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PARQUES URBANOS, POLÍTICAS PÚBLICAS E SUSTENTABILIDADE

urban parks, global politics sustainable development

Resumos

Este artigo, através de análises teóricas, discute os parques urbanos, seus propósitos e significados como “espaços verdes”. Compreende-os como elementos discursivos no conjunto das práticas espaciais desencadeadas na cidade, cujas justificativas são a melhoria da qualidade ambiental e de vida e a noção de desenvolvimento sustentável, disseminadas pela ONU posteriormente à década de 1970. Esta noção passou a nortear políticas públicas e privadas e apresenta reflexos importantes na produção do espaço urbano. Os parques, como um dos elementos desse discurso, exprimem-se pelos atributos ecológicos que lhes são associados. No entanto, contraditoriamente, apresentam-se como alegorias, simulacros de natureza no espaço e no tempo. Um equipamento urbano que altera a dinâmica da produção, reprodução do espaço e valorização do lugar, e por isso não pode ser compreendido como simples elemento na paisagem.

Parques urbanos; Políticas públicas; Desenvolvimento sustentável


This article, through theoretical analysis, presents a discussion about urban parks, its intentions and meanings as “green spaces”. The parks are public equipments presents in the urban space, created with justifications of improvement of the environmental quality and human life quality and the notion of sustainable development, spread by ONU after of the decade of 1970. This notion influences public and private politics and presents important consequences in the production of the urban space. The parks, among the elements here discussed, are seen by the ecological attributes to what they are associated with. But, contradictorily, they are adorns, nature simulations in the space and time. An urban equipment that modifies the dynamics of the production, reproduction of the space and valuation of the place, and therefore cannot be understood as simple element in the landscape.

Urban parks; Public politics; Sustainable development


Cet article discute les parcs urbains comme des “espaces verts” et son role “discursif” à l’intérieure des pratiques spatiales dans la ville sous l’égide du développement durable. Depuis des années 1970, cette notion disseminé par les Nations Unies domine les politiques publiques et privées et provoque des conséquences importantes pour la production de l’espace urbain. Assimilés comme des espaces écologiques, les parcs ils sont aussi des “alégories”, “simulacres” de la nature dans le système capitaliste. On veut discuter cette contradiction.

Parcs urbains; Politiques publiques; Dévellopement durable


INTRODUÇÃO

Este trabalho intenta uma discussão do parque urbano, seus propósitos e significados, mediante as políticas ambientais globais e locais. Compreende-se o parque não simplesmente como um “espaço verde”, criado/delimitado sem intencionalidades, mas como um equipamento urbano capaz de alterar o padrão de uso e ocupação do solo, contribuindo na mudança do preço da terra em suas imediações.

Definiu-se como recorte temporal da análise o período pós II Guerra Mundial, porque, diferentemente das ideias, propostas que ressaltam as qualidades do campo, como ocorreu no século XVIII, sobretudo na Europa, os parques surgem revestidos de discursos que se expressam pela necessidade de dotar os espaços urbanos de áreas verdes e de lazer, possibilitando maior qualidade ambiental.

A estes discursos está relacionado o grande apelo “ambiental” vivenciado ao longo da segunda metade do século XX que se reporta, entre outros, ao aumento da qualidade de vida nas cidades. Este apelo, intensificado pela deterioração do meio físico, poluição excessiva dos rios, do ar, redução dramática da cobertura vegetal etc., está ligado também às ideias, noções de conservação ambiental como um dos pressupostos do desenvolvimento sustentável. A criação e implantação de parques em muitas cidades se relaciona ao conjunto de diretrizes imposto pelas Nações Unidas como forma de promover o desenvolvimento sustentável e, por isso, essas ideias merecem ser melhor debatidas.

A ampliação do discurso ambiental, em especial desde os anos 1970, com a realização das grandes conferências das Nações Unidas sobre meio ambiente, culminou, entre outros, na proliferação de “espaços verdes” em muitas cidades e no aumento das desigualdades socioespaciais. Como exemplos, desde a década de 1970 foram criados mais de trinta parques em Curitiba-PR (RECHIA, 2003RECHIA, S. Parques públicos de Curitiba: a relação cidade-natureza nas experiências de lazer. 2003. Tese (Doutorado em Educação Física). Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003.), vinte e quatro em São Paulo-SP (BURGOS, 2003BURGOS, R. Parques públicos urbanos na metrópole paulistana: concepção e uso na produção do espaço urbano. 2003. Dissertação (Mestrado em Geografia). Universidade de São Paulo, São Paulo. 2003.), sete em Salvador-BA (SERPA, 2007SERPA, A. O espaço público na cidade contemporânea. São Paulo: Contexto, 2007.) e quinze em Ribeirão Preto-SP (GOMES, 2009GOMES, M. A. S. Parques urbanos de Ribeirão Preto-SP: na produção do espaço, o espetáculo da natureza. 2009. Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de Geografia. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009.).

Este período, que envolve a proliferação de parques em muitas cidades brasileiras e também em diversos outros países, está relacionado com o momento em que o meio ambiente é focalizado pelos organismos internacionais, Estados-nação, mídia e, consequentemente, pela sociedade, culminando na sua apropriação, entre outros, por grupos privados, agentes diretamente responsáveis pela reprodução do capital.

O meio ambiente, no contexto da ideologia neoliberal, é pautado após a década de 1970 pelos organismos supranacionais, como a ONU, que passaram a promover e disseminar discursos que explicitam a preocupação com as riquezas naturais do planeta. Diante do panorama político-econômico emergente, o neoliberalismo, como “ideologia do capitalismo na era de máxima financeirização da riqueza, a era da riqueza líquida, a era do capital volátil” (MORAES, 2001, p. 10-11)MORAES, R. Neoliberalismo – de onde vem, para onde vai?. São Paulo: Ed. Senac, 2001., impõe-se como um modelo hegemônico na fase atual do capitalismo, norteando as políticas em âmbito global. Assim sendo, as riquezas naturais, condição do processo de produção de mercadorias, são focalizadas e sobre elas engendram-se discursos que procuram ocultar a compreensão do espaço e da sociedade.

