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Visita a exposições artísticas: considerações acerca da recepção estética* * Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo 2015/18498-0.

Visiting art exhibitions: considerations about the aesthetic reception

Visita a exposiciones artísticas: consideraciones sobre la recepción estética

Resumo

O artigo apresenta alguns resultados da pesquisa intitulada “Narrativas de vida de usuários do Núcleo de Apoio Psicossocial: a recepção estética e a experiência de visitar exposições artísticas”, que explora a recepção estética e a experiência de visitar exposições de arte com usuárias de um Núcleo de Apoio Psicossocial de Santos. É uma pesquisa-intervenção que utilizou diários de campo elaborados pela pesquisadora que acompanhou uma das participantes a duas exposições artísticas. Para a análise foram construídos os seguintes analisadores: A quem serve a arte do museu? e Recepção estética: uma experiência singular. Embora as exposições visem afetar o público, a recepção estética se produz de modo singular para cada sujeito de acordo com suas histórias de vida, experiências, conhecimento, entre outros. Este artigo explicita alguns dos efeitos dessa recepção estética em uma das usuárias participantes impulsionada pelo contato com as artes, que se fez por aproximações com o seu cotidiano de vida e suas experiências, produzindo sensações e encontros.

Palavras-chave:
arte; recepção estética; saúde mental

Abstract

This article presents results of the research titled “Life Narratives of Users of the Psychosocial Support Center: The aesthetic reception and the experience of visiting artistic exhibitions” that explores the aesthetic reception and the experience of visiting two art exhibitions of an user of a Center of Psychosocial Support of Santos. An intervention research that used field diaries prepared by the researcher who accompanied one of the user participants to two artistic exhibitions. For analysis, the following analyzers were built: Who does the art of the museum serve? and Aesthetic Reception: a unique experience. Although the exhibitions aim to cause an impression on the audience, the aesthetic reception is produced in a unique way for each subject according to their life stories, experiences, knowledge, among others. This article explains some of the effects of this aesthetic reception, by one of the users participating in the research driven by the contact with arts, which was made by approximations with her daily life and her experiences producing sensations and encounters.

Keywords:
art; aesthetic reception; mental health

Resumen

El artículo presenta algunos resultados de la investigación titulada “Narrativas de vida de usuarias del Centro de Apoyo Psicosocial: La recepción estética y la experiencia de visitar exposiciones artísticas” que explora la recepción estética y la experiencia de visitar exposiciones de arte con dos usuarias de un Centro de Apoyo Psicosocial de Santos en São Paulo - Brasil. El presente artículo trata de una investigación de intervención que utilizó diarios de campo elaborados por la investigadora que acompañó a una de las usuarias participantes a dos exposiciones artísticas. Para el análisis, fueron establecidos los siguientes analizadores: ¿A quién sirve el arte del museo? y Recepción Estética: una experiencia única. Aunque las exposiciones pretenden afectar al público, la recepción estética se produce de manera única para cada sujeto según sus historias de vida, experiencias, conocimientos, entre otros. Este artículo explica algunos de los efectos de esta recepción estética, por parte de una de las usuarias participantes de la investigación a partir del contacto con las artes, que se realizó a través de aproximaciones con su cotidianidad y sus vivencias, produciendo sensaciones y encuentros.

Palabras-clave:
arte; recepción estética; salud mental

Introdução

A pesquisa “Narrativas de vida com usuários do Núcleo de Apoio Psicossocial: a recepção estética e a experiência de visitar exposições artísticas” foi desenvolvida no período de fevereiro a dezembro de 2016, na Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus Baixada Santista. Esse estudo teve apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e faz parte de uma pesquisa mais ampla, chamada “Delicadas Coreografias: práticas corporais e artísticas como produção de subjetividade”.

O objetivo principal foi estudar a recepção estética de duas mulheres usuárias de um Núcleo de Apoio Psicossocial I (NAPS I), no município de Santos - SP, que foram convidadas a visitar exposições de arte exibidas em espaços culturais como museus, pinacotecas, bienais etc. Além disso, buscou-se compreender se a aproximação prévia de uma dessas mulheres com os fazeres artísticos poderia resultar em diferenças na recepção estética.

A exposição de arte

As exposições de arte sofreram muitas modificações ao longo da história. Até o fim do século XVII a arte era restrita ao clero e à nobreza, exibida em palácios e igrejas. É somente após a Revolução Francesa (1789) e ao longo do século XIX que o museu surge como uma instituição aberta ao público. Esse é, por exemplo, o caso do Museu Nacional (Brasil) e do Museu do Louvre (Paris). Com o advento do Estado-Nação, coleções privadas passaram a ser estatizadas e são utilizadas com fins educacionais, ou seja, o museu era um instrumento de consolidação da república, era usado como meio de constituição da memória pública sobre essa transição governamental, do sistema monárquico para o estado-nação republicano, e, embora ainda houvesse a instabilidade desse novo sistema, o museu era um modo de afirmação dele, passando a se constituir como espaço de apresentação de valores e datas comemorativas. O museu nasce, então, como uma instituição com função social, com o papel de regulação das relações humanas. Até então, a arte não era vista como subjetiva, não integrava a intenção do artista ou do espectador; só depois ela encontra uma estabilidade e tranquilidade quanto a seu projeto de memória, ainda no século XIX, quando a modernidade republicana dá abertura para uma vanguarda de artistas que sublinha a sua subjetividade no espaço do museu e que, em seguida, pensa a interatividade com seu espectador (VALVERDE, 2020VALVERDE, Rodrigo Ramos Felippe. A heterotopia dos museus brasileiros e os deslocamentos da Modernidade. PatryTer - Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, São Paulo, v. 3, n. 5, p. 14-29, 2020. https://doi.org/10.26512/patryter.v3i5.27267
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).

