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OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO E A CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS NO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO

territory occupation and the municipalities creation during the Brazilian Imperial Period

Resumo

Após a Constituição do ano de 1988 foram criados, no Brasil, milhares de novos municípios, fato que chamou a atenção de muitos pesquisadores, que publicaram inúmeros trabalhos para explicar o fenômeno. Entretanto, a criação de municípios ocorreu desde os primórdios da ocupação do território brasileiro, tendo sido a primeira forma de governo instituída, no ano de 1532. O presente trabalho mostra especificamente a dinâmica da criação de municípios no período Imperial, compreendido entre 1822 e 1889, quando da independência do Brasil. O objetivo é associar a compartimentação do território em unidades políticas locais com a dinâmica de ocupação e formação do território no Brasil Imperial, ressaltando o papel que os municípios tiveram nesse processo. Para tanto se resgata a função do município naquele período, bem como a ordem espacial resultante da criação dessas unidades políticas, que é analisada com base nas estratégias geopolíticas para expansão e a posse do território.

Palavras-chave:
Território; Compartimentação territorial; Divisão do território; Criação de municípios; Emancipação municipal no Brasil Imperial

Abstract

After the 1988’s Constitution, Brazil has created, thousands of new municipalities, drawing the attention of a lot of researchers, who published countless works to explain the phenomenon. However, the municipalities’ creation have been occurred since establishment of the Brazilian territory, culminating with the first form of government was instituted, in 1532. The present work shows, specifically, the dynamic of the municipalities´creation throughout the Imperial period, starting in 1822 and going until 1889, by the time of the Independence of Brazil. The objective is to associate the territory partitioning into local political units, with the Imperial Brazilian territory formation an occupation dynamic, emphasizing the function of the municipalities in that process. For this, the work recovers the role of the municipalities during that period, as the spatial order resulting from these political units, which is analyzed based in the geopolitical strategies with the expansion and possession territory intentions.

Key words:
Territory; Territorial compartmentation; Territorial subdivision; Municipalities creation; Municipalities emancipating during the Brazilian Imperial period

Resumen

Después de la Constitución del año 1988 fueron creados en Brasil, miles de nuevos municípios,hecho que llamó la atención de muchos pesquisadores, que publicaron una cantidad innumerable de trabajos para explicar dicho fenómeno.Sin embargo, la creación de municípios ocurrió desde el principio de la ocupación del territorio brasileño, habiendo sido ésta la primera forma de gobierno instituída, en el año 1532. El presente trabajo muestra especificamente la dinámica de la creación de municipios en el período Imperial, comprendido entre 1822 y 1889, cuando aconteció la independencia de Brasil. El objetivo es asociar la compartimentación del território en unidades políticas locales con la dinámica de ocupación y formación del territorio en el Brasil Imperial, destacando el papel que desempeñaron los municipios en ese proceso. Para tanto se rescata la función del municipio en aquel período, asi como el orden espacial resultante de la creación de esas unidades políticas, que es analizada con base en las estrategias geopolíticas para la expansión y la posesión del territorio.

Palabras clave:
Territorio; Compartimentación territorial; División del territorio; Creación de municípios; Emancipación municipal en el Brasil Imperial

INTRODUÇÃO

Quando, em 1822, proclamou-se a Independência do Brasil, iniciou o período imperial brasileiro, que durou até o ano de 1889. Logo no início do novo regime – em 1824 –, foi outorgada a primeira Constituição, que foi também, até os dias atuais, a mais duradoura. Magnoli (1997)MAGNOLI, D. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: UNESP/Moderna, 1997. diz que o poder imperial surgiu da ameaça republicana, como instrumento de unidade política e territorial. De fato, aquele foi um período bastante centralizador, tanto do ponto de vista administrativo como político.

Embora de curta existência, se comparado à Colônia, o período imperial enfrentou inúmeros conflitos, tanto do ponto de vista interno como externo. Externamente travou-se a guerra com a Argentina pela posse da Província Cisplatina, e entre os anos de 1864 e 1870, houve a guerra com o Paraguai, fato marcante na história nacional. Internamente ocorreram inúmeras revoltas, como a Confederação do Equador (1824), a Cabanagem (1835-1840), a Sabinada baiana (1837-1838), a Balaiada maranhense (1838-1841) e a Revolução Farroupilha (1835-1845). Outra característica do período foi o intenso fluxo migratório de países europeus e a manutenção do trabalho escravo, cuja libertação só ocorreu em 1888, pouco antes de findar o Império, que marcou a formação social brasileira.

A intensificação de atividades econômicas rumo ao interior do território, relacionadas, sobretudo, ao cultivo do café, à criação de gado e exploração do látex, contribuiu fortemente para a dispersão populacional incorporando novas áreas à dinâmica produtiva. Tais movimentos de expansão levaram consigo a compartimentação do território. Entretanto, pelas características do Império, “A divisão do território se circunscreve apenas à dimensão administrativa, não possuindo qualquer substância política”. (MAGNOLI, 1997MAGNOLI, D. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: UNESP/Moderna, 1997., p. 93).

