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VULNERABILIDADES, RISCOS E JUSTIÇA AMBIENTAL EM ESCALA MACRO METROPOLITANA

VULNERABILIDADES, RIESGOS Y JUSTICIA AMBIENTAL EN LA ESCALA MACRO METROPOLITANA

Resumo

O processo histórico de (des)organização socioespacial e as dinâmicas da Macrometrópole Paulista (MMP) apresentam uma diversidade de situações de riscos ambientais urbanos, entendidos como “disfunções” com potencialidade de gerar processos causadores de perdas e danos às pessoas, bens e infraestruturas. A construção social dos riscos, relacionada à gestão insustentável do ambiente urbano, tem, na sua face mais perversa, a proliferação e perpetuação de situações de exclusão de grupos vulneráveis, vítimas da segregação socioespacial que restringe as populações mais pobres aos fundos de vale, às várzeas alagáveis e às encostas mais íngremes. Portanto, propomos uma revisão das relações entre meio físico e infraestrutura no âmbito da gestão urbana e a territorialização dos conflitos socioespaciais ligados à justiça ambiental, considerando a complexidade na MMP e as disparidades municipais.

Palavras-chave:
Vulnerabilidade; Riscos; Justiça Ambiental; Macrometrópole Paulista

Resumen

El proceso histórico de (des)organización socioespacial y las dinámicas de la Macrometrópolis Paulista (MMP) presentan una gran diversidad de situaciones de riesgos ambientales urbanos, entendidos como “disfunciones” con potencial de generar procesos que causan pérdidas y daños a las personas, bienes e infraestructuras. La construcción social de los riesgos, conectada a la gestión insostenible del ambiente urbano, tiene en su perfil más perverso la proliferación y perpetuidad de situaciones de exclusión de grupos vulnerables, víctimas de la segregación socioespacial que limita las poblaciones más pobres a residir en fondos de valles, áreas inundables y pendientes. Por lo tanto, proponemos una revisión de las relaciones entre medio físico e infraestructura en el ámbito de la gestión urbana y la territorialización de los conflictos socio espaciales conectados a la justicia ambiental, en el contexto de complejidad de la MMP y las disparidades municipales.

Palabras-clave:
Vulnerabilidad; Riesgos; Justicia Ambiental; Macrometrópolis Paulista

Abstract

The historical process of socio-spatial (dis)organization and the dynamics of the Paulista Macrometropolis (MMP) present a great diversity of situations of urban environmental risks, understood as “dysfunctions” with the potential to generate processes that cause loss and damage to people, surrounding goods and infrastructures. The social construction of risks, linked to the unsustainable management of the urban environment, has, on its most perverse face, the proliferation and perpetuation of vulnerable groups situations of exclusion, victims of socio-spatial segregation that restrict the poorest populations to valley floors, floodplains and the steepest slopes. Therefore, we propose a review of the relationship between the physical environment and infrastructure on urban management and the territorialization of socio-spatial conflicts related to environmental justice, considering the complexity of the MMP and the municipal disparities.

Keywords:
Vulnerability; Risks; Environmental Justice; São Paulo Macrometropolis

INTRODUÇÃO

No contexto urbano metropolitano brasileiro, os problemas ambientais têm se avolumado e agravado, e sua lenta tentativa de resolução tem contribuído para caracterizar um quadro estrutural de vulnerabilidade e insustentabilidade (JACOBI, 2013JACOBI, P. R. São Paulo metrópole insustentável - como superar esta realidade. Cadernos Metrópole (PUCSP), v.15, p.219-239, 2013.). Proliferam conflitos que se manifestam de diversas formas e configuram práticas de apropriação do território e de seus recursos permeadas por determinantes que complexificam o avanço em direção a uma gestão sustentável das cidades (RIBEIRO, 2005RIBEIRO, A. C. T. Território usado e humanismo concreto: o mercado socialmente necessário. In: X Encontro de geógrafos da América Latina, 2005, São Paulo. X Encontro de geógrafos da América Latina, 2005.).

Os conflitos transcendem escalas, do local ao regional, e, para o caso estudado, a Macrometrópole Paulista (MMP), ilumina as desigualdades a partir da formação de uma região composta por cinco regiões metropolitanas e duas aglomerações urbanas (TORRES et al., 2019TORRES, P. H. C.; RAMOS, R. F.; REGINA, L. G. Conflitos ambientais na Macrometrópole Paulista : Paranapiacaba e São Sebastião. Ambiente & Sociedade , São Paulo, v.22, e0101, 2019.). O território com maior Produto Interno Bruto (PIB) do país possui heterogeneidade em sua configuração e, até o momento, as políticas e o planejamento apresentados pelo Governo do Estado de São Paulo não contribuem para a diminuição das desigualdades, ao contrário, apontam para maior concentração nos atuais eixos de desenvolvimento (TRAVASSOS et al., 2020TRAVASSOS, L. R. F. C.; TORRES, P. H. C.; ZIONI, S.; FERNANDES, B.; MACHADO, G. Heterogeneidade e fragmentação espacial na Macrometrópole Paulista : a produção social de fronteiras e buracos. Ambiente & Sociedade , v.23, 2020.; TORRES; RAMOS; POLLACHI, 2020TORRES, P. H. C.; RAMOS, R. F.; POLLACHI, A. A macro metropolização em São Paulo: reterritorialização, reescalonamento e a cidade-região. Cadernos Metrópole , vol.47, 2020.).