Como mencionado acima, quando inserida em uma perspectiva e em um lugar social, a exposição de um museu se dedica a apresentar algo antes desconhecido, constituindo-se como um lugar de transmissão de saber, ou onde há atravessamento estético, que possibilita a aproximação sensível com a realidade. Porém, nem sempre a exposição possui todos os recursos para que o seu público compreenda imediatamente a mensagem que ela pretende veicular. É necessário que esses recursos conversem com uma bagagem anterior do espectador, com seu conhecimento do objeto em exibição, e contextualize a história social e da arte em que ocorre a mostra (GONÇALVES, 2004GONÇALVES, Lisbeth Ruth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2004.).

Gonçalves (2004GONÇALVES, Lisbeth Ruth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2004.) aponta para a importância de considerar a cenografia de uma exposição como parte dos recursos utilizados por museus e seus curadores. Cenografia é a estrutura e uma das ferramentas de uma exposição para a construção de um “determinado desenho” que constitui um tipo de museografia. Existe uma semelhança da cenografia da exposição com o que acontece no teatro, no que diz respeito ao papel este que cumpre na recepção estética. Assim, a autora mostra que há dois tipos de cenografia da exposição:

  1. A cenografia de paredes brancas inaugurada nos Estados Unidos, pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA), e que se tornou uma convenção para os museus contemporâneos. Exposições temporárias também criam outras variáveis, introduzindo cores, luz e outras técnicas. Atua na recepção estética por meio da racionalidade e linguagem formal da obra e é atravessada por uma ideologia em que a arte moderna tem um “endereço privado” (não mais produzida para ser exposta em igrejas e palácios). Assim, tem-se a ideia de que é necessário realizá-la em um lugar neutro, favorecendo sua autonomia e apagando sua função social. Mesmo pretendendo-se neutra, essa tipologia configura uma escolha por parte do curador. Assim, não há neutralidade em toda ou qualquer exposição.

  2. A cenografia dramatizada/teatralizada, que valoriza a recepção estética ao instigar os diferentes sentidos e o olhar, atuando imediatamente na emoção do espectador. É permeada pela ideologia pós-moderna e enfatiza a crítica que o curador deseja transmitir. Esse modelo é semelhante à instalação, pois essa última marca fortemente a recepção estética, uma vez que é pensada com a participação do público e sua interação com a obra. Um exemplo de cenografia dramatizada é a exposição “Brasil + 500 anos”, que aconteceu em abril de 2000. O segmento de arte barroca da exposição apresentava “um ambiente de flores de papel roxas e amarelas, presas a hastes de ferro de diferentes alturas, como entorno da exposição, numa alusão à decoração usada nas procissões religiosas” (GONÇALVES, 2004GONÇALVES, Lisbeth Ruth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2004., p. 123).

A cenografia dramatizada, portanto, é endereçada ao espectador, incide na percepção dos seus visitantes, pois, além de olhar e deambular pelo espaço, o sujeito terá o tato, o olfato e a sua imaginação instigada; ele é pensado como parte ativa e atuante da exposição. Como mencionado, essa cenografia se aproxima da instalação, que se torna viva à medida que o visitante interage com ela. Na cenografia de paredes brancas, ao contrário, não há a integração do espectador a princípio, a obra em si já é seu produto final, é arte por si mesma. Importante ressaltar que, embora com intenções diferentes, ambas podem ser surpreendidas pela imprevisibilidade das atuações humanas; mesmo as exposições de cenografia de paredes brancas não são em si um limite ao público, pois este faz do espaço do museu também um espaço de intervenção, como se vê mais adiante na história dos museus brasileiros.

Contribuições teóricas sobre recepção estética

O material da obra de arte existe de maneira independente, porém o seu significado como tal só é construído e determinado em uma relação estabelecida entre obra e espectador (ESCÓSSIA; MANGUEIRA, 2005ESCÓSSIA, Liliana da; MANGUEIRA, Maurício. Para uma psicologia clínico-institucional a partir da desnaturalização do sujeito. Revista do Departamento de Psicologia, UFF, Niterói, v. 17, n. 1, p. 93-101, 2005.). Assim, a obra de arte se concretiza na experiência que se dará com o público e suas singularidades. Para ilustrar essa ideia, foram tomadas contribuições acerca do conceito de recepção estética em autores que discutem a obra literária. Esse conceito diz respeito a uma indagação da literatura sobre a constituição da significação da obra, tomando como essencial o papel do leitor, em que o valor da obra já não é mais imanente ao texto ou determinado pelo escritor. Dialoga com a teoria crítico-estética inaugurada por Hans Robert Jauss, intitulada “Estética da Recepção”.

Na palestra intitulada “O que é e com que fim se estuda a história da literatura?”, que ocorreu em abril de 1967, publicada depois com o título “A história da literatura como provocação à teoria literária”, Jauss procurou investigar o papel do receptor, do leitor em torno da obra literária e na produção de seu sentido, propondo um novo método para o estudo da literatura. Para ele a leitura é permeada pela criatividade e interpretação do leitor, que ocorrem em consonância com o contexto social em que vive (COSTA, 2012COSTA, Márcia Hávila Mocci da Silva. Estética da Recepção e Teoria do Efeito [online], 26 de março de 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/modules/mydownloads_01/singlefile.php?cid=44&lid=4787 . Acesso em: 6 jan. 2017.
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; GOMES, 2009GOMES, Mariana Andrade. Experiência Estética e Estética da Recepção. Cadernos do IL, Porto Alegre, n. 39, p. 37-45, dez. 2009. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/47586642/Experi%C3%AAncia_Est%C3%A9tica_e_Est%C3%A9tica_Da_Recep%C3%A7%C3%A3o . Acesso em: 12 jan. 2017.
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; ZINANI, 2012ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Estudos culturais de gênero e estética da recepção: leitura na perspectiva feminina. Nonada Letras em Revista, Porto Alegre, ano 15, n. 19, p. 145-157, 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512451673014 . Acesso em: 22 ago. 2018.
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).

