Acessibilidade / Reportar erro

Corpo em sofrimento, afirmação de uma vida

Body in suffering, a life affirmation

Resumo

Esta escrita tem por objetivo questionar a suposta ditadura da felicidade que vivemos atualmente. Reproduzimos e consumimos modelos de vida sem questionar aquilo que eles têm produzido em nós, colocando-nos a serviço de uma felicidade pautada como modo de recompensa. Pretende-se compreender de que modo a experiência do sofrimento e da fraqueza fazem parte de uma ética afirmativa de vida, a partir do pensamento de Nietzsche e Spinoza. Busca-se pensar para além dos discursos reclamatórios e negacionistas de sofrimento, que acabam por minimizar a potência de nossa existência. O corpo, nessa medida, encontra-se vedado e anestesiado à experiência sensível, enquanto seguimos manuais que acreditamos conter o segredo da felicidade, sem espaço para o sofrimento. Pretende-se encontrar possibilidades de desvios desses modos de pensar o corpo e a vida, com vista a tornar o cotidiano mais leve, percebendo o sofrimento e, até mesmo a morte, sob uma outra ótica, distante de qualquer julgamento moral ou representacional.

Palavras-chave:
sofrimento; alegria; afecção; fragilidade; potência

Abstract

This piece of writing aims to problematize the suppose empire of happiness we live in a currently days. We reproduce and comsume living standards without questioning what they have produce, putting ourselves happiness’s service as a way of reward. Itending to think about the way of suffering experience and weakness can be faced as an affirmative ethics of life, according to Nietzsche’s and Spinoza’s thoughts. This paper seeks to think beyond the complaining and negationists speeches about suffering wich end up minimizing the potentiality of life. In that measure, the body is enclosed and anesthetized to the sensitive experiences, while we are following manuals we believes containing de secret of a happy life, without space to experience of suffering. It also intends to find possibilities to deviate from this way of think about body and life, in order to make daily life lighter, seeing suffering and even death through new eyes, moving away from any moral or representational judgment.

Keywords:
suffering; happiness; affection; fragility; potentiality

Notas introdutórias

Este ensaio se produz em meio às discussões que emergem no grupo de pesquisa Currículo, Espaço, Movimento (CEM/CNPq/Univates), o qual busca investigar os processos de ensinar e aprender permeados por práticas educativas e artísticas, em espaços escolares e não escolares. O grupo de pesquisa articula-se ao pensamento pós-nietzschiano da Diferença, tendo como alguns de seus referenciais teóricos Foucault, Deleuze e Guattari, Nietzsche, entre outros. Nesse sentido, pensar o corpo e seu aprender em meio a práticas cotidianas, educativas ou não, artísticas ou não, integram esse exercício de pensamento, do presente artigo, ao escopo da referida pesquisa.

Trata-se de uma proposta que vem com o intuito de repensar alguns dos discursos que emergem na sociedade atual, cujo sintoma mais flagrante é a noção de crise. Enuncia-se a todo momento “a crise” em suas mais diversas facetas: crise da educação, crise da saúde, crise da economia. A crise que já não é mais a crise na modernidade, que surgia de modo natural e impunha a necessidade uma decisão final, um remédio, a fim de acabar com uma insegurança. Nos dias atuais, o remédio já não serve para pôr fim à crise, mas ao inverso, a crise é desencadeada para produzir o remédio. O capitalismo cria um conflito em cada um de nós, e a crise se torna uma técnica política de governo e, assim, uma estratégia para “[...] prevenir, por via da crise permanente, toda e qualquer crise efetiva” (PELBART; FERNANDES, 2018PELBART, Peter Pál; FERNANDES, Ricardo Muniz (Org.). Aos nossos amigos: crise e insurreição (Comitê Invisível). Tradução Edições Antipáticas. São Paulo: n-1, 2018., p. 26-27). Desse modo, mantém uma insegurança existencial crônica que instaura o medo que limita o corpo as experiências sensíveis e, por sua vez, imprevisíveis.

Uma crise que se instaura no corpo, transpassa vísceras, rasga a carne e aquece o sangue, produzindo vibrações outras num corpo em estado de esgotamento, mas que, por sua vez, não quer se esgotar. Num corpo que percebe sua morte em vida, que está aprisionado e enclausurado em formas e padrões que ditam verdades e elencam modos de existência superiores e excludentes. Uma catástrofe que acima de tudo é metafísica, afetiva e existencial, que faz com que o homem, pelo seu estrondoso temor em relação ao mundo, queira se fazer amo e possuidor da natureza. Um homem que tudo engendra, tudo cria e tudo domina, tudo recria de modo contínuo “sem conseguir suportar uma realidade que, por todos os lados, o ultrapassa” (PELBART; FERNANDES, 2018PELBART, Peter Pál; FERNANDES, Ricardo Muniz (Org.). Aos nossos amigos: crise e insurreição (Comitê Invisível). Tradução Edições Antipáticas. São Paulo: n-1, 2018., p. 34). Sem conseguir suportar a noção de que o próprio corpo está sempre adiante de si, transborda sempre seu próprio território.

Uma lógica que produz uma crise para, assim, imperar em suas soluções e imperativos. Um corpo que vive, mas é conduzido a repugnar a vida. Vida esta, enquanto imprevisível, acontecimental, corporal, quente e cansada. Para se proteger da dor do real e imprevisível que diz da vida, o homem “projeta-se para um plano ideal, digital, sem ficção nem lágrimas, sem morte e nem cheiro” (PELBART; FERNANDES, 2018PELBART, Peter Pál; FERNANDES, Ricardo Muniz (Org.). Aos nossos amigos: crise e insurreição (Comitê Invisível). Tradução Edições Antipáticas. São Paulo: n-1, 2018., p. 34). Produz, assim, discursos que o engolem, aciona modos de autoajuda que prometem a felicidade, a aniquilação da dor, a ausência das lágrimas e uma certa anestesia da vida que ainda pulsa.

Reproduzimos e consumimos modelos de vida sem questionar aquilo que eles têm produzido em nós. O problema talvez não seja o consumo em si, mas o ideal ilusório que transpassa esse consumo de forças prontas e frias. Sustentamos discursos que foram construídos ao longo do tempo e que fazem com que sejam tomados como verdades absolutas de vida. Sustentamos discursos como promessas de paz sobre a Terra, sem compreender que a paz nunca existirá. Nem a paz sobre a Terra e tampouco a paz sobre o corpo. E, se essa paz existe, talvez esteja na noção de sua inexistência.

Sem o intuito de exercer um juízo de valores que impõe como devemos viver nossas alegrias e tristezas, busca-se pensar para além dos que acabam por minimizar nossa potência de vida. Pelo contrário, pretende-se encontrar possibilidades de desvios desses discursos, que tornem o cotidiano mais leve e que façam com que possamos olhar e experenciar de outro modo aquilo que tomamos como nossas maiores fragilidades e fraquezas. Fragilidades da humanidade, do homem, do corpo, da vida.

Trata-se de problematizar discursos e pensar em possibilidades outras de recriar para si uma vida mais potente. Como habitar, em meio à crise, essas verdades? Verdades que refutam a dor e o sofrimento e que, quando não o fazem, colocam-nos a serviço de uma suposta felicidade pautada como modo de recompensa. Como potencializar a vida desse corpo esgotado? Um corpo que cansa, mas que não pode demonstrar cansaço, que sofre, mas não pode mostrar sofrimento? Um corpo que se vê enclausurado em uma suposta ditadura que produz escravos da felicidade, que em cada esquina encontra um outdoor onde está escrito “good vibes only”.

Forças de um corpo frágil

Em meio aos mecanismos de coerção e dominação do corpo, a saúde se tornou um bem de consumo, e cada vez maiores são as promessas e consumo de forças prontas que indicam a qualidade de vida. Cada vez mais, submergimos na lógica de uma felicidade plena, cada vez mais nos são ofertados produtos que prometem essa felicidade, que subjugam a dor, a impotência e a infelicidade - que a mesma lógica não cessa de produzir. Em tempos de uma sociedade capitalista, não há mais lugar para o sofrimento, e ele é compreendido como uma patologia, como se não fizesse parte da vida.

Acreditamos que somos livres, porém estamos cada vez mais dependentes das tecnologias e dos saberes dos experts. Colocamos nossa vida nas mãos de quem não conhecemos e raramente temos a noção dos jogos de poder que nos envolvem. A psiquiatria rendeu-se à neurociência, tratando o ser humano apenas como um ser biológico, ouvindo queixas, organizando os sintomas, etiquetando e prescrevendo.

Em meio à ascensão do saber médico, dos discursos em relação à felicidade e da medicalização da vida, seria possível pensar naquilo que tomamos como fragilidade de um corpo, uma potência? Tomemos os corpos frágeis do jejuador de Kafka (1991KAFKA, Franz. Um artista da fome. São Paulo: Brasiliense, 1991.), do copista de Melville (2008MELVILLE, Herman. Bartleby: o escriturário. Tradução de Cássia Zanon. Porto Alegre: L&PM, 2008.), dos corpos inomináveis de Beckett (2009BECKETT, Samuel. O inominável. Tradução de Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2009.). O que há neles? Quais forças os atravessam? Para Pelbart (2009PELBART, Peter Pál. O corpo do informe. In: ______. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2009. p. 42-51., p. 49), é justamente a aparente fragilidade de tais figuras e permissividade que faz com que o sofrimento os atravesse, isto é, o ato de “passividade constitutiva”1 1 Grifo do autor. perante o sofrimento, que os torna ativos. Uma espécie de força de resistir face ao sofrimento. Parece tratar-se, tal qual nos diz Deleuze e Guattari (2012DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claudia Leão e Suely Rolnik. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2012. v. 3.), de criar para si um corpo sem órgãos, ou, ainda, encontrar seu corpo sem órgãos, uma forma de escapar do juízo, de escapar do corpo como um organismo, da organização dos corpos e dos modelos.

A questão é que existem forças que atravessam esses corpos, no limiar entre a vida e a morte, que não poderiam atravessar corpos excessivamente encouraçados. Algo se passa nesses corpos, permeados pela sua condição de fragilidade, e que ainda assim os torna ativos, dando passagem a outras forças, talvez não possíveis em um corpo esquadrinhado. Mas seria preciso produzir um corpo morto ou estar próximo da morte, para que essas forças o atravessassem? Poderia um corpo desembaraçar-se de sua organização, desinventar seus órgãos, para então dar passagem a elas? De que maneiras seria possível dar passagem a essas forças presentes nesse corpo fragilizado?

Desde tempos imemoráveis o corpo é coagido por mecanismos e ações e, de certa maneira, roubado de toda sua potência. A crise do corpo se instala ao passo que ele “já não aguenta mais” (LAPOUJADE, 2002LAPOUJADE, Davi. O corpo que não aguenta mais. In: GADELHA, Sylvio (Org.). Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 2002. p. 81-90., p. 2), tal sistema de martírio e narcose que o cristianismo, e posteriormente a medicina, elaboraram para lidar com a dor. Um na sequência e no rastro do outro: “[...] culpabilização e patologização do sofrimento e insensibilização e negação do corpo” (PELBART, 2009PELBART, Peter Pál. O corpo do informe. In: ______. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2009. p. 42-51., p. 45). O sofrimento pede passagem, o que ainda vibra do corpo grita, grita por estar sofrendo e, novamente como grande parte da dor que se instala, está sendo aniquilada.

A crise, assim como a febre, existe, e com sorte existe, não para que simplesmente se acabe com elas, mas porque há algo ali a nos dizer. E mais, existe algo para se pensar. Uma crise do homem, que é a estranheza em relação ao seu mundo. Talvez não seja o mundo que esteja perdido, mas nós é que estamos perdidos no mundo, “acabados, amputados, cortados, nós que recusamos alucinadamente o contato vital com o real” (PELBART; FERNANDES, 2018PELBART, Peter Pál; FERNANDES, Ricardo Muniz (Org.). Aos nossos amigos: crise e insurreição (Comitê Invisível). Tradução Edições Antipáticas. São Paulo: n-1, 2018., p. 35).

Assim, essa crise moderna que se instaura e a qual, sim, devemos temer não é nem a crise econômica, nem a política ou nem mesmo a ecológica, mas uma crise que “é antes de tudo uma crise de presença” (PELBART; FERNANDES, 2018PELBART, Peter Pál; FERNANDES, Ricardo Muniz (Org.). Aos nossos amigos: crise e insurreição (Comitê Invisível). Tradução Edições Antipáticas. São Paulo: n-1, 2018., p. 35). Crise que diz de um esgotamento subjetivo de recursos vitais do nosso contemporâneo e que se configura, além de tudo, numa aparelhagem sofisticada de ausência. Ausência de si. Não é o apetite de nada, mas a ausência do apetite. O desejo de nada ainda é o desejo. A dor ainda é dor de algo que vive e por isso sente.

Aquele homem que fazia cópias na frenética Wall Street (MELVILLE, 2008MELVILLE, Herman. Bartleby: o escriturário. Tradução de Cássia Zanon. Porto Alegre: L&PM, 2008.) e que intrigava e irritava Herman Melville ao emitir o “prefiro não”, quando lhe era solicitada alguma tarefa, ainda preferia algo. Ainda que preferisse não o fazer, dizia de um desejo. Contrariando aquilo que se esperava, escapando da norma, desejando o que dizem que não é possível desejar. Um corpo instável, fora do normal, fora da norma. Frágil, tal corpo que ainda não tem forma acabada e lida com a instabilidade de não saber o que está por vir, mas ainda assim vive. Trata-se ainda de vida e não de morte, existe ainda a abertura para se experimentar em seus encontros. Talvez a forma do corpo ou o seu estado seja justamente sua informe porosidade, e é em meio a essa fragilidade e imprevisibilidade que a potência de vida toma força.

“Precisamos ser felizes”

É chamado louco, pessimista ou depressivo aquele que não defende a felicidade, ou melhor, aquele que não refuta a dor e a tristeza. Alegria e tristeza são, assim, tomadas como instâncias distintas que se excluem, se uma está presente, a outra não pode estar. Dessa maneira, emerge a busca de uma suposta “felicidade plena”, que a todo custo evita as tristezas e tudo aquilo que um suposto tribunal da razão compreende como sofrimento. Com o objetivo de problematizar tal discurso, nos aproximamos, ainda que brevemente, do conceito de Alegria em Spinoza (2009SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/37558151/%C3%89tica_Spinoza_Tradu%C3%A7%C3%A3o_de_Tomaz_Tadeu_pdf . Acesso em: 21 set. 2009.
https://www.academia.edu/37558151/%C3%89...
), que pode ser compreendida não como um estado da alma, mas como uma maneira de existir. Um processo que não depende de modelos e de estratificações, que não se configura como uma recompensa ou um lugar a que se chegar. Tal conceito, de acordo com o filósofo, em termos menos capturados pelo sentido comum, pode ser compreendido como algo capaz de tornar o espírito mais tranquilo: nossa beatitude.

Se perguntarmos a uma criança o que é a felicidade, talvez ela não saiba ao certo responder. Se perguntarmos a um adulto, possivelmente a resposta estará na ponta da língua. A questão parece ser que a criança ainda experimenta o mundo pela ordem do sensível, e, assim, está menos presa a julgamentos morais.

Existem coisas que não podem ser ensinadas, mas antes experimentadas. Trata-se daquilo que se compõe com cada corpo e produz efeito, antes de qualquer julgamento moral ou representacional. Os homens, os mesmos que não faltam para escrever “sobre a reta conduta da vida muitas coisas excelentes e dar aos mortais conselhos cheios de prudência” (SPINOZA, 2009SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/37558151/%C3%89tica_Spinoza_Tradu%C3%A7%C3%A3o_de_Tomaz_Tadeu_pdf . Acesso em: 21 set. 2009.
https://www.academia.edu/37558151/%C3%89...
, p. 87), chamam as coisas naturais de ordinárias, perfeitas e imperfeitas, antes pautados em preconceitos do que em um verdadeiro conhecimento sobre elas.

Quando julgamos uns modelos como mais perfeitos do que outros, quando afirmamos sua impotência, é antes porque não nos afetam semelhantemente àqueles os quais chamamos de perfeitos, e não porque lhes falte alguma coisa. Em tal medida, Spinoza (2009SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/37558151/%C3%89tica_Spinoza_Tradu%C3%A7%C3%A3o_de_Tomaz_Tadeu_pdf . Acesso em: 21 set. 2009.
https://www.academia.edu/37558151/%C3%89...
) nos ajuda a pensar que nossa potência de agir varia conforme nossas composições, com nossos encontros. Depende da maneira como somos afetados, que não é pautada em um modelo moral, mas antes químico. Depende dos tipos de afecções, entendendo afecção como algo que vem de fora e modifica, tornando-se, assim, paixões alegres ou tristes.

Para Spinoza (2009SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/37558151/%C3%89tica_Spinoza_Tradu%C3%A7%C3%A3o_de_Tomaz_Tadeu_pdf . Acesso em: 21 set. 2009.
https://www.academia.edu/37558151/%C3%89...
) os afetos são sempre uma passagem. Uma passagem de uma potência maior para uma menor, se aquilo me destruiu; de uma potência menor para uma maior, se algo compôs comigo. O que se compõe comigo me alimenta, aumenta a minha potência, do contrário, fico envenenada, diminuindo-se a minha potência.

Assim, as concepções de alegria e felicidade em Spinoza são concebidas a partir das paixões pelas quais a potência de cada um é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada. A tristeza consiste sempre na passagem de uma perfeição maior para uma menor. A questão parece ser que a tristeza consiste justamente na passagem, e não na perfeição menor em si; e assim, à medida que se participa de uma determinada perfeição, não se torna possível entristecer.

Em Spinoza, não se pode dizer que a tristeza consiste na privação de uma perfeição maior, quando a tristeza, de algum modo, participa da perfeição. Diferentemente do que concepções modernas defendem, a tristeza não se trata de um mal a ser evitado ou privado. Somos dotados de potência de agir, e a paixão triste é sempre impotência. Quando o que nos acontece nos entristece e frustra, o nosso desejo ou nossa potência de agir produz um mau encontro. Nesse sentido, o bom e o mau são sempre uma questão de alimento, nunca de julgamento, sempre uma questão de composição e decomposição. A noção de bom e de mal são os próprios afetos de tristeza e alegria, quando tomados pela consciência.

A tristeza, tanto como a alegria, é o próprio desejo e apetite, enquanto aumentados ou diminuídos por causas exteriores. Só conhecemos o bem e o mal vivendo os afetos alegres e tristes. Vemos que a tristeza, e nesse sentido a dor, não envolvem a ausência de apetite e nem de desejo. Assim, não é na imposição de uma suposta ditadura da felicidade, que acredita na evitação da dor e da tristeza, que estaremos potencializando e alimentando nossa vida, mas, pelo contrário, despontencializando nosso ser. Que é também quando, em Spinoza (2009SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/37558151/%C3%89tica_Spinoza_Tradu%C3%A7%C3%A3o_de_Tomaz_Tadeu_pdf . Acesso em: 21 set. 2009.
https://www.academia.edu/37558151/%C3%89...
), somos coagidos por causas exteriores e deixamos de buscar aquilo que nos é útil e de nos esforçar para conservar nosso ser.

O desejo é, antes de mais nada, um desejo de existir, e o sofrimento é, assim, a expressão desse desejo. Quando passamos a pensar e agir regulados apenas por causas exteriores, modelos antes estabelecidos, conceitos já formulados, nos afastamos de nossa própria existência enquanto potência. Vamos diminuindo nossa potência, que é esse desejo e esforço para perseverar-nos em nosso ser; logo, atentamos contra nossa própria natureza. Ainda que sedutora seja a ideia de que o caminho para a felicidade está na evitação da dor, ela tem nos custado caro. Tem nos custado uma suposta anestesia de nós mesmos. Anestesia que não diz respeito ao não conhecimento daquilo que nos acontece ou transpassa, até porque o pensamento spinozista compreende que existe a instância do imprevisível em nossa ética de vida. A anestesia mencionada aqui se trata dessa suspensão total da sensibilidade e da espontaneidade. Anestesia não é o não saber o que se passa, mas não se permitir sentir aquilo que se passa.

Que corpo é este?

Quando se fala do corpo, não se fala de um lugar qualquer, de um corpo qualquer. Então, que corpo é este? Um conjunto de membros? Um braço? Uma perna? Uma mente? Um fígado? Dois pulmões? Evoca-se a noção de um corpo tomado não apenas em uma instância, seja ela biológica, anatômica ou neurológica. Um corpo que não pode ser estratificado, que não pode ser classificado e que não é passível de previsões. Um Corpo sem Órgãos (CsO), que não é uma noção ou conceito, mas uma prática, ou melhor, um conjunto de práticas, tal como nos dizem Deleuze e Guattari (2012DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claudia Leão e Suely Rolnik. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2012. v. 3., p. 13), “um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por intensidades. Somente intensidades passam e circulam”.

Um corpo disforme, no qual nada tem lugar fixo, podem existir braços por todo o lado ou a ausência de vísceras, pois ele é movido pelo desejo, pelas intensidades. Um corpo que se modifica a cada encontro. Ideais platônicos da dicotomia corpo/alma medem, estratificam e delimitam a figura do corpo enquanto finita e divisível em parte. Quanto a isso, Spinoza (2009SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/37558151/%C3%89tica_Spinoza_Tradu%C3%A7%C3%A3o_de_Tomaz_Tadeu_pdf . Acesso em: 21 set. 2009.
https://www.academia.edu/37558151/%C3%89...
, p. 13) questiona “[...] se substância corpórea pudesse ser dividida de maneira tal que as suas partes fossem realmente distintas, por que, então, uma dessas partes não poderia ser aniquilada, com as outras permanecendo, como antes, ligadas entre si?”.

Portanto, não se trata de pensar os corpos como organizações sedimentarizadas. Esse corpo que se separa e do qual se extrai um trabalho útil é um estrato do corpo, desse corpo organizado e biologicamente concebido. O corpo, o que Spinoza também chama de substância corpórea, não pode ser dividido. Trata-se de um corpo infinito, um corpo de conexão de desejos, intensidades, um corpo por vezes insuportável; quando não é mais possível suportar as intensidades do CsO, necessitamos cada vez mais do organismo. E paralisamos não diante do corpo, mas de um estrato do corpo que é “fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentarização que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil” (DELEUZE; GUATTARI, 2012DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claudia Leão e Suely Rolnik. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2012. v. 3., p. 24).

Mas o corpo é paradoxal, errante, fugidio, e, assim, insistimos em maneiras outras de pensá-lo, por meio das quais emergem possibilidades de se rachar com as verdades impostas e habitar a vida, a dor, o sofrimento de maneiras outras. De criar para si um corpo sem órgãos, de criar possibilidades desviantes dos discursos dominantes que ditam como devemos disciplinar nossos corpos. O corpo, nessa perspectiva, torna-se maleável, permeável, tem seus poros abertos para serem atravessados, transpassados e imersos em blocos de sensações. Permite-se estar aberto aos encontros e às afecções, às paixões alegres e tristes, às ações, sempre alegres. Ainda de acordo com a proposição de Spinoza (2009SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/37558151/%C3%89tica_Spinoza_Tradu%C3%A7%C3%A3o_de_Tomaz_Tadeu_pdf . Acesso em: 21 set. 2009.
https://www.academia.edu/37558151/%C3%89...
), as afecções podem levar também à destruição, quando um corpo se encontra com outro que tem uma potência maior que a sua. Contudo, a vedação dos poros, como promessa de uma evitação de dor e sofrimento, pode também levar o corpo à destruição, em uma ausência de si.

A suposta ditadura da felicidade, que impõe modos para lidar com o sofrimento e demais ocorrências da vida, não poderia ser criada senão em cima de preconceitos. E assim, sobre esse corpo pós-orgânico, como se só ele existisse. É impossível, ou então inútil, dissertar sobre aquilo que é bom ou mau, desejável ou indesejável para os indivíduos quando, de fato, não o sabemos. Como diria Spinoza (2009SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/37558151/%C3%89tica_Spinoza_Tradu%C3%A7%C3%A3o_de_Tomaz_Tadeu_pdf . Acesso em: 21 set. 2009.
https://www.academia.edu/37558151/%C3%89...
), quanto à música, esta pode ser boa para um melancólico, má para um aflito ou mesmo indiferente para aquele que não ouve.

O pior não é permanecer estratificado enquanto corpo, mas precipitar tais estratos em uma queda suicida. Não se trata de refutar a instância estrato, mas de experimentar aí as oportunidades que o estrato nos oferece, “ter sempre um pedaço de uma nova terra” (DELEUZE; GUATTARI, 2012DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claudia Leão e Suely Rolnik. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2012. v. 3., p. 27). Não se trata, ainda, de negar o julgamento moral, negar ou lutar contra a ditadura da felicidade na qual estamos imersos. Até porque, negando, cairíamos sobre essa mesma lógica de evitação a qual buscamos ultrapassar. Não se trata de negar nada, mas de experimentar. Não apenas um organismo que funciona, mas um CsO que se constrói (DELEUZE; GUATTARI, 2012DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claudia Leão e Suely Rolnik. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2012. v. 3., p. 28).

Dizer sim à vida

O cotidiano de nossas vidas torna-se excessivamente pesado, ao passo que tudo e todos temos muito a dizer sobre o que somos e queremos, e mesmo assim permanecemos em um silêncio impotente. Mais do que carregar fardos ou provas para ser feliz, há que se instaurar em tais fardos e provas para experimentar possibilidades outras. Não negar as receitas, os manuais e nem declarar guerra à ditadura da felicidade. Mais do que preocupar-se em ter uma vida feliz, há que se perceber a importância de se ter “uma vida” e afirmar a existência dessa vida.

Assim, não é possível experimentar a vida negando aquilo que nela está implicado. É impossível desejar viver e agir bem sem antes desejar e agir, “existir em ato” (SPINOZA, 2009SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/37558151/%C3%89tica_Spinoza_Tradu%C3%A7%C3%A3o_de_Tomaz_Tadeu_pdf . Acesso em: 21 set. 2009.
https://www.academia.edu/37558151/%C3%89...
, p. 86). A felicidade não pode ser compreendida assim, como a consequência de nossas ações ou pensamentos, mas é ela mesma a causa e efeito da vida. A vida que é esse plano de composição e decomposição.

Ser dignos do que nos acontece, afinal os acontecimentos se inserem numa ordem causal, e necessariamente não poderiam ocorrer de outra maneira. Isso implica afirmar o acontecimento para que assim possamos nos tornar ativos em nossos encontros.

Afirmar não é carregar, atrelar-se, assumir o que é, mas, ao contrário, desatrelar, livrar, descarregar o que vive. Não carregar a vida com o peso dos valores superiores, mesmo heroicos, porém, criar valores novos que tomam a vida leve ou afirmativa (DELEUZE, 1997DELEUZE, Gilles. Mistério de Ariadne segundo Nietzsche. In: ______. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.p. 114-129., p. 115).

Com Nietzsche (2001NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.), é possível compreender a necessidade dos acontecimentos e, ainda, aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas, e não se lamentar pelo desnecessário.

Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia, apenas alguém que diz Sim! (NIETZSCHE, 2001NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 67)

Assim como muitos acreditam, o sentido da vida talvez não seja a busca pela felicidade. O sentido da vida implica uma necessidade mais do que uma finalidade. Trata-se de agarrar o presente e fazer dele uma potência de agir em função de nossa própria natureza. Assim, com Nietzsche (2001NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.), um dizer sim à vida. Um sim à vida e àquilo que ela contempla, afirmar alegrias, tristezas, doenças, dores, abismos e monstros.

Sim, o corpo cansa. Sim, o corpo se esgota. Sim, o corpo sofre. Mas ainda assim ele vibra, ainda assim algo o faz estremecer, ainda assim se trata da vida e não da morte. Entretanto, nessa incessante busca por ideias ilusórias de felicidade, os poros se fecham e o corpo vibra cada vez menos, vive cada vez menos e diminui sua potência. Estamos cansados de buscar, cansamos de que os outros nos digam como viver, o que o corpo deve ou não deve, pode ou não pode.

Agora é o corpo que quer falar. Que quer experimentar. O corpo quer entrar em contato com sensações, afirmar vida enquanto essa composição de encontros, vivendo as paixões e buscando fazer delas ações. O corpo quer estar livre.

livre desejando nada senão o desejo de viver, enquanto provamos um sentimento que se forma antes de formas e figuras, fluídos momentos antes dos primos traços de pensamento, antes de que digamos “pare”! [...] ( CHAMBERS, 2014 CHAMBERS, Adam Colin. Amor Fati. Tradução de Eclair Antônio Almeida Filho. Polichinello, Pará, n. 16, p. 21, out. 2014. Disponível em: https://issuu.com/polichinello/docs/16_18set. Acesso em: 4 out. 2020.
https://issuu.com/polichinello/docs/16_1...
, p. 21)

Referências

  • BECKETT, Samuel. O inominável. Tradução de Ana Helena Souza. São Paulo: Globo, 2009.
  • CHAMBERS, Adam Colin. Amor Fati. Tradução de Eclair Antônio Almeida Filho. Polichinello, Pará, n. 16, p. 21, out. 2014. Disponível em: https://issuu.com/polichinello/docs/16_18set. Acesso em: 4 out. 2020
    » https://issuu.com/polichinello/docs/16_18set. Acesso em: 4 out. 2020
  • DELEUZE, Gilles. Mistério de Ariadne segundo Nietzsche. In: ______. Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.p. 114-129.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Claudia Leão e Suely Rolnik. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2012. v. 3.
  • KAFKA, Franz. Um artista da fome. São Paulo: Brasiliense, 1991.
  • LAPOUJADE, Davi. O corpo que não aguenta mais. In: GADELHA, Sylvio (Org.). Nietzsche e Deleuze: que pode o corpo. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 2002. p. 81-90.
  • MELVILLE, Herman. Bartleby: o escriturário. Tradução de Cássia Zanon. Porto Alegre: L&PM, 2008.
  • NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  • PELBART, Peter Pál. O corpo do informe. In: ______. Vida Capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2009. p. 42-51.
  • PELBART, Peter Pál; FERNANDES, Ricardo Muniz (Org.). Aos nossos amigos: crise e insurreição (Comitê Invisível). Tradução Edições Antipáticas. São Paulo: n-1, 2018.
  • SPINOZA, Benedictus. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/37558151/%C3%89tica_Spinoza_Tradu%C3%A7%C3%A3o_de_Tomaz_Tadeu_pdf Acesso em: 21 set. 2009.
    » https://www.academia.edu/37558151/%C3%89tica_Spinoza_Tradu%C3%A7%C3%A3o_de_Tomaz_Tadeu_pdf
  • 1
    Grifo do autor.
  • 2
    Os dados completos dos autores encontram-se ao final do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2017
  • Revisado
    27 Jan 2020
  • Revisado
    23 Fev 2020
  • Aceito
    30 Set 2020
Universidade Federal Fluminense, Departamento de Psicologia Campus do Gragoatá, bl O, sala 334, 24210-201 - Niterói - RJ - Brasil, Tel.: +55 21 2629-2845 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista_fractal@yahoo.com.br