A efervescência que ganha o mundo, e especialmente o Brasil, após a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano (Estocolmo, 1972), e, sobretudo, após a CNUMAD - Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992), constitui marco importante para explicitar a emergência, ou retomada, do discurso ambiental no espaço urbano e, consequentemente, para debater o surgimento de inúmeros parques urbanos.

Embora este marco seja importante para os propósitos desta análise, cabe ressaltar, como discutido por McCormick (1992)MCCORMICK, J. Rumo ao paraíso: a história do movimento ambientalista. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992., que as raízes da discussão ambiental e do ambientalismo como um movimento amplo é da segunda metade do século XIX, com a criação dos primeiros grupos protecionistas na Grã-Bretanha. Entretanto, foi a partir da década de 1960 que o ambientalismo ultrapassou as “fronteiras” do mundo natural, enfocando também as necessidades humanas e, como consequência, questionando a essência do modo de produção capitalista.

De acordo com McCormick (1992, p. 97)MCCORMICK, J. Rumo ao paraíso: a história do movimento ambientalista. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992., a realização da Conferência de Estocolmo, em 1972, “marcou igualmente uma transição do Novo Ambientalismo emocional e ocasionalmente ingênuo dos anos 60 para a perspectiva mais racional, política e global dos anos 70”.

A Conferência de Estocolmo, pelos impasses gerados em torno da ideia de desenvolvimento, conflitante entre os países participantes, abriu caminhos para a elaboração de uma proposta de desenvolvimento, apresentada quinze anos depois (1987) pelo Relatório Nosso Futuro Comum, ou Comissão Brundtland: o desenvolvimento sustentável. Como parte dessa proposta, a criação de parques e áreas de conservação passa a fazer parte das agendas políticas locais e, por isso, merece um esforço maior de análise.

OS PARQUES E O DISCURSO DA “SUSTENTABILIDADE”

A ideia de desenvolvimento sustentável, institucionalizada na Agenda 21 , durante a CNUMAD, em 1992, vem assegurar o discurso dominante, embora camuflado pela noção vaga de que é necessário preservar; de que o poder público e as comunidades locais, portanto em âmbito municipal, devem criar formas de promover o desenvolvimento com base na capacidade de o meio ambiente se “regenerar”. Esta noção, disseminada pelo Relatório Nosso Futuro Comum (1991, p. 46)COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas., consiste em afirmar que o desenvolvimento sustentável se define “como aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem às suas próprias necessidades”.

Distante de significar um campo neutro da disputa política internacional, já travada durante a década de 1970, quando o discurso dos países dominantes procurava um viés de ligação entre meio ambiente e desenvolvimento, ainda na ocasião da Conferência de Estocolmo, o “conceito” de Desenvolvimento Sustentável foi apresentado, mais tarde, pelos países ricos, como uma forma de produzir consenso entre as esferas políticas opostas.

São inúmeras as críticas atribuídas à idéia do desenvolvimento sustentável em vista das contradições que apresenta e a sua incompatibilidade com o modelo de produção em curso. Nas palavras de Nobre (2002, p. 45)NOBRE, M. Desenvolvimento sustentável: origens e significado atual. In: NOBRE, M; AMAZONAS, M. (orgs.). Desenvolvimento sustentável: a institucionalização de um conceito. Brasília: Editora IBAMA, 2002., “o conceito de ‘desenvolvimento sustentável’ só é uma ‘contradição nos termos’, se os termos são contraditórios. E, no entanto, a força da noção de DS está exatamente em ter dito: desenvolvimento e meio ambiente não são ‘contraditórios’” (grifos do autor). Daí este autor apontar o desenvolvimento sustentável como termo que, uma vez estabelecido e institucionalizado, passou a ser criticado por ser vago, impreciso e de caráter contraditório.

Shiva (1989, p. 08)SHIVA, V. Ecodesenvolvimento: os novos limites físicos, sociais e éticos do desenvolvimento – o verdadeiro significado de economia sustentável. Tradução: Maria Paula Miranda. Aula magna. Siena, 1989. destaca a perda do significado real do termo sustentável e sua apropriação pelo segmento do mercado como parte de uma construção discursiva que visa justificar a produção e o consumo ilimitado de mercadorias no tempo e no espaço. Afirma que,

há muito claramente, dois significados diferentes para ‘sustentável’. O significado verdadeiro se refere à manutenção dos povos e da natureza. Isto envolve a retomada de consciência de que a natureza mantém nossas vidas e nossa subsistência, esta é a origem primária de sustentável. Natureza auto-sustentável implica na manutenção da integridade dos processos, ritmos e ciclos da natureza. Há um segundo tipo de sustentável que se refere ao mercado. Ele envolve a manutenção dos suprimentos de matéria-prima para a produção industrial. Esta é a definição convencional de ‘conservação’ tornando disponíveis ininterruptas produções de matéria-prima para o desenvolvimento. E desde que as matérias-primas industriais e as mercadorias têm substitutos, sustentável é traduzido como substituição de materiais, que é traduzido e convertido, mais adiante, em lucro e dinheiro.

A ideia do desenvolvimento sustentável não apresenta propostas concretas para a resolução dos reais problemas da humanidade. Ao contrário, fundamenta-se no discurso da técnica como suplantadora dos obstáculos ao desenvolvimento, não considerando que a sociedade não pode ser compreendida de forma abstrata, sem classes sociais.

