvintes contagiados. “Eu já tive um sonho procurando alguém”. Enquanto um participante conta que está sobre as nuvens, outros recriam as cenas, refletem e meditam. O coletivo vai gerindo as falas, interferindo, trazendo novas imagens, dando uma condução à oficina, produzindo uma meditação na qual se explicita o caráter criativo de qualquer sonho. Uma gestão vai se fazendo.

Meditatio, em latim; meleté, em grego, é o “exercício de pensamento” (FOUCAULT, 2006aFOUCAULT, Michel. Aula de 3 de março de 1982. In: ______. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006a. p. 427-443., p. 428), mas não o exercício do sujeito “sobre” um tema, um objeto, uma situação. Meditatio é exercitar-se na própria coisa, fazer a experiência de uma coisa, pôr-se a si mesmo no lugar daquele que está fazendo a experiência, de tal modo que, pelo pensamento, o sujeito se torne aquele que sofre da experiência que o pensamento faz. Pela meditatio o sujeito é deslocado daquilo que ele é para experimentar-se a si mesmo em uma situação fictícia, experimentar-se de outro modo, ou seja, o próprio sujeito aí é ficcionado. E, além disso, no exercício que a oficina de sonhos nos propõe, nos relatos e na meditatio, no que se constitui o encontro de sonhadores, nos tornamos todos sujeitos-imagem entre as imagens relatadas. O próprio sujeito presente no sonho deixa de ser um representante do sonhador para ser ele mesmo uma ficção do sonho. Em relação àquele que está relatando o sonho e os demais participantes do grupo, o pensamento da meditatio implica um sujeito em outra posição, vivenciando lances novos, tomando itinerários radicalmente distintos dos atributos biográficos daquele que sonha.

Foi um sonho bom ou angustiante?”, pergunta alguém. “Meus sonhos não têm tantos detalhes”, diz outro. “Tem gente que tem consciência de que está sonhando.” “Isso ocorreu no sonho ou depois que você acordou?” Falamos dos processos dos sonhos, da falta de referências com a realidade, das misturas de imagens, da falta de ordem, das invenções dos sonhos, dos sonhos como filmes, da morte nos sonhos, dos sonhos com bicho, dos muitos jeitos do sonhar e de como o sonho altera o dia de cada um.

Sonho de Ad

Meu namorado tinha morrido, e, no meu sonho, ele me manda uma mensagem pelo Orkut dizendo para eu ficar bem. Mas como ele pôde me mandar um recado, se ele tinha morrido?, eu pensava no sonho. Tinha o sentimento ambíguo de me sentir enganada e de ficar feliz por ele estar vivo. Consegui ligar pra ele, que me falou que estava na Europa. “Por que você fez isso?”, perguntei. Ele queria ter uma vida de anônimo, queria ter uma vida diferente, só que não aguentou, cansou dessa vida de anônimo e mandou o recado para mim.

Houve uma onda de perguntas, comentários, observações, repercussões, interjeições faciais e muitos risos: “Você chegou a duvidar de que era um sonho?”, “Tinha certeza de que era seu namorado?”, “Quando sonho, eu sei que é um sonho”, “Você procurava outro no sonho também”.

Os sonhos constroem aporias, impasses, cenas insolucionáveis do ponto de vista da realidade e do cálculo, coloca dramas éticos sobre qual escolha vamos fazer. Se nos perguntarmos o que o sonho quer dizer e qual é sua verdade, como no dispositivo de Freud e também em Artemidoro, perdemos a própria dramatização do sonho em troca de uma suposta finalidade exterior à própria imagem. Se nos focarmos na elaboração simbólica que a sonhadora processa acerca da morte de seu namorado, esquecemo-nos da cena na qual uma pessoa se faz de morta para viver uma vida totalmente diferente. No nosso dispositivo, abandonamos a cena onírica como criação de algo que não existe na experiência de fato e perdemos a figuração onírica como produção (DELEUZE, 2006DELEUZE, Gilles. O método da dramatização. In: ______. A ilha deserta. São Paulo: Iluminuras, 2006. p. 129-154.).

