Acessibilidade / Reportar erro

Vazios do Trabalho

The emptiness of work

Vacíos de lo trabajo

Resumo

Este artigo tem como tema os sentidos do trabalho e o lugar da psicologia em um órgão público voltado para a qualificação profissional e a geração de emprego e renda. A escrita de narrativas do cotidiano de trabalho operou a função de abrir questões sobre a (im)possibilidade do fazer psicologia em um lugar repleto de contradições sobre os sentidos do que ali deveria ser o próprio trabalho. Por meio da criação de um personagem denominado “alguém”, buscou-se tocar em um problema que não tem contorno nítido e que só poderia ser definido, segundo Kastrup e Passos, como uma atmosfera, um ‘felt-meaning’. A invenção de alguém é o artifício para a experimentação de vidas que não se limitam àquela vivida em primeira pessoa pelas pesquisadoras, permitindo a passagem por um lugar impessoal, lugar tão indeterminado quanto alguém, que possibilita pensar sobre o que não está oculto, mas tampouco é visível. O vazio de sentido vivenciado no cotidiano de trabalho se abre em imagens/cenas que, narradas na forma escrita, transformam o vazio em experiência.

Palavras-chave:
sentidos do trabalho; experiência; felt-meaning

Abstract

This article is a research report developed in the Master’s Degree in Social and Institutional Psychology and its theme is the ramifications of the emptiness on a path through the world of work. The writing of narratives of the daily work operated to open questions about the (im)possibility of doing psychology in a place full of contradictions about the meaning of what the work itself should be there. Through the creation of a character, someone, it seeks to touch on a topic that has no definite boundary, it is more about of an atmosphere, a felt-meaning. The invention of someone is the artifice for the experimentation of lives that are not limited to that lived in the first person by the researcher, allowing the passage through an impersonal place, a place as indeterminate as someone, that makes it possible to think about things that are not hidden, but neither are they visible. The emptiness of meaning experienced in the daily work opens in images/scenes that, when recounted in the written form, transform the emptiness into experience.

Keywords:
meanings of work; experience; felt-meaning

Resumen

Este artículo es un relato de la investigación desarrollada en el Máster en Psicología Social y Institucional y tiene como tema las ramificaciones del vacío en un camino por el mundo del trabajo. La escritura de las narraciones del trabajo cotidiano operó para abrir interrogantes sobre la (im)posibilidad de hacer psicología en un lugar lleno de contradicciones sobre el significado de lo que debería ser el propio trabajo allí. A través de la creación de un personaje, alguien, se ha buscado tocar un problema que no tiene un contorno definido, es más una atmósfera, un felt-meaning. La invención de alguien es el artificio para la experimentación de vidas que no se limitan a la vivida en primera persona por la investigadora, permitiendo el passo por un lugar impersonal, un lugar tan indeterminado como alguien, que posibilita pensar en cosas que no están ocultas, sino tampoco son visibles. El vacío de sentido vivido en el trabajo diario se abre en imágenes/escenas que, narradas de forma escrita, transforman el vacío en experiencia.

Palabras clave:
sentidos del trabajo; experiencia; felt-meaning

Apresentação

A pesquisa a que este artigo se reporta parte do estranhamento produzido na chegada a um novo local de trabalho. O ingresso em um órgão público voltado para a qualificação profissional e a geração de emprego e renda produziu um incômodo que parecia um descompasso de começo. No entanto, a constatação paradoxal de que ali não havia trabalho foi determinante para a abertura de um espaço para pensar sobre o que ocorria naquele lugar.

Escrever foi a estratégia encontrada para fazer rastros e acompanhar a construção de modos de não fazer. Durante o percurso de pesquisa, a escrita não foi somente o contorno, ainda que provisório, da experiência, mas a condição de possibilidade da mesma. Para que o tema da investigação não ficasse reduzido ao limite de vivências pessoais, inventamos um personagem chamado alguém. Ele é quem nos leva, por meio do ensaio, presente em seus gestos e na maneira de escrever, ao contato com o vazio.

A criação de alguém é também a de um corpo, que se faz com palavras, capaz de atravessar um percurso aparentemente vazio e transformá-lo em experiência. Para realizar essa operação, alguém escreve, não como quem registra um procedimento em prontuário ou faz um despacho em um processo, mas fazendo notas, especialmente daquilo que não entende. Encontramos em Preciosa (2010PRECIOSA, Rosane. Rumores discretos da subjetividade: sujeito e escritura em processo. Porto Alegre: Sulina: UFRGS, 2010., p. 19) um traço de nosso personagem: “um alguém constelado de sensações quase lâmina, que lhe fustigam a alma e o forçam a ir anotando em páginas dispersas relevos existenciais se produzindo”.

No entanto, fazer notas não torna alguém especial. Alguém é só um sujeito que não sabe o que faz com o mundo. Cabe-lhe escrever como uma forma de tocar as forças que entram em jogo nas situações. É como se alguém recolhesse do chão alguns restos, coisas ditas, mas fora dos espaços oficiais. Alguém escreve porque não compreende o que se passa e, através da escrita, vai buscando acesso a um texto que lhe soa vazio.

Alguém pode ser qualquer um, mas não todo mundo. Qualquer um que apresenta sua singularidade, que se opõe aos universais, que se recusa a ficar a serviço das regras do senso comum. Na gramática brasileira, alguém é um pronome indefinido, usado para referir-se à terceira pessoa do discurso, de modo vago e impreciso.1 1 Para diferenciar o alguém como personagem do alguém como pronome indefinido, optou-se por uma fonte em itálico para se referir ao personagem. Alguém não será escrito com letra maiúscula, como em um nome próprio, exceto no início de frases, porque alguém não é um nome próprio. Nesta escrita, alguém é o personagem que dará corpo a qualquer um que se disponha a percorrer uma trajetória, com a determinada vontade de não ficar a vida inteira espremido num canto escuro de repartição. Um ser destoante, desconfiado das metas e dos caminhos inventados para atingi-las. De certa forma, alguém encarna traços dos vaga-lumes referidos por Didi-Huberman (2011DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011., p. 14) neste trecho: “A vida dos vaga-lumes parecerá estranha e inquietante, como se fosse feita de matéria sobrevivente - luminescente, mas pálida e fraca, muitas vezes esverdeada - dos fantasmas.” Quase desaparecendo. Para sobreviver, alguém escreve. Sua versão dos fatos não têm ressonância com as visões gloriosas que os políticos fazem de si mesmos e de seus seguidores. Alguém se interessa em contar “pequenas histórias na grande história” (HUBERMAN, 2011, p. 17).