O presente texto tem por objetivo analisar a dinâmica de compartimentação do território no período imperial, notadamente a criação de municípios. Do ponto de vista histórico, a concepção metodológica do trabalho procurou evitar a pesquisa descontextualizada e, para tanto, considerou, como instrumento para pensar o objeto, o “[...] quadro de caracteres pertinentes de um conjunto de agentes ou de instituições” (BOURDIEU, 1989BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil/Difel, 1989., p. 29), que existem e agem num dado período. Do ponto de vista espacial o recurso metodológico foi pensar a geografia como:

[...] o ato de estabelecer limites, colocar fronteiras, fundar objetos espaciais, orientá-los, ou, em poucas palavras, o ato de qualificar o espaço; mas é também simultaneamente a possibilidade de pensar estas ações dentro de um quadro lógico, de refletir sobre essa ordem e sobre seus sentidos. (GOMES, 2003GOMES, P. C. da C. Geografia fin-de-siècle: o discurso sobre a ordem espacial do mundo e o fim das ilusões. In: CASTRO, I. E. de; COSTA, P. C. da; CORRÊA, R. L. (Orgs.). Explorações geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.).

Como resultado de tais concepções, o regime de governo Império e suas ações foram pensadas como geradoras de uma ordem espacial e, com base nisso estruturou-se o presente artigo. Na primeira parte procura-se construir o quadro de referência sobre a expansão e a compartimentação do território na escala regional, buscando uma contextualização histórica para auxiliar na compreensão do porque, mesmo num período com características centralizadoras, ocorreu a divisão territorial. A segunda parte apresenta e discute como a Instituição Município e as funções do governo local foram estruturadas no Brasil Império. Em seguida apresentam-se os dados referentes à criação de municípios e a configuração espacial resultante desse processo, que foi analisada como parte das estratégias geopolíticas de formação do território. Por último se apresentam as considerações finais, onde se expõe, de forma sintética, como ocorreu o processo de criação de municípios no período imperial brasileiro.

CENTRALIZAÇÃO E COMPARTIMENTAÇÃO DO TERRITÓRIO

Os períodos colonial e imperial apresentaram processos distintos, porém complementares, que geraram a configuração territorial do Brasil atual. O período colonial foi marcado pela expansão e ocupação do território bem como por um intenso processo de compartimentação territorial. Em consequência, quando da declaração da Independência, o Brasil estava praticamente constituído, do ponto de vista da fisionomia dos seus limites. Os anos posteriores à Independência foram marcados por uma profunda preocupação com a manutenção da integridade territorial, quando duas questões foram notadamente marcantes.

A primeira foi o esforço para garantir as linhas fronteiriças. O resultado desse esforço foi que, dos 15.708 km de fronteiras, 7.948 foram delimitados durante os anos do Império, - mais de 50% do total - seja por guerra, arbitramento ou negociação. (MAGNOLI, 1997MAGNOLI, D. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: UNESP/Moderna, 1997.). A segunda dizia respeito à unidade do país. A dilatação do território ocorrida durante o período colonial ampliou, sobremaneira, sua extensão e resultou na divisão em 18 províncias: Grão-Pará e Rio Negro, Maranhão, Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Mato Grosso, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas, Espírito Santo e Santa Catarina. Estavam ainda, na época da Independência, de posse do Brasil, a Guiana Francesa, que havia sido anexada em janeiro de 1809, e a Província Cisplatina (atual Uruguai), que havia sido incorporada em 1821, sendo a Guiana restituída em 1817 e a Província Cisplatina dando origem ao Uruguai, com o tratado de paz em 1828.

No período, em termos regionais, não se observaram movimentos expressivos por novas divisões territoriais. Exceções a essa regra constituem as províncias do Paraná e do Amazonas. O Paraná foi emancipado no ano de 1853 com o objetivo de formar uma espécie de enclave de apoio monárquico entre o Rio Grande do Sul e São Paulo, onde os ideais republicanos estavam em expansão. O Amazonas foi criado em 1850, após inúmeros conflitos e revoltas que tinham por motivação a emancipação política em relação ao Pará. (HOLANDA, 1985HOLANDA. S. B. de. História geral da civilização brasileira – Tomo II – O Brasil Monárquico, 2.o volume, São Paulo: Difel, 1985.).

Embora não tivessem ocorrido grandes mudanças no número de unidades existentes, foi durante o Império que se iniciaram os debates sobre a divisão dos estados brasileiros. Bastos publicou em 1870 um trabalho em que caracterizava a divisão herdada como um [...] problema rodeado de inúmeros tropeços, demandando um estudo sério de nossa geografia política [...] (1997, p. 345). A solução seria redividir os estados brasileiros sob duas formas: as áreas com maior densidade populacional seriam províncias com representação política no Império, e aquelas com reduzida população, seriam distritos administrados por autoridades nomeadas até se desenvolverem o suficiente, em população e economia, para obter representatividade política e transformarem-se em províncias.

Souza (1988)SOUZA, A. F. de. Estudo sobre a divisão territorial do Brasil. Brasília: Fundação Projeto Rondon, 1988. apresentou um estudo em 1878, no qual fez uma ampla revisão sobre a origem da divisão do território brasileiro em províncias. Concluiu que a divisão, baseada na herança colonial, já não servia mais ao país, pois a forma do Estado havia mudado e a divisão territorial deveria mudar também. Entretanto, não considerava exeqüível um reforma total, pois a força histórica que o território incorpora exigiria uma solução que preservasse, em parte, as divisões construídas historicamente, dando, porém, maior equilíbrio representativo às novas províncias. Propôs que o Brasil fosse dividido em 40 províncias, com base nas variáveis população, área e renda. Mas, dadas as características do povoamento, a efetivação dessa divisão deveria ser implementada a médio e longo prazo.