O sonho faz uso do material existente na experiência de uma pessoa para inventar uma experiência nova, para liberar singularidades livres das biografias dos sonhadores. Daí a experiência noturna violenta, pois irrompe dela uma existência nova, ainda que apenas em imagem. O sonho mesmo procede por meditatio. Por isso, não podemos reduzir o onírico ao sentido da realidade nem fundamentar-lhe na identidade biográfica do sonhador. Possibilidades, destinos e futuros figuram nos sonhos, “em imagens”, segundo nos diz Sartre (1936/2010)SARTRE, Jean-Paul. A imaginação (1936). Porto Alegre: LPM, 2010.. A gestão dos sonhos feita coletivamente nos leva aos inusitados destinos: “Agora que vocês me chamaram a atenção para essa coisa do anônimo, fiquei intrigada. No sonho, eu também ficava intrigada com isso”.

O sonho é exercício de nomadismo, e a oficina de sonhos é narração de histórias estrangeiras, como diria Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e política. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1, p. 197-221. Coleção Obras Escolhidas.), não de mundos privados e segredos, mas narrativas que se afastam do cotidiano e da vivência plausível e longe do compromisso de legitimar a realidade. São histórias inverossímeis (SANTOS, 2010SANTOS, Abrahão de Oliveira. Gestão coletiva dos sonhos: elementos para uma psicologia da diferença. Mnemosine, v. 6, n. 2, p. 59-76, 2010.) que habitam o corpo e se apresentam como liberdade. Figurações ou dramáticas que se revelam melhor nas múltiplas perguntas circunstanciais que forçam a aparição do drama onírico e a liberação de singularidades. Da liberação da busca da verdade interior e da reexperimentação da dramática onírica surge algo novo também na oficina: “Eu não tinha prestado atenção nessa ideia de alguém ter uma vida anônima; eu só me voltava para qual é o significado do sonho para mim”. Os sonhos contam histórias jamais vividas pelos sonhadores no passado, no presente ou no futuro e nos aproximam da tecnologia dos Warlpiri. Tudo no sonho é produção que pode ser apropriada de inúmeras maneiras pelos sonhadores depois do acordar.

Sonho de Di

Vou contar um sonho muito bonito que tive. Já tinha me formado, estava casado, eu estava saindo para trabalhar. Tinha música de fundo. Rodava como um filme. Mostrava nossa rotina, beijinhos, ela ficava grávida, nascia a menina de cabelinho preto. Nem abria os olhos e já começava a falar com a gente. Eu sou o espectador do filme, do meu sonho. “E como vamos chamá-la?” “Esperaremos a hora certa”. Minha filhinha se desenvolveu e era muito inteligente, filosófica, espiritual. Então tirei férias e fomos para um lugar com dunas e praia. Lá o brilho do ouro do sol batendo nas nuvens era lindo. Havia muita paz. No meio do deserto, num oásis, havia umas pessoas conversando, uma gazela tomando água. Uma entidade baixa na gazela e diz que vai dar seu nome à menina, Isis [risos na oficina]. Mas em seguida mudou de ideia para não ser muito egocêntrica [risos] e dá o nome de Íris, por onde a menina vai captar toda a beleza da criação. Isis batizou minha filha de 3 anos. “Ela veio para falar comigo”, disse minha filha. Saíram para o deserto, minha filha e a gazela, enquanto a gente ficou no restaurante. Quando voltaram, minha filha diz dentro da minha cabeça: “Nós conversamos muito e ela, infelizmente, não quis o nome que eu escolhi, mas ela me convenceu de um nome muito melhor e que eu acho que vai servir: o nome vai ser Mônica” [muitos risos]. Isis sobe e o sonho acaba”.

Perguntas, surpresas, excessos de risos renovados a cada relato e comentários: “Eu não sonho desse jeito”. “Os sonhos de vocês são muito bonitos”. “O outro era o caminho de uma vida; no meu, eu procurava alguém”. “Já tive um sonho parecido”. “Ela ia com uma pessoa que ela não conhecia”. “Quando alguém conta um sonho, parece que a gente sonhou também”.