Anotação fotográfica 1

A criação de alguém é o artifício para habitar o impessoal, um lugar tão indeterminado quanto alguém, que possibilita pensar sobre coisas que não estão ocultas, mas tampouco são visíveis. O lugar, aqui, não diz respeito ao espaço, mas à posição de onde parte a necessidade de pensar e ensaiar modos menores2 2 Menor, aqui, no sentido conceitual criado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (2014), que será apresentado neste artigo. de fazer. Para sustentar este processo, alguém escreve cenas do cotidiano de trabalho como possibilidade de viver e transformar o vazio.

Entre

A vaga que alguém ocuparia estava determinada antes de sua chegada, da história que trazia, de um desejo qualquer que pudesse existir. Dentre tantas possibilidades, caiu ali. Foi como um lance de dados. Disseram que trabalharia no quinto andar do prédio em que estava e poderia se apresentar ao setor de recursos humanos assim que a entrevista terminasse. Alguém desceu pela escada. No quinto andar, estava escuro. Havia um corredor largo. De um lado havia janelas voltadas para dentro do prédio, de outro, uma parede feita de material de repartição que imitava madeira. Viu uma porta e decidiu olhar. Uma garota estava sentada à mesa da recepção e lia um texto fotocopiado. Demorou até notar sua presença. Quando alguém conseguiu a sua atenção, disse a ela que trabalharia ali, que estava encaminhando documentos para a posse. A garota da recepção sorriu, e logo voltou à leitura. Alguém foi embora.

Alguns dias depois, com os documentos e os exames prontos, alguém apresentou-se novamente no setor de recursos humanos. O rapaz que o atendeu olhou a papelada e, em seguida, retirou-se da sala. Esperava em pé. Havia outras pessoas, todas em silêncio. O rapaz voltou acompanhado de uma mulher com um cargo no gabinete. Ela afirmava não ter sido informada sobre a convocação de alguém para trabalhar ali. Alguém contou que falara com uma garota na recepção, o que parecia não ser relevante. Ao se dirigir à porta, notou um cartaz colado de forma que as pessoas pudessem ler a partir de dentro da sala: “Favor manter a porta fechada”.

Nos serviços de saúde em que alguém já havia trabalhado, a rotina se desenrolava num ritmo frenético, convocada pela demanda de pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas. Um cotidiano de trabalho pautado pela urgência, por atendimentos em situação de crise, por decisões que precisavam ser tomadas em equipe. Os princípios e diretrizes da política pública do Sistema Único de Saúde (SUS) estavam presentes nos fluxos das ações ofertadas no serviço e faziam parte da escuta, da atenção, dos gestos, do ritmo de trabalho de alguém. Foi com essas marcas e a partir desse contexto que se estabeleceu o contato com um novo território.

Quando alguém chegou, não tinha lugar nem trabalho. Sem pouso, andava pelas salas tentando se apresentar e conhecer os colegas. As pessoas conversavam sobre assuntos variados, havia café e mate, mas estava difícil entender que tipo de serviço era prestado à população. A organização do trabalho parecia pautada pela visão de mundo de cada servidor. A experiência era de desaceleração. Estava em um órgão público cujo objeto é o trabalho e o emprego, mas ali parecia não haver trabalho.

A ausência de demanda soava estranha. Lembrava frequentemente dos personagens de Kafka, em especial do agrimensor K., em O castelo (2000KAFKA, Franz. O castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.).3 3 Agrimensor é um profissional que tem por incumbência medir territórios e delimitar fronteiras. K. foi chamado pelo conde do castelo e tenta de todos os modos reivindicar seu direito de exercer sua profissão e permanecer na aldeia. Na tentativa de alcançar o castelo, seu caminho é atravessado por burocratas que o jogam de um lado para outro, com argumentos que evidenciam o absurdo engendrado nessas relações. Um movimento de K. em sua trajetória é procurar o prefeito a fim de ter instruções mais precisas sobre o início de seu trabalho. O prefeito diz que vai, então, contar a K. toda a desagradável verdade:

[...] O senhor foi aceito como agrimensor, como diz, mas infelizmente nós não precisamos de agrimensor. Não haveria o menor trabalho para um, aqui. As fronteiras das nossas propriedades agrícolas estão traçadas, está tudo registrado e em ordem, trocas de títulos quase não ocorrem e os pequenos litígios de fronteira nós mesmos resolvemos. Portanto, por que teríamos necessidade de um agrimensor? (KAFKA, 2000KAFKA, Franz. O castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 94)

O que parecia um descompasso de começo tornou-se um modo de existência. Alguém, que havia sido chamado para ocupar o cargo de psicólogo, adentrava em um campo de saberes e poderes diferentes do que encontrava no SUS. Administradores e advogados operavam sistemas de dados e processos administrativos. Pareciam tranquilos, bem aproveitados no exercício da função para a qual foram chamados. No desenho organizacional feito para a lei de criação de tal órgão público, estava previsto o trabalho de três psicólogos e um assistente social, mas a demanda para estes profissionais era uma incógnita.

Nos serviços do SUS em que esteve, mesmo com dificuldades, havia muito trabalho e envolvimento em lutas coletivas por transformações. Neste novo campo, a perplexidade de alguém era a de que um órgão público que fora criado para planejar e executar ações relacionadas ao trabalho e ao emprego, paradoxalmente, não conseguia implicar-se em uma forma de produzir o seu próprio trabalho.