A “insustentabilidade” do padrão de urbanização metropolitano caracteriza-se pela prevalência de um processo de expansão e ocupação dos espaços intraurbanos que, na maior parte dos casos, configura baixa qualidade de vida para parcelas significativas da população. As cidades têm a marca da dualidade, sendo que as partes que abrigam a população mais carente, relegada dos benefícios urbanos, têm tido crescimento horizontal e vertical muito maior que a denominada cidade formal (ARRETCHE, 2015ARRETCHE, M. Trajetórias das desigualdades: como o Brasil mudou nos últimos 50 anos, 1º ed. São Paulo: UNESP, 2015.).

O planejamento de uso e ocupação do solo marcado pela segregação socioespacial e injustiça ambiental têm (re)produzido áreas de riscos socioambientais urbanos (SOUZA, 2019SOUZA, M. L. Ambientes e territórios: uma introdução à ecologia política, 1º ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 2019.). Os riscos socioambientais urbanos dizem respeito aos fenômenos imbricados de contingências naturais e sociais que desestabilizam as condições de vida das sociedades urbanas e evidenciam elementos e fatores de ordem natural (ambiental) e social (cultural, política, econômica e tecnológica) (MENDONÇA, 2011MENDONÇA, F. A. Riscos e vulnerabilidades socioambientais urbanos: a contingência climática. Mercator , Fortaleza, v.9, n.1, p.153-163, Jan. 2011.). Trata-se, portanto, de problemas que poderiam ser evitados, neutralizados ou reduzidos, mas acabam potencializando as catástrofes e/ou desastres. O uso inadequado do solo, com a construção de moradias em terrenos de encostas, em margens de cursos d'água, tornam-se áreas de risco de deslizamento, enchentes e inundações, reflexo de uma ocupação desordenada, excludente e segregacionista.

O grau de vulnerabilidade socioeconômica está normalmente associado à exposição diferencial aos riscos e indica maior ou menor exposição de pessoas, lugares, infraestruturas e/ou ecossistemas a algum tipo particular de agravo, configurando uma distribuição desigual de riscos não apenas socialmente, mas espacialmente (CANIL; LAMPIS; SANTOS, 2020CANIL, K.; LAMPIS, A.; SANTOS, K. L. Vulnerabilidade e a construção social do risco: uma contribuição para o planejamento na Macrometrópole Paulista. Cadernos Metrópole, v.22, p.397-416, 2020.). Isso nos leva a discutir a temática da justiça ambiental (ACSELRAD, 2002ACSELRAD, H. Justiça ambiental e construção social do risco. Desenvolvimento e meio ambiente. Ed. UFPR, Curitiba, v.5, p.49-60, 2002.) enquanto uma abordagem que coloca o tema da necessidade de avançar em políticas públicas cujo foco seja tornar as cidades não apenas mais preparadas para os diversos tipos de desastres, mas principalmente reorientar a maneira como as cidades vêm sendo (re)produzidas, aspecto essencial para aumentar sua resiliência. Sobretudo em um contexto de mudanças climáticas em que há tendência de aumentos de eventos climáticos severos e que afetarão as populações mais vulneráveis (LAMPIS et al., 2020LAMPIS, A.; CAMPELLO, P. T.; JACOBI, P. R.; LEONEL, A. L. A produção de riscos e desastres na América Latina em um contexto de emergência climática. O Social em Questão, v.48, p.75-92, 2020.). Isso demanda que a população tenha mais percepção dos riscos a que está sujeita e seja integrada aos processos de planejamento e tomada de decisão.

A administração dos riscos socioambientais, dessa forma, coloca cada vez mais a necessidade de ampliar o envolvimento público por meio de iniciativas que possibilitem um aumento do nível de consciência ambiental e ação. O que configura um processo intelectual, enquanto aprendizado social baseado no diálogo e interação em constante processo de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significados, sendo originados do aprendizado, em cursos de capacitação e formação para aprimorar práticas da sociedade civil e do poder público numa perspectiva de cooperação entre os atores envolvidos (SULAIMAN; JACOBI, 2018SULAIMAN, S. N. Reflexão e ação: educar para uma cultura preventiva. In: SULAIMAN, S. N.; JACOBI, P. R. (Orgs). Melhor prevenir: olhares e saberes para a redução de risco de desastre . São Paulo, IEE-USP, 2018.).