Alguns relatos surpreendem quando o sonho encena o que todo mundo faz em vigília, mas ainda assim a cena onírica é acompanhada de brilho inusitado. Há um elemento de banalidade na narrativa de Di: formatura, casamento, criança, nome, dunas, restaurante, gazela. Mas a experiência onírica propriamente não fica na banalidade, pois porta um movimento de excesso. As imagens podem ser comuns, mas se recombinam e excedem na criação, na invenção de si mesmas. Estão carregadas de possibilidades de existências que nunca vão acontecer. Mesmo quando parece o relato de uma cena cotidiana (“Eu, quando era criança, tinha o cabelo bem assim”, “Me identifiquei: olha eu ali”), o sonho traz uma intensidade, um raio de sol fulgurante, um transbordamento, uma inquietação ou angústia que o torna de fora da realidade, induzindo os participantes a dizer: “parece como se fosse meu”.

O onírico transcende aos indivíduos, de modo que o personagem-sujeito do sonho, ao mesmo tempo que é identificado ao sonhador, é estranho a ele, sente e faz coisas estranhas, em situação distinta e incomparável. O sujeito do sonho é único e é o próprio assunto,1 1 Em francês, le sujet porta dois sentidos na tradução para o português: além de ser o sujeito, é também o assunto. Isso nos inspira dizer que o assunto do sonho é que é o sujeito. Dizendo melhor: o que está em questão no sonho, do ponto de vista da gestão coletiva, é aquilo que ele dramatiza. o drama sonhado, aquilo que, no processo onírico, foi criado. A criação onírica vem pelo transbordamento do comum, do regular, do ordenado que contém minha vida na realidade, e, nesse momento, o sonho ficciona não a realidade, mas fatos que só existem, como diz Sartre, em imagem. O dispositivo oficina de sonhos nos lança para fora de nós mesmos, nos provoca risos e desejo de continuar sonhando de olhos abertos, quer dizer, de continuar criando possibilidades imagéticas. Se buscamos o significado para o sonho, o significado de “Mônica”, que, no sonho, transborda e compõe uma cena inusitada, o drama onírico, e o rebatemos no familiar, na biografia, nos códigos linguísticos e lhe reestabelecemos um significado, reduzimos sua potência de criação.

As narrativas do sonho tocam, surpreendem, implicam, puxam os pensamentos, agitam os corpos e as memórias. Com a participação de cada um, os sonhos são coletivizados, se forma a gestão dos relatos, dos estranhamentos, da produção dos afetos, da apreensão daquilo que teria sido realizado à noite e na individualidade, e a meditatio é coletiva. Gestão que inclui o silêncio de quem não contou seu sonho, de quem cedeu a vez de falar, o relato e a escuta do onírico, o sem-sentido, os sorrisos e acenos para o estranho. A narrativa de cada sonhador afeta as pessoas, agita o corpo, percute, de modo que, na oficina, o sonho deixa de ser uma questão da interioridade e passa a compor modos de perceber a produção de possibilidades da existência como sujeitos da criação, de modos de perceber o inusitado que nos toca, e que pode alterar nosso modo de viver e de estar na cidade, como em Artemidoro.

Com o avançar da oficina, surge um volume de sonhos que nos lança para o que não existe, para longe de nós mesmos, da realidade e do sentido comum das coisas. Traz uma gama de singularidades indomadas, de simulacros, de linhas de variação que nos dão condição para a invenção. Do caos de tantas histórias noturnas, do sem-sentido, do sem-significado e imagens em estado de fuga, vem a vontade de criar um desenho em papel, uma pintura, cenas teatrais, danças individuais ou coletivas, para dar corpo e realidade aos dinamismos espaço-temporais que persistem no sono.