Como diz Rodrigues (2005, p. 92-93)RODRIGUES, A. M. Problemática Ambiental = Agenda Política - Espaço, território, classes sociais. Boletim Paulista de Geografia – "Perspectiva Crítica" – nº 83, dezembro de 2005, p.91 a 110. São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB-SP., o desenvolvimento sustentável aparece como ideia mágica. Pretende-se, assim, encontrar soluções para a resolução de problemas ligados ao meio ambiente, ao desenvolvimento e às gerações futuras. Nesse sentido,

o termo “desenvolvimento sustentável” não é um conceito, mas uma idéia que pretende encontrar soluções para problemas de esgotamento, poluição das riquezas naturais, num futuro... Idéia genérica que abstrai a realidade, oculta a complexidade, a reflexividade do modo de produção de mercadorias, cria uma espessa cortina de fumaça sobre a apropriação dos territórios, a existência de classes sociais, dificulta a análise crítica.

O discurso do desenvolvimento sustentável, galgado na ideia da conservação e do crescimento econômico, conforme defendem muitos ambientalistas , preconiza a criação/delimitação de áreas naturais, a exemplo de parques ecológicos, áreas de proteção ambiental etc., que têm sido disseminadas como importantes espaços de conservação da biodiversidade, tanto por documentos oficiais, como a Agenda 21, quanto por gestores nacionais, estaduais e municipais, adeptos da “onda ecológica”.

O discurso ilusório que acompanha a criação/delimitação de áreas tidas como “ecológicas”, como os parques, quando inseridos no espaço urbano, mesmo que muitas vezes nada tenham a preservar, como ocorre com o Parque Dr. Luís Carlos Raya em Ribeirão Preto-SP e o Parque Municipal Ceci Cunha em Arapiraca-AL, em muito tem contribuído para que estes espaços sejam vistos como importantes para toda a cidade. Difundem-se que estes equipamentos contribuem para a proteção da fauna e flora, são importantes para o aumento dos índices de áreas verdes, além de estarem voltados ao uso das massas e, consequentemente, à melhoria das condições de vida do homem urbano, independentemente de sua classe social. No entanto, não se atentam para as disparidades socioespaciais que induzem.

Para o escopo desta análise, acredita-se que a ideia de “criação” e de conservação da natureza, e mesmo da “incorporação”, ou produção desta, no espaço urbano, pode ser compreendida no contexto das preocupações ambientais globais que nortearam os discursos oficiais, expressos em documentos como a Agenda 21 e o Relatório Nosso Futuro Comum. Também, a compreensão da problemática que envolve os parques, qualquer que seja a esfera da sua criação, perpassa pela compreensão dos reais objetivos a que foram planejados e pela explicitação e desmascaramento dos discursos daqueles agentes que ostentam a sua exaltação.

A análise da criação de parques urbanos, cujas diretrizes são estabelecidas por legislação municipal , implica compreendê-los no contexto de uma escala mais ampla, como a dos parques nacionais, pois, comumente, são justificados pela “necessidade de preservação” de espécies da fauna e da flora nativas. A propósito, a palavra parque é originária de “parc”, em inglês e francês antigos, designando “uma área cercada de solo, ocupada por animais de caça, protegidos por ordem ou por concessão do rei” (DAVENPORT e RAO, 2002DAVENPORT, L; RAO, M. A história da proteção: paradoxos do passado e desafios do futuro. Tornando os parques eficientes: estratégias para a conservação da natureza nos trópicos. Curitiba: Editora UFPR/Fundação O Boticário, 2002., p. 54). Assim, fica claro que a palavra parque implica delimitação de uma área a ser protegida, preservada, segundo interesses públicos ou privados.

Como observa McCormick (1992)MCCORMICK, J. Rumo ao paraíso: a história do movimento ambientalista. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992., inúmeros parques foram criados desde o século XIX, a exemplo dos pioneiros norte-americanos, Yellowstone e Yosemite, com o objetivo de se constituírem muito mais em espaços para lazer e recreação públicos das populações urbanas do que para preservação de áreas virgens. Também, muitas áreas constituíram parques em decorrência de sua beleza cênica, de constituírem exemplares raros, marcantes da natureza, como ocorreu com o Parque Nacional do Itatiaia, no Brasil, criado em 1937.

Mesmo não se pretendendo dar ênfase às discussões sobre áreas protegidas, porque foge ao escopo deste trabalho, cabe assinalar que os parques, especialmente os de caráter nacional, têm sido propagados como importantes redutos ambientais, representantes de parcelas de ecossistemas capazes de proteger a vida selvagem.

Segundo Diegues (2004)DIEGUES, A. C. (Coord.). O nosso lugar virou parque – Estudo sócio-ambiental do Saco Mamanguá – Parati – Rio de Janeiro. 2a ed. São Paulo: NUPAUB/USP, 1999., a existência de um mundo natural selvagem, intocado e intocável, é a reverência ao lugar paradisíaco, criado como um mito moderno , distante e em contraposição à presença do homem e da civilização urbano-industrial.

Muitos países, como o Brasil, têm incluído em suas agendas ambientais, desde os anos de 1970, sobretudo, a responsabilidade em demarcar áreas de preservação e em estabelecer mecanismos de conservação dos recursos vivos selvagens. Conforme aponta o Relatório Nosso Futuro Comum (1991)COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas., na década de 1980, “quase 4% da superfície terrestre do planeta é [era] gerida explicitamente para conservar espécies e ecossistemas, e só muito poucos países não possuem[íam] parques nacionais” .

Durante as décadas de 1970 e 1980 foram criados cerca de 2.098 unidades de conservação, de âmbito nacional, em todo o mundo (DIEGUES, 2004DIEGUES, A. C. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec/NUPAUB-USP, 2004.). Em 2003, havia cerca de 100 mil áreas protegidas, segundo o World Database on Protected Areas (BENSUSAN, 2006BENSUSAN, N. Conservação da biodiversidade em áreas protegidas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.).

Mesmo com a demarcação de muitas áreas de conservação, “apenas 12% das florestas do mundo estão em áreas protegidas”, segundo Diamond (2005, p. 565)DIAMOND, J. Colapso – como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Tradução de Alexandre Raposo. 2a ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.. Entre os 142 países que possuem florestas, 82 já acabaram com todas as áreas intactas, de acordo com a ONU . Muitas florestas existentes nesses países são secundárias e menos de 10% de todas as florestas intactas no mundo são de floresta primária.

Conforme Terborgh e Schaik (2002)TERBORGH, J; SCHAIK, C. V. Por que o mundo necessita de parques? In: TERBORGH, J; SCHAIK, C. V; DAVENPORT, L; RAO, M. (orgs.). Tornando os parques eficientes: estratégias para a conservação da natureza nos trópicos. Curitiba: Editora UFPR/Fundação O Boticário, 2002., cerca de 80% dos governos mundiais, entre eles o Brasil, já reconheceram os apelos dos organismos oficiais internacionais e demais pressões ligadas à causa ambiental, e demarcaram áreas para conservação, em suas diversas modalidades e escalas.

No Brasil, especialmente após a década de 1970, muitas áreas de conservação foram demarcadas e criadas por lei. Apesar de o primeiro parque nacional, o Itatiaia, ter sido criado em 1937, através do Decreto no 1.713, de 14 de junho (SERRANO, 1993SERRANO, C. M. T. A invenção do Itatiaia. 1993. Dissertação (Mestrado). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1993.) , foi com a instituição do Plano do Sistema de Unidades de Conservação (SNUC), de 1979, que houve a proliferação de inúmeras reservas para conservação da vida silvestre e a definição de diferentes modalidades de unidades de conservação . De acordo com o IBAMA , as áreas protegidas somam aproximadamente 4% do território brasileiro.

Embora prevista desde o Código Florestal de 1934 (Decreto no 23.793), a legislação ambiental brasileira que trata das unidades de conservação avançou a passos lentos . Somente no ano 2000, através da Lei no 9.985, de 18 de julho, institucionalizou-se, de forma mais efetiva, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, regulamentando o artigo 225 da Constituição Federal. De acordo com esta lei, o parque nacional , de posse e domínio público, criado mediante ato do poder público, tem o objetivo de preservar a natureza, permitindo apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, pois integra o grupo das Unidades de Proteção Integral.

Ao tempo que prega a demarcação de áreas de conservação, o discurso oficial, em nível internacional, e os países centrais atribuem ao crescimento populacional nos países pobres a culpa pela destruição ambiental. Por um lado, reconhecem que “é improvável que mesmo os parques e áreas protegidas mais bem administradas constituam uma solução adequada para o problema” da devastação da natureza (NOSSO FUTURO COMUM, 1991COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas., p. 168). Por outro, afirmam que a pressão populacional de muitos países pobres, como Etiópia, Uganda e Quênia, entre outros, é, em certa medida, a responsável direta pela destruição dos parques nacionais desses países. A culpa, atribuída à pressão populacional, e, consequentemente, aos pobres, omite os maiores responsáveis pela dilapidação dos recursos naturais: os grandes latifundiários, os incorporadores imobiliários, as empresas madeireiras, entre outros. Associar tal devastação ao aspecto meramente populacional é uma forma de negligenciar aspectos relevantes que se embutem nos conflitos existentes na sociedade.

Os defensores do movimento do “culto ao silvestre” (ALIER, 2007ALIER, J. M. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. São Paulo: Contexto, 2007.) consideram que os parques e reservas nacionais devem estar protegidos da ação humana. Autores como Terborgh e Schaik (2002, p. 28)TERBORGH, J; SCHAIK, C. V. Por que o mundo necessita de parques? In: TERBORGH, J; SCHAIK, C. V; DAVENPORT, L; RAO, M. (orgs.). Tornando os parques eficientes: estratégias para a conservação da natureza nos trópicos. Curitiba: Editora UFPR/Fundação O Boticário, 2002. afirmam que os parques, em muitos países, “são tudo o que sobrou dos habitats naturais, e são essencialmente os únicos lugares onde ainda subsiste a fauna nativa”, como em Gana, Cuba, República Dominicana e Filipinas; mas não questionam os mecanismos propulsores dessa devastação.

A recomendação do Relatório Nosso Futuro Comum (1991, p. 175)COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas., de que “os governos poderiam considerar a criação de ‘parques para o desenvolvimento’, já que servem ao duplo propósito de proteger, simultaneamente, os habitats das espécies e os processos de desenvolvimento”, soa como ideia vaga e contraditória, sobretudo porque o desenvolvimento que se prega implica necessariamente, ou mesmo representa, o crescimento econômico, e isso levaria, consequentemente, à exploração excessiva ou ao esgotamento dessas reservas.

O discurso calcado no ideário econômico e nos interesses de classes específicas se insere como forma de mascarar os reais geradores de conflitos. Oculta as lutas de classes e os reais responsáveis pela devastação, voltando-se para práticas conservacionistas que visam, em caráter de reserva, os recursos da vida selvagem.

Como enfatiza Rodrigues (2005, p. 101)RODRIGUES, A. M. Problemática Ambiental = Agenda Política - Espaço, território, classes sociais. Boletim Paulista de Geografia – "Perspectiva Crítica" – nº 83, dezembro de 2005, p.91 a 110. São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB-SP., “oculta-se a importância do território, as contradições, os conflitos da apropriação, propriedade dos meios de produção e a existência de classes sociais. Ao ocultar as classes sociais e deslocar os conflitos entre a geração presente e a futura, a realidade transforma-se em abstração”.

Complementa a autora:

Os efeitos de contaminação, poluição, destruição, desastres, não são causados por indivíduos isoladamente, mas pelo modo de produção de mercadorias, pelo avanço técnico com seus agentes específicos, considerados os agentes propulsores do desenvolvimento. Mas os agentes ‘promotores’ do desenvolvimento não são considerados depredadores das riquezas naturais. Parece, nos documentos oficiais, que se forem utilizadas técnicas adequadas, se os ‘recursos humanos’ forem capacitados, se os pobres não ocuparem áreas impróprias, se não jogarem lixo nos córregos, etc. não ocorreriam catástrofes, desastres, nem a poluição ou esgotamento de riquezas naturais (RODRIGUES, 2006, p.106)RODRIGUES, A. M. Desenvolvimento Sustentável - Dos conflitos de classes para o conflito de gerações. SILVA, J. B, LIMA, L. C, e DANTAS, E. W. C. (orgs). Panorama da Geografia Brasileira. São Paulo: Anablume. Junho de 2006, pg. 101-114..

A discussão ecológica, como salienta Waldman (1998, p. 12)WALDMAN, M. Ecologia e lutas sociais no Brasil. 4a ed. São Paulo: Contexto, 1998., não mais pode se restringir a uma luta “poética” ou simplesmente preservacionista, mas deve ser encarada como “uma luta política, econômica, social e ideológica, pois é cada vez mais difícil analisar o problema sem resolver direta ou indiretamente a questão da forma de apropriação da natureza”.

Diante da indiscriminada utilização dos recursos naturais, inerente ao modo de produção capitalista, os parques e áreas verdes, em suas diversas modalidades e escalas, estão distantes de significar estratégias eficazes no combate ao desflorestamento, como recomenda a Agenda 21.

No espaço urbano, propõe o estímulo ao desenvolvimento da silvicultura “para proporcionar vegetação aos estabelecimentos humanos urbanos, periurbanos e rurais com fins prazerosos, recreativos e produtivos e para proteger árvores e bosques” (CNUMAD, 1997, p.117)CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO – CNUMAD. Agenda 21. São Paulo: Secretaria de Estado do Meio Ambiente. 1997.; mas não considera os conflitos e as disputas pelo solo urbano e a apropriação desigual dos “espaços verdes” existentes nas cidades.

A recomendação da Agenda 21, que tem direcionado políticas públicas, em nível municipal, em relação aos parques, bosques, entre outros espaços livres, é a de que devem ter como função a promoção do lazer para a população e de servirem como áreas para constituição da arborização necessária aos espaços urbanos. Onde devem estar alocados, como serão concebidos e para quem se destinam os espaços arborizados, sobre isso nada diz a Agenda 21. Não preconiza que a tarefa de criar esses espaços requer a compreensão das necessidades de grupos socialmente distintos que se apropriam de diferentes maneiras dos equipamentos públicos existentes no espaço urbano.

Corrobora-se com Rodrigues (2006, p. 110)RODRIGUES, A. M. Desenvolvimento Sustentável - Dos conflitos de classes para o conflito de gerações. SILVA, J. B, LIMA, L. C, e DANTAS, E. W. C. (orgs). Panorama da Geografia Brasileira. São Paulo: Anablume. Junho de 2006, pg. 101-114., em relação à leitura que faz dos documentos oficiais já ressaltados, como a Agenda 21 e o Relatório Nosso Futuro Comum, quando afirma que

os novos mecanismos, projetos, dão a sensação de “boas intenções” para o bem da humanidade. Porém é uma carta de intenções que visa a continuidade da reprodução ampliada do capital e da concentração de riqueza. Talvez possamos ver boas intenções, talvez possamos aproveitar algumas questões colocadas para a sobrevivência da humanidade. Porém, vimos que expressões como ecologia, meio ambiente, desenvolvimento sustentável, sustentabilidade, têm um elevado grau de neutralidade. Permitem ao capital, com o suposto interesse ao ‘bem comum, a perenidade das condições de reprodução do capital (grifos do autor).

A ampliação das preocupações ambientais após a década de 1970 implicou, sob uma nova roupagem, a focalização do espaço urbano, não somente pelos organismos internacionais, que assumiram a tutela das discussões ambientais, mas também pelos poderes locais, que passaram a desenvolver ações em consonância com os ditames da esfera supranacional – Agenda 21. Das “novas preocupações ecológicas” se apossaram também empresários e promotores imobiliários, que passaram a ter seus discursos voltados à oferta do “verde” (parques, praças, áreas verdes etc.), maximizando a apropriação e oferta da “mercadoria verde” , a natureza.

OS PARQUES E A PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO

O desenvolvimento de políticas públicas e privadas, em muitas cidades, tem sido pautado no ideário ecológico, onde as paisagens de natureza, materializadas, sobretudo, nas imagens de parques, têm se convertido em estratégia para a projeção de executivos municipais, e em veículo condutor das práticas de reprodução ampliada do capital no espaço urbano.

Na cidade de Curitiba-PR, os diversos parques implantados após 1970 contribuíram para a consolidação da imagem/marca: Curitiba – capital ecológica; capital da qualidade de vida, entre outros. Constatou-se que, no período de 1972 a 2003, foram criados 30 parques e 300 praças em Curitiba, além de vários bosques, o que reforça o argumento de que a temática ambiental contribuiu decisivamente para a “projeção” da cidade enquanto capital ecológica (RECHIA, 2003RECHIA, S. Parques públicos de Curitiba: a relação cidade-natureza nas experiências de lazer. 2003. Tese (Doutorado em Educação Física). Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2003.).

Sanchéz e Moura (1999)SÁNCHEZ, F; MOURA, R. Cidades-modelo: espelhos de virtude ou reprodução do mesmo? Cadernos IPPUR. Ano XIII, no 2. Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR, 1999, p. 95-114., ao discutirem o planejamento estratégico de cidades e a projeção de Curitiba como cidade-modelo, afirmam que o ideário da sustentabilidade e o discurso da qualidade de vida se converteram em pilares estratégicos na difusão da imagem da cidade. No entanto, junto às noções de “boa governança” e de “eficiência ecoambiental” da cidade-modelo, têm-se a segmentação e a fragmentação do seu território, evidenciando as desigualdades socioeconômicas.

As cidades-modelos são vistas, construídas a partir de elementos urbanísticos, de práticas de gestão ou das chamadas soluções criativas para problemas urbanos. Submetem-se às exigências e/ou adaptam-se ao “modelo global” para, então, tornarem-se atrativas ao capital. Entretanto, os custos dessa adaptação, que não privilegia todas as parcelas da cidade e da população, são socializados, já que são arcados, em grande parte, pelos recursos da administração pública (SANCHÉZ e MOURA, 1999SÁNCHEZ, F; MOURA, R. Cidades-modelo: espelhos de virtude ou reprodução do mesmo? Cadernos IPPUR. Ano XIII, no 2. Rio de Janeiro: UFRJ/IPPUR, 1999, p. 95-114.).

As cidades e seus diferentes aspectos são postos à venda no modelo neoliberal do planejamento estratégico. Imprime-se na cidade a lógica da empresa, cuja competitividade tem como horizonte o mercado. Para isso, criam-se imagens a ser vendidas, pois ao projetar a cidade canalizam investimentos de capitais que serão aplicados em áreas específicas no conjunto espacial urbano.

Como afirma Vainer (2000, p. 83)VAINER, C. B. Pátria, empresa e mercadoria. In: ARANTES, O; et al. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 75-103.,

transformada em coisa a ser vendida e comprada, tal como constrói o discurso do planejamento estratégico, a cidade não é apenas uma mercadoria mas também, e sobretudo, uma mercadoria de luxo, destinada a um grupo de elite de potenciais compradores: capital internacional, visitantes e usuários solváveis” (grifo do autor).

O planejamento estratégico, ao tempo que prepara e lança a cidade no mundo da competitividade urbana, com a venda da imagem de cidade segura, justa e democrática, traveste a cidade de um utopismo que não tem correspondência com a realidade. Dessa forma, impõe-se a despolitização planejada da sociedade, em que o “debate sobre as prioridades e o projeto de cidade não têm nada a ver com o debate acerca da natureza, prioridades e projeto de sociedade” (VAINER, 2000, p. 96)VAINER, C. B. Pátria, empresa e mercadoria. In: ARANTES, O; et al. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 75-103..

Da mesma forma como ocorreu em Curitiba, muitos parques urbanos foram criados de forma vertiginosa em diversas partes do mundo, valendo-se do discurso ambientalista propagado. Em muitos casos desempenham mais função estética e de lazer no espaço urbano, pela insignificância do seu conteúdo natural, produzindo um diferencial em certas parcelas do espaço, embora isso não apareça nos discursos daqueles responsáveis pelas suas criações.

Não obstante, há de se considerar que não são as áreas urbanas que apresentam as condições mais favoráveis à delimitação de “reservas naturais”. Na ocorrência ou não de representativos da fauna e flora local, várias categorias de espaços, que muitas vezes são percebidos pela sua conotação ecológica (parques, praças, áreas verdes, áreas de lazer etc.), mesmo que, em muitos casos, despossuídos de qualquer conteúdo “natural”, têm sido criadas segundo os mais variados interesses. A questão não está em se delimitar áreas de interesses ambientais, importantes também do ponto de vista educacional e do lazer, mas onde se delimitam essas áreas, em que tempo e para quem.

No espaço urbano, uma contradição fica evidente quando se observa que a pressão das incorporadoras imobiliárias tanto ocorre para que o poder público delimite áreas de interesse ambiental (parques etc.), porque passam a fazer parte da oferta do “lugar” enquanto mercadoria, quanto atuam para que a “natureza” seja extirpada, reduzida e/ou ocultada, quando aparece como um inconveniente, a exemplo de árvores, cursos d’água, resquícios de vegetação nativa, quando se encontram nas partes de loteamentos onde ficariam os lotes mais valorizados.

Muitas áreas públicas são delimitadas, implantadas e muitas vezes apropriadas privadamente, voltando-se ao uso de classes específicas, porque estão localizadas estrategicamente em bairros, em geral, ocupados pelas elites. Em muitos casos, não constituem espaços importantes de “preservação” da fauna e flora nativas, mas expressam o espetáculo, o simulacro da natureza.

Em Ribeirão Preto-SP, parques públicos como o Augusto Ruschi e o Cláudio Franco Lima, embora criados por lei e ainda não efetivamente implantados, do ponto de vista da infraestrutura, não apresentam significativo importante da fauna e flora local. São espaços vazios não utilizados, efetivamente, para lazer ou contemplação/conservação da natureza. Dessa forma, a criação de inúmeros parques na cidade de Ribeirão Preto não se justifica pela necessidade de conservação da fauna e flora, uma vez que estes não dispõem de nada a preservar. Mesmo assim, são utilizados para engrossar os índices ilusórios de verde por habitante, tecnicamente endossados como medidores de “qualidade de vida”. Contraditoriamente, outros parques, como o Dr. Luís Carlos Raya, quando apresentam infra-estrutura e tratamento paisagístico, têm contribuído para o aumento da desigualdade socioespacial, visto que alteram o preço da terra e se voltam a um público restrito, por terem localização privilegiada (GOMES, 2009GOMES, M. A. S. Parques urbanos de Ribeirão Preto-SP: na produção do espaço, o espetáculo da natureza. 2009. Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de Geografia. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009.).