Para analisar essas questões, o presente artigo está dividido em três partes interconectadas pela abordagem da construção social do risco e da justiça ambiental, com recorte territorial da MMP, expondo um território com contradições intrínsecas ao processo de financeirização do espaço, desigualdades e vulnerabilidades sociais. A primeira parte apresenta o debate conceitual proposto a partir da discussão contemporânea sobre riscos e vulnerabilidades. A segunda parte busca aproximar a dinâmica apresentada na primeira seção ao território objeto da análise. Nesse sentido busca-se uma caracterização da região macro metropolitana a partir do Plano de Ação da Macrometrópole (PAM), seu principal instrumento de planejamento e governança - e onde se pode identificar a visão do Estado para esse território.

Como elemento ilustrativo para exposição e análise das vulnerabilidades sociais da MMP, apresentamos as distorções propostas no PAM para endereçar as questões sociais e as desigualdades regionais, assim como para um tema chave e definidor da extrema iniquidade que é o acesso a água e ao saneamento na região. Não se trata de ter a questão da água e do saneamento como objeto central do artigo. Mas reforçar o argumento da produção social das vulnerabilidades, riscos e desastres, e seu entrelaçamento conceitual com a noção de Justiça Ambiental.

A terceira e última parte apresenta uma caracterização da suscetibilidade a deslizamentos e da vulnerabilidade no território da MMP, considerando as cartas geotécnicas de Suscetibilidade, Aptidão à Urbanização e de Risco. O que se observa, de maneira geral e é confirmado com a pesquisa sobre a MMP, é que os governos locais que conseguem promover ações sustentáveis e inclusivas, a partir de premissas que articulam a inovação com a superação das lógicas recorrentes, tornam-se exemplos de como as cidades podem enfrentar questões estratégicas em direção à sustentabilidade local articulada com a resolução de desigualdades sociais. Os desafios existentes para articular esses atores em processos que geram decisões num contexto de complexidade são múltiplos e fortemente associados à necessidade de dar visibilidade, transparência e aproximar os atores às questões colocadas pela sociedade de risco contemporânea.

CONSTRUÇÃO SOCIAL DO RISCO

O aumento da desigualdade e da segregação socioespacial está marcado na expansão das áreas urbanas sujeitas à ocorrência de eventos naturais (deslizamentos, inundações, tempestades, etc.) e levou consequentemente à degradação ambiental, configurando novos territórios de vulnerabilidade e riscos (CANIL et al., 2019CANIL, K.; MYAMOTO, M. M.; FIGUEIRA, R. M.; TOMBETA, L. R. Gestão de riscos e desastres e a articulação com o Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado: ações para uma governança da Região Metropolitana de São Paulo. In: Encontro nacional Anpur, 18, 2019, Natal. Anais..., Natal: Anpur, 2019.). Os fenômenos naturais sempre foram considerados os “vilões” das situações de riscos e desastres, mas é a partir de meados dos anos 1980 que se inicia uma abordagem teórico-metodológica que procurou enfocar os riscos e desastres (naturais ou tecnológicos) do ponto de vista não apenas de seus fatores físicos desencadeantes, mas com base nos elementos sob risco, ou seja, na população ou sociedade exposta a esses processos (ALMEIDA, 2011ALMEIDA, L. Q. Por uma ciência dos riscos e vulnerabilidades na geografia (A science of the risks and vulnerabilities of geography). Mercator, Fortaleza, v.10, n.23, p.83-99, Nov. 2011.).

Essa perspectiva ganhou repercussão com as conferências internacionais sobre o tema sediadas pelo Japão. A 1ª Conferência Mundial (1994) apresentou a Estratégia e Plano de Ação de Yokohama para um Mundo Mais Seguro, questionando o enfoque predominantemente técnico e científico e propondo abordar as vulnerabilidades das populações e fatores de risco. A 2ª Conferência Mundial (2005) resultou no Marco de Ação de Hyogo 2005-2015: aumento da resiliência das nações e comunidades, deixando evidente a necessidade de se apoiar a capacidade de adaptação das populações frente aos desastres para o aumento da resiliência de governos e comunidades locais. A 3ª Conferência Mundial (2015) culminou no Marco de Ação de Sendai para redução de risco 2015-2030 colocando em pauta a perspectiva da governança e da participação política da sociedade (SULAIMAN, 2018SULAIMAN, S. N.; JACOBI, P. R. (orgs). Melhor prevenir: olhares e saberes para a redução de risco de desastre, 1º ed. São Paulo: IEE-USP, 2018.).