A gestão dos sonhos não se coloca como se visse no sonho um imperativo, um destino, um passado ocultado. Aproximando-se da tecnologia dos Warlpiri, a gestão dos sonhos se propõe, como dispositivo, a um trabalho de produção, tékhne toû bíou, técnica para governar sua própria vida, lembrando-nos de Foucault (2006bFOUCAULT, Michel. Aula de 20 de janeiro de 1982. In: ______. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006b. p. 102-154., 2006cFOUCAULT, Michel. A Ética do cuidado de si como prática de liberdade. In: MOTTA, Manoel Barros da. (Org.). Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006c. Coleção Ditos & Escritos, v. 5, p. 264-287.). Não se trata de buscar a “verdade” interior. A tecnologia da gestão dos sonhos desenvolve a produção das formas, não a sujeição ao saber de fora, aos discursos que nos dizem o que fazer, mas a ativação da capacidade de criação.

Forçar a produção expressiva: onírica do desenho

Saturados das singularidades trazidas pelas narrativas dos sonhos, as imagens oníricas nos trazem sinais de um mundo distante, implausível, não domesticado, o lado de fora de nós mesmos. Formas querendo se desenvolver e que existem, se não “de fato”, mas “em imagem”, lembrando Sartre. Imagens que nada representam a não ser a si mesmas. Os relatos nos preenchem de sonhos e, por estarmos prenhes dos sonhos, vamos nos tornar artesãos de imagens ou, como na meditatio, experimentar coisa em pensamento. Vamos desenhar e pintar em papel a partir da sugestão das narrativas oníricas.

Tomar um elemento, ideias, sensações, imagens para fazer um desenho no papel pardo a dezesseis mãos, já que éramos oito participantes. Vamos pintar a identidade, o lugar, o rosto desconhecido? Como desenhar a busca de um nome? O plano da gestão ressalta, como diz Guattari (1992GUATTARI, Félix. Caosmose. São Paulo: Ed. 34 , 1992.), a interlocução entre os comentadores, a visão de si mesmos na oficina, o aumento da liberdade de jogo e de simulação, o acolhimento imediato das expressões que aí se desenvolvem, o abandono da atitude realista que facilita a apreensão construtivista da produção de subjetividades. Tudo é construído no ato de sua montagem, no debate, no conluio e na transversalização dos afetos das experiências, na negociação dos termos, nas mediações, na produção do comum. Aí opera a “gestão coletiva dos sonhos”.

Carimbar a digital do polegar ou pintar o RG, que representa a identidade”, alguém propõe e algo se encaminha sobre o papel pardo que usamos. “Mas o que nos surpreende em sonho é a não identidade.” “O desconhecido que passa nos sonhos, como colocar isso no papel?”, “Os sonhos são alegres”. “E bonitos”, outro retruca. “Façamos somente uma margem”. “Por que não deixar em branco? Afinal, o desenho reduz a um significado”. Todavia, sem desenho resta a não existência; nem fato nem imagem. Estamos discutindo, identificando, selecionando e decidindo. O próprio sonho seleciona, faz uma imagem e não faz outras. Há gestão, seleção e escolhas no processo onírico. “Todos os sonhos são alegres, vamos colocar uma boca de palhaço”. Há falas, defesas de ideias, escolhas e silêncios na criação. O nariz vermelho e o rosto do palhaço: a alegria não identificada, a presença sem nome; flores, caminhos, sol e dunas. Os elementos vão ganhando forma e cor, a gestão vai consumando uma nova imagem. “Um branco aqui”, “Tem marrom aí?”, “Em vez de chifres, o elmo é melhor”, “Passa o pincel. Quem desenha o elmo?”, “E o azul lá do céu; e o do Orkut?” “Nossa, derramou tinta”: são frases que põem fim aos silêncios nos quais todos se debruçam, riscam sobre o papel no chão, até que o desenho se dê por terminado. A gestão resolve problemas criando formas a existir “em imagem” e, agora, “de fato”:


A espada, a flor, o palhaço, as flores em cima do elmo, as linhas de criação e, simultaneamente, de ocupação do território, a expressão do inacabado, a expectativa de que uma nova figura possa se formar em decorrência de mudanças no tracejado, o múltiplo em vez do uno e da totalidade fechada sobre si. Uma nova existência não mais no plano do sonhar, mas o desenho no papel incluindo até os acasos, na expressão da tinta que derrama.