Anotações sobre o método e o vazio como problema

A seguir, o leitor poderá acompanhar os princípios metodológicos que serviram como diretrizes da pesquisa e onde buscamos situar alguém como pesquisador.

A escrita tem a função de tatear um problema, ou um campo problemático, que não tem um contorno definido, que escapa. Alguém é convocado a investigar a partir de uma sensação. Trata-se mais de uma atmosfera, que alguém busca atualizar narrando cenas de suas tentativas de trabalhar, do que de uma pergunta. O que impulsiona a seguir é apostar que fazer um recorte no vazio pode produzir algum rastro que sirva como testemunho de um percurso.

Na leitura feita por Walter Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1. Obras escolhidas.), entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, narrar tornou-se uma arte em vias de extinção. O contexto não é o mesmo do entre guerras, mas se atualizam as condições mortíferas em que a conservação parece ser o objetivo mais importante. O silenciamento se firma como estratégia de sobrevivência. A escrita das cenas vivenciadas por alguém busca ensaiar uma tentativa de manter viva a prática de transmissão por meio de narrativas. Larrosa (2004LARROSA, Jorge. A Operação Ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educação e Realidade [online], v. 29, n. 1, p. 27-43, 2004. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/25417 . Acesso em: 22 jul. 2022.
https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade...
, p. 32) situou o ensaio como “uma atitude existencial, um modo de lidar com a realidade, uma maneira de habitar o mundo, mais do que um gênero de escrita”. Na pesquisa, a tentativa de narrar foi a maneira pela qual buscamos engendrar um plano de experiência. Simultaneamente, ensaiar foi a atitude para tornar esta experiência um modo de relacionar-se, que tentou fazer-se a si mesmo e fazer o mundo.

Engendrar um plano de experiência significa trazer “algo maior que as pequenas experiências individuais particulares, maior que a simples existência individual” (GAGNEBIN, 2009GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34 , 2009., p. 50) para ser compartilhado. Existe o vivido e existe a versão do vivido, que é a experiência. A vivência é solitária, particular, individual, enquanto a experiência é a transformação do que foi vivido quando se conta a outros. Alguém aposta na virtual metamorfose contida nesta operação.

O vazio de sentido vivido no trabalho se lança, através da escrita, em um jogo para criar um território onde se possa torná-lo experiência. As linhas que esboçam uma cena de entrada têm a intenção de produzir uma abertura para esta experiência, sinalizando um movimento contrário à prescrição “favor manter a porta fechada”, colada na forma de cartaz à porta.

Parte-se de uma sensação que, até aquele momento, era possível nomear como vazio. Kastrup e Passos (2013KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 263-280, 2013. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
https://doi.org/10.1590/S1984-0292201300...
) utilizam a expressão felt-meaning para falar de uma dimensão do problema de pesquisa que vai além do reconhecimento das formas, mas remete aos ritmos, atmosferas, velocidades e intensidades que configuram a dinâmica das formas. Sem tradução exata para o português, o felt-meaning equivale a um “sentido intuído”. “Trata-se de um entendimento corporal e que é capaz de produzir transformações” (KASTRUP; PASSOS, 2013KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 263-280, 2013. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
https://doi.org/10.1590/S1984-0292201300...
, p. 275). A atmosfera do vazio é o felt-meaning que sustentou o território da pesquisa.

Desdobramentos do vazio

O vazio que se apresenta para alguém, em um primeiro momento, remete ao universo criado por Franz Kafka (2000KAFKA, Franz. O castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.) em sua obra literária. Trata-se de um vazio próximo ao que move o agrimensor K. a tentar entender como poderia ser útil na aldeia do castelo. A entrada do agrimensor é permitida, mas não é necessária. A entrada de alguém a partir do concurso público não lhe garante um lugar.

Nessa entrada, o vazio foi produzido pela perda de referências do campo da saúde. Alguém trazia ferramentas que não tinham utilidade para seu novo contexto, um saber-fazer que parecia, naquele momento, incompatível com a realidade que se apresentava. Por tratar-se de um vazio vivido como falta, alguém passou a tentar preencher o tempo.

A disponibilidade para participar das ações que surgiam nutriu ainda mais a sensação de vazio, pois alguém não tinha ideia do processo a que estavam encadeadas. Entrava em contato com um ambiente pautado por relações político-partidárias. O critério de importância de uma ação era medido pela sua repercussão na mídia, e a avaliação da sua eficácia, proporcional à ostentação de flashes fotográficos divulgados.

É um tempo em que os “conselheiros pérfidos” estão em plena glória luminosa, enquanto os resistentes de todos os tipos, ativos ou “passivos”, se transformam em vaga-lumes fugidios tentando se fazer tão discretos quanto possível, continuando ao mesmo tempo a emitir seus sinais. O universo dantesco, dessa forma, inverteu-se: é o inferno que, a partir de então, é exposto com seus políticos desonestos, superexpostos, gloriosos. Quanto às lucciole, elas tentam escapar como podem à ameaça, à condenação que a partir de então atinge sua existência (DIDI-HUBERMAN, 2011DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011., p. 17)

O vazio passou a estar associado a um trabalho que não fazia sentido para alguém, que preferiu não fazer alianças com os “conselheiros pérfidos”, ocupantes dos postos da mais alta hierarquia daquele lugar. Alguém ansiava para ver a repercussão de seu trabalho em serviços para as pessoas, mas não encontrava meios de produzir tal trabalho.

Alguém percebe o vazio, mas também questiona se o vazio que percebe estaria mesmo vazio. Ao redor, seis salas estavam mobiliadas com mesas tão grandes que poderiam se equiparar a trincheiras. Nelas, os profissionais empilhavam papéis e se protegiam de qualquer perturbação olhando, cada um, a tela do seu computador. No chão, os fios de telefone, de rede, cabos de computadores e impressoras ficavam expostos e se misturavam formando nós empoeirados que frequentemente se enrolavam nas rodas das cadeiras.