As cidades são produzidas a partir dos interesses privados e individuais, em muitos casos, em detrimento da coletividade e dos interesses públicos. O modelo econômico vigente, ao condicionar o espaço urbano a processos de produção, apropriação e consumo desigual, amplia as disparidades socioeconômicas, por inverter as prioridades. Os espaços públicos, como os parques, inserem-se nessa lógica, à medida que estão submetidos ao grande capital imobiliário e por servirem ao usufruto de classes sociais específicas, no contexto do espaço urbano. Ao serem produzidos, apropriados e consumidos desigualmente, os parques revelam a inversão das prioridades das políticas públicas no âmbito da produção do espaço urbano.

Na lógica neoliberal, a produção da cidade e de seus equipamentos, como os parques, se faz através da privatização, muitas vezes não explicitada, do espaço público e da submissão de muitos desses espaços aos interesses do grande capital. Ao serem submetidos à lógica de mercado, os equipamentos e os serviços urbanos se voltam àqueles que podem pagar, ampliando a exclusão da população mais empobrecida. A atuação do Estado, ao contrário do que propõe a visão neoliberal, deveria ser a de “afirmar o desenvolvimento das políticas públicas e obedecer à lógica da inversão de prioridades, visando atender as camadas que mais se pauperizam em decorrência de ajustes estruturais” (FÓRUM... , 1992, p. 208)FÓRUM Internacional das ONGs e Movimentos Sociais. Tratado das ONGs. Rio de Janeiro: Instituto de Ecologia e Desenvolvimento, 1992..

Os parques podem funcionar como equipamentos importantes na cidade, proporcionando recreação e lazer, especialmente às camadas mais carentes da sociedade que não dispõem de outras opções. Além disso, os parques podem atuar, entre outros, na capacidade de infiltração das águas, no favorecimento da ventilação e no desenvolvimento de práticas de educação ambiental, possibilitando a utilização democrática do espaço público.

Quando os parques surgem da parceria público-privada, como ocorreu com o Parque Dr. Luís Carlos Raya em Ribeirão Preto (GOMES, 2009GOMES, M. A. S. Parques urbanos de Ribeirão Preto-SP: na produção do espaço, o espetáculo da natureza. 2009. Tese (Doutorado em Geografia). Instituto de Geografia. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009.), localizam-se em áreas estratégicas do ponto de vista imobiliário e são executados enquanto “espaços verdes” e de lazer, disseminados como necessários ao conjunto espacial urbano. Assim, não podem ser compreendidos nem por meio do discurso oficial, nem pelo discurso de grupos privados interessados na sua criação, para a venda da sua imagem.

Para Harvey (2006)HARVEY, D. A produção capitalista do espaço. 2a ed. São Paulo: Annablume, 2006., parcerias público-privadas são empreendedoras. Na execução e no projeto são especulativas. Enfocam o investimento e o desenvolvimento econômico, e assim, contribuem para a construção especulativa do lugar.

Da forma que são planejados, na condição em que surgem e onde se localizam, muitos parques são para contemplação e apreciação por usuários específicos, aqueles que podem pagar para morar nas suas imediações ou para eles se dirigirem e, portanto, serem os atores que dão vida ao espetáculo, refugiado na ideia de natureza.

Como parte do projeto urbano moderno, os parques expressam o processo de “destruição criativa” do qual fala Harvey (1998, p. 26)HARVEY, D. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 7a Edição. São Paulo: Edições Loyola, 1998.. Diz este autor:

A imagem da ‘destruição criativa’ é muito importante para a compreensão da modernidade, precisamente porque derivou dos dilemas práticos enfrentados pela implementação do projeto modernista. Afinal, como poderia um novo mundo ser criado sem se destruir boa parte do que viera antes?

Os parques se apresentam como equipamentos urbanos que simbolizam a natureza, mas a mesma natureza negada pela cidade e destruída no campo. Alguns parques, por exemplo, em Ribeirão Preto-SP e Curitiba-PR, que se localizam em áreas de antigas pedreiras, constituem novos espaços nestas cidades, mas se revestem de outras características e propósitos dos parques dos séculos XVIII, XIX e início do XX. Esses parques não significam apenas a demarcação de um “espaço físico” na cidade, mas sinalizam a complexidade da produção do espaço.

A implantação de parques em áreas de antigas pedreiras é expressão do processo de destruição criativa, do que trata Harvey (1998)HARVEY, D. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 7a Edição. São Paulo: Edições Loyola, 1998.. Representa a destruição de formas pretéritas que não interessam para a acumulação de capital, que tem estagnada a renda diferencial da terra; implica a reprodução e reapropriação do espaço, altera as características morfológicas, a mudança do ritmo e da forma de extração da riqueza. Destrói-se o espaço anteriormente produzido para, então, recriá-lo, conferindo novos usos que contribuem para a reprodução do capital, para o aumento da renda da terra urbana, em especial da renda diferencial.

Como as áreas de antigas pedreiras (parques) não mais significam a extração direta da riqueza (terra, basalto etc.), foram modificadas, reproduzidas, e assim contribuem para o incremento, produção e circulação da riqueza no mercado imobiliário.

Os parques demarcados no urbano conferem uma dinâmica ao processo de produção do espaço. Aparecem como um objeto pontual no espaço urbano, mas são produto social, que tem relação direta com a manifestação e formas de reprodução da sociedade. Sua presença na paisagem não assinala apenas a implantação de um equipamento público voltado ao lazer, ou à natureza, imaginária ou real, para o uso comum, mas significa um processo de produção do espaço, mais amplo e complexo. A natureza em si, em seu estado natural, não cabe no projeto da cidade moderna. Aparece em fragmentos, moldada, (re)arranjada como elemento cênico no espaço urbano.