Como visto, o debate sobre o reordenamento dos estados não se deu imediatamente após a Independência. Isso porque as ações, particularmente nas duas primeiras décadas do período imperial, foram norteadas por uma preocupação de outra ordem: a divisão territorial herdada da Colônia tendia à desintegração. O primeiro movimento que evidenciava essa possível desintegração nacional ocorreu quando muitas províncias resistiram à Independência, como é o caso do Grão-Pará, Maranhão, Bahia e Piauí, que preferiram continuar recebendo ordens de Lisboa. Na Bahia e no Maranhão, a incorporação ao Brasil só acontece quando são derrotadas e expulsas as tropas portuguesas, enquanto o Grão-Pará e Piauí decidem-se pelo Constitucionalismo proposto pelo novo regime. (HOLANDA, 1985HOLANDA. S. B. de. História geral da civilização brasileira – Tomo II – O Brasil Monárquico, 2.o volume, São Paulo: Difel, 1985.).

Outro movimento foi em 1823, quando D. Pedro I dissolveu a Assembleia Constituinte e outorgou uma constituição de caráter centralizador, contrariando expectativas autonomistas das províncias. Pernambuco revoltou-se, apoiado pelas províncias do Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas, criando a Confederação do Equador. O movimento foi sufocado pelas forças imperiais no decorrer de 1824. Durante a regência (1831-1840), algumas províncias retomaram movimentos de cunho separatista, como é o caso do Pará e do Rio Grande do Sul (1835) e da Bahia (1837).

Carvalho (1980)CARVALHO, J. M. de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980. diz que a integridade do país ocorreu por conta da formação intelectual semelhante que teve a elite política que assumiu o poder no Brasil. Esses dirigentes haviam sido formados em Portugal, na Universidade de Coimbra, e ocuparam posteriormente altos cargos no Brasil. A crença comum dessa elite, associada à figura do imperador, que simbolicamente se projetava por todo o território, teria permitido manter o Brasil unido. Prado Junior (1933PRADO JUNIOR, C. Evolução política do Brasil - Colônia e Império. 1. ed. São Paulo: Brasiliense, 1933.), numa interpretação materialista, diz que a Independência ocorreu em função de a classe agrícola nacional ter interesses semelhantes em todo o território e de a classe dos comerciantes portugueses ter enfraquecido. Para Graham (2001)GRAHAM, R. Construindo uma nação no Brasil do século XIX: visões novas e antigas sobre classe, cultura e estado. Revista Diálogos, vol. 5 – UEM, Departamento de História, Maringá, 2001. Disponível em: <http://www.dhi.uem.br>. Acesso em: 11/2/2008.
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, a permanência da unidade do Brasil esteve relacionada não somente a causas materiais e econômicas, ou às ações centralizadas no Rio de Janeiro, mas à influência de lideranças de todas as partes do país. Para ele, as elites regionais foram percebendo que um governo descentralizado daria instabilidade ao Império e ameaçaria a ordem social e, por consequência, a autoridade das oligarquias locais. Associando essa reflexão com a existência de uma monarquia legítima, tais oligarquias teriam percebido que era vantajoso coexistirem num Estado centralizado e forte.

A divisão territorial herdada e construída sobre laços frouxos sobreviveu as tentativas de separação e, embora haja discordância nas explicações sobre a permanência da unidade territorial brasileira, todos os autores parecem concordar sobre o fato de que foi o Estado centralizado que permitiu o controle de todo o território e proporcionou a unidade do Brasil. Entretanto, a centralização política Império não foi consenso. Houve, durante o Império, mesmo por um curto período de tempo (período da Regência – 1831-1840), uma experiência política descentralizadora. Com a abdicação de D. Pedro I, em 1831, subiu ao governo um grupo de políticos liberais que em 12 de agosto de 1834 publicou o ato adicional (Lei n.º 16) que descentralizava o poder. Entretanto, essa legislação foi reformada pela Lei n.º 105, de 12 de maio de 1840, cujo conteúdo retira todo o caráter descentralizador da lei anterior, com o retorno dos conservadores ao poder. Desse embate, entre centralização e centralização, resultou a forma com que se estruturou o município brasileiro.

O MUNICÍPIO NO CONTEXTO DA CENTRALIZAÇÃO IMPERIAL

Do ponto de vista do uso das divisões territoriais, o Império fez o inverso da Colônia. Esta usava das compartimentações de modo arbitrário e confuso, procurando evitar o surgimento de uma força política centralizadora. O Império estabeleceu uma relação hierárquica bem definida do poder. Embora Fleiuss (1923)FLEIUSS, M. História administrativa do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1923. afirme que o Regimento do Governo Geral e as Ordenações - que eram o estatuto político da Colônia - tendiam a uniformizar a administração, Rocha (1997)ROCHA, C. L. A. República e federação no Brasil: traços constitucionais da organização política brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. observa que, até 1822, os municípios incorporavam costumes típicos da vida colonial brasileira. Localismos e particularidades na administração existiam, pelas próprias características do território. O Regimento do Governo Geral, por exemplo, pormenorizava as funções das autoridades coloniais, que deveriam ser idênticas em todas as donatárias. O esquema da administração colonial imposto foi, ao mesmo tempo, centralizador e dispersivo, demonstrando que desde o princípio da colonização houve a convivência de duas forças contrárias: uma centrífuga, representada pela forma de ocupação, via capitanias hereditárias e núcleos dispersos, e outra centrípeta, representada pela instalação do Governo Geral e pela centralização política, que procurava manter as forças centrífugas sob o controle da Metrópole.