O horizonte de expectativas é um dos principais conceitos da teoria de Jauss e é estabelecido por uma sociedade em determinada época, sendo, portanto, passível de transformações. Assim, o autor ressalta a ideia de que a recepção estética não é individual, mas sim um fato histórico. A percepção individual faz parte de uma leitura ampla, feita pelo homem inserido em seu grupo social. O horizonte de expectativas é delineado a partir das expectativas que o leitor/ espectador possui da obra:

Um leitor que encontra um título como Um Bonde chamado Desejo, de Tennessee Williams, por exemplo, projeta uma certa expectativa diante da obra que vai variar de acordo com o seu acervo e a sua história de formação. Assim, um leitor leigo poderia, pelo título da obra, dizer que se trata de uma história de viagens. Agora, se conhecessem o autor, a sua expectativa seria acerca de uma história que retratasse personagens frustrados, traumatizados, tristes, solitários. É o conhecimento em relação ao estilo do autor que faz com que, nesse caso, o leitor faça essa leitura (ROSSETO, 2010ROSSETO, Robson. A Estética da Recepção: o horizonte de expectativas para a formação do aluno espectador. In: ENCONTRO DO GRUPO DE PESQUISA ARTE, EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO CONTINUADA, 1, 2010, Faculdade de Artes do Paraná. Anais... Paraná, 2010. p. 1-11., p. 4-5).

Wolfgang Iser, cofundador da Estética da Recepção, acredita que “o verdadeiro objeto literário não é o texto objetivo e nem a experiência subjetiva, mas a interação entre ambos” (COSTA, 2012COSTA, Márcia Hávila Mocci da Silva. Estética da Recepção e Teoria do Efeito [online], 26 de março de 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/modules/mydownloads_01/singlefile.php?cid=44&lid=4787 . Acesso em: 6 jan. 2017.
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, p. 8). O “repertório” é o conceito criado por Iser para referir-se à bagagem cultural, social e histórica trazida pelo leitor. A leitura resultará em um confronto entre os repertórios do leitor e do texto; este último seria o leitor implícito, que é imanente à estrutura do texto e conduz a leitura ao pressupor o caminho por ela travado.

Enquanto Jauss procura entender como é o processo de recepção de uma obra de arte, Iser almeja saber qual é o efeito que ela pode causar no leitor. Postula que o aspecto artístico de uma obra é criado pelo seu autor, e o estético é fundado pelo leitor; assim, sugere que, ao invés de questionar o significado da obra, mais pertinente seria questionar o que acontece com o leitor, quando com sua leitura imprime vida aos textos ficcionais.

Para ilustrar essa discussão, retomando a primeira aproximação com o conceito de recepção estética, podemos também indicar que o critério de gênero (masculino e feminino) interfere na leitura de uma obra literária. A identidade de gênero, sendo ela própria uma construção cultural e social, impõe diferentes representações e caracterizações do sujeito. Essa diferença provém do fato de que a leitura, permeada pelo imaginário do leitor, inclui experiências completamente distintas, considerando, por exemplo, a opressão da mulher na história. “Ler como uma mulher” é uma atividade complexa, sobretudo quando a leitora lida com situações e personagens que valorizam a perspectiva masculina e integram também aquilo que ela compreende como sua identidade como mulher. Em concordância com a crítica feminista, um outro olhar deve ser dirigido a obras tradicionais escritas por homens, portanto com a perspectiva masculina, assim como à leitura masculina. Os personagens e o narrador devem ser incluídos também nessa transformação, e isso não significa interpretar de forma reducionista, mas sim alargar o horizonte de expectativas, se considerada a teoria de Jauss. Essa nova dimensão desvela estruturas de poder implícitas na obra e valores nela vinculados ou naturalizados (ZINANI, 2012ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Estudos culturais de gênero e estética da recepção: leitura na perspectiva feminina. Nonada Letras em Revista, Porto Alegre, ano 15, n. 19, p. 145-157, 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=512451673014 . Acesso em: 22 ago. 2018.
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).

A recepção estética pode ser observada em dois momentos: a recepção primária e o efeito condicionado pela obra (em que pode ocorrer a experiência estética) e a interpretação da obra feita pelo espectador, como se constitui o seu significado (foco na vivência do espectador).

[...] a legibilidade de uma obra por um indivíduo é função da distância entre o nível de emissão, definido como grau de complexidade e de discernimento intrínsecos ao código exigido pela obra, e o nível de recepção, definido como grau de domínio que o indivíduo tem do código. A recepção estética tem, portanto, uma dimensão social implícita (GONÇALVES, 2004GONÇALVES, Lisbeth Ruth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2004., p. 88).

Assim como na obra literária, as exposições de arte, seus curadores e artistas buscam aproximações em seus objetivos (por meio de uma cenografia, por exemplo) com o horizonte de expectativas e repertório de seu público, que também é múltiplo. O público, de maneira ativa, coloca a sua interpretação e leitura sobre a obra de arte e pode delinear múltiplas interpretações sobre a sua experiência, questionar o seu “ valor artístico” mesmo quando colocada no espaço instituído da arte, o museu.