Os parques urbanos, como “espaços verdes”, inserem-se numa lógica que pressupõe promover no espaço urbano condições ou formas de reunir o espontâneo e o artificial, a natureza e a cultura. No entanto, os “espaços verdes”, ao constituírem uma natureza fictícia, porque criada e planejada, dentro de um projeto urbanístico, tornam-se aspectos da problemática urbana que vão além das imagens banalizadas do “meio ambiente”, pois supõem uma análise profunda da realidade. Estes espaços figuram como parte das boas intenções e das deploráveis representações urbanísticas, como afirma Lefebvre (1999, p. 36)LEFEBVRE. H. A Revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.. Assim, questiona: “o que pensar senão que constituem um substituto medíocre da natureza, um degradado simulacro do espaço livre, aquele dos encontros e dos jogos, dos parques, dos jardins, das praças?”.

Os parques materializam-se no espaço, como lugares, como espetáculos que se manifestam pela imagem, pela publicidade, pela significação atribuída, imposta. São objetos da paisagem que se tornam símbolos, da natureza, do moderno.

Como afirma Debord (1997, p. 15)DEBORD, G. A Sociedade do espetáculo - Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997., tudo o que reina sob as modernas condições de produção tem se apresentado como uma acumulação de espetáculos e “a linguagem do espetáculo é constituída por signos da produção reinante, que são ao mesmo tempo o princípio e a finalidade última da produção”. O parque, dessa forma, sendo o espetáculo que simula o real, a natureza, é efetivamente um produto, um signo do espaço urbano.

Diz Lefebvre (1999, p. 36)LEFEBVRE. H. A Revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.:

teoricamente, a natureza distancia-se, mas os signos da natureza e do real se multiplicam, substituindo e suplantando a ‘natureza’ real. Tais signos são produzidos e vendidos em massa. Uma árvore, uma flor, um ramo, um perfume, uma palavra, tornam-se signos da ausência: ilusória e fictícia presença.

Os parques surgem em tempo e em lugares determinados para assegurar interesses e representações produzidas pelas elites econômicas e políticas. Vinculam-se também às práticas de uso e ocupação do solo, pressupondo a apropriação e valorização de certas parcelas do espaço urbano. Esta valorização tem como âncora a modernização capitalista que dá suporte à reprodução do capital em escala ampliada, diferenciando parcelas do espaço.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta análise revelou que os parques urbanos são equipamentos que, ao serem implantados como espaços públicos voltados ao lazer e à conservação ambiental, contraditoriamente se caracterizam pela apropriação privada e pela negação (da conservação) da natureza, pois são implantados, em geral, em espaços vazios, com espécies exóticas, visando, sobretudo padrões estéticos. Constituem virtualidades no espaço urbano que absorvem e metamorfoseiam os aspectos do real, que incorporam, produzem a “natureza artificial”, inserindo-se no conjunto das estratégias capitalistas de produção e reprodução do espaço.

Os parques e seus elementos cênicos, criados, moldados, arranjados no espaço, simbolizam a efemeridade da natureza e dos objetos presentes no espaço. Ao mesmo tempo, a natureza criada, fictícia, projeta-se como parte do projeto urbano moderno, do “meio ambiente” como meta e norma. A natureza, contudo, torna-se “rara, fugidia, devastada, resíduo da urbanização e da industrialização”, usando as palavras de Lefebvre (1999, p. 36)LEFEBVRE. H. A Revolução urbana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999..

Os parques constituem espaços produzidos segundo a lógica de reprodução do capital. Tornam-se produtos não vendáveis em si, mas sua imagem passa a ser mercantilizada, proporcionando mudanças no valor da terra urbana e aumentando as diferenças socioespaciais. Os parques são equipamentos urbanos que vão além das ideias, discursos dominantes da proteção do meio ambiente, de espaços para lazer, da qualidade ambiental e qualidade de vida, como pregam os relatórios oficiais, como as “Agendas 21”, o Relatório Nosso Futuro Comum etc.

Esta análise evidenciou ainda como a natureza, “artificializada”, se tornou objeto de consumo das elites urbanas e elemento norteador de uma nova dinâmica de produzir o espaço, fruto da ideia “forjada” de um ambiente que, por ser esteticamente agradável, é ecologicamente correto e, portanto, constitui-se em uma prática sustentável. Em uma sociedade que privilegia a imagem, tudo tem se tornado espetáculo. A natureza, o parque, as relações pessoais, tudo passa pela linguagem do espetáculo, que mostra a visão de mundo objetivada pelo modo de produção em curso, como ensina Debord (1997)DEBORD, G. A Sociedade do espetáculo - Comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997..

Os parques urbanos, como espaços de lazer e refúgios de natureza no imaginário social, devem ser implantados segundo outra lógica, inversa à do lucro e da acumulação do capital, que os projetam como produtos para o mercado. A implantação desses equipamentos deve ser realizada com base no seu valor de uso, compreendendo-os como obra para usufruto da população em geral, e não como coisa a ser trocada ou vendida no mundo das mercadorias. “A obra é valor de uso e o produto é valor de troca”, como diz Lefebvre (2006)LEFEBVRE, H. O direito à cidade. 4a ed. São Paulo: Centauro, 2006..

No processo de produção do espaço urbano, com a destinação de recursos públicos para obras e interesses específicos, é necessária a participação popular. A participação efetiva de diferentes segmentos sociais pode resultar em políticas públicas menos excludentes, capazes de assegurar um processo participativo mais democrático, no qual as decisões sobre os investimentos públicos possam ser deliberadas coletivamente, de forma que contribuam como um instrumento de construção e fortalecimento da cidadania.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2014

Histórico

  • Recebido
    Jun 2014
  • Aceito
    Jul 2014
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