O aumento da ocorrência de desastres, a eclosão da crise ambiental e a melhoria gradual nas condições de vida contribuíram para a desconstrução da crença de que o desenvolvimento técnico-científico possibilitaria a construção de uma sociedade segura, completamente imune aos riscos (SANTOS, 2015SANTOS, J. O. Relações entre fragilidade ambiental e vulnerabilidade social na susceptibilidade aos riscos. Mercator , Fortaleza, v.14, n.2, p.75-90, Sep. 2015.). Dessa forma, os riscos são compreendidos como intrínsecos às ações predatórias e que a sociedade contemporânea executa em seu território.

Segundo Santos (2015)SANTOS, J. O. Relações entre fragilidade ambiental e vulnerabilidade social na susceptibilidade aos riscos. Mercator , Fortaleza, v.14, n.2, p.75-90, Sep. 2015., os riscos são parte de um processo de construção social, pois foram produzidos a partir da ação da sociedade e é sobre ela que ele se manifesta. Esses são sentidos pelos indivíduos e, ao se manifestarem, podem provocar prejuízos às pessoas, aos bens, às estruturas e à organização do território. A percepção, o conhecimento e a consideração do risco podem variar em função da cultura, do nível de desenvolvimento econômico e mesmo do grupo social envolvido. Em documento oficial do Ministério das Cidades (BRASIL, 2007BRASIL. Ministério das Cidades; Instituto de Pesquisas Tecnológicas. Mapeamento de riscos em encostas e margem de rios. Brasília: MC/IPT, 2007., p. 26), por área de risco, entende-se:

área passível de ser atingida por fenômenos ou processos naturais e/ou induzidos que causem efeito adverso. As pessoas que habitam essas áreas estão sujeitas a danos a integridade física, perdas materiais e patrimoniais. Normalmente, no contexto das cidades brasileiras, essas áreas correspondem a núcleos habitacionais de baixa renda (assentamentos precários).

Diretamente associada aos riscos, portanto, está a vulnerabilidade socioambiental urbana que, também atrelada a uma série de contingências sociais, políticas, econômicas, culturais, tecnológicas, etc. explicitam diferentes condições de exposição e de fragilidade de grupos sociais aos riscos. Dito de outra maneira, a vulnerabilidade socioambiental urbana evidencia a heterogeneidade dos impactos advindos dos riscos que se abatem sobre uma dada população, constituindo ambos - risco e vulnerabilidade socioambiental urbana - uma seara de alta complexidade para a compreensão e gestão urbana (MENDONÇA, 2011MENDONÇA, F. A. Riscos e vulnerabilidades socioambientais urbanos: a contingência climática. Mercator , Fortaleza, v.9, n.1, p.153-163, Jan. 2011.).

É justamente o grau de vulnerabilidade dos grupos sociais afetados que vai determinar sua capacidade de reconstrução após a ocorrência do desastre, o que, de certo modo, reflete as condições socioeconômicas da população e suas relações socioespaciais (SANTOS, 2015SANTOS, J. O. Relações entre fragilidade ambiental e vulnerabilidade social na susceptibilidade aos riscos. Mercator , Fortaleza, v.14, n.2, p.75-90, Sep. 2015.). Portanto, a exposição aos riscos e a capacidade de resposta de uma sociedade estão diretamente relacionadas às condições socioeconômicas dos grupos sociais afetados.

A visão hegemônica corrente seja da mídia, do senso comum ou mesmo da academia (BOURDIEU, 2001BOURDIEU, P. Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.; BECK, 1992BECK, U. Risk society: towards a new modernity. London: Sage, 1992.) sobre os riscos contemporâneos, em um contexto de variabilidade climática, e sua interface com as desigualdades ambientais (ACSELRAD, 2002ACSELRAD, H. Justiça ambiental e construção social do risco. Desenvolvimento e meio ambiente. Ed. UFPR, Curitiba, v.5, p.49-60, 2002.) precisa ser problematizada e ganhar visibilidade do ponto de vista da justiça ambiental. Dessa forma, fundamenta Acselrad (2009)ACSELRAD, H.; CAMPELLO, C.; BEZERRA, G. (Orgs). O que é justiça ambiental? 1º ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. que são as populações mais pobres que estão mais propensas aos riscos ambientais, e que a

imposição desproporcional de riscos ambientais às populações menos dotadas de recursos financeiros, políticos e informacionais, tem sido consagrado o termo injustiça ambiental. Como contraponto, cunhou-se a noção de Justiça Ambiental (ACSELRAD, 2009ACSELRAD, H.; CAMPELLO, C.; BEZERRA, G. (Orgs). O que é justiça ambiental? 1º ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2009., p. 17).