Havia uma constante atenção para o perfeito controle do uso do material de escritório que cada um fazia. Pedir um número de memorando ou de ofício na sala do gabinete era considerado um acontecimento importante, independente de sua finalidade. O material de repartição, carimbos, fura-páginas, grampeadores, computadores, teclados, mouses, tudo ganhava um número de patrimônio e precisava ser vigiado, controlado. A retirada de folhas, canetas, lápis, borracha, clipes e outras miudezas era registrada em um caderno à parte, mas igualmente importante para o trabalho da repartição. Alguém compreendia a necessidade dos procedimentos para a preservação do patrimônio público e o bom uso dos materiais, o que estranhava era o fato de que isso parecia ser a atividade fim desse órgão. Como se a manutenção da sua existência consumisse toda a força daqueles que ali trabalhavam.

Para orientar-se sobre o que encontrava em seu cotidiano, alguém buscava pistas. No livro intitulado O que vemos, o que nos olha, Didi-Huberman (1998)DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. chamou a atenção para uma modalidade do visível em que seria preciso fechar os olhos para ver. E, na sequência, revirando essa passagem, propõe: “Abramos os olhos para experimentar o que não vemos” (DIDI-HUBERMAN, 1998DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998., p. 34). Essas operações de sentidos pareciam bastante úteis, pois o espaço que alguém habitava estava cheio, não havia dúvida, e, na situação em que se encontrava, convinha manter os olhos bem abertos para não sucumbir ao sono a que o tédio convidava. Não era, portanto, espacial ou discursivamente que o vazio se fazia sentir.


Anotações fotográficas 2 e 3

Os dias demoravam a passar. Além da ausência de demanda, alguém estranhava o silêncio sobre a política pública que estaria direcionando o trabalho. Sufocava naquelas conversas em que predominava a opinião pessoal de todo mundo, espalhando preconceitos sobre a preguiça do povo. Era preciso respirar, juntar as forças que tinha para construir alguma possibilidade de trabalho, mas como?

O modo como o trabalho não se apresentava era uma das formas de atualização do vazio. Trata-se aqui do vazio como aparece no senso-comum, como falta, ausência de algo, produzido pela sensação de que, a qualquer momento e sem explicação, as condições para o desenvolvimento de uma ação podem desaparecer, já que elas se sustentam somente enquanto rendem publicidade. Uma atmosfera que soa como os modos de existência cartografados por Pelbart (2013PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 Edições, 2013.) para falar do niilismo contemporâneo. O trabalho aparece esvaziado, operado por figuras, funções e cargos que representam a morte do sujeito e de seu mundo, onde tudo flutua na indiferença sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo de mercadorias infinitamente intercambiáveis e substituíveis (PELBART, 2013PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 Edições, 2013., p. 29)

O vazio a que estamos nos referindo aqui não está relacionado somente ao trabalho de alguém em particular. Trata-se de uma marca que atravessa o trabalho de todos, e ganha outras formas: falta de orçamento, falta de informação, falta de trabalhadores, falta de ânimo. No entanto, este vazio que é produtor de angústia é também o que favorece a letargia de muitos.

A armadilha que esse tipo de relação apresenta é semelhante à que o narrador de O castelo descreve a respeito da situação do agrimensor K.

[...] em relação ao tratamento dado aos seus assuntos, haviam adotado claramente - e de uma vez por todas - um princípio que, visto de fora, era muito favorável a ele e por outro lado à coesão admirável dos serviços administrativos, que se pressentia como particularmente perfeita, logo onde ela parecia não existir. Quando às vezes só pensava nisso, K. não ficava longe de achar sua situação satisfatória, muito embora sempre dissesse rapidamente a si mesmo, depois desses acessos de bem-estar, que o perigo estava exatamente aí. A relação direta com as autoridades não era, na verdade, difícil demais, pois as autoridades, por mais bem organizadas que fossem, sempre tinham de defender coisas remotas e invisíveis em nome de senhores remotos e invisíveis, ao passo que K. lutava o mais vivamente possível por coisas próximas, [...] (KAFKA, 2000KAFKA, Franz. O castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 90).

Se não havia trabalho, por que insistir em trabalhar? Por que não fazer qualquer coisa, de qualquer jeito, para “matar o tempo”? Talvez porque alguém percebesse o perigo exatamente nesta acomodação - a tentação do repouso - em considerar a situação satisfatória. O perigo, neste caso, seria cair no nada sem pensamento, na aceitação naturalizada dos procedimentos burocráticos, esta banalidade vazia e sem sentido.


Anotação fotográfica 4

Se o vazio é o felt-meaning que provoca a pensar, foi necessário explorar-lhe outros sentidos, multiplicá-lo, com o objetivo de produzir a “sensação de abertura de um novo campo e um impulso para ir mais longe” (KASTRUP; PASSOS, 2013KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 263-280, 2013. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
https://doi.org/10.1590/S1984-0292201300...
, p. 276). Como se esse vazio pudesse, de certa forma, nos conduzir por uma lógica em que “fosse preciso ir até o limite de um processo para virá-lo do avesso. Ou melhor dizendo, como se só assim revelasse a força do avesso que desde o início ali estava, virtualmente, ‘fazendo pressão’” (PELBART, 2013PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 Edições, 2013. p. 14).

A tentativa de acionar outra experiência do vazio e de alterar o seu valor trouxe à memória o vazio vivido quando alguém fazia aulas de dança. Escutava ecos desse vazio em seu corpo, que apareciam, mas não se deixavam segurar. Estados fugidios, que anunciavam a possibilidade de um outro modo de sentir, de afetar e de ser tocado pelo mundo. Alguém percebeu que seria necessário criar um outro corpo, capaz de atravessar essa experiência.