Conversar sobre o desenho e avaliar

Depois da etapa de criação estética, de desenhar, entramos na última fase, a de conversar sobre o desenho e avaliar tudo o que fizemos. É o fechamento da “meditação”. O desenho “daqui onde eu estou parece um barco”, diz alguém. “Só mudando um pouco a posição, já é outra experimentação”, diz outro. Agora não mais sonho noturno; dessa vez, produção estética do grupo, resultado da gestão dos relatos oníricos, imagens e narrativas. Na frente de todos, o papel pardo, suporte da nossa produção. “O desenho me trouxe uma alegria”, alguém comenta sobre o cavaleiro mal-humorado, cheio de flores sobre o elmo. Outro tenta identificar quem é o personagem da pintura. Observamos os caminhos traçados, as possibilidades colocadas, o desconhecido, o anônimo, o que poderia vir a ser. O desenho fica pronto à nossa frente e não é mais sonho nem relato, mas desenho sobre papel, outra produção com conteúdo sensível.

A gente sente liberdade”, alguém diz. A gestão coletiva dos sonhos é um exercício de criação e liberdade. “Dá alegria ver a produção acontecer”, expressam os participantes, ver o arranjo, o desenho surgir. “A gente não precisa seguir uma ordem prévia”, outro comentário. Isso ajuda o plano de elaboração que se afirma a partir de dentro, o plano do arranjo interno, conforme Deleuze (1997DELEUZE, Gilles. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. v. 4.), que emerge lentamente das componentes provenientes da oficina. Em vez de pegar as imagens dos sonhos e tirar delas um significado que já estaria lá como um elemento que lá repousa e o qual só extraímos, o dispositivo da oficina procede como analogia do próprio processo onírico, construindo. Não é achar a realidade dos sonhos ou sua verdade, mas seguir o fluir do sonho no seu ímpeto de inventar formas. A oficina de sonhos instaura um tempo da transformação, como na versão dos Warlpiri.

Começamos com o relato como se reproduzíssemos os sonhos. Mas, no exercício de gestão coletiva, até a etapa de desenhar, selecionamos elementos, delimitamos, contornamos, criamos arranjos e, em vez de deixarmos o papel branco, damos a nós mesmos a liberdade de uma nova expressão, o direito de criar como um sonho. “O próprio desenho é muito onírico, pois o céu vira água e vira chão também”, alguém comenta. Notamos que o chão não reproduz o chão, a flor não reproduz a flor, a espada não reproduz a espada. Cria-se nova imagem. O mundo se faz ali na montagem de um desenho, na trama das conversas, nas cores escolhidas, nos traços, na gestão coletiva.

Um esforço vai ganhando solução para o campo saturado (SIMONDON, 2003SIMONDON, Gilbert. A gênese do indivíduo. Cadernos de subjetividade: o reencantamento do concreto, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 97-117, 2003.; ORLANDI, 2003ORLANDI, Luiz Benedito Lacerda. O indivíduo e sua implexa pré-individualidade. Cadernos de subjetividade: o reencantamento do concreto, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 87-96, 2003.) de imagens e ganha forma. As imagens oníricas são produções do vivo que porta a condição da “natureza naturante” (DELEUZE, 2002DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.), “industriosa” (DELEUZE; GUATTARI, 2010DELEUZE, Gilles.; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. São Paulo: Ed. 34 , 2010.), natureza artesã que ficciona formas e imagens. Esse processamento ou essa habilidade de artífice queremos apreender para a vida desperta. É esse o sentido da prática de si e do preceito délfico “ocupa-te de ti mesmo”, recuperados por Foucault (2006c)FOUCAULT, Michel. A Ética do cuidado de si como prática de liberdade. In: MOTTA, Manoel Barros da. (Org.). Ética, sexualidade, política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006c. Coleção Ditos & Escritos, v. 5, p. 264-287.. O processo de criação do indivíduo que de fato somos não difere daquele da criação das imagens.

Nesta etapa das oficinas, os participantes relacionam os fragmentos oníricos com modos do acontecer da realidade e falam de inventar e reinventar maneiras de explorar a vida; transformar os olhares e os sentidos; trazer o processo onírico para a vida real; conectar a vigília ao sonho, pois nele sempre é possível outro caminho, outra solução.