No Império essa dualidade foi alterada. O sistema imposto pela Constituição Imperial ordenou os poderes, disciplinando funções tanto do ponto de vista vertical, ou seja, na estrutura política do Estado, como do ponto de vista horizontal, exigindo o cumprimento de funções padronizadas em todo o território. Para garantir esse sistema, foram criados os Conselhos Provinciais, que subordinavam as câmaras. Tais conselhos eram, por sua vez, subordinados ao presidente da Província, que era nomeado pelo imperador. Os atos legislativos dos Conselhos eram submetidos ao presidente da Província e, após, remetidos para aprovação do Poder Central.

A Constituição Imperial destinou apenas três artigos à função das câmaras: o artigo 167, que definia a competência do município, o artigo 168, que definia a eletividade dos seus membros, e o artigo 169, que remetia a uma lei complementar a função de especificar as competências municipais. Segundo Nunes, sob essa Constituição é que “Começou a fase verdadeiramente brasileira da história municipal no Brasil. Até então o que havia entre nós era o município português, transplantado para cá [...].” (1920).

O artigo 167 da Constituição dizia que “Em todas as cidades, e Villas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se crearem haverá Câmaras, às quaes compete o Governo econômico, e municipal das mesmas cidades e villas.” (CAMPANHOLE, 1986CAMPANHOLE, A.; CAMPANHOLE, H. Constituições do Brasil. São Paulo: Atlas, 1986.). Para Holanda, isso significou que “A tradicional indistinção, em nossas Câmaras, entre as funções políticas, jurídicas e administrativas, revelara-se claramente incompatível com os ideais dos tempos novos, que exigem uma rigorosa divisão de tais funções.” (1962). Para Faoro, “Sob o fundamento de separar os poderes, confundidos e embaraçados no período colonial, converteu-se o município em peça auxiliar do mecanismo central.” (2000).

A Constituição de 1824 havia reconhecido aos cidadãos o direito de deliberarem sobre as questões locais, mas, quando foi regulamentada pela a lei de 1.o de outubro de 1828 declarou-se que as câmaras passavam a ser corporações meramente administrativas. As competências locais eram amplas, mas especificadas detalhadamente. Ainda assim, as decisões das câmaras eram levadas à análise das províncias, que podiam aprová-las ou revogá-las. Em consequência, o município passou a ser um organismo administrativo sob tutela dos governadores das províncias. Para Faoro (2000)FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 15. ed. São Paulo: Globo, 2000. isso foi possível porque as câmaras das vilas, desde a Colônia, já vinham num gradual processo de submissão ao poder central. Entretanto, em 1831, quando os liberais subiram ao poder, foram publicadas medidas para dar autonomia aos municípios, como o Código Penal, instituído em 1832, que restaurou poderes policiais e judiciários, e o Ato Adicional n.º 16, de 12 de agosto de 1834, que fez alterações à Constituição, estabelecendo medidas descentralizadoras. Para Faoro,

as reformas, encaminhadas a devolver a nação a si própria, deveriam romper o círculo de ferro na cúpula do poder e abrir as comunicações políticas com as forças locais, os municípios e as províncias. Elas seriam implantadas, ladeando as exigências federalistas e os propósitos republicanos, em contraste à aliança, então pela primeira vez esboçada, entre república e federação, como expressões de uma ideologia comum, no esquema de autogoverno em todos os níveis territoriais. (2000).

O autor explica ainda que a autonomia judiciária determinada pelo Código Penal de 1832 se organizou através dos juízes de paz, juízes de direito e promotores públicos, dos quais tinham real poder somente os juízes de paz, que eram eleitos nos seus respectivos municípios. Do ponto de vista fático, entretanto, esse esquema serviu para concentrar o poder local nas mãos do poder econômico, já que eram os fazendeiros e latifundiários que elegiam tais juízes. O ato adicional de 1834, por sua vez, criou as Assembleias Legislativas Provinciais, cujos membros eram eleitos. As Províncias ficaram autônomas em relação a sua organização política, tendo poderes, inclusive, para nomeação, criação ou supressão dos cargos públicos, dos municípios e da própria província. O presidente da Província era a única autoridade nomeada pelo poder geral, mas ficava à mercê da Assembleia Provincial.

Nesse período descentralizador surgiram os movimentos de cunho separatista (Pará e Rio Grande do Sul em 1835, Bahia em 1837), problemas legais e administrativos, além do domínio dos municípios e províncias pelas oligarquias locais e regionais, o que as fortalecia. Em consequência, essa forma de organização foi acusada de anárquica pelo grupo político conservador, que em 1840 retornou ao poder. De imediato, a centralização foi restabelecida pela Lei n.º 105, de 12 de maio de 1940. Toda a estrutura política voltou a ser rigidamente controlada pelo poder central, que estabeleceu a uniformidade de organização, regulamentos e regras para todas as unidades territoriais. Juliato (2003)JULIATO A. C. O município brasileiro: autonomia jurídica na Colônia, Império e República. 2003. Dissertação (Mestrado em Direito), Universidade Metodista de Piracicaba, São Paulo. mostra que o ordenamento simétrico do estado foi a arma do Império para centralizar o poder.