Como uma referência para reverberar este estado em que o vazio torna-se necessário ao processo de criação, alguém recorreu à pesquisa de José Gil (2005GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. Lisboa: Iluminuras, 2005.) sobre o movimento na dança contemporânea. O filósofo português abre o livro Movimento Total mencionando os exercícios de preparação do corpo que pretendem o esvaziamento da linguagem automática dos gestos cotidianos. A partir da experiência Merce Cunningham, o bailarino deve suspender em seu corpo todo o movimento concreto, a fim de criar o máximo de intensidade de um outro movimento, na origem da mais vasta possibilidade de criação de formas. “Só o silêncio ou o vazio permite a concentração mais extrema de energia, energia não-codificada, preparando-a todavia para escorrer nos fluxos corporais” (GIL, 2005GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. Lisboa: Iluminuras, 2005., p. 16).

Alguém está atento à diferença. Este tipo de preparação para o gesto em dança tira o vazio daquele lugar a ser preenchido para torná-lo um lugar a ser sustentado. O vazio é, neste caso, uma condição para criar, na medida em que absorve todas as espécies de forças a fim de transformá-las, de alterá-las. No lugar de moldar o corpo aos ditames do pensamento, fazer do vazio uma experiência que transforme o pensar. Habitar uma sensação. Sustentar o vazio.

O gesto em jogo na pesquisa foi o de transitar por entre essas experiências de vazio, a que pede uma completude e a que se refere a um estado de atenção a partir do qual se pode criar outros modos de mover e de existir, de afetar e de ser afetado. A escrita encarna este gesto na construção de um percurso que também passa por zonas desconhecidas, as quais se propõe conhecer, mas não com as ferramentas do pensamento racionalista. Na pesquisa, escrever é o gesto que inventa um caminho, que propicia o movimento de pensar com imagens, com pistas que podem fazer surgir um coletivo de forças. Blanchot (2010BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a palavra plural. Trad. Aurélio Guerra Neto .São Paulo: Escuta, 2010., p. 63) nota que “existem aqueles que procuram para encontrar, mesmo sabendo que eles encontrarão quase necessariamente algo diferente daquilo que buscam. Existem outros cuja busca é, precisamente, sem objeto”.

Como seria uma busca sem objeto? Busca-se para não encontrar? Talvez se procure esperando criar, no caminho, aberturas de sentido. Esta é a forma como alguém se coloca no percurso da pesquisa, sem perguntas definitivas nem um alvo a ser alcançado.

Seria essa uma vivência possível de compartilhar? Com quem? De que maneira?

Não há uma documentação sobre o que trata esta pesquisa. No discurso oficial, tudo transcorre na mais perfeita ordem. Seria possível comprovar o cumprimento de metas e indicadores previamente acordados no plano estratégico da localidade. No interior da repartição há muitas pessoas trabalhando, muitos projetos em curso e, principalmente, muitas notícias sobre todo esse trabalho. Trata-se de uma sensação menor, um olhar menor, que não será encontrado nos discursos oficiais, pois não é da ordem do instituído, das formas estabelecidas, que podem ser generalizáveis. Alguém enxerga de um modo diferente.

A qualificação menor segue o caminho aberto por Gilles Deleuze e Félix Guattari no livro Kafka: por uma literatura menor (2014DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.). Menor não quer dizer algo raro ou relativo ao tamanho, mas aquilo que uma minoria faz em uma língua maior. Uma das características desta operação é a desterritorialização do discurso oficial. Outra, o fato de que tudo assume uma posição política. Uma situação individual, como a de alguém, é tanto mais necessária quanto “toda uma outra história se agite nela” (DELEUZE; GUATTARI, 2014DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014., p. 36), ou seja, o quanto ela se conecta com vetores comerciais, econômicos, burocráticos, jurídicos que influenciam nos valores em jogo. A terceira característica é que tudo toma um valor coletivo, pois quem escreve está em um campo de enunciação coletiva, contaminado pelo campo político.

As perguntas ainda ecoavam: seria esta uma vivência possível de compartilhar? Com quem? De que maneira?

A escrita como est(ética) do vazio

O discurso oficial é regido pela lógica da informação, dos dados contábeis, dos registros, dos processos administrativos e judiciais. Alguém era convocado a responder a esse discurso e a escrever relatórios, a cumprir metas. Para pensar aquilo que não aparecia no âmbito da oficialidade, precisava encontrar outro modo de dizer. É por isso que a pesquisa trabalha menos com a informação e faz uma aposta na narrativa escrita como ferramenta metodológica e como gesto capaz de assumir uma ética em que o vazio do trabalho se torne o trabalho do vazio.

Entre a informação e a narrativa há diferenças que Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1. Obras escolhidas., p. 224) qualifica por meio da relação que se estabelece com a temporalidade: “A informação só tem valor no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele”; já a narrativa é diferente: “Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver”.

Para que pudesse atravessar esse percurso sem ser tragado pela máquina burocrática, produtora de vazios que anestesiam a tantos, alguém precisou criar um corpo feito de palavras, capaz de pensar aquilo a que tinha acesso através do que Kastrup e Passos (2013KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 263-280, 2013. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
https://doi.org/10.1590/S1984-0292201300...
) nomearam felt-meaning. A narrativa escrita passou a ser, então, um corpo virtualmente capaz de sustentar o vazio na sua dimensão criativa, ou seja, como possibilidade de enfrentamento de algo muito próximo ao que refere a expressão cunhada por Pelbart (2013PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 Edições, 2013., p. 30), uma “mortificação sobrevivencialista”. Narrar foi a maneira de alguém sobreviver, não como um morto-vivo, mas como um ser que respira em silêncio, sem querer ser notado.

Trata-se de um trabalho subterrâneo, desenvolvido fora do horário de expediente. Um trabalho que, para acontecer, precisou habitar outro território, o da Universidade. Seria impossível colher dados para uma pesquisa com um objeto tão indeterminado como a atmosfera do vazio. Para acessar o vazio, é preciso acessar um outro estado, por isso a necessidade de escrever de um modo que não é exatamente descritivo nem informativo, mas que se aproxima da narrativa.