Considerações finais

O método dramático nos permitiu deixar as abordagens que buscam a verdade escondida nos sonhos, tal qual Artemidoro e Freud, e abraçar as cenas noturnas como criações “em imagens”, retomando Sartre, estéticas, dramas em si mesmos, que dizem das muitas potencialidades de criação do ser, do que os Warlpiri mencionam como condições de formação e transformação de tudo o que existe. Por essa via, o sonho também deixa de refletir conflitos psicológicos da infância, como no dispositivo freudiano.

O dispositivo da gestão coletiva dos sonhos, construído no campo das práticas de cuidar e das práticas psicológicas, leva seus participantes a perceberem um mundo ilimitado de possibilidades de criação, e podem apreender a natureza em sua condição construtivista (“natureza naturante”). Com isso, poderemos fazer crescer nossa liberdade, compor novos roteiros para a vida e, na mesma direção do objetivo de Artemidoro, ajudar as pessoas no cuidar de si mesmas, embora nosso procedimento não inclua a interpretação do sonho. O efeito da meditatio é fazer o coletivo experimentar-se a si mesmo em uma situação fictícia, experimentar-se de outro modo.

Mais pesquisas precisam avaliar o quanto a gestão coletiva dos sonhos pode se apresentar como um modo de as pessoas resolverem ou saírem dos constrangimentos e sufocamento que as gerações contemporâneas sentem e que os excessos das práticas de interpretação impostos pelos saberes científicos acabam por reiterar. Eis uma meta que queremos alcançar com esse projeto de oficina de sonhos, aprender a fazer novos roteiros nas nossas vidas. Vimos aqui algumas tecnologias de gestão da vida, cada uma no campo da emergência social que lhe é próprio, e como o dispositivo da gestão coletiva dos sonhos ativam, nos participantes, forças instituintes do sonhar (SANTOS, 2010SANTOS, Abrahão de Oliveira. Gestão coletiva dos sonhos: elementos para uma psicologia da diferença. Mnemosine, v. 6, n. 2, p. 59-76, 2010., 2014SANTOS, Abrahão de Oliveira. Une gestion collective des rêves Extractions déterritorialisées. L’Unibévue revue de Psuchanalyse, n. 31, p. 148-162, 2014., 2015SANTOS, Abrahão de Oliveira. Culture africaine au Brésil: Rêve, résistance et singularization. Chimères Revue de Schizoanalyses: Les paradoxe du rêve, n. 86, p. 73-84, 2015.) e de transformar os olhares e a sensibilidade.

Ressurge no dispositivo das oficinas o que Foucault (1978FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1978. , p. 18), em outro contexto, chama de onirismo, um aspecto da vida que se silenciou quando os sonhos se prenderam nas redes da psicologia familiar. O onirismo é o movimento de fazer aparecer sentidos novos para si e para o mundo, que abre para a proliferação de arranjos de realidades que não se submetem ao comando do logos, da razão, da ordem previamente consentida de tudo, mas abre para a transformação e criação de modos de perceber e de fazer a si a ao mundo, como vimos emergir nas oficinas.

Ainda é necessário estender e aprofundar a pesquisa para termos mais clareza dos seus resultados, mas vemos aí surgir, no campo das práticas psicológicas, um modo novo para a experimentação e diversidade de existências (SANTOS, 2006SANTOS, Abrahão de Oliveira Psicose: questões de vida ou morte. São Paulo: Vetor. 2006.) e afirmação da condição criadora do ser humano.

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    Apoio financeiro FAPERJ, CAPES e CNPq (bolsa de Iniciação Científica).
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    Em francês, le sujet porta dois sentidos na tradução para o português: além de ser o sujeito, é também o assunto. Isso nos inspira dizer que o assunto do sonho é que é o sujeito. Dizendo melhor: o que está em questão no sonho, do ponto de vista da gestão coletiva, é aquilo que ele dramatiza.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2019
  • Data do Fascículo
    Abr 2019

Histórico

  • Recebido
    17 Nov 2015
  • Aceito
    01 Nov 2018
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