Bastos (1997)BASTOS, T. A província: estudo sobre a descentralização no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro/Brasília: Imprensa Nacional, 1997. (primeira edição: 1870)., no entanto, defende o ato descentralizador de 1834, dizendo que a anarquia nada mais era do que diferentes experiências na forma de governar. Esse ato, afirma, poderia levar a formas diversas em relação à organização municipal em cada província. Sob a existência dessa condição legal, por exemplo, foi que a figura do prefeito apareceu pela primeira vez em São Paulo, no ano de 1835. Era nomeado pelos presidentes das províncias e a ele cabia executar serviços, enquanto as câmaras deliberavam. Essa experiência gerou, de imediato, modelos semelhantes, que se espalharam pelo país: Pernambuco, Ceará, Alagoas, Maranhão. Mas, de acordo com Bastos, nenhuma dessas províncias “[...] copiou fielmente um tipo qualquer: a imitação foi livre, cada qual alargou ou restringiu as dimensões do molde, segundo melhor atendesse às suas próprias circunstâncias [...].” (1997).

Assim, se na Colônia havia o jogo entre forças dispersivas e centralizadoras, no Império a vitória foi da última. A simetria foi usada como força centrípeta, com o intuito de evitar o surgimento de localismos e particularidades regionais que agissem como forças desagregadoras. Num período de tensão, o Império irradiou sobre o território um único poder, subordinando os poderes dispersos. A simetria foi usada como uma força de coesão que, ao reunir as partes numa só, procurava gerar o que se pode denominar de território liso - um espaço político sem conflitos – que ao subtrair do território o conflito, permitiria o controle bem mais eficaz sobre esse mesmo espaço. Nesse processo, a discussão centralização versus descentralização teria tido influência na emancipação municipal?

Quando foi promulgada a Constituição Imperial (1823), o artigo 167, ao citar as cidades e vilas que para o futuro se crearem, mostra que o Império reconhecia a divisão do território em municípios como fato dinâmico, mas, ao mesmo tempo, essa Constituição não especificava quem criava e como se criavam tais unidades. Tais definições ocorreram posteriormente. Em 13 de novembro de 1832, um decreto da Regência estabeleceu como seria a criação de municípios. Depois de autorizado pelo poder central, o trâmite burocrático era feito pela Câmara do município de onde a localidade seria desmembrada. Após a eleição e posse dos vereadores do novo município, todos os atos eram encaminhados ao presidente da Província, para sua confirmação. O trâmite definido por essa legislação consta, por exemplo, na ata de instalação, no ano de 1858, do Município de Nossa Senhora da Penha (atual Itapira-SP), que foi desmembrado de Mogi Mirim (SP). Encontram-se também nos históricos dos municípios de Santa Isabel–SP (emancipado em 1832), Petrópolis–RJ (emancipado em 1857) e Mossoró–RN (emancipado em 1852) referências à instalação do município segundo determinava o decreto de 1832.

Em 1834 foi repassada às assembleias provinciais a competência para a criação de municípios, que até então era centralizada. O ato adicional de 1834 determina que cabe às províncias decidir “[...] sobre a divisão civil, judiciária, e eclesiástica da respectiva Província, e mesmo sobre a mudança da sua capital para o lugar que mais lhe convier.” (CAMPANHOLE, 1986CAMPANHOLE, A.; CAMPANHOLE, H. Constituições do Brasil. São Paulo: Atlas, 1986.). Para verificar se, de fato, foram as Assembleias das Províncias que passaram a criar municípios, pesquisou-se o histórico de 178 dos 514 municípios criados de 1834 a 1889. Em todos os históricos consta que os respectivos municípios haviam sido criados por leis provinciais, fato que perdurou até o fim do Império.

Mesmo assim, o trâmite da criação de municípios abrangia todas as instâncias. Até 1834, o decreto era feito pelo poder central e repassado ao município-mãe para instalação da nova unidade. Os documentos referentes a essa instalação eram então repassados ao presidente da respectiva Província. A partir de 1834, o decreto de criação era publicado na Província, mas o sistema de centralização exigia que os decretos provinciais fossem validados pelo poder central.

DINÂMICA ESPACIAL DA CRIAÇÃO DE MUNICÍPIOS NO PERÍODO IMPERIAL

Durante o Império foram criados 661 municípios. Carvalho (1980)CARVALHO, J. M. de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980. divide esse período em cinco subperíodos:

  1. 1. Primeiro Reinado, 1822-1831;

  2. 2. Regência, 1831-1840;

  3. 3. Consolidação, 1840-1853;

  4. 4. Apogeu, 1853-1871;

  5. 5. Declínio e queda, 1871-1889.

Tais subperíodos apresentariam variações na emancipação municipal?

No Primeiro Reinado, período em que D. Pedro I esteve no poder, foram criados cinco municípios (Valença-RJ, Itapipoca e Saboeiro-CE, Piratini-RS e Pelotas-RS). Três foram criados no ano de 1823 (Valença, Saboeiro e Itapipoca) e dois em 1830 (Piratini e Pelotas). Mesmo assim, o Município de Valença, por exemplo, criado em 1823, teve seu processo de criação iniciado durante a Colônia e confirmado por lei imperial. No intervalo entre 1824 e 1829, não foi criado nenhum município, sendo os únicos anos em que, durante todo o Império, municípios deixaram de ser criados. O Primeiro Reinado se caracteriza, então, por apresentar poucas alterações na malha municipal da época.

No subperíodo da Regência (1831-1840) foram criados 123 municípios, ou seja, aproximadamente 14 municípios por ano.

No subperíodo denominado de Consolidação (1840-1853) foram criados 86 municípios, ou seja, aproximadamente sete municípios por ano.

No subperíodo denominado de Apogeu (1853-1871) foram criados 185 municípios, ou seja, aproximadamente 10 municípios por ano.