Como exemplo dessa relação com espectadores, há o caso de Marcel Duchamp, que, em um movimento de crítica de arte e de sua especulação financeira na época, apresentou sua obra “Fonte”, que mais tarde, em 2006, foi alvo de marteladas de um sujeito francês. Embora alguns entendam o ato como vandalismo, o próprio sujeito disse ter tido a intenção de fazer uma performance artística com a obra (VALVERDE, 2020VALVERDE, Rodrigo Ramos Felippe. A heterotopia dos museus brasileiros e os deslocamentos da Modernidade. PatryTer - Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, São Paulo, v. 3, n. 5, p. 14-29, 2020. https://doi.org/10.26512/patryter.v3i5.27267
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)

Uma perspectiva bastante distinta defende que, quando se busca a arte, se está à procura de encontros e não de cultura ou informação; está-se em busca da experiência estética que é “[...] uma experiência especial, que faz com que a vida não se apresente como uma corrente homogênea e uniforme de fatos banais” (KASTRUP, 2011KASTRUP, Virginia. Experiência estética para uma aprendizagem inventiva: notas sobre acessibilidade de pessoas cegas a museus. Informática na Educação: Teoria & Prática. Porto Alegre, v. 13. n. 2, p. 38-45, jul./dez. 2011. https://doi.org/10.22456/1982-1654.12463
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, p. 39). Nesse sentido, a arte em si não é o ponto-chave da visita, mas sim a possibilidade de encontro com o novo, e a permissão de que ele apareça, a “atenção à espreita” que ela propõe.

Museus e seu movimento de democratização

O museu trabalha com a história da arte, mas também, considerando que a sua arte evoca épocas e estilos, trabalha com a história social e “chama” a memória e o imaginário do visitante. Ele legitima o poder de uma determinada cultura (GONÇALVES, 2004GONÇALVES, Lisbeth Ruth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2004.).

Atualmente os museus não são um espaço privilegiado dos ricos, como outrora ocorria; eles promovem a entrada de um público mais amplo, tendo em vista que o acesso à arte e à cultura se tornaram uma questão de cidadania. Contudo, a despeito dessa política democrática, observa-se que a entrada da classe de baixa renda é mínima. A maioria dos frequentadores dos museus costuma possuir ao menos a formação universitária. Em um estudo dos museus de arte franceses e americanos, foi constatado que na França “[...] 60% dos frequentadores de museus são executivos ou profissionais liberais, e 49% são administradores de posição média [...]” (ZOLBERG, 2015ZOLBERG, Vera L. Barreira ou nivelador? O caso do museu de arte. In: LAMONT, Michèle; FOURNIER, Marcel (Org.). Cultivando diferenças: fronteiras simbólicas e a formação da desigualdade. Tradução de Renata Lucia Bottini. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015. p. 255-282., p. 263).

Centrar-se na arte como uma forma de compreender a estrutura e a mobilidade sociais pode parecer inapropriado: afinal de contas, não é a instituição educacional que é diretamente relacionada ao status social? Mas afirmo que o museu de arte fornece um objeto apropriado de estudo porque, além das funções que lhes são claramente atribuídas de preservar os valores estéticos, muitos dizem que eles criam e reforçam desigualdades na sociedade ((ZOLBERG, 2015ZOLBERG, Vera L. Barreira ou nivelador? O caso do museu de arte. In: LAMONT, Michèle; FOURNIER, Marcel (Org.). Cultivando diferenças: fronteiras simbólicas e a formação da desigualdade. Tradução de Renata Lucia Bottini. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015. p. 255-282., p. 256).

Pierre Bourdieu (ZOLBERGUE, 2015ZOLBERG, Vera L. Barreira ou nivelador? O caso do museu de arte. In: LAMONT, Michèle; FOURNIER, Marcel (Org.). Cultivando diferenças: fronteiras simbólicas e a formação da desigualdade. Tradução de Renata Lucia Bottini. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015. p. 255-282.) pesquisou os museus da França e de outros países europeus, com o objetivo de compreender se atingiam as camadas mais pobres da população após a Segunda Guerra Mundial, constatando que, apesar do interesse dos museus em expandir seu público, nenhum obteve sucesso. Percebeu-se que a recepção estética dos visitantes do museu, mesmo aqueles com o perfil de grande bagagem cultural, acontecia em concordância com características sociais compartilhadas com outros, como o histórico familiar, o desempenho educacional e o fato de morarem em cidades pequenas ou grandes.

O setor educativo do museu exerce papel fundamental para aqueles que se interessam em saber a intenção do artista, sua história e estilo. De acordo com Zolbergue (2015ZOLBERG, Vera L. Barreira ou nivelador? O caso do museu de arte. In: LAMONT, Michèle; FOURNIER, Marcel (Org.). Cultivando diferenças: fronteiras simbólicas e a formação da desigualdade. Tradução de Renata Lucia Bottini. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015. p. 255-282.), não há investimento nessa área por parte dos museus da França e dos Estados Unidos, e, quando isto acontece, restringem o foco educacional apenas aos estudantes. Por isso, quando observada como ponto de promoção de educação formal, a arte museológica acaba por nivelar seu público e restringir o seu convite. Apesar de contar com diversos tipos e concepções de arte, não somente a “clássica”, não recebe igualmente os diversos espectadores. O museu, portanto, se torna um analisador de um problema social e também expõe as formas de divisão da sociedade. O setor educativo, sozinho, não consegue dar conta dessa defasagem, e o museu é convocado a se posicionar politicamente: transformar a sua estrutura para compor a educação e sua democratização ou conservar sua forma de organização sem um papel ativo na construção de um museu para todos, lançando mão apenas de ‘cuidados paliativos’ como a gratuidade do ingresso. A prática dessa pesquisa discute alguns aspectos.