Nesse contexto, diferencia-se o conceito de risco sistêmico, sendo esse o risco a que todos os grupos sociais estão propensos, do risco de desastres socionaturais, cujo impacto recai sobre determinados grupos socioeconômicos ou sociodemográficos mais vulneráveis, o que ocorre em razão de um processo decisório que desloca o risco dos grupos mais beneficiados para grupos ou regiões mais vulneráveis, ou mesmo no tempo, deslocando o impacto ambiental para as futuras gerações (SULAIMAN; ALEDO, 2016SULAIMAN, S. N.; ALEDO, A. Desastres naturais: convivência com o risco. Estud. av., São Paulo, v.30, n.88, p.11-23, Dec. 2016.). Assim, mediante decisões das elites, seja no planejamento ou no investimento urbanístico, percebe-se uma desigual distribuição do risco em diferentes territórios.

Conforme preleciona Acselrad (2002)ACSELRAD, H. Justiça ambiental e construção social do risco. Desenvolvimento e meio ambiente. Ed. UFPR, Curitiba, v.5, p.49-60, 2002., além da distribuição desigual dos efeitos dos riscos ambientais, outra ação coletiva contra injustiças socioambientais dá-se no plano do discurso. Existe um discurso de legitimidade da distribuição desigual dos recursos ambientais, o qual é contestado pelos movimentos sociais que lutam contra a injustiça ambiental, “evidenciando a lógica social que associa a dinâmica da acumulação capitalista à distribuição discriminatória dos riscos ambientais” (ACSELRAD, 2002ACSELRAD, H. Justiça ambiental e construção social do risco. Desenvolvimento e meio ambiente. Ed. UFPR, Curitiba, v.5, p.49-60, 2002., p. 52).

Quando o conceito de injustiça ambiental é associado à questão das mudanças climáticas, tem-se, nas áreas urbanas, os cenários de situações climáticas severas nas quais pessoas em assentamentos precários ficam sujeitas a suportar os impactos do perigo, como inundações e deslizamentos. É nesse contexto que se faz necessária a democratização não apenas do conhecimento tecnocientífico, mas também dos processos decisórios, integrando esses indivíduos nos espaços de planejamento urbano (JACOBI; SULAIMAN, 2016JACOBI, P. R.; SULAIMAN, S. N. Governança ambiental urbana em face das mudanças climáticas. Revista USP, n.109, p.133-142, 22 Nov. 2016.).

Pensando a noção de território como uma área de disputas de poder e, portanto, conflitos, a vulnerabilidade precisa ser vista como uma construção histórica, um processo. Nesse sentido a vulnerabilidade de um território, será definida não só por dados técnicos de infraestrutura (ou ausência dela), ou pela maneira de se calcular um risco, um agravo a que aquele local está suscetível. Mas pelo conjunto de fatores, dentro de um processo histórico, que determina condições específicas de uma localidade a ter uma realidade de injustiça social, ter recursos naturais que interessem a apropriação e reprodução do capital e ao mesmo tempo poder servi-lo com uma infraestrutura mínima para o funcionamento dessa engenharia.

Além da vulnerabilidade de grupos de indivíduos vivendo nos municípios, é preciso refletir também sobre a fragilidade institucional de municípios de menor porte que muitas vezes não tem os meios de implementar, sozinhos, políticas de gestão de riscos. Por isso, Nogueira, Oliveira e Canil (2014)NOGUEIRA, F. R.; OLIVEIRA, V. E.; CANIL, K. Políticas públicas regionais para gestão de riscos: o processo de implementação no ABC, SP. Ambiente & Sociedade, São Paulo, v.17, n.4, p.177-194, Dec. 2014. defendem, que o modelo de consórcio para a gestão de riscos, como foi o caso exitoso da cooperação intermunicipal do Grande ABC paulista, pode ser uma boa opção para a gestão de riscos, pois permite que municípios menores se articulem com municípios mais capacitados e equipados na região, otimiza a obtenção de recursos materiais, técnicos, humanos e logísticos em um nível regional (sem a necessidade dessa estrutura em nível local) e possibilita a análise dos processos físicos em níveis regionais. A Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) possui outros consórcios mas ainda em processo de formação e consolidação para se aproximar de uma estrutura semelhante ao do ABC, quais sejam: Consórcio Intermunicipal dos Municípios da Bacia do Juqueri - CIMBAJU; Consórcio de Desenvolvimento dos Municípios do Alto Tietê - CONDEMAT; e Consórcio Intermunicipal da Região Oeste Metropolitana de São Paulo - CIOESTE.

INJUSTIÇA AMBIENTAL NO CONTEXTO DA MMP

A Macrometrópole Paulista é um dos maiores aglomerados urbanos do Hemisfério Sul envolvendo a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), e as da Baixada Santista (RBS), de Campinas (RMC), de Sorocaba e do Vale do Paraíba e Litoral Norte (RMVPLN), as Aglomerações Urbanas de Jundiaí (AUJ) e de Piracicaba (AUP) e a Unidade Regional Bragantina (URB), ainda não institucionalizada (Figura 1).