No subperíodo denominado de Declínio e queda (1871-1889) foram criados 263 municípios, ou seja, aproximadamente 13 municípios por ano.

Como se nota, à exceção do Primeiro Reinado, quando apenas cinco municípios foram criados, não houve, durante o Império, períodos em que municípios deixaram de ser criados, embora tenha ocorrido uma variação no número dessas unidades. A periodização proposta por Carvalho não identifica possíveis rupturas nas emancipações, já que o fenômeno se dá continuamente, perpassando os subperíodos indicados. No entanto, com o objetivo de procurar eventos políticos que poderiam levar a compreender melhor a dinâmica da criação de municípios, foi feita mais uma tentativa de periodização, tomando-se como referência a centralização versus a descentralização política ocorrida durante o Império.

Nesse caso teríamos a seguinte subperiodização:

  • Um primeiro subperíodo, que toma como marco o início do Império, perpassando a abdicação e prosseguindo até o ano de 1834, quando, sob a Regência, passa a vigorar a legislação descentralizadora.

  • Um segundo, entre 1835 e 1840, em que vigorou a legislação descentralizadora, até a lei que reverte o quadro descentralizador.

  • Um terceiro, entre 1841 até 1889, ano da proclamação da República.

No primeiro subperíodo, durante o reinado D. Pedro I, foram criados apenas cinco municípios, como vimos anteriormente. Contudo, entre os anos de 1831 e 1834, quando ocorreram os debates políticos a respeito da descentralização, foi criado um número expressivo de municípios, sendo 24 em 1831, 24 em 1832, 39 em 1833, e 3 em 1834, ou seja, 88 municípios em apenas 3 anos.

No segundo subperíodo, entre 1835-1840, foram criados 41 municípios, ou seja, uma média mensal de 5 municípios. No terceiro subperíodo, entre 1841-1889, ocorreram 526 emancipações, uma média de aproximadamente 10 por ano. Novamente não se encontram rupturas no processo de criação dessas unidades, já que, com mais ou menos intensidade, municípios sempre foram criados. Durante o período imperial, portanto, as emancipações ocorriam, em maior ou menor número, independentemente de fatos como instabilidade/estabilidade política e do embate centralização x descentralização. Esse resultado mostra que é difícil associar o fenômeno a conjunturas políticas específicas.

A distribuição, por província, dos municípios criados durante o período imperial consta na Tabela 1.

Tabela 1
Brasil: número de municípios, por província, no fim do império

A tabela, classificada em ordem decrescente, tendo como referência a coluna “municípios criados no Império”, mostra que, em números absolutos, a Província de Minas Gerais foi quem mais criou municípios, seguida por São Paulo, Bahia, Ceará, Rio Grande do Sul e Pernambuco.

Do ponto de vista regional, no atual Nordeste foram criados 291 municípios, no atual Sudeste 213, no Sul 75, no Norte 44 e no atual Centro-Oeste 19 municípios. Entretanto, em termos percentuais, o maior crescimento ocorreu nas províncias que tinham poucas dessas unidades, como é o caso de Goiás, Piauí, Amazonas e Rio Grande do Sul. Os municípios criados no Brasil Império estão espacializados na Figura 1.

Figura 1
Brasil: a espacialização dos municípios criados no período imperial Fonte: elaborado por A. Cigolini (2009) com base na localização e no ano da criação dos municípios, conforme consta no mapa da malha municipal (digital) do IBGE (2007)IBGE – Mapa da malha Municipal Brasileira (arquivo digital). Rio de Janeiro, 2007..

O mapa mostra que a criação de municípios, durante o Império, apresentou a seguinte dinâmica espacial:

  • A Província de São Paulo, na atual Região Sudeste, foi a segunda da Federação em número de unidades criadas, atrás somente de Minas Gerais. No entanto, os municípios foram criados do litoral até a porção central da província, e toda a região oeste permanecia sem municipalidades. Em Minas Gerais houve uma concentração maior de municípios nas porções sul e leste do que hoje compreende a Região Metropolitana de Belo Horizonte, assim como na porção leste do atual Triângulo Mineiro. As regiões do vale do Jequitinhonha, norte e noroeste, sobretudo esta última, apresentavam municipalidades esparsas, se comparadas ao restante do seu território. No Rio de Janeiro a criação de municípios gerou uma malha distribuída de modo bastante uniforme sobre o território. No Espírito Santo concentrou-se ao sul do rio Doce, enquanto ao norte apresentava um grande vazio até o limite com a Bahia.

  • Na Bahia, atual Região Nordeste, a criação de municípios ocorreu especialmente na região do vale do São Francisco, embora o mapa evidencie uma distribuição dispersa mas relativamente equilibrada de municipalidades por todo o território. Em Sergipe, Alagoas, Paraíba e Rio Grande do Norte, a malha gerada durante o período imperial se distribuía por todo o território. No Ceará foi gerada uma malha municipal que, embora dispersa, cobria todo o território, à exceção da região dos sertões cearenses e da atual Região Metropolitana de Fortaleza, que apresentaram menor número de municipalidades. O Piauí era a província com menor número dessas unidades, que estavam concentradas notadamente na região norte. No sul daquela província, municípios eram raros. No Maranhão, à exceção da região oeste, cujo número de municípios era reduzido, a criação de municípios ocorreu por todo território.