A despeito da queda de valor da experiência evidenciada por Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1. Obras escolhidas.), alguém pressentia que era preciso fazer do vazio uma experiência. Era preciso fazer, da pobreza de experiência, uma experiência. Torcer o vazio até virá-lo do avesso. Um pequeno traço vaga-lume, que afirma a semiescuridão, que busca as experiências que se transmitem ainda para além de todos os espetáculos, além, como escreveu Didi-Huberman (2011)DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011., do exercício dos reinos e da luz das glórias. Ao declarar, assim como o fez Benjamin, que o valor da experiência caiu de cotação, Didi-Huberman também nos convoca, ao afirmar que “cabe somente a nós, em cada situação particular, erguer essa queda à dignidade, à ‘nova beleza’ de uma coreografia, de uma invenção de formas” (DIDI-HUBERMAN, 2011DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011., p. 127, grifo do autor).

Para Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1. Obras escolhidas.), a experiência não se constitui no momento em que se vive uma cena, mas no momento em que se narra aquilo que foi vivenciado a outro(s). Alguém se sentia perdido, não sabia com quem conversar, por isso escrevia. A narrativa era o meio pelo qual construía sentido com o que só podia sentir. Narrar o que viveu é o que tornou possível apropriar-se do vivido e extrair dele um saber transmissível, compartilhado.

Ainda que fizesse um esforço enorme para produzir sentido sobre aquilo que sentia, alguém procurou distanciar-se da pretensão de iluminar as formas e as forças deste território por meio de uma nomeação clara, que delimitasse fronteiras definitivas. No lugar de narrativas conclusivas, que dariam testemunho de um caminho por fim descoberto, alguém, ao escrever suas pequenas histórias, propunha um acolhimento ao inacabado. Essa condição aberta ao futuro, que pode suportar um plano desconhecido.

Na pesquisa, alguém tem uma função de testemunha, não de uma realidade pronta que estivesse lá para ser conhecida, mais como uma postura, uma atitude de forçar-se a pensar sobre o que sente. O que alguém sente é o que dá testemunho.

Quando alguém testemunha, diz-se que viu, mas não é somente o que pode ser visto que se trata na condição de testemunho. Para além das fotos publicadas nas redes sociais, das metas atingidas, dos processos tramitados, dos relatórios entregues, essa escrita dá testemunho do que se passou naquele lugar.

A sensação de desacelerar transformou-se em inquieta imobilidade. Alguém começava a ter contato com temas pertinentes ao campo da política pública do trabalho e emprego em uma perspectiva coletiva, mais abrangente do que a do plano da opinião. Ainda que de forma teórica, através de leituras, o encontro com termos como pleno emprego, rotatividade, trabalho decente, mercado formal, setores, sindicatos e outros foi construindo um referencial mínimo para esse território. Um mundo inteiramente novo se abria como possibilidade. A inércia, no entanto, continuava.

Alguém perguntava-se em suas anotações: o que é uma intervenção voltada para o trabalho? O que deveria estar sendo feito e não está? Qual é a direção a ser seguida? Mais empregos? Mais pessoas empregadas? Mais qualificação para o mercado de trabalho? Como ajudar? Como trabalhar?

O cotidiano de trabalho de alguém acontecia afastado das pessoas para as quais os serviços deveriam ser prestados. Dessas pessoas tinha apenas notícias, e sabia de alguns movimentos através de pesquisas feitas por institutos de economia e estatística.

Os dias rolavam no calendário. A angústia de alguém era aplacada com comidas nas confraternizações organizadas pelos colegas em razão do aniversário de um ou de outro. Mas alguém ainda se incomodava. Durante o dia, reverberavam as perguntas sublinhadas na leitura feita à noite. “E se, ao nos concentrarmos na simples sobrevivência, mesmo quando é qualificada como ‘uma boa vida’, o que realmente perdemos na vida for a própria vida?” (PELBART, 2013PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 Edições, 2013., p. 28).

Já não era mais possível dizer que ali não havia trabalho. As pessoas trabalhavam, tinham tarefas prescritas. Mas obedecer a um modelo de gestão é um bom trabalho? Quem diz o que é um bom trabalho? Aqueles a quem era concedido o direito de participar do curso de desenvolvimento de competências? O trabalho é bom da perspectiva de quem? Para alguém, o trabalho não se dava nos indicadores nem no cumprimento de metas.

No lugar de perguntar como encontrar um caminho ali, onde não existia caminho, alguém precisou perscrutar um outro modo de entrada. Não havia caminho a ser descoberto, precisaria ser inventado. Ao conseguir situar-se em que tipo de engrenagem institucional estava, alguém volta a sua atenção às pessoas que contam com a intermediação do Estado para conseguir emprego, por exemplo.

A pesquisa se desdobra na montagem de um dispositivo de escuta de trabalhadores desempregados durante o intervalo de espera para serem atendidos em uma agência pública de trabalho. Quem eram essas pessoas que procuravam a intermediação de um serviço público para conseguir um emprego? O que pensavam sobre o mundo do trabalho?

Todas as tentativas criadas por alguém para escutar os trabalhadores desempregados fracassaram. Por não se encaixarem em nenhuma categoria exigida pelo ministério, e quando se teve a certeza de que aquelas reuniões não seriam validadas para atingir as metas, houve uma mudança de postura por parte da coordenação. Era como se a proposta de alguém tivesse caído no esquecimento. De repente, não havia mais espaço nem tempo para que alguém pudesse convidar os trabalhadores para que pudessem, em coletivo, pensar sobre a demanda que os trazia ao serviço. As propostas de alguém tinham como objetivo criar uma forma de escutar os trabalhadores, e não somente os burocratas.

Mais uma vez, a situação de alguém tinha ressonâncias com a do personagem de Kafka em O castelo, na maneira como ele se sentia depois de tentativas desse tipo.