Metodologia

Esse estudo é qualitativo, configurando-se como uma pesquisa-intervenção. Uma das principais premissas da pesquisa-intervenção é a utilização de analisadores e também a evidência da implicação dos sujeitos na pesquisa, mostrando o lugar que ocupa o pesquisador. Isso rompe barreiras entre sujeito e objeto de estudo, sendo os dois constituídos conjuntamente. Isso quer dizer que na pesquisa-intervenção o pesquisador não é neutro, ele se mantém dentro do campo de investigação e mobiliza forças, ajuda a construir e produzir o resultado da pesquisa, em contraposição à visão de que ele revela algo antes oculto (PASSOS; BARROS, 2000PASSOS, Eduardo; BARROS, Regina Benevides de. A construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, v. 16, n. 1, p. 71-79, jan./abr. 2000.; ROSSI; PASSOS, 2014ROSSI, André; PASSOS, Eduardo. Análise Institucional: revisão conceitual e nuances da pesquisa-intervenção no Brasil. Revista EPOS, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 156-181, jan./jun. de 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2014000100009&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 12 out. 2017.
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). No estudo que originou este artigo, buscou-se pensar a recepção estética como algo que mobiliza estética e politicamente os sujeitos, seus lugares sociais e suas relações; a experiência das mulheres participantes em conformidade com os preceitos da Reforma Psiquiátrica, pensando a construção da arte como um patrimônio e direito coletivo, embora ela tenha um lugar instituído e um estabelecimento de localização, o museu.

Em todo o percurso do estudo que originou este texto, foram escritos diários de campo pela pesquisadora, em que foram descritos pensamentos, falas das participantes e sua percepção sobre o processo. Nesse sentido, a pesquisadora também falava como participante da pesquisa, uma vez que estava inserida nela (nas visitas, nas entrevistas). Para que esse instrumento não se torne uma produção intimista, é preciso conectá-lo ao fora-texto, conceito desenvolvido pelo sociólogo René Lourau para salientar a conexão do diário (cujas notas de rodapé, observações e detalhes tornam-se tão importantes quanto aquilo que está no corpo do texto) com o que é publicado; dessa maneira, o que também fica evidente são as linhas instituintes da produção do saber (PASSOS; BARROS, 2009PASSOS, Eduardo; BARROS, Regina Benevides de. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virginia; ESCÓSSIA, Liliana da (Org). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2009. p. 17-31.; ROSSI; PASSOS, 2014ROSSI, André; PASSOS, Eduardo. Análise Institucional: revisão conceitual e nuances da pesquisa-intervenção no Brasil. Revista EPOS, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 156-181, jan./jun. de 2014. Disponível em: Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2178-700X2014000100009&lng=pt&nrm=iso . Acesso em: 12 out. 2017.
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). Os diários eram escritos logo após as visitas; a primeira parte descrevia a situação ocorrida, e a segunda parte se destinava à percepção subjetiva sobre os encontros com as participantes.

Para este artigo, foi selecionada uma usuária do NAPS I que afirma não possuir contato e familiaridade com as artes. Vanusa, pinta e borda panos de prato toda semana, e vê nessa atividade um momento de lazer e prazer. Esta usuária-participante já estava inserida em atividades da universidade e houve, antes do convite à sua participação na pesquisa, um período de convivência e aproximação com a pesquisadora.

Esta aproximação se deu pela inserção prévia da pesquisadora no NAPS I, por meio de uma disciplina da faculdade onde outros(as) estudantes eram propositores(as) de oficinas. Vanusa participou dessa atividade.

Foram aplicados o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o Termo de Cessão de Imagem. Essa pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal de São Paulo (n° 53904516.8.0000.5505). A primeira etapa do projeto foi realizada na própria universidade, com o objetivo de produzir uma narrativa de história de vida da usuária e aproximá-la da pesquisadora, estreitando vínculos. A participante foi recepcionada para realizar uma entrevista onde pôde destacar alguns episódios marcantes de sua vida e que, de algum modo, explicitavam suas experiências (ou não) no contato com as artes e exposições artísticas.

Possuir o conhecimento sobre uma variedade de vivências da usuária permitiu também se aproximar de suas visões de mundo, buscando compreender possíveis referências que dialogassem com “o mundo das artes”; em outras palavras, compreender um pouco como são construídos o significado e a interpretação de uma obra, ou mesmo de algum acontecimento e experiência, com base no repertório e experiências assinaladas pela participante da pesquisa.

Já na segunda etapa houve o levantamento de exposições em cartaz na cidade de Santos. Algumas exposições de curta temporada foram descartadas, pois não correspondiam à disponibilidade de encontro entre pesquisadora e participantes. Posteriormente as demais opções foram analisadas por Vanusa, para que ela pudesse manifestar suas preferências e escolher o local para visitação. Assim feito, a pesquisadora acompanhava a participante e depois conversava a respeito da visitação, para em seguida produzir os diários de campo.

O relato da experiência de visita à exposição, articulado com os comentários e aspectos trazidos nas entrevistas, resultou em uma narrativa produzida pela pesquisadora e apresentada à participante com o intuito de saber se ela visualizava nesse relato a sua vivência. Assim a narrativa foi validada. Para a análise final dos dados foram produzidos analisadores.

Discussão

Compôs a análise dos dados da pesquisa a visita a duas exposições em companhia de Vanusa, uma senhora residente na periferia da cidade de Santos, na Zona Noroeste, que mora sozinha e já é frequentadora de um grupo de mulheres promovido pela universidade. Ela tem 63 anos de idade, estudou até o 4° ano primário (atual ensino fundamental), mas aos 46 anos participou do projeto Educação de Jovens e Adultos (EJA), realizando apenas o 1° ano do ensino médio. Possui baixa renda e recebe o Benefício de Prestação Continuada (BPC) previsto pela Lei Orgânica Assistência Social (LOAS). A primeira visista foi ao SESC Santos, para ver a exposição “Gênesis”, com fotografias de Sebastião Salgado e a curadoria de Lélia Wanick Salgado, no período entre janeiro e abril de 2016; a segunda visita foi ao museu de Arte Sacra de Santos, realizada em setembro de 2016. A primeira foi promovida por uma atividade da universidade, que levou um grupo de mulheres à exposição, dentre as quais se encontrava Vanusa. Já a segunda foi uma ação da referida pesquisa.