Figura 1
Macrometrópole Paulista e suas regiões

Segundo dados da Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano S.A. (EMPLASA), recentemente extinta (Lei nº 17.056/2019), a MMP compreende 3,4 mil km2 2 De acordo com o PAM, considera-se o índice de abastecimento de água acima de 90% como “bom”; entre 50% e 90% “regular” e inferior a 50% “ruim”. Para coleta de esgotos, considera-se acima de 90% como “bom”; entre 50% e 90% “ruim” e inferior 50% “péssimo”. Fonte: EMPLASA, 2014. Elaborada pelos autores. (21,5% do Estado de São Paulo), onde se concentram indústrias de alta tecnologia, comércio diversificado, serviços complexos e produtiva agroindústria, importantes portos (como Porto de Santos, com 29% do movimento de exportações e importações portuárias do país em 2019) e aeroportos (como Aeroporto Internacional de Guarulhos, com 42 milhões de passageiros em 2019), amplo complexo rodoviário e relevantes polos de conhecimento e inovação do país1 1 Para dados de Portos ver Estatístico Aquaviário, disponível em: <http://web.antaq.gov.br/ANUARIO/>, acesso em 31 de agosto de 2020. Para dados do Aeroporto de Guarulhos ver <http://www4.infraero.gov.br/>, acesso em 31 de agosto de 2020. . Integra 174 municípios (50% da área urbanizada do Estado) e 81,9% do PIB estadual em 2016. Possui 74,7% da população estadual em 2018 e 2,68 milhões de pessoas em setores subnormais (Censo 2010). Além disso, apresenta 20% do patrimônio natural protegido do Estado. A importância socioeconômica da região é exponencial assim como as disparidades sociais, a distribuição desigual dos riscos e as injustiças ambientais que serão abordadas neste artigo.

A formação da MMP, desde sua concepção (TAVARES, 2018TAVARES, J. Formação da macrometrópole no Brasil: construção teórica e conceitual de uma região de planejamento. EURE, v.44, n.133, p.115-134, 2018.), reforçou a narrativa oficial do governo de São Paulo, de que a formação dessa cidade-região (LENCIONI, 2015LENCIONI, S. Urbanização difusa e a constituição de megarregiões. O caso de São Paulo-Rio de Janeiro. E-metropolis, 22, p.6-15, 2015.; FREY, 2019FREY, K. Global city-region. The Wiley-Blackwell encyclopedia of urban and regional studies. Anthony Orum (Ed.). John Wiley & Sons Ltd., 2019.; TORRES; RAMOS; POLLACHI, 2020TORRES, P. H. C.; RAMOS, R. F.; POLLACHI, A. A macro metropolização em São Paulo: reterritorialização, reescalonamento e a cidade-região. Cadernos Metrópole , vol.47, 2020.) em características ímpares do ponto de vista de suas fronteiras e tamanho, buscaria resolver distorções regionais, sobretudo fora dos eixos-polo de São Paulo, Campinas, São José dos Campos e Santos.

A preocupação narrativa dessa questão está registrada no instrumento de planejamento publicado, em 2014, pela EMPLASA: o Plano de Ação da Macrometrópole Paulista (PAM) (2013-2040), que deveria servir de guia para o planejamento e a governança da região. No entanto, o próprio plano (EMPLASA, 2014EMPLASA. Plano de Ação da Macrometrópole Paulista. São Paulo, 2014.), estruturado a partir de eixos prioritários e uma carteira de negócios, cai em contradição se fizermos uma análise crítica dos projetos previstos. Os projetos reforçam a potencialidade dos eixos-polos existentes, não um desenvolvimento policêntrico das demais regiões, aglomerações e microrregiões.

Na Tabela 1, estão detalhados os projetos tidos como prioritários para MMP, separando-os pelos eixos propostos pelo Governo do Estado. O que fica evidente é a manutenção das desigualdades de investimentos e de prioridades por região, bem como o fato da RMSP se estabelecer como eixo irradiador para atração e circulação de capital nesse território.

Tabela 1
Quantidade de projetos e estimativa de investimento (em milhões de reais) por vetor territorial da Macrometrópole Paulista.

O desenvolvimento regional proposto, diretamente ligado aos projetos de transporte e logística, é apresentado no PAM sem problematização sobre seus objetivos, impactos ou alternativas. Ou, ainda, como esses projetos dão conta de fato de resolver as distorções regionais da MMP e os contrastes que são enormes (TRAVASSOS; MOMM; TORRES, 2019TRAVASSOS, L.; MOMM, S.; TORRES, P. Apontamentos sobre Urbanização, Adaptação e Vulnerabilidades na MMP. In: TORRES, P.; JACOBI, P.; GONÇALVES, L.; BARBI, F. Governança e planejamento ambiental: adaptação e políticas públicas na Macrometrópole Paulista . Rio de Janeiro: Editora Letra Capital, 2019.). Se de um lado a região produz cerca de 82% do PIB estadual (EMPLASA, 2016EMPLASA - Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano S.A. Macrometrópole Paulista, 2016. Disponível em: <https://emplasa.sp.gov.br/MMP>. Acesso em: 11/09/2020.
https://emplasa.sp.gov.br/MMP...
) em 21,5% (53,4 mil km2) do Estado, por outro, em 78,5% do território produzem-se apenas 18% do PIB, tendo um per capita extremamente baixo, evidenciando a característica fragmentada, heterogênea e desigual da MMP (TRAVASSOS et al., 2020).