K. saiu pela escada varrida selvagemente pelo vento e olhou para a escuridão. Um tempo mau, muito mau. Em relação a isso ocorreu-lhe, de algum modo, como a dona do albergue havia se empenhado em submetê-lo ao protocolo, mas como ele tinha resistido. Certamente não fora um empenho aberto; ao mesmo tempo, sub-repticiamente, ela o arrastara para longe do protocolo e no fim não se sabia se havia resistido ou cedido. Uma pessoa de natureza intrigante, que aparentemente trabalhava sem sentido, como o vento, obedecendo a incumbências remotas e estranhas, que nunca se abriam à recepção (KAFKA, 2000KAFKA, Franz. O castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000., p. 179)

Restaram as notas que alguém tomava desses encontros. Com o progressivo desmonte dos espaços de escuta dos trabalhadores, o vazio só poderia estar vivo a partir do lembrado. Fazer uma marca escrita foi o meio de sustentar a transformação do vazio. Foi preciso aceitar o fracasso e sair do serviço, ou ficaria insistindo no preenchimento desse vazio com tarefas e esperanças.

A escrita daquilo que alguém lembrava da escuta dos trabalhadores permitiu habitar um tempo que não é o de uma história consolidada nem o de atingir o resultado da implantação de uma política pública. Escrever como um ensaio pode abraçar as falhas, aquilo que ainda não está pronto. Também permite contar histórias que criam realidade, que ajudam a construir percursos. O movimento da pesquisa foi o de acompanhar um mundo se formando a partir da memória de alguém e o trabalho do esquecimento na criação daquilo que se lembra. Lemos em Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1. Obras escolhidas., p. 37) que “o acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.

Trabalhos do vazio

Foi com a atitude de ensaiar na escrita que buscamos, por meio de alguém, acessar uma dimensão intensiva do cotidiano de trabalho e produzir interferências no modo de vivê-lo. Para Benjamin (1994BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1. Obras escolhidas.), a narrativa é a condição da experiência; já no pensamento de Blanchot (2013BLANCHOT, Maurice. O Livro Por Vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013., p. 8) ela ganha o estatuto de acontecimento:

A narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, o acesso a esse acontecimento, o lugar onde ele é chamado para acontecer, acontecimento ainda por vir e cujo poder de atração permite que a narrativa possa esperar, também ela, realizar-se.

A escrita da pesquisa foi uma forma de produzir uma passagem dos vazios do trabalho ao trabalho dos vazios. Ao escrever esses pequenos fragmentos sobre o cotidiano de trabalho, foi possível estranhar o que, com o passar do tempo, corria o risco de desaparecer, sendo preenchido com propagandas luminosas de grandes feitos e de pomposas estatísticas. Tomamos essa escrita como um trabalho subterrâneo em que tentamos nos desviar dos holofotes, sem deixar de lutar, com todas as forças, para vibrar uma luz vaga-lume. Um trabalho que se ocupa do cotidiano, entendendo, com a leitura de Blanchot (2007BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a experiência limite. Trad. João Moura Jr. São Paulo: Escuta , 2007.), que o cotidiano carrega a contradição de ser o inacessível ao qual nós sempre já tivemos acesso.

Quaisquer que sejam seus aspectos, o cotidiano tem esse traço essencial: não se deixa apanhar. Ele escapa. Ele pertence à insignificância, e o insignificante é sempre sem verdade, sem realidade, sem segredo, mas é talvez também o lugar de toda significação possível. [...] É o desapercebido, em primeiro lugar no sentido de que o olhar sempre o ultrapassou e não pode tampouco introduzi-lo num conjunto ou fazer-lhe a ‘revista’, isto é, fechá-lo numa visão panorâmica; pois, por um outro traço, o cotidiano é aquilo que não vemos nunca uma primeira vez, mas só podemos rever, tendo sempre já o visto por uma ilusão que é precisamente constitutiva do cotidiano (BLANCHOT, 2007BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a experiência limite. Trad. João Moura Jr. São Paulo: Escuta , 2007., p. 237).

Tentamos apresentar a atmosfera opaca e vazia de um cotidiano de trabalho, criando um texto que ficaria banalizado se a pesquisa não existisse. Fazemos, com isso, a transformação do vazio sentido como falta em uma experiência, em um espaço de trocas.

Para isso, a escrita foi o lugar onde a vivência do vazio no cotidiano se tornou uma experiência. Diferente da função de registro, com a finalidade de comprovar ou descartar hipóteses previamente definidas, consideramos a escrita, a partir da leitura de Foucault (2014FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ______. Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p. 141-157.), como um princípio de ação. Para Foucault (2014)FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ______. Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p. 141-157., a escrita está entre os exercícios voltados para o que identificou, na cultura helenística e romana, como um modo de existir em que o ocupar-se de si, o cuidado de si, era um princípio de conduta, devendo ser compreendido como uma atitude para consigo, para com os outros e para com o mundo.

A proposta de tomar como estratégia metodológica a escrita de narrativas a partir da aproximação do que Foucault (2014FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ______. Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p. 141-157., p. 144) chamou de escrita de si, que é um exercício com vistas à transformação da verdade em ethos, teve como objetivo produzir mudanças nas ações. A escrita não é, portanto, o território onde a pesquisa acaba, mas o meio pelo qual se produzem outros efeitos de realidade no cotidiano de trabalho.

Foucault (2014FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ______. Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p. 141-157., p. 149) considera que o papel da escrita é, segundo a metáfora da digestão, constituir um corpo, “o próprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e fez sua verdade delas: a escrita transforma a coisa vista e ouvida ‘em forças e em sangue’”. Através da escrita, em ensaio no percurso da pesquisa, um corpo foi surgindo, marcado pela experiência de recortar o vazio. Escrita, experiência e corpo engendrando-se mutuamente. É este corpo em transformação que foi enfrentar um dia após o outro de trabalho, que buscou dar sustentação para uma prática que tentava ganhar prumo.

A pesquisa colocava em movimento a ação transformadora da escrita na prática de trabalho, favorecendo a invenção de outros modos de relação. A escrita, por algum tempo, sustentou um lugar de borda, de quem não vai embora e também não fica dentro, não se adapta.