O NAPS, serviço de saúde voltado para usuários com transtornos mentais graves e persistentes, acolhe sujeitos que, em sua maioria, estão inseridos em contextos de alta vulnerabilidade social, cujas histórias integram elevado grau de pobreza, violência, falta de suporte familiar e dificuldade de inserção social.

A pesquisadora já tinha experiência prévia em museus e exposições de arte em espaços instituídos, portanto apresentava um repertório distinto do de Vanusa. Visitou os locais de exposição antes da ida junto à participante, para verificar localidade e facilidade de deslocamento até esses locais, o que a deixava mais familiarizada com o espaço de arte. Os principais analisadores produzidos durante a pesquisa foram: “A quem serve a arte do museu?” e “Recepção estética: uma experiência singular”.

A quem serve a arte do museu? O caso brasileiro

Como descrito anteriormente, é após a queda do museu como espaço do clero e da nobreza que se abre espaço para o público e para a exposição da subjetividade do artista nessa instituição. Como expõe Valverde (2020VALVERDE, Rodrigo Ramos Felippe. A heterotopia dos museus brasileiros e os deslocamentos da Modernidade. PatryTer - Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, São Paulo, v. 3, n. 5, p. 14-29, 2020. https://doi.org/10.26512/patryter.v3i5.27267
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), dentre as várias possibilidades de inscrição subjetiva, o museu passa a ser palco de movimentos de autoarfimação. O artista Hélio Oiticica, por exemplo, colocou por meio de suas obras, uma visão autoral sobre arte que se chocava com políticas públicas culturais brasileiras. Sua arte ia em direção ao alcance do museu, expandindo-a ao público, apostando na interação com espectadores, e não havia um determinado sentido ao produto da arte, pois ele resultava da interação entre ela e os sujeitos, contrapondo-se a uma tradição.

Depositário e produtor das diferentes subjetividades, grupos e conceitos em torno da arte, no Brasil o espaço do museu tem sido apropriado por diferentes manifestações e interesses de sentido político; não que em algum momento estivesse dissociado da política, mas dessa vez o museu se torna alvo direto das instituições de poder político e jurídico. Valverde (2020VALVERDE, Rodrigo Ramos Felippe. A heterotopia dos museus brasileiros e os deslocamentos da Modernidade. PatryTer - Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, São Paulo, v. 3, n. 5, p. 14-29, 2020. https://doi.org/10.26512/patryter.v3i5.27267
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) relembra a discussão instaurada sobre a exposição “Queermuseu - cartografias da diferença na arte brasileira”, de 2017, cuja exibição foi barrada após intervenção de grupos conservadores. Tal movimentação promoveu a retirada da mostra no espaço Santander Cultural, e, quando exibida (por meio de financiamento de grupos que se chocavam com as ideias impostas), muitos dos espectadores se interessaram pela polêmica discursiva que rondava a exposição, e não pelas obras em si:

[...] do ponto de vista da política cultural, o efeito é que seus espaços tenham passado por um processo de rupturas de sua legitimação pública, fechamentos, redução de funcionamento, suspensão de exposições, quebras de reputação. Tudo isso partiu em primeiro plano de um limite de imposição da força conservadora, dissociada da lógica da arte ou do campo da cultura como um todo, para alcançar os efeitos concretos em uma instituição que é política (VALVERDE, 2020VALVERDE, Rodrigo Ramos Felippe. A heterotopia dos museus brasileiros e os deslocamentos da Modernidade. PatryTer - Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, São Paulo, v. 3, n. 5, p. 14-29, 2020. https://doi.org/10.26512/patryter.v3i5.27267
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, p. 24).

La Bête, performance também citada, feita for Wagner Schwartz - e que foi alvo de ação por parte do Movimento Brasil Livre (MBL), que acusava a perfomance de pedofilia ao permitir manipulação do corpo do artista por uma criança -, mostra o quanto essa diversidade de possibilidades em torno da arte, do artista e dos espectadores passou a ser questionada em nome de uma moralidade e religiosidade.

O museu, especificamente no Brasil, encontrando pouco orçamento para sua fomentação e sendo alvo de julgamentos variados, que muitas vezes o reconhecem como espaço imoral, desinteressante, elitista, imperialista, racista, perde sua possibilidade de ser vanguardista, à medida que tal instabilidade política e econômica ameaça a sua existência. As instituições menos tradicionais têm mais dificuldade em se manter, a exemplo do Museu Afro Brasil; já as instituições mais tradicionais fazem apelo ao discurso contra o desmonte de políticas culturais e apostam mais em contemplação de obras do que em interação com o público. De acordo com essa visão, “o museu precisaria ser espaço de maior previsibilidade para sobreviver” (VALVERDE, 2020VALVERDE, Rodrigo Ramos Felippe. A heterotopia dos museus brasileiros e os deslocamentos da Modernidade. PatryTer - Revista Latinoamericana e Caribenha de Geografia e Humanidades, São Paulo, v. 3, n. 5, p. 14-29, 2020. https://doi.org/10.26512/patryter.v3i5.27267
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, p. 27), sob o risco de ser alvo de manifestação, censura, boicote.