Outro contraste, de caráter perverso do ponto de vista da saúde pública e da qualidade de vida, que se reflete na distribuição desigual dos riscos socioambientais urbanos, pode ser observado nos índices de abastecimento público de água e tratamento de esgoto do território. O índice de atendimento para abastecimento público de água, quando considerada a totalidade do território da MMP é tido como bom, com 90% de atendimento em todas as regiões metropolitanas . Para coleta de esgoto a taxa geral ficou em 86% e, para tratamento do esgoto coletado, os índices são bastantes reduzidos, atingindo apenas 31% (EMPLASA, 2014EMPLASA. Plano de Ação da Macrometrópole Paulista. São Paulo, 2014., p. 201). Contudo, ao examinarmos os índices específicos de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgotos, observando as taxas de atendimento por municípios e região metropolitana, verifica-se ampla desigualdade na infraestrutura de saneamento nas cidades que compõem o território macrometropolitano, sobretudo em relação a esses serviços.

A título de ilustração das desigualdades existentes na cobertura dos serviços de saneamento básico na MMP, apresentam-se, na Tabela 2, os menores índices de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgotos, para os municípios das regiões metropolitanas de São Paulo, Baixada Santista, de Campinas, de Sorocaba e do Vale do Paraíba e Litoral Norte, e as aglomerações urbanas de Jundiaí e de Piracicaba.

Tabela 2
Municípios com menores taxas de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos das regiões metropolitanas de São Paulo, Baixada Santista, Campinas, Sorocaba e Vale do Paraíba e Litoral Norte e das aglomerações urbanas (AU) de Jundiaí e Piracicaba.

Para o serviço público de abastecimento de água, ainda que o índice geral da MMP seja da ordem de 90%, há cidades com taxa de cobertura bem menor. Para coleta de esgotos, embora haja locais com índice de 100%, em alguns municípios a taxa é bastante baixa, como é o caso de São Lourenço da Serra com 51% e Juquitiba com 59,4%, e Itanhaém com 30%, ou com menos de 25%, como Itapecerica da Serra com 18%, Vargem Grande Paulista com 24%. Com respeito ao tratamento de esgotos, o índice geral para tratamento de esgoto da MMP é considerado ruim. Por exemplo, a RMSP trata 53,1% dos esgotos gerados e a RMBS, apenas 16,4% (EMPLASA, 2014EMPLASA. Plano de Ação da Macrometrópole Paulista. São Paulo, 2014., p. 201). Também há algumas cidades da MMP que não possuem qualquer tipo de tratamento de esgotos, como Caieiras, Franco da Rocha, Praia Grande e Santos.

O lançamento contínuo de águas servidas diretamente nas encostas ou vazamentos por meio de fossas, além de trazer riscos à saúde e demais impactos ambientais, traduz-se em importante indicador e agente que pode contribuir para a deflagração de deslizamentos de terra em áreas de assentamentos precários. Tais situações são evidenciadas nos diversos mapeamentos de riscos e Planos Municipais de Redução de Riscos elaborados para municípios da RMSP, a exemplo do município de Franco da Rocha.

Figura 2
(Esquerda) Lançamento de águas servidas e pluviais na meia encosta - Vila Josefina, Franco da Rocha

SUSCETIBILIDADE A DESLIZAMENTOS E VULNERABILIDADE NO TERRITÓRIO DA MMP

A Lei nº 12.608/2012 da Política Nacional de Proteção e Defesa Civil traz um conjunto de instrumentos e mecanismos com vistas ao planejamento e ordenamento territorial, exigindo dos municípios uma série de medidas para a proteção de seus habitantes e de sua infraestrutura, com apoio de cartas geotécnicas com diferentes escalas e objetivos.