  • Na atual Região Norte, na Província do Pará, foram criados municípios na ilha do Marajó e nos arredores de Belém. No sul da Província, desde a divisa com o Amazonas, a oeste, até o rio Tocantins, a leste, não havia nenhuma municipalidade. No território que hoje constitui o atual Estado do Amapá, na época parte do território do Pará, foi criado o Município de Mazagão, em continuidade com a malha de municípios criados no Pará. Na Província do Amazonas, os municípios foram criados de forma bastante esparsa, acompanhando a calha dos rios Amazonas, Solimões, Purus e Madeira.

  • Na atual Região Centro-Oeste, em Goiás, foi criada uma malha de municípios relativamente bem distribuída, muito embora apresentasse uma extensa área vazia na região oeste, na divisa com o Mato Grosso. Na área que corresponde ao atual Estado de Tocantins, também não havia sido criado nenhum município. Na Província do Mato Grosso, à exceção do Município de Paranaíba, localizado na divisa entre o atual Mato Grosso do Sul, Goiás e Minas Gerais, todos os outros municípios criados durante o Império formavam uma malha contínua localizada nas margens do rio Uruguai e seus afluentes, na altura do atual Município de Corumbá. Entretanto, o reduzido número de municípios e sua concentração em pontos específicos caracterizavam essa região como um vazio em termos de municipalidades.

  • Na atual Região Sul, o Paraná havia criado municípios na região dos Campos Gerais, Curitiba e litoral, ou seja, basicamente na sua porção leste. No restante do território, à exceção do Município de Palmas, localizado no sul da Província, não houve a criação de nenhuma municipalidade. Na Província de Santa Catarina foram criados três municípios na região serrana, mas a grande concentração dessas unidades estava no litoral, onde se formou uma faixa contínua de municípios, do norte ao sul da Província. Na Província do Rio Grande do Sul, embora tenham sido criados municípios em praticamente todo o território, houve um adensamento de municípios no sul - fronteira com o Uruguai, onde se formou uma malha contínua, que abrangia desde o rio Uruguai, a oeste, até o litoral. Desse ponto, a malha prosseguiu de forma contínua, rumo norte, até o Município de Porto Alegre.

Primeiramente, chama atenção que a dinâmica de criação seguiu no mesmo sentido da expansão de municípios constatada nos séculos anteriores. Embora no Império tenham sido criados 3,5 vezes mais municípios, houve um adensamento nas áreas onde já havia municípios, mesmo que esparsos, e a permanência de vazios nas mesmas áreas vazias do período colonial. Isso pode caracterizar uma tendência de dispersão concentrada dessas unidades, ao mesmo tempo que evidencia uma tendência de maior institucionalização das regiões de ocupação mais antiga em relação à expansão sobre regiões novas.

No Rio Grande do Sul, a intensa institucionalização da fronteira sul, na divisa com o Uruguai, contrasta com a região central e o norte da Província, onde foram criados municípios de forma esparsa. Martins assim se refere à política territorial para a Província do Rio Grande do Sul:

Se o século 18 foi o período de lutas para a conquista do território, nos seus últimos anos e nas primeiras décadas do 19, as batalhas foram para sua manutenção. Esta situação valeu a esta Província uma constante prontidão militar, sob a qual surgem e se desenvolvem muitos núcleos de povoação. São povoados que dominarão extensivamente esse território, para garantir as conquistas acordadas no tratado de paz de 1801 e os posteriores assinados após a independência do Uruguai e da Argentina. Dentro desse quadro se desenvolverão cidades como Bagé, Jaguarão e Alegrete, entre outras. (2002).

Esse autor confirma que grande parte das aglomerações surgidas naquela fronteira são oriundas de instalações militares e que essas haviam sido estrategicamente criadas após os tratados de 1750 e 1777. Simultaneamente, segundo ele, ocorre distribuição de sesmarias também como estratégia política para consolidar a fronteira. Essa “Rede de povoados, alguns já delimitados como freguesia no fim do século 18, funcionou como marco avançado que delimitava as posses do território conquistado, mecanismo que os portugueses utilizaram para empurrar essa fronteira, ocupando suas terras livres com melhor disposição que os espanhóis.” (MARTINS, 2002MARTINS, R. D. A ocupação do espaço na fronteira Brasil-Uruguay: a construção da cidade de Jaguarão. 2002. (Tese de Doutorado). Universidade Politécnica de Catalunha, Espanha.). Neves tem a mesma interpretação para a malha municipal surgida naquele espaço, onde, para ele, a ação dos portugueses e, na sequência, a do Brasil Império, gerou “[...] uma rede urbana complementar: a da fronteira com a antiga banda oriental, cujos limites só foram definidos em 1851, engendrando um paredão de pontos urbanos numa fronteira permeável.” (1990). Esse paredão de pontos urbanos esteve estritamente vinculado com o movimento das fronteiras:

A cada avanço ou recuo das fronteiras – determinadas pelos tratados entre Espanha e Portugal –, foram criadas ‘plataformas’ de povoamento, em geral pela doação de datas ou sesmarias, que se constituíram na gênese do povoamento dos atuais núcleos urbanos. Esses povoamentos pontuais objetivaram garantir a territorialidade, ou pelo menos, apresentar argumentos à discussão diplomática. Eram certamente, símbolos poderosos.” (NEVES, 1990NEVES, G. R. A rede urbana e as fronteiras: nota prévia. In: OLIVEIRA, N.; BARCELLOS, T. (Orgs.). O Rio Grande do Sul urbano. Porto Alegre: FEE, 1990.).