Recepção estética: uma experiência singular

Analisando-se a experiência de visitar duas exposições de arte com Vanusa, confirma-se que a recepção está permeada por uma dimensão social, seja ela referente ao código artístico da mostra ou do contexto social do sujeito, como afirma Jauss. Para ele os dois pontos essenciais que estão em torno do leitor seriam o horizonte de expectativas, que condensa códigos sociais e culturais da vivência do sujeito, e a emancipação, que é a capacidade da leitura de provocar um novo olhar para sua vida, abrir possibilidades de mudança de percepções. Apesar da experiência dessa pesquisa não ser a leitura de um livro, acredita-se que o ato de ler não necessariamente está restrito à leitura de palavras, mas antes a uma leitura comum a todos, a leitura do mundo em que se está inserido e sua interpretação. Ler palavras é ler signos, assim como ler imagens e sons (SILVEIRA; MOURA, 2007SILVEIRA, Fabrício José Nascimento da; MOURA, Maria Aparecida. A estética da recepção e as práticas de leitura do bibliotecário-indexador. Perspectivas em Ciência da Informação [online], v. 12, n. 1, p. 123-135, jan./abr. 2007. https://doi.org/10.1590/S1413-99362007000100010
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).

As fotografias de “Gênesis” mostram locais que não foram modificados pelo homem, onde a natureza permanece tal como em suas origens. “Lélia e Sebastião esperam que nos sensibilizemos para a questão da sustentabilidade ecológica, mobilizando nossos saberes e recursos para transformar o planeta. [...] A ‘missão pedagógica’ de seu autor [Sebastião Salgado]: testemunhar a presença da vida em lugares onde o ser humano ainda não se instalou ou em comunidades que se organizam em torno de atos para manter sua sobrevivência mais simples na terra em que vivem [...]” (MAXIMINO, 2014MAXIMINO, Silvio Motta. Exposição Genesis: Sebastião Salgado. 15 de novembro de 2014. Disponível em: Disponível em: https://oficina-de-filosofia.blogspot.com/2014/11/exposicao-genesis-sebastiao-salgado.html?m=0 . Acesso em: 27 nov. 2017.
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).

As fotografias foram organizadas e enquadradas como paisagens, no estilo feito por artistas modernos do século XIX e XX. A sua disposição no espaço busca transmitir a noção de narrativas e de passagem do tempo. A cenografia é dramatizada, com variação das cores das paredes, que eram cinco: cinza escuro, verde, vermelho, cinza claro e cinza azulado, que correspondem respectivamente aos núcleos Terras do Norte, Amazônia e Pantanal, África, Planeta Sul e Santuários.

Como exposto anteriormente, Vanusa não é frequentadora de exposições de arte. A primeira exposição a que teve acesso foi “Gênesis”, embora levar usuários do NAPS a espaços culturais como museus seja uma prática que já acontece na modalidade clínica do Acompanhamento Terapêutico, surgida após a Reforma Psiquiátrica.

Tanto na visita ao Museu de Arte Sacra quanto na visita à exposição “Gênesis”, Vanusa foi recepcionada por monitores, o que pode ter ampliado a sua vivência, fazendo com que se sentisse aparentemente à vontade, tirando algumas dúvidas. Durante a visita, ela falou a respeito de memórias de sua mãe. Durante toda a deambulação pela exposição esteve acompanhada por uma aluna da universidade e também pela pesquisadora. O grupo de mulheres, com o qual chegou ao local, se dispersou, e as mulheres seguiram caminhos diferentes pela mostra.

A primeira reação de Vanusa foi de extrema atenção ao olhar as obras e, de modo geral, seus comentários a respeito da exposição giraram em torno de suas experiências diárias. Ela diz, por exemplo, que a tartaruga da Figura 1 lhe causaria muitas despesas, talvez mais do que ela mesma. Nas diversas vezes em que a visitou, salientou suas preocupações econômicas e relatou suas estratégias para não comer todos os dias apenas arroz com feijão: “Contou-me que gastou muito esse mês com remédios, 150 reais. Devido a isso passou bastante sufoco e dificuldade financeira, não podendo se dar ao luxo de comprar carne e pão” (diário da pesquisadora).

Figura 1

A respeito de seu horizonte de expectativas, Vanusa diz que não tinha parado para pensar na exposição antes de entrar no SESC. Na verdade, acreditava que o SESC era um colégio e pensou que realizaria alguma atividade semelhante àquelas que acontecem na reunião do grupo de mulheres. Quando começou a olhar as obras, achou que eram “muito bonitas”. Os adjetivos para descrever a exposição foram “importante” e “legal”, porém não soube dizer o que considerava importante nela. Não tinha nenhuma informação prévia sobre o artista e fez perguntas aos educadores (questionou o porquê de as fotografias estarem em preto e branco), e trocava comentários com os alunos da universidade e com suas colegas.

Já o horizonte de expectativas da obra “pode ser vislumbrado quando se considera aquilo que ele está esperando do público, ele prevê um sistema de expectativas psicológicas, culturais e históricas por parte do receptor” (ROSSETO, 2010ROSSETO, Robson. A Estética da Recepção: o horizonte de expectativas para a formação do aluno espectador. In: ENCONTRO DO GRUPO DE PESQUISA ARTE, EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO CONTINUADA, 1, 2010, Faculdade de Artes do Paraná. Anais... Paraná, 2010. p. 1-11., p. 5). No caso de “Gênesis”, vê-se que a intenção de seu produtor é sensibilizar os visitantes sobre as riquezas que a natureza ainda preserva, longe das modificações por mãos humanas, esperando que eles sejam tocados pela beleza das fotografias, conscientizados, e partir daí modifiquem sua postura frente ao mundo. Pressupõe um espectador capaz de se engajar na luta da preservação do planeta, mesmo que através da sensibilização e do pensamento, refletindo que, a despeito de o seu cotidiano se dar com elementos da vida moderna, tais paisagens, trazidas pela exposição, mostram também o mundo no qual habitam.

Outra experiência com Vanusa foi a ida ao Museu de Arte Sacra de Santos, que foi inaugurado em 1981 e está localizado no Mosteiro São Bento, que desde 1725 mantém sua forma atual. Junto à sua entrada está a capela Nossa Senhora do Desterro, construída em 1640. De acordo com o site oficial da instituição, o museu possui um acervo de 600 peças. O acervo contém esculturas de barro de artistas conhecidos, como Benedito Calixto. As construções do período colonial eram brancas, pintadas com cal, transmitindo uma sensação de higiene e limpeza. Por isso o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) decretou que a cor do edifício e das paredes fosse mantida; o resultado é uma cenografia de paredes brancas, porém não com a mesma ideologia exposta acima, o que talvez não altere a recepção estética, que se daria através da formalidade e racionalidade. De acordo com uma educadora, não existe um curador que idealiza a exposição; ela é pensada em conjunto com todos os monitores e museólogos.

Vanusa fez sua primeira visita ao Museu de Arte Sacra de Santos através desse projeto. Relata que, ao subir as escadas que levam ao museu, sentiu como “se estivesse no céu”. Sentiu-se muito comovida logo na chegada, quando entrou na capela, pois aquela experiência atingiu diretamente sua crença religiosa e sua fé. Fez uma oração pedindo iluminação para professores e alunos universitários com quem possui contato. Antes de chegar, esperava ver muitas imagens de santos e de Jesus, mas se surpreendeu com a existência da capela ao lado do museu. Nesse dia falou muito sobre sua mãe, lembrando dela em diversos momentos.

Durante a visita, Vanusa conversava muito com o monitor do museu, e ficou deslumbrada com a “Sala Mariana” onde há diversas representações de Maria. Ao ver as representações de Nossa Senhora do Rosário, lembrou do tempo em que trabalhava e passava todos os dias na Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Santos. A arquitetura do local guiou a deambulação, é como se houvesse um corredor ou somente uma porta à vista do visitante.

Conclusão

Quando se estuda a recepção estética de sujeitos em uma exposição no museu, é imprescindível que se considere a maneira como sua organização interfere na interação com o espectador, pois ela tem sempre um objetivo a ser alcançado. Através de textos, recursos cenográficos, folhetos e escolha das obras, a exposição expressa sua intenção. No caso da exposição que possui a cenografia de paredes brancas, a recepção é estimulada por meio da leitura formal da obra; esta última é o centro da exposição, sem outras interferências. Já na exposição de cenografia dramatizada há utilização de cores diversas, luzes, sons e outros ornamentos com o intuito de agir imediatamente na emoção do espectador. Assim ele se torna quase um ator, sendo instigado a interagir com ela e experienciá-la através de outros sentidos, ultrapassando a contemplação, como acontece também com a instalação (GONÇALVES, 2004GONÇALVES, Lisbeth Ruth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2004.).

Figura 2

No entanto, tomando essas visitas como material de análise preliminar desta pesquisa, podemos dizer que os diferentes públicos vivenciarão o processo de recepção em consonância com as suas experiências anteriores, seu repertório e contexto social. Esse conjunto de fatores desenhará um horizonte de expectativas, que pertence a um grupo social, e também contribuirá para os efeitos que a obra causa em cada uma das pessoas a partir da leitura que dela se faça.

Portanto, o encontro com os espaços instituídos da arte pode, em alguns casos, solicitar o resgate de recursos que possibilitam a tradução dos códigos artísticos. Talvez o contato com a história e a crítica da arte seja importante; a compreensão e o manejo dessa maneira própria da estética de se apresentar e desconstruir paradigmas são facilitados pela educação e acesso a instrumentos que instigam a manipulação desse saber (GONÇALVES, 2004GONÇALVES, Lisbeth Ruth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2004.; ZOLBERGUE, 2015ZOLBERG, Vera L. Barreira ou nivelador? O caso do museu de arte. In: LAMONT, Michèle; FOURNIER, Marcel (Org.). Cultivando diferenças: fronteiras simbólicas e a formação da desigualdade. Tradução de Renata Lucia Bottini. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2015. p. 255-282.), o que não garante que a recepção das obras coincida com a intenção do artista; tampouco podemos afirmar que existe uma “forma única e verdadeira” para desfrutar da experiência de ida a uma exposição artística. Mesmo diante de uma cenografia dramatizada, em que se busca capturar a percepção do visitante em direção à intenção da exposição, o espectador dá um significado para a arte e é afetado por ela de modo ativo e singular.

Vanusa não foi privilegiada no âmbito da educação escolar, e o mesmo ocorre com a sua frequência a exposições de arte. Em relação às suas associações sobre a exposição “Gênesis”, observamos que dizem respeito ao seu cotidiano, com questões relacionadas ao seu dia a dia e aos desafios pautados em suas experiências. Já no Museu de Arte Sacra ela mostrou-se mais confortável e integrada ao ambiente - talvez por ser católica a visita atingiu diretamente a sua devoção, aumentando o seu envolvimento. Relacionou os quadros e esculturas com episódios vividos por ela e seus familiares. Nesse dia, falou muito sobre sua mãe, mostrando-se emocionada. Neste caso, a recepção estética da usuária se relacionou, sim, com as problemáticas de sua vida e cotidiano, mas principalmente provocou efeitos nas dimensões emocional e espiritual. Neste caso, consideramos que foi maior o engajamento na proposta. Podemos dizer que existem múltiplos modos de afetação produzidos nas exposições de arte e de quem delas se aproxima; a experiência de visitas a museus ou a locais de pouco acesso a determinadas populações se configurou como possibilidade de ampliação de mundo, momentos que podem produzir novas sensações, reflexões e trocas provocadas pela linguagem artística, aspectos importantes no exercício de cidadania, tão necessário nos dias atuais - e sempre.

Referências

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  • *
    Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Processo 2015/18498-0.
  • 3
    Os dados completos dos autores encontram-se ao final do artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2017
  • Revisado
    05 Abr 2020
  • Revisado
    07 Abr 2022
  • Aceito
    02 Jun 2022
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