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A Psicologia em Doença Mental e Psicologia de Michel Foucault

The Psychology in Mental Illness and the Psychology by Michel Foucault

La Psicología en Enfermedad Mental y Psicologia de Michel Foucault

Resumo

Michel Foucault investiga “a história das relações que o pensamento mantém com a verdade” e desnaturaliza corpo, alma e psiqué considerando-os invenções histórico-discursivas, as quais só têm sentido se inseridas em determinados arranjos epistêmicos de produção de verdades, no caso, o surgimento das ciências humanas. Esta pesquisa estuda a ordem do discurso foucaultiano sobre a Psicologia em seu escrito seminal, o livro “Doença Mental e Psicologia”, com o intuito de oferecer subsídios para a compreensão da história dos discursos da Psicologia, no que se refere à edificação do sujeito e do objeto psicológicos e em seus efeitos subjetivadores e contemporâneos, ao questionar tanto a naturalização das condutas consideradas psicologicamente anormais; como também a aplicação dos mesmos princípios da patologia orgânica à patologia mental a qual, aliada ao postulado da naturalização das doenças psicológicas como espécies unitárias, criariam a ilusão de uma unidade real entre as patologia mental e orgânica, por meio da complexa imbricação enunciativa entre mente e organismo. Verificou-se que para Foucault, a patologia de determinada história psicológica e individual não deve ser reduzida aos fenômenos restritos da existência e da percepção personalista do sujeito, o que, inadvertidamente, poderia gerar uma culpabilização do sujeito sobre os sintomas - orgânico-mentais - inerentes à sua própria conduta, de forma a se compreender a emergência do homo psychologicus como sujeito na história cultural e social da humanidade, com especial destaque para a produção histórica das figuras da doença mental.

Palavras-chave:
Foucault; Psicologia; saberes psis; corpo/alma; loucura

Abstract

Michel Foucault investigates “the history of the relations that the thought keeps with the truth” and disnaturalizes body, soul and psiqué as historical and discursive inventions, which have meaning only if included into the epistemique arrangements productions of truths, in the case, the emergence of modern thought, specially about human sciences, in general. This research studies the Foucault’s order of the speech on Psychology, in his book “Mental Ilness and Psychology”, with the aim of providing allowances for understanding the history of the speeches of Psychology, about the building of psychological subject and object and its subjectivateurs and contemporaries effects, by questioning the naturalization of conducts considered psychologically abnormal; as well as the application of the same principles of organic pathology to mental pathology, which, together with the postulate of the naturalization of psychological diseases as unitary species, would create the illusion of a real unity between mental and organic pathology, through the complex enunciative imbrication between mind and organism. It was found that for Foucault, the pathology of a certain psychological and individual history should not be reduced to the restricted phenomena of the existence and personalistic perception of the subject, which, inadvertently, could generate a blaming of the subject on the symptoms - organic-mental - inherent to his own conduct, in order to understand the emergence of homo psychologicus as a subject in the cultural and social history of humanity, with special emphasis on the historical production of mental illness figures.

Keywords:
Foucault; Psychology; psis knowledge; body/soul; madness

Resumen

Michel Foucault investiga “la historia de las relaciones que el pensamiento mantiene con la verdad” y desnaturaliza cuerpo, alma y psique considerándolas invenciones histórico-discursivas, que sólo tienen sentido si se insertan en ciertos arreglos epistémicos de producción de la verdad, en este caso, el surgimiento de las ciencias humanas. Esta investigación estudia el orden del discurso foucaultiano sobre la Psicología en su escritura seminal, el libro “Enfermedad Mental y Psicologia”, con el fin de ofrecer subvenciones para la comprensión de la historia de los discursos de la psicología, con respecto a la construcción del sujeto y objeto psicológico y sus efectos subjetivos y contemporáneos, cuestionando tanto la naturalización de conductas consideradas psicológicamente anormales; así como la aplicación de los mismos principios de la patología orgánica a la patología mental, que, junto con el postulado de la naturalización de las enfermedades psicológicas como especies unitarias, crearía la ilusión de una unidad real entre la patología mental y orgánica, a través de la compleja imbricación enunciativa entre mente y organismo. Se comprobó que para Foucault, la patología de una determinada historia psicológica e individual no debe reducirse a los fenómenos restringidos de la existencia y percepción personalista del sujeto, lo que, inadvertidamente, podría generar una culpabilización del sujeto sobre los síntomas - orgánico-mental - inherente a su propia conducta, con el fin de comprender el surgimiento del homo psychologicus como sujeto en la historia cultural y social de la humanidad, con especial énfasis en la producción histórica de figuras de enfermedades mentales.

Palabras clave:
Foucault; Psicología; conocimiento psis; cuerpo/alma; locura

Introdução

Compreender o processo de constituição do sujeito de doença mental em um livro seminal do denominável Foucault jovem: Doença Mental e Psicologia (1954/1984) - livro central dos estudos deste artigo - no qual se esboçavam suas primeiras indagações sobre as constituições histórico-culturais do psiquismo como enunciado-chave na constituição do sujeito e dos saberes psicológicos exige-se, primeiramente como objetivo de pesquisa bibliográfica de pós-doutorado sobre a Psicologia em Foucault nas obras principais de suas fases arqueológica e genealógica, - situar a emergência de suas formações discursivas no contexto da realidade histórica pertinente à produção cultural da filosofia francesa.

A singularidade do caráter territorialista da filosofia francesa em geral fica evidente nos estudos de Deleuze sobre a perda de vista do plano de imanência filosófico perante o intensivo e múltiplo processo histórico-cultural de produção de conceitos. Neste contexto, os estudos sobre a produção de conceitos seria um vasto campo de análise sobre o qual a filosofia francesa se debruça, a partir de uma abordagem que os considera como “uma simples ordem de conhecimento reflexivo”, “uma ordem de razões”, uma “epistemologia” (DELEUZE, 1991DELEUZE, Gilles. Qu’est ce que la Philosophie? Paris: Les Éditions de Minuit, 1991., p. 100).1 1 Tradução nossa, como também as seguintes dessa obra. Assim, a partir desta pressuposição dos conceitos como elementos discursivos no processo de ordenação de conhecimentos e de razões, é que vemos emergir a questão territorial dos saberes franceses.

É territorial pois tornaria o pesquisador um recenseador de agrupamentos conceituais na constituição de conjuntos epistêmicos, verificáveis no transcurso da História do Pensamento. Neste sentido, o conceito como terreno singular na vastidão de um certo campo de verdades será reconhecido, medido e situado, conforme sua disposição, função e efeitos perante estas amplas territorialidades de relevos epistêmicos.

A renda ou lucro que se obtém desta efetuação de medidas conceituais, segundo Deleuze (1991DELEUZE, Gilles. Qu’est ce que la Philosophie? Paris: Les Éditions de Minuit, 1991., p. 100), é uma “tomada de consciência ou cogito, mesmo se este cogito deva se tornar pré-reflexivo, e esta consciência, não-tética”.

Aliás, compreende-se que Foucault critica o caráter tético dos discursos que centram suas proposições sobre a existência da consciência como elemento motriz do conhecimento humano, seja no que se refere às considerações foucaultianas sobre o preceito de consciência só ser possível como elemento discursivo estratégico, emergente em determinada rede de saberes/poderes, conforme apontado em sua fase genealógica; seja a consciência como enunciado fundante dos discursos modernos, patologizadores da loucura, conforme relevado em seu livro-marco dos estudos da loucura: História da Loucura da Loucura na Idade Clássica (1962).

Por sua vez, em uma reflexão correlata sobre arqueologia e epistemologia em Foucault, Machado destaca que se a epistemologia como reflexão sobre a produção dos conhecimentos científicos julga a ciência do ponto de vista da “cientificidade”, tal conformação ocorre de maneira diferenciada no contexto da epistemologia francesa, na medida em que seus estudiosos visam analisar as condições de possibilidade do conhecimento científico, no que nos interessa agora, as condições de possibilidade do conhecimento psicológico (MACHADO, 1989MACHADO, Roberto. Archéologie et épistémologie. In: Rencontre Internationale: Michel Foucault Philosophe. Paris: Édition Du Seuil, 1989. p. 15-32., p. 16).

É sob esta égide que podemos reconhecer que esse primeiro livro de Foucault vem apresentar suas iniciais focalizações sobre os processos históricos de constituição do sujeito psicológico em seus efeitos patologizadores e constituidores dos campos de visibilidades e dizibilidades sobre os comportamentos plurifacetados do funcionamento da psique - para Foucault, desnaturalizável, já que produto dos embates epistêmicos do pensamento ocidental. Trata-se de escrito publicado em 1954 sob o título de Doença Mental e Personalidade, sendo reeditado e revisto com a denominação de Doença Mental e Psicologia em 1962.

Esta obra é coetânea em 1954 com a introdução feita por Foucault à versão francesa de Sonho e Existência de Binswanger (2013BINSWANGER, Ludwig. Sonho e existência: escritos sobre fenomenologia e psicanálise. Rio de Janeiro: Via Verita, 2013.), em um contexto da história da mentalidade francesa na qual a temática antropológico-fenomenológica ocupava seu espaço de relevância tendo, tanto no referido livro como no prefácio, tal enfoque como questão central.

É o que Nalli (2006NALLI, Marcos. Foucault e a fenomenologia. São Paulo: Loyola, 2006. , p. 39) nos aponta a seguir:

Enquanto na Introdução a Sonho e existência Foucault se posicionava em prol da proposta de análise de Binswanger em oposição tanto a Freud como a Husserl, em Doença Mental e Personalidade ele buscou assinalar os elementos, a um só tempo existenciais e ontológicos, que caracterizam tanto a consciência como o universo patológico do doente mental, exatamente em consonância com sua leitura de Binswanger. Essa unidade entre consciência e mundo (tomamos aqui ‘universo’ e ‘mundo’ como sinônimos) forma uma estrutura.

Em um contexto das tematizações de Foucault no qual, sob a influência da antropologia fenomenológica de Ludwig Binswanger (1881-1966) e Eugène Minkowski (1885-1972), aliada à ontologia heideggeriana (1889-1976), faz emergir uma tensão na qual se, por um lado, tais abordagens vêm resistir às metapatologias categoriais da psicopatologia, do empirismo objetivador e da hermenêutica psicanalítica em seu distanciamento da experiência vivida; por outra direção, vão levar Foucault a problematizar os limites de reflexão sobre a constituição histórica do ser-no-mundo apontando, com isto, as próprias condições de possibilidade da fenomenologia existencial-humanista em seus limites discursivos e práticos, por meio do estudo da doença mental psicológica neste seu livro de filósofo iniciante.

É neste contexto que Foucault numa análise mais ampla da fenomenologia no conjunto da sua carreira, argumentaria que “as tensões flutuantes entre uma teoria do homem baseada na natureza humana e uma teoria dialética para a qual a essência do homem é histórica conduzem à busca de uma nova analítica do sujeito” (RABINOW; DREYFUS, 1995RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995., p. 36) pela qual se intenciona uma disciplina, ao mesmo tempo, empírica e transcendental, embasada num a priori concreto, o corpo vivido, através da qual se descreveria “o homem como uma fonte autoprodutora de percepção, cultura e história”. Foucault a chama de ‘analítica do vivido’ ou de acordo com Merleau-Ponty, uma ‘fenomenologia existencial’” (RABINOW; DREYFUS, 1995RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995., p. 36).

É o que se apresenta quando Foucault ressalta que a análise do vivido é uma formação discursiva que se remete tanto aos estudos empíricos sobre a positividade da natureza do homem como à dialética de um devir histórico que exige a apreensão do homem em constante abertura e transformação. O que nos faz retornar ao livro em questão deste artigo num sentido mais perspectivo, pois Doença Mental e Psicologia sinaliza consistentes horizontes sobre a interface entre sujeito fenomênico e sujeito histórico, nos quais a abertura do corpo como presença do ser-no-mundo vem reconfigurar a produção da alma a partir desta experiência vivida e desta aparição do homem como realidade mundana com sua historicidade própria e singular; em uma dialética na qual a história individual do sujeito se remete à história cultural e social no qual ele se insere, em uma relação de pressuposição recíproca, intensamente evidenciada na produção da patologia mental. Por sua vez, ainda não se vê enfaticamente nesta obra do jovem Foucault, a solução aos limites enunciativos e práticos da fenomenologia antropológica por ele considerada segundo Deleuze como uma forma rejeitada de fazer começar a linguagem, neste contexto:

[...] por uma experiência originária, uma cumplicidade primeira com o mundo que nos abriria a possibilidade de falar dele, e faria do visível a base do enunciável (a fenomenologia, o ‘Mundo diz’), como se as coisas visíveis já murmurassem um sentido que a nossa linguagem só precisaria levantar, ou como se a linguagem se apoiasse num silêncio expressivo, ao qual Foucault opõe uma diferença de natureza entre ver e falar” (DELEUZE, 1988DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988., p. 65).

A solução para este limite enunciativo acima exposto estaria ainda relativamente distante na jornada de problematizações de Foucault pois demandaria que o filósofo investigasse detidamente as questões do corpo e da alma em Nietzsche o qual, ao valorizar o corpo, estabelece um primado metodológico do corpo com o intuito de apontar o erro historicamente constituído de hipervalorização dos discursos puros da alma. Para Nietzsche, “partir do pensamento, do derivado, do mais recente, é partir do mais composto e do mais complicado” (GODDARD, 2005GODDARD, Jean Christophe (Org). Le corps. Paris: Vrin, 2005., p. 177).2 2 Tradução nossa, como também as seguintes desta obra. Portanto, torna-se mais difícil compreender o humano em sua correlação corpo-alma.

Sob esta ótica, Nietzsche promove uma reversão epistêmica do estatuto do corpo e da alma por meio de uma valorização ontológica do corpo e de sua natureza múltipla, instável e decadente. Considerado “o milagre dos milagres” (GODDARD, 2005GODDARD, Jean Christophe (Org). Le corps. Paris: Vrin, 2005., p. 12), em se tratando de um conjunto multifacetado de pulsões e de funções orgânicas, a corporeidade é sede de uma pluralidade de forças situadas em uma hierarquia criadora de “uma unidade de constituição, e não uma unidade originária” (GODDARD, 2005GODDARD, Jean Christophe (Org). Le corps. Paris: Vrin, 2005., p. 180), na construção de uma fisiopsicologia como encaminhamento do problema clássico da união corpo/alma.

A concepção de uma alma pura, dissociada do corpo, é substituída pela “comunicação da alma no seio do corpo”, de forma que “o espírito é alguma coisa que pertence ao corpo” (GODDARD, 2005GODDARD, Jean Christophe (Org). Le corps. Paris: Vrin, 2005., p. 185). Esta abordagem representa a retomada da problemática do corpo e alma platônicos por Nietzsche na forma de grande razão e psicologia, presente na célebre declaração de Zaratustra:

O corpo é razão, uma grande razão, uma multiplicidade que tem um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor / Tua pequena razão, ela também, meu irmão, que tu chamas ‘espírito’, é um instrumento de teu corpo, um pequeno instrumento, um pequeno jogo de sua grande razão (GODDARD, 2005GODDARD, Jean Christophe (Org). Le corps. Paris: Vrin, 2005., p. 12).

Essa correlação difusa entre corpo e alma é assinalada por Nietzsche como jogos de numerosas vontades de potência e de pulsões, regidas coletiva e instavelmente no corpo, atravessado constantemente pela sutil imagem dos instrumentos do espírito, concebendo que o corpo - atravessado e produzido por múltiplas potências de saberes e poderes historicamente situados - teria neste seu processo de “desmoronamento histórico” o eixo da produção da identidade de múltiplos sujeitos, dentre eles o de saúde mental e psicologização, esboçado em Doença Mental e Psicologia nos anos 50, sem ainda, conforme dito, solucionada sua proveniência histórica pela genealogia nietzscheana. Sob este prisma, a grande relevância do estudo deste artigo se remete a um contexto da história da própria obra de Foucault, na qual os fundamentos de suas fases posteriores - arqueológica-discursiva, preponderantemente nos anos 60, e da genealogia entre poder, saber e corpo, ostensivamente destacada nos anos 70 - ainda se apresenta em seus rudimentos, ao esboçar a compreensão das complexas correlações discursivas pela qual a Psicologia desloca postulados, preceitos e enunciados da Medicina, em sua matriz biologizadora de compreensão dos comportamentos e sintomas das doenças físicas; aplicando tais concepções para a fundação da ciência e do sujeito psicológicos.

Assim sendo, se ainda não se explicita com ênfase os horizontes genealógicos do Foucault influenciado por Nietzsche acima delineados, por outro lado, poderemos vislumbrar os primeiros ensaios de Foucault em compreender as já ditas tensões dialéticas entre sujeitos existenciais e fenomênicos; e a dimensão histórico-cultural, encarnadas no processo de constituição do sujeito de saúde mental.

Dessa forma, distinguindo entre as especificidades da patologia mental e da patologia orgânica, Foucault se debruça sobre as premissas históricas que viabilizaram a formação do discurso da Psicologia e encontra seu fundamento em uma experiência patológica, a loucura. Nesse sentido, seu argumento se fundamenta na proposição de que o surgimento da Psicologia se dá na relação entre o sujeito e a loucura, ou seja, no momento em que a loucura passa a ser definida como doença mental.

Neste contexto, este artigo visa, inicialmente, apresentar as condições histórico-culturais de emergência do sujeito psicológico moderno, em suas interfaces e deslocamentos com os saberes biologizadores da Medicina, na constituição de um homo psychologicus, produto da História do Pensamento científico, e não como imanência de uma alma matematicamente mensurável, emergente da realidade biológica do corpo, presentes no livro em questão. Busca-se, ao final, relevar temas contemporâneos, a partir dos quais seja possível atualizar a importância desta obra a qual, embora imbuída da singeleza de um pesquisador nascente em sua carreira, traz em seu bojo a pujança de complexos horizontes nos quais os embates dos discursos historicamente situados vêm fazer emergir a psique - não só categorial das multifaces dos sujeitos psicológicos mas, de maneira direta e corporal, o psiquismo de cada um de nós como realidade discursiva que nos atravessa, e em nós incide.

Dois postulados gerais da patologia orgânica à patologia mental

Em seu primeiro livro, Doença Mental e Psicologia (1954), ao apresentar a constituição discursiva do homo psychologicus, Foucault questionará tanto a naturalização das condutas consideradas psicologicamente anormais, como também irá mostrar os limites das concepções subjetivistas e personalistas das doenças mentais, as quais partem de uma abordagem que confere à interioridade do sujeito a exclusiva responsabilidade de sua sintomatologia desarrazoada. Apresentará também os arranjos das enunciações dos corpos e das almas na imbricação entre mente e organismo, na constituição dos discursos das doenças mentais, seja nas abordagens objetivistas e positivistas; seja nos enfoques fenomenológicos, os quais resgatam a singularidade produtiva do ser doente, em sua expressividade ímpar.

Para Foucault, todas as psicopatologias ordenaram-se segundo dois problemas: “Sob que condições pode-se falar de doença no domínio psicológico? Que relações podem definir-se entre os fatos da patologia mental e os da patologia orgânica?” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 7).

Essa ordenação se deu tanto no contexto das psicologias da heterogeneidade, de cunho ontológico, como a de Blondel, a qual busca a singularidade das condutas, não redutíveis ao conceito de normalidade. Tanto nas psicologias analíticas ou fenomenológicas, as quais visam a inteligibilidade de toda conduta aquém da distinção do normal e do patológico. Como também nas psicologias organicistas, as quais investigam a etiologia orgânica dos fenômenos psis (por exemplo, a correlação entre sífilis e psiquismo); ou nas que analisam a causalidade psicológica de comportamentos eminentemente psíquicos (por exemplo, os estudos da histeria do século XIX).

Foucault considera que a grande dificuldade que atravessa todas as psicologias é a aplicação, de maneira praticamente igual, dos mesmos princípios da patologia orgânica à patologia mental. De maneira que, por detrás desta dupla divisão, há “patologia geral e abstrata que as domina, impondo-lhes à maneira de prejuízos, os mesmos conceitos, e indicando-lhes o mesmo método à maneira de postulados” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 8). Um desses postulados seria que “a doença é uma essência, uma entidade específica indicada pelos sintomas que a manifestam, mas anterior a eles, e de um certo modo independente deles” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 12). Por exemplo, a uma crise maníaca, se refere uma loucura maníaco depressiva; ou a um sintoma obsessivo, um fundo esquizofrênico. Outro postulado diz respeito à naturalização das doenças psicológicas como espécies, reconhecidas em unidades, subdivididas em subgrupos, com seus caracteres distintos e estáveis. É o caso da demência, que se agrupa em variantes hebefrênicas, catatônicas ou paranóides (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 13).

Seriam esses dois postulados que provocariam a ilusão de uma unidade real entre as patologias mental ou orgânica. Isto nos remeteria a uma questão correlata, que é a da totalidade orgânica e psicológica, de maneira a desconsiderar a especificidade do fenômeno de cada doença. Sob este prisma, parte-se do pressuposto que a doença, seja ela psíquica ou orgânica, é uma reação global do indivíduo, sem caráter autônomo, sendo um mero “corte abstrato no devir do doente” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 13).

No que se refere às doenças mentais, elas, então, se configuram ao redor de conceitos gerais que a abordam como totalidade psicológica, caracterizada pela “alteração intrínseca da personalidade, desorganização interna de suas estruturas, desvio progressivo do seu desenvolvimento” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 14).

Estrutura, idealização e apreensão fenomênica das doenças físicas e mentais

O que está em jogo é a emergência de uma discursividade que considera, genericamente, o acontecimento da doença mental como realidade que só tem sentido a partir de uma concepção estrutural da personalidade. Neste ocontexto, a personalidade diz respeito ao elemento “no qual se desenvolve a doença, e o critério que permite julgá-la; é ao mesmo tempo a realidade e a medida da doença” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 15).

A este preceito de uma personalidade idealizada e abstrata, a partir da qual os sintomas psíquicos se manifestam como o negativo da funcionalidade psíquica adequada, dentro de uma escala de normalidades e anormalidades, é que se cria uma desqualificação da conduta divergente e não uma concepção que a veria, não como déficit anormal, mas como singularidade produtora de comportamentos. Por exemplo, segundo o neuropsiquiatra alemão Kurt Goldstein (1878-1965) - responsável por estudos gestálticos da linguagem (corporal, ontológica e simbólica) a partir de pesquisas sobre os sujeitos lesionados com traumatismos cerebrais decorrentes da Primeira Guerra Mundial -, quando um afásico não pode nomear um objeto, o que se teria não é uma deficiência orgânico-psicológica, mas sim a apreensão produtiva do indivíduo da realidade, a partir de um certo campo de presença do sujeito no mundo (GOLDSTEIN, 1933/1971GOLDSTEIN, K. L’analyse de l’aphasie et l’étude de l’essence du langage (1933). In: GURWITSCH A.; HAUDEK E. M. G.; HAUDEK W. E. (Ed.) Selected Papers/Ausgewählte Schriften: phaenomenologica. Dordrecht: Springer, 1971. v. 43, p. 282-344. Collection Publiée sous le Patronage des Centres D’Archives Husserl., p. 344).

Para Foucault, o que se impõe, a partir desta análise fenomenológica do comportamento, é uma compreensão da “reação geral do indivíduo na sua totalidade psicofisiológica” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 16) e não como evento fisiológico ou psicológico, relacionável a padrões de normalidade. Principalmente se considerarmos que a patologia mental tem métodos de análise diferentes da orgânica. No caso destas “se isolam nos fenômenos patológicos as condições e os efeitos, os processos maciços e as reações singulares” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 17), através das abstrações que os estudos de anatomia e de fisiologia oferecem, na constituição do saber orgânico, a partir da construção dos quadros clínicos e sintomatológicos das várias doenças físicas e seus correlatos distúrbios fisiológicos. A esta nosografia, Foucault associa à noção de totalidade da patologia orgânica “que não exclui nem a abstração de elementos isolados, nem a análise causal; ela permite, pelo contrário, uma abstração mais válida e a determinação de uma causalidade mais real” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 17).

A importância da história de vida na construção dos discursos da doença mental

Este arranjo epistêmico, por sua vez, não pode ser aplicado na correlação entre a psicologia e a psiquiatria, da mesma maneira que ocorre entre a fisiologia e a medicina, a partir da qual o instrumento de análise fisiológica possibilita a delimitação do distúrbio e estabelecer a causalidade entre o dano e seus efeitos no sujeito. Isto não ocorre naquela correlação, pois o caráter fenomenológico e singular da conduta psíquica não permite esta linearidade e generalidade causal dos seus elementos, conforme ocorre no âmbito da fisiologia perante a medicina, visto que, conforme Foucault, “a unidade significativa das condutas [psicológicas], encerra em cada elemento - sonho, crime, gesto gratuito, associação livre - o comportamento geral, o estilo, toda a anterioridade histórica e as implicações eventuais de uma existência” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 19). Ou seja, o que se ressalta nos eventos psicológicos, em suas variáveis, é a inserção do elemento histórico da vida do sujeito como fator não plenamente apreensível na constituição do saber psiquiátrico que o define, o que compromete sua objetivação e relação causa-efeito, possível no âmbito dos fenômenos orgânicos, conforme vimos.

Dessa maneira, a noção de personalidade dificulta a distinção entre o normal e o patológico, já que remete à história da psicologia do sujeito. De tal forma que “a passagem das reações normais às formas mórbidas não depende de uma análise precisa dos processos; permite somente uma apreciação qualitativa que ocasiona todas as confusões” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 19), ao contrário destas análises quantitativas e objetiváveis das doenças orgânicas. O que está em jogo é a transposição de uma metapatologia psíquica, já que tanto a expressão doentia do sujeito perante seus próprios sintomas, na articulação de sua emergência em determinada meio ambiente específico, confere à doença mental seu caráter de fato histórico inalienável e não suscetível de categorizações abstratas.

Os pressupostos negativistas da doença mental

Por sua vez, a doença, mental, desde o século XIX, é associada a uma descrição negativa do comportamento. Por exemplo, a perda da consciência, o entorpecimento de função, a obnubliação de faculdades, o desaparecimento de aptidões. Nesta direção, desaparecem as coordenações complexas, a consciência em suas aberturas intencionais e a orientação no tempo e no espaço fica comprometida. Em geral, os comportamentos complexos são substituídos por atividades simples e primárias, na constituição de um saber que neles reconhece, mecanismos de regressão psíquico-afetiva.

Segundo Foucault, a doença, ao desfazer a trama da evolução, vai “suprimindo inicialmente, e nas suas formas mais benignas, as estruturas mais recentes, atingindo em seguida, no seu término e no seu ponto supremo de gravidade, os níveis mais arcaicos” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 26). Tais pressupostos estão presentes, por exemplo, no evolucionismo neuropsicológico de Jackson, nas formas evolutivas de desenvolvimento da libido em Freud ou nos estágios psicogenéticos de Melanie Klein. Este tipo de concepção reconhece uma confrontação entre a história regredida do sujeito, perante os parâmetros evolutivos oferecidos e constituídos na sociedade, de forma que a doença mental, conforme sua gravidade, “abole certas condutas que a sociedade em evolução tinha tornado possíveis e as substitui por formas arcaicas de comportamento” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 31).

Com efeito, a configuração do quadro da doença psíquica promove uma desintegração da personalidade do doente sem, no entanto, que ela desapareça completamente da estrutura pessoal do doente, pois o que se preserva é campo de coerência do sujeito doente. Nas palavras de Foucault, “a ciência da patologia mental só pode ser a ciência da personalidade doente” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 36). Neste contexto, Foucault (1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 36) destaca que a noção de regressão, como perspectiva que se projeta conceitualmente sobre o sujeito “tem status de virtualidade geral” perante a história pessoal do doente. Isto acontece porque esta dimensão evolutiva e estrutural da doença ainda não leva em conta a causalidade a que ela remete no tocante ao quadro clínico singular do indivíduo doente.

Mais uma vez, o que temos perante a constituição do discurso psicológico da doença mental, é a necessidade de analisar o processo de significação a que o doente se refere na produção dos sintomas regressivos, na edificação de sua história de vida. Ou seja, deve-se transcender o parâmetro objetivista e racionalista dos quadros regressivos, dispostos nos vários ramos de estudos da Psicologia, para fazer dizer o sentido emergente do próprio sujeito, no resgate da identidade histórica da sua existência. Com isto, reforça-se a ponte já apresentada entre a doença mental e a história individual.

Articulações entre evolução e história do sujeito de doença mental

Foucault (1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.) distingue duas instâncias de compreensão do fenômeno da doença mental. A primeira delas investiga a patologia mental do ponto de vista da evolução psicológica, ou seja, parte da pressuposição que esta evolução “integra passado e presente numa unidade sem conflito, nesta unidade ordenada que se define como hierarquia de estruturas” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 39), a qual só será abalada pelo advento da regressão patológica. A segunda delas compreende a psicologia das doenças mentais a partir da premissa da história psicológica, que, ao contrário da anterior, distancia o passado do presnte, gerando uma situação de conflito, tensão e contradição na articulação temporal do indivíduo.

Assim, se na evolução, “é o passado que promove o presente e o torna possível”; por sua vez, na história, “é o presente que se destaca do passado, confere-lhe um sentido e torna-o inteligível” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 39). É neste âmbito que Foucault esclarece que o devir psicológico é, simultaneamente, evolução e história. É o espaço para a crítica do autor ao fato de, tanto a psicanálise como as psicologias genéticas em geral, não terem considerado que os aspectos estruturais da evolução psicológica do sujeito se remetem, intrínseca e reciprocamente, à singularidade da história do sujeito, em sua expressão fenomênica. Em que pese Freud ter superado as perspectivas evolucionistas, presentes na sua obra, “definido pela noção de libido” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 40), para considerar a dimensão histórica do psiquismo de cada sujeito humano.

Isso nos remete ao fato de que, se do ponto de vista evolucionista, a psicologia do sujeito regredido é um recuo perante os parâmetros evolutivos que sua existência aponta como perspectiva, do ponto de vista histórico, “a regressão não é somente uma virtualidade da evolução, é uma consequência da história” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 45), na manifestação de um mecanismo de defesa psicológica, a partir do qual o passado do indivíduo é invocado, não retrospectivamente mas perspectivamente, como fundamento da irrealização do presente, portanto, com seu cunho de produção de sentidos na história do indivíduo e não de negação evolutiva pré-esperada. Com isto, a doença se situa em uma rede de significações históricas e não como manifestação de uma estrutura da personalidade não plenamente desenvolvida, no contexto de vida de determinado indivíduo.

A angústia como elemento-chave dos discursos da doença mental

O que está em jogo, no limiar da conduta normal e patológica, é a maneira pela qual o indivíduo articula suas contradições existenciais, as quais, a cada instante da vida, são impregnadas pela angústia do seu processo de escolha e de constituição da compreensão dos sentidos, que se configuram a cada momento.

Para Foucault (1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.), o indivíduo normal se abre à contradição da situação vivida, atualizada no seu contato constante com o mundo, encaminhando seu ser para a resolução dos micro-conflitos que se manifestam a cada momento. Por outro lado, o doente se fecha a esta abertura possível, mergulhando na ambivalência estrutural do ato de experienciar a vida, o que se lhe apresenta muito angustiante e de difícil resolução, abrindo espaço para a emergência dos mecanismos de defesa regressivos os quais, conforme vimos, irrealiza o presente e o fixa a estruturas arcaicas do passado.

Neste ponto, o que temos é justamente este modo pelo qual o indivíduo se posiciona diante de sua própria angústia de viver que determinará a transformação da evolução psicológica, em seu caráter estrutural, em história individual, como encarnação coerente de certo campo de sentidos, vividos e articulados na existência do sujeito. Segundo Foucault, na dinâmica entre evolução psicológica e histórica individual, é que a angústia atua “unindo o passado e o presente situa-os um em relação ao outro e confere-lhes uma comunidade de sentido” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 51).

Tendências autoperceptuais do sujeito de doença mental

Dentro desta imbricação, ao relevar a história do sujeito psicológico, o que se visa é analisar a doença a partir do ponto de vista da própria percepção do doente, em seu processo de constituição de sua relação como o mundo e consigo próprio.

Segundo Foucault (1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 57), “a consciência que o doente tem da sua doença é rigorosamente original. Nada é, sem dúvida, mais falso do que o mito da loucura, doença que se ignora; o afastamento que separa a consciência do médico da consciência do doente não é medido pela distância que separa o saber da doença e a sua ignorância.” Isto abre margem para duas tendências de auto-percepção do sujeito psicológico. Numa delas, objetivada, o indivíduo trata sua doença como coisa, fixando-o ao mau funcionamento do seu organismo ou da sua fisiologia, reduzindo sua experiência a estes conteúdos orgânicos, anatômicos e fisiológicos. Por exemplo, nos casos de hipocondria. Em outro caso, o doente reconhece a incorporação do processo mórbido em sua existência, mas o realiza como “a explosão de uma existência nova que altera profundamente o sentido de sua vida, com o risco de ameaçá-la” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 59). É o caso das obsessões e do ciúme mórbido.

Sob outra ótica, a patologia mental é encarada pelo indivíduo como elementos que se fecham sobre si mesmo, criando um mundo autônomo, em contraponto à realidade normal do indivíduo. Isto ocorre nas alucinações e nos delírios. Em caso extremo, na esquizofrenia, por exemplo, “o doente é absorvido pelo mundo da doença” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 61), rompendo pontes com o mundo da normalidade.

Ou seja, apontando a história do sujeito como perspectiva de compreensão de sua doença, lançamo-nos a uma análise na qual as perturbações da razão do indivíduo vão adquirindo singularidade fenomênica. Assim sendo, cada sujeito experimentará seus deslocamentos espaciais e temporais de maneira única, perante o arrebatamento de suas alucinações ou em face à intensidade de suas obsessões. Da mesma maneira, o processo de estranheza do seu corpo próprio perante a experiência alienante determinará a constituição de mundos paralelos, com suas leis próprias, cindindo sua relação com a realidade mais compartilhada com as outras pessoas e no mundo, na constituição de uma individualidade pessoal que não se reduz a analíticas a priori e estruturalistas do que seja a sua personalidade doentia.

É nesse contexto, no qual a subjetividade se apresenta fragmentada e que a objetividade dos fatos se manifesta torpemente transfigurada, que Foucault destaca que “a doença é, ao mesmo tempo, retirada da pior das subjetividades e queda na pior das objetividades” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 69).

A produção do sujeito de doença mental: entre a história individual e a história cultural-social

É nesse momento que Foucault ressalta a ponte entre história individual e história cultural-social. Neste sentido, se o já descrito destaque à experiência fenomênica da loucura vem enriquecer o paradigma exclusivamente científico e racionalista da loucura objetivada, por sua vez, há que também considerar que a patologia de determinada história psicológica e individual não deva ser reduzida aos fenômenos restritos da existência e da percepção personalista do sujeito.

Isto, equivocadamente, nos reportaria a uma ontologia cindida da História e da cultura, esta sim, que sinalizaria os parâmetros do que seja a conduta normal ou anormal, de um psiquismo saudável ou doente. Para Foucault (1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 96), isto simplifica as formas psicológicas da doença mental a “explicações míticas, como a evolução das estruturas psicológicas, a teoria dos instintos ou uma antropologia existencial”. Ou seja, situando o sujeito na história cultural e social da humanidade é que se pode verificar a emergência das figuras da doença mental. Assim, para Foucault (1984, p. 96), é apenas desta perspectiva histórica que se pode descobrir “o único a priori concreto” da patologia psíquica, na construção constantemente atualizada do homo psychologicus, em sua relação historicamente angustiante da incidência dos discursos que o constitui, sobre os corpos e as almas dos indivíduos psicologizados.

Nesse sentido, considerando as condições do surgimento da doença mental e da consolidação do paradigma científico e racionalista da loucura objetivada, há que se pressupor que a patologia fundamentada na história psicológica e individual não deva ser reduzida aos fenômenos restritos da existência e da percepção personalista do sujeito. Foucault afirma que “a doença tem sua realidade e seu valor de doença apenas no seio de uma cultura que a reconhece como tal” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 73), ou seja, a cultura ocidental moderna nomeou os parâmetros do que é considerado conduta normal ou anormal, de um psiquismo saudável ou doente, de uma doença mental vista apenas sob o prisma negativo.

Conclusões

A questão da produção discursiva do comportamento psicológico, atrelada aos pressupostos enunciativos da doença física vem reverberar, atualizada, após mais de sessenta anos da publicação do artigo de Foucault, agora revisitada e amparada por materialidades e discursividades não coetâneas ao momento da redação do referido livro.

Os exemplos - múltiplos e inesgotáveis - apontam a incitação histórico-discursiva no sentido de se estabelecer uma relação de causalidade, suficientemente evidente e cientificamente confirmável, entre biologia e comportamento psíquico. É assim que Dal-Farra e Prates (2004DAL-FARRA, Rossano André; PRATES, Emerson Juliano. A psicologia face aos novos progressos da genética humana. Psicologia: Ciência e Profissão [online], v. 24, n. 1, p. 94-107, 2004. https://doi.org/10.1590/S1414-98932004000100011
https://doi.org/10.1590/S1414-9893200400...
, p. 101), por exemplo, sinalizam que:

[...] pesquisas em Biologia Molecular sugerem que os possíveis genes responsáveis pela esquizofrenia estariam localizados nos cromossomos 6, 8, 10 e 13, embora a identificação precisa dos mesmos ainda não tenha sido realizada, talvez prejudicada pelas dificuldades de formar grupos homogêneos de pacientes, considerando as diferentes manifestações da esquizofrenia em subgrupos de sintomas específicos”.

Ou que a investigação de marcadores genéticos possa localizar a região cromossômica, mais envolvida no transtorno bipolar, no caso, “os genes relacionados à enzima tirosina hidroxilase, que participa da síntese das monoaminas, assim como os genes associados à monoaminoxidase A e B, que metabolizam a serotonina, a adrenalina e a dopamina” (DAL-FARRA; PRATES, 2004DAL-FARRA, Rossano André; PRATES, Emerson Juliano. A psicologia face aos novos progressos da genética humana. Psicologia: Ciência e Profissão [online], v. 24, n. 1, p. 94-107, 2004. https://doi.org/10.1590/S1414-98932004000100011
https://doi.org/10.1590/S1414-9893200400...
, p. 101). Ou ainda, na produção do sujeito psicológico neurótico, ao ressaltarem que “pesquisas realizadas com gêmeos indicam que a característica tendência à neurose, [...] foram as que apresentaram maior influência genética” (DAL-FARRA; PRATES, 2004DAL-FARRA, Rossano André; PRATES, Emerson Juliano. A psicologia face aos novos progressos da genética humana. Psicologia: Ciência e Profissão [online], v. 24, n. 1, p. 94-107, 2004. https://doi.org/10.1590/S1414-98932004000100011
https://doi.org/10.1590/S1414-9893200400...
, p. 103). Como também, ao apresentarem que “estudos ligados à Psiconeuroimunologia apontam evidências da influência da depressão sobre a diminuição das células T (“natural killer”), que atuam no sistema imunológico desempenhando um papel importante no controle de processos relacionados ao câncer” (DAL-FARRA; PRATES, 2004DAL-FARRA, Rossano André; PRATES, Emerson Juliano. A psicologia face aos novos progressos da genética humana. Psicologia: Ciência e Profissão [online], v. 24, n. 1, p. 94-107, 2004. https://doi.org/10.1590/S1414-98932004000100011
https://doi.org/10.1590/S1414-9893200400...
, p. 104).

Ressaltando o zelo desses cientistas com o qual não se reduz o sujeito psicológico a seu material genético - o que de fato, só reforça a emergência constante de renovados jogos de sinais ao redor dos corpos e almas de sujeitos psicológicos historicamente edificados - visto que se considera que “cada ser representa, em qualquer momento da vida, uma subjetividade, uma consciência em constante construção” (DAL-FARRA; PRATES, 2004DAL-FARRA, Rossano André; PRATES, Emerson Juliano. A psicologia face aos novos progressos da genética humana. Psicologia: Ciência e Profissão [online], v. 24, n. 1, p. 94-107, 2004. https://doi.org/10.1590/S1414-98932004000100011
https://doi.org/10.1590/S1414-9893200400...
, p. 106), tais estudos contemporâneos só ressaltam o grande enredamento - prático, discursivo e epistêmico - através do qual o sujeito psicológico se vê emergir no emaranhado de campos de verdades, através do qual História, Cultura e produção de subjetividade se reforçam mutuamente, em uma pressuposição recíproca. Em um contexto no qual saberes biológico-médicos e saberes psicológicos reinventam múltiplas combinações enunciativas, as quais tanto podem produzir um efeito liberador de forças - no sentido da afirmação da singularidade e das diferenças do sujeito a se conhecer; ou com consequências fascistas, a partir das quais, hipoteticamente, poderiam se produzir provas biológico-neuronais no sentido da constituição diagnóstica (seja perspectiva ou prospectiva) de categorização de condutas, comportamentos e modos de ser.

É o caso, por exemplo, do estudo genético no qual os cientistas pesquisadores analisaram os genomas de 818 indivíduos (gêmeos homossexuais) e também o genoma de mais 90 familiares não-homossexuais desses gêmeos. Como resultado, a análise encontrou SNPs [polimorfismo de nucleotídeo único, no qual apenas um nucleotídeo é trocado na sequência de um gene] em diversos genes nos homossexuais, estando presentes, com destaque, no cromossomo 8 e no cromossomo X, os quais são um dos cromossomos sexuais (SANDERS, 2014SANDERS, Alan R. et al. Genome-wide scan demonstrates significant linkage for male sexual orientation. Psychological Medicine [online], v. 45, n. 7, p. 1379-1388, 2014. https://doi.org/10.1017/S0033291714002451
https://doi.org/10.1017/S003329171400245...
, p. 1). Estabelecendo, portanto, correlação entre comportamento psicológico e base biológica-genética, produzindo discursos pelos quais a orientação sexual é determinada desde o nascimento

Tais rearranjos só vêm assinalar a contemporaneidade e a pertinência do estudos do Foucault jovem sobre doença mental, no sentido de nos sensibilizar para o risco de que comportamentos singulares venham a ser categorizados, estigmatizando-os, através de novos dispositivos discursivos - genéticos, computacionais, cibernéticos, dentre outros; principalmente através da desavisada leitura pela qual a cautela dos cientistas éticos apontam descontinuidades e imprecisões conclusivas no sentido de se romper o nexo de causalidade direta entre biologia e comportamento. Reforçando com isto, nossa pressuposição que discursos multifacetados visam estabelecer jogos de sinais, os quais se cravariam sobre corpos e almas de sujeitos, então psicologizados, historicamente situados.

Aliás, cautela metodológica científica essa, na produção da ciência, nem sempre atentamente resguardada ao se produzir os campos de embate político na produção de categorias patologizadas de sujeitos psicológicos pelos CID (Código Internacional de Doenças) ou DSMs (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), cuja multiplicidade de comportamentos edificados vêm corroborar, constantemente, com a desconfiança dos interesses comezinhos de poder e econômicos, os quais, hipoteticamente, justificariam categorias nosográficas bizarras, tais como: transtorno da leitura, transtorno da matemática, transtorno causado por intoxicação por cafeína, transtorno de abstinência da nicotina, transtorno de abandono do tratamento, transtorno de personalidade autoderrotista, dentre outros.

Por sua vez, todo este processo de historicização dos distúrbios mentais se consolida sobre o fundo de um postulado central, que é o postulado da ponte entre história individual e história cultural-social. Sob esta pressuposição, o que se tem é que a patologia de determinada história psicológica e individual não deva ser reduzida aos fenômenos restritos da existência e da percepção personalista do sujeito, o que, inadvertidamente, poderia gerar uma culpabilização do sujeito sobre os sintomas - orgânico-mentais - inerentes à sua própria conduta, encapsulando o sujeito ao redor de um enunciado psicologizador e individualizador das condutas da saúde mental, contraditoriamente objetiváveis e catalogáveis aprioristicamente, conforme estamos vendo.

Conforme aponta Foucault (1984FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia (1954). 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984., p. 96), aconselha-se evitar “explicações míticas, como a evolução das estruturas psicológicas, a teoria dos instintos ou uma antropologia existencial”, pois todas estas perspectivas - estruturais e existenciais de várias dizibilidades sobre o sujeito psicológico - acabam tendo a consequência de centrar no próprio sujeito, a responsabilidade de um destino, cuja visibilidade só é possível através do processo de antropologização dos discursos psicológicos modernos.

Destaca-se assim que, situando o sujeito na história cultural e social da humanidade, é que se pode verificar a emergência das figuras da doença mental, na construção constantemente atualizada do homo psychologicus. Sob este prisma, Foucault nos alerta sobre a Psicologia em sua dimensão de construção histórica das subjetividades no processo demasiadamente humano de produção de discursos, poderes e saberes sobre nossos corpos na invenção da alma enlouquecível e psicologizável, o que será a tônica, conforme já apontado neste artigo, de sua arqueogenealogia, a qual já se aprofunda em importante obra subsequente, História da Loucura na Idade Clássica. É neste escrito que Foucault (1962FOUCAULT, Michel. A história da loucura na Idade Clássica. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1962., p. 522) nos sensibiliza para a seguinte questão:

Em nossa ingenuidade, imaginamos talvez ter descrito um tipo psicológico, o louco, através de cento e cinqüenta anos de sua história. Somos obrigados a constatar que, ao fazer a história do louco, o que fizemos foi - não, sem dúvida, ao nível de uma crônica das descobertas ou de uma história das idéias, mas segundo o encadeamento das estruturas fundamentais da experiência - a história daquilo que tornou possível o próprio aparecimento de uma psicologia. E por isso entendemos um fato cultural próprio do mundo ocidental desde o século XIX: esse postulado maciço definido pelo homem no ermo, mas que o demonstra bem: o ser humano não se caracteriza por um certo relacionamento com a verdade, mas detém, como pertencente a ele de fato, simultaneamente ofertada e ocultada, uma verdade.

Ou seja, homo psychologicus é o elemento-chave por meio do qual se constitui a positividade de um saber antropológico moderno, identificável e elencável como doença mental na construção do edifício histórico da Psicologia Moderna.

Como reflexão derradeira, compreende-se que os estudos aqui apresentados do jovem Foucault sobre doença mental, então circunstanciados com a produção acadêmica francesa de sua época, bem como em uma projeção perspectiva dos seus estudos arqueogenealógicos futuros, nos possibilita resistir aos ditames objetivadores da Psicologia Clássica positivista, em seus fundamentos biologizadores, conforme presentes neste artigo.

Como também nos instrumentaliza e sensibiliza com a dimensão histórico-política das constituições das verdades da Psicologia como jogos de verdades em seusdeslocamentos - práticos e discursivos - estrategicamente renovadores de tais jogos de forças, inerentes a tais produções de subjetividades, as quais dizem respeito a nós mesmos e aos nossos destinos - existenciais, políticos e historicamente situados - em constante mutação, enfrentamento e resistência.

Referências

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    » https://doi.org/10.1017/S0033291714002451
  • 1
    Tradução nossa, como também as seguintes dessa obra.
  • 2
    Tradução nossa, como também as seguintes desta obra.
  • 3
    Os dados completos dos autores encontram-se ao final do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2018
  • Revisado
    17 Mar 2021
  • Revisado
    17 Set 2021
  • Aceito
    12 Jan 2022
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