Embora criados durante o Brasil Império, nota-se que as povoações iniciais desses municípios têm sua origem no Brasil Colônia: dos 49 municípios criados no Rio Grande do Sul durante o Império, somente 12 tiveram sua povoação inicial no próprio Império. O mesmo ocorre com os municípios gerados na atual Região Centro-Oeste. Hany observa que, durante o Brasil Colônia, no Mato Grosso havia sido

[...] adotado um estratégico processo de ocupação do sul da capitania, determinado a construção do forte Coimbra em 1775 e três anos depois a fundação das povoações de Albuquerque (atual Corumbá) e Vila Maria (atual Cáceres, Mato Grosso), com o objetivo de controlar a navegação das vias fluviais e evitar a penetração dos castelhanos. (2005).

Na mesma direção, Garcia (2005)GARCIA, D. S. da C. Território e negócios na "Era dos Impérios": os belgas na fronteira oeste do Brasil. 2005. (Tese de Doutorado). Universidade Estadual de Campinas – Instituto de Economia, Campinas: São Paulo. mostra como a política portuguesa se volta para o oeste do Brasil, com vistas a garantir o controle territorial daquele espaço, onde capitães-generais fundam Vila Bela e, posteriormente, os fortes de Coimbra e Príncipe da Beira, as vilas de Albuquerque, Vila Maria, Casalvasco e Viseu. O resultado dessas ações, segundo ele,

[...] não deixa dúvidas quanto às intenções da metrópole portuguesa, claramente expressas nas instruções dadas aos capitães-generais que foram enviados para Mato Grosso. Portugal agia motivado pelo valor estratégico que o oeste tinha na defesa de seus interesses territoriais na América. (2005).

Em consequência, nessa região, à exceção de Nioaque, que iniciou sua povoação e teve a emancipação durante o Império, todos os outros municípios criados no período imperial tiveram suas povoações iniciais durante o Brasil Colônia, emancipando-se durante o Império.

A Amazônia, segundo Correa (1987)CORREA, R. L. A periodização da rede urbana da Amazônia. Revista Brasileira de Geografia, ano 49, n.º 3, Rio de Janeiro: IBGE 1987., passou por um longo período de estagnação econômica e urbana, que se iniciou no final do século XVIII e foi até meados do século XIX, abrangendo as primeiras décadas do Império, portanto. Da metade do século XIX até o início do século XX, a região conheceu, segundo ele, um boom de riqueza e expansão urbana ocasionado pela extração da borracha. Dos 21 municípios criados na região, 8 foram criados no período que Correa (1987)CORREA, R. L. A periodização da rede urbana da Amazônia. Revista Brasileira de Geografia, ano 49, n.º 3, Rio de Janeiro: IBGE 1987.caracterizou como de estagnação econômica e urbana e 13 no período de riqueza e expansão urbana. Outra característica foi que, dos 11 municípios criados no Amazonas, apenas 1 (Urucara) foi povoado e emancipado durante o Império. No Pará, todos os 10 municípios criados (incluindo Mazagão, no atual Amapá) tiveram sua povoação iniciada no Brasil Colônia e sua emancipação durante o Império.

Assim, as áreas (fronteira sul, fronteira oeste e calha do Amazonas) em que se verificou a criação de municípios isolados da área contínua (litoral, até a linha de Tordesilhas) tiveram suas origens de acampamentos, fortificações militares e de povoações desenvolvidas de sesmarias ou projetos de colonização, sendo, portanto, formas oriundas de estratégias estatais de ocupação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Observando-se o conjunto da malha municipal formada durante o Império, nota-se que:

  • O movimento de interiorização seguiu uma tendência leste-oeste. Entretanto, essa interiorização dos municípios ocorreu ainda dentro do território definido pela antiga linha de Tordesilhas.

  • Na calha do rio Amazonas, foram criados municípios, embora de forma descontínua, desde a foz do citado rio até a fronteira da Colômbia e da Bolívia.

  • Na fronteira Brasil/Bolívia/Paraguai, nas imediações de Corumbá, formou-se uma mancha contínua de municípios.

  • Na fronteira sul do Rio Grande do Sul, formou-se a maior mancha contínua de municípios.

De modo geral, nota-se a continuidade da dinâmica espacial existente no Brasil Colônia, ou seja, os municípios foram criados das bordas em direção ao centro, refletindo ainda o movimento de ocupação que ocorria em função de determinações geopolíticas. Em outras palavras, pode-se dizer que os marcos para a institucionalização do território ocorrida durante o Império já haviam sido estabelecidos pelo esquema territorial estruturado no Brasil Colônia.

No Império, o governo local mudou suas funções dentro da estrutura governamental, sendo entendido como entidade administrativa. Nesse período se abriu a discussão a respeito dessa unidade de governo, o que é perfeitamente compreensível para um período de nacionalização e, portanto, de transformação de instituições coloniais em instituições nacionais. As unidades políticas locais foram unificadas por uma força centrípeta, garantindo a integridade do poder político, disperso durante o período anterior. Dessa forma, aos municípios se impôs a simetria – força centralizadora – produzida por uma ação verticalizada de controle e normatização do poder central. Ao mesmo tempo, surgiu o debate sobre a autonomia, que foi a grande reivindicação municipalista. Essa vinha como força diversificadora, exigida por ações horizontais, e tornou-se o contraponto à centralização, pois procurava valorizar as características locais, possibilitando particularizar as administrações diante do quadro territorial diverso apresentado no Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    Mar 2015
  • Aceito
    Maio 2015
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