Propor a escrita de narrativas do cotidiano de trabalho como o território onde esta pesquisa se desenvolveu teve uma dupla função: a de abrir questões sobre o lugar do psicólogo, a partir da trajetória de alguém, e a de produzir conhecimento a partir de uma experiência singular, relativa a um percurso coletivo, sem a pretensão de tornar-se uma verdade universal.


Anotação fotográfica 5

Tais funções dizem respeito ao lugar/posicionamento do psicólogo em um órgão público e à produção de conhecimento no contexto da academia. Diferente dos procedimentos científicos de coleta e análise de dados, em que o pesquisador supõe conquistar uma posição neutra em relação à pesquisa, a narrativa tem como ponto de partida o atributo ficcional. Não é preciso saber em que região exatamente se passa O castelo para acompanhar a história contada por Kafka. Assim como se faz desnecessário apurar a verossimilhança dos fatos e das características apresentadas para validar tal experiência. Aliás, esse lugar, enquanto realidade existente, pronta para ser descoberta e representada, não existe. Assim como o percurso de K. na aldeia, a trajetória de alguém por entre por entre as salas de repartição não teria existência sem a narrativa escrita dessas pequenas histórias que dão testemunho do vazio que alguém sentia.

Durante a pesquisa, o personagem alguém procurou se desviar dos holofotes e colocar-se à escuta daquilo que não cabia na propaganda. Pequenas histórias tecidas de restos, de sensações imprecisas, daquilo que se lembrava do que escutou dos trabalhadores. Recolhendo aquilo que era deixado de lado, neste caso, aquilo que pensavam as pessoas que acessam as políticas públicas de trabalho e emprego, foi possível pensar sobre qual seria a função do Estado na garantia do direito constitucional ao trabalho em plena vigência do neoliberalismo e as funções a que os profissionais da psicologia são convocados a exercer diante desse contexto.

Para este artigo, optamos por trazer a montagem do campo problemático em torno dos vazios do trabalho, considerando a importância de deixar rastros, de dar testemunho desses elementos que ficariam anônimos, apagados até mesmo da memória. Gagnebin (2009GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34 , 2009., p. 54) se refere ao “narrador sucateiro” como aquele que, tal como o nosso personagem alguém, não tem por alvo recolher os grandes feitos, mas deveria “transmitir o que a tradição, oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal consiste, então, na transmissão do inenarrável”.

Com a difícil tarefa de transmissão da atmosfera dos vazios no trabalho, pensamos que seria importante que a forma da dissertação também ajudasse a introduzir o leitor no conteúdo que ela aborda. Foi então que o contato com a artista visual Ana Flávia Baldisserotto possibilitou o desdobramento da escrita em uma série de anotações fotográficas feitas pela artista a partir da leitura do texto, bem como a criação de um objeto-dissertação. Algumas dessas imagens estão no artigo. Também fizemos um documento visual produzido pela artista em colaboração com uma das autoras.4 4 KETTERMANN, Tanise. Vazios do trabalho (vídeo). Youtube. 8 abr. 2019. 20min21s. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Vm_Cj_7fWSs. Acesso em: 22 jul. 2022.

Referências

  • BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. v. 1. Obras escolhidas.
  • BLANCHOT, Maurice. O Livro Por Vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.
  • BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a palavra plural. Trad. Aurélio Guerra Neto .São Paulo: Escuta, 2010.
  • BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a experiência limite. Trad. João Moura Jr. São Paulo: Escuta , 2007.
  • DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
  • DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
  • FOUCAULT, Michel. A escrita de si. In: ______. Ditos e escritos: ética, sexualidade, política. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. p. 141-157.
  • GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34 , 2009.
  • GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. Lisboa: Iluminuras, 2005.
  • KAFKA, Franz. O castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo. Cartografar é traçar um plano comum. Fractal: Revista de Psicologia, Niterói, v. 25, n. 2, p. 263-280, 2013. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
    » https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200004
  • KETTERMANN, Tanise. Vazios do trabalho. Youtube. 8 abr. 2019. 20min21s. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Vm_Cj_7fWSs Acesso em: 22 jul. 2022.
    » https://www.youtube.com/watch?v=Vm_Cj_7fWSs
  • LARROSA, Jorge. A Operação Ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educação e Realidade [online], v. 29, n. 1, p. 27-43, 2004. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/25417 Acesso em: 22 jul. 2022.
    » https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/25417
  • PELBART, Peter Pál. O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 Edições, 2013.
  • PRECIOSA, Rosane. Rumores discretos da subjetividade: sujeito e escritura em processo. Porto Alegre: Sulina: UFRGS, 2010.
  • 1
    Para diferenciar o alguém como personagem do alguém como pronome indefinido, optou-se por uma fonte em itálico para se referir ao personagem. Alguém não será escrito com letra maiúscula, como em um nome próprio, exceto no início de frases, porque alguém não é um nome próprio.
  • 2
    Menor, aqui, no sentido conceitual criado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (2014)DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014., que será apresentado neste artigo.
  • 3
    Agrimensor é um profissional que tem por incumbência medir territórios e delimitar fronteiras. K. foi chamado pelo conde do castelo e tenta de todos os modos reivindicar seu direito de exercer sua profissão e permanecer na aldeia. Na tentativa de alcançar o castelo, seu caminho é atravessado por burocratas que o jogam de um lado para outro, com argumentos que evidenciam o absurdo engendrado nessas relações.
  • 4
    KETTERMANN, Tanise. Vazios do trabalho (vídeo). Youtube. 8 abr. 2019. 20min21s. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Vm_Cj_7fWSs. Acesso em: 22 jul. 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    08 Abr 2019
  • Revisado
    02 Dez 2021
  • Revisado
    27 Jun 2022
  • Aceito
    28 Jul 2022
Universidade Federal Fluminense, Departamento de Psicologia Campus do Gragoatá, bl O, sala 334, 24210-201 - Niterói - RJ - Brasil, Tel.: +55 21 2629-2845 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista_fractal@yahoo.com.br