Em linhas gerais, pode-se conceituar o termo “cartografia geotécnica” como a representação cartográfica das características do meio físico (solo, relevo e rocha) de forma integrada e os processos geológico-geomorfológicos e hidrológicos associados, tais como erosão, deslizamentos, inundações, colapsos, dentre outros, e os diferentes comportamentos dos terrenos frente aos tipos de intervenções e uso e ocupação do solo. Assim, para atender a Lei nº 12.608/2012, são considerados três tipos de cartas geotécnicas (BITTAR, 2014; SOUZA; SOBREIRA, 2014SOUZA, L. A.; SOBREIRA, F. G. Guia para elaboração de cartas geotécnicas de aptidão à urbanização frente aos desastres naturais: estudo de caso de Ouro Preto - 2013. Brasília, 2014; CANIL et al., 2018CANIL, K.; FREITAS, C. G. L.; SOBREIRA, F. G.; COLLARES, E. G. Cartografia geotécnica e geoambiental. Geologia de engenharia e ambiental, 1º ed. São Paulo: ABGE, 2018.):

Carta de Suscetibilidade que apresenta o grau de suscetibilidade dos terrenos (alto, médio e baixo) aos processos geodinâmicos (movimentos gravitacionais de massa, tais como deslizamentos, corridas e processos correlatos) e hidrodinâmicos (inundações e enchentes), em escala 1:25.000;

Carta de Aptidão à Urbanização que explicita as potencialidades e limitações dos terrenos frente à ocorrência dos processos geodinâmicos e hidrodinâmicos e indica diretrizes para implementar ocupações de forma segura, em escala 1:10.000; e

Carta de Risco que representa a setorização do grau de risco (muito alto, alto, médio e baixo) quanto à ocorrência dos processos geodinâmicos em escala maior que 1:2.000 (escala de detalhe).

Para efeito da escala da MMP, apresenta-se uma leitura da integração das cartas de suscetibilidade aos processos de deslizamentos que afetam os municípios e que foram mapeados a partir de um trabalho de cooperação entre o Serviço Geológico do Brasil - CPRM e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo - IPT, realizado no período de 2013 a 2018 (MOURA; CANIL; SULAIMAN, 2019MOURA, R. B.; CANIL, K.; SULAIMAN, S. N. Vulnerabilidade social, suscetibilidade e riscos de deslizamentos: Um estudo sobre a Macrometrópole Paulista . In: Encontro Nacional da ANPEGE, 13, 2019, São Paulo. Anais... , São Paulo: ANPEGE, 2019.). Nesse trabalho, as cartas de suscetibilidade foram elaboradas de maneira individualizada para cada município; entretanto, os dados espaciais encontram-se disponíveis no site da CPRM3 3 3http://www.cprm.gov.br/publique/Gestao-Territorial/Prevencao-de-Desastres/Produtos-por-Estado---Cartas-de-Suscetibilidade-a-Movimentos-Gravitacionais-de-Massa-e-Inundacoes-5384.html , o que possibilitou a integração de informações.

Ainda no que diz respeito à carta de suscetibilidade, ela apresenta, por meio da integração dos condicionantes do meio físico, o grau de suscetibilidade em relação aos deslizamentos e processos correlatos e às inundações e enchentes. Das 157 cartas de suscetibilidade do Estado de São Paulo, 125 correspondem aos municípios da MMP. Ao se abordar o risco, a carta de suscetibilidade trata de uma de suas componentes fundamentais, a ameaça/perigo, que pode ser traduzida como a probabilidade de um determinado fenômeno ocorrer.

A Figura 3 apresenta a integração das cartas de suscetibilidade que indicam as classes de baixa, média e alta suscetibilidade, de onde se pode observar as áreas de alta suscetibilidade a processos de deslizamentos e processos correlatos que ocorrem em uma faixa que se estende do norte dos municípios da RMSP (Serra da Cantareira) até os limites da Serra da Mantiqueira que abrange municípios de parte da Região do Vale do Paraíba. Ao sul, o trecho que limita a região do planalto e o litoral (sul e norte) pela Serra do Mar contempla municípios da Baixada Santista (Santos, São Vicente, Cubatão e Guarujá) e o do litoral Norte (São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Ubatuba), considerados os que apresentam parte significativa de seu território na classe de alta suscetibilidade, com alto potencial para geração de situações de risco.

Figura 3
Mapa de suscetibilidade aos processos geodinâmicos (deslizamentos e processos correlatos) para MMP

A esse aspecto da análise da suscetibilidade, somam-se outros fatores que podem levar à formação de áreas de risco relativos à vulnerabilidade, em uma outra dimensão e escala de análise. Assim, compreende-se que a componente da vulnerabilidade, sobre as condições sociais, econômicas e ambientais de uso e ocupação do solo, define o risco como fator de uma construção social. A vulnerabilidade influencia a perda socioeconômica relacionada à consequência de um desastre, sendo esse o fator associado à severidade seletiva dos processos sobre a população e a infraestrutura exposta ao risco. Assim, se faz necessário ir além da discussão das áreas expostas às ameaças (suscetibilidade) para se pautar políticas regionais de gestão de riscos, avaliando as fragilidades e incapacidades (vulnerabilidade) de pessoas e comunidades que se encontram expostas aos processos do meio físico e que podem intensificá-los.

O Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) auxilia na espacialização territorial da vulnerabilidade baseado nas informações do Censo 2010, a partir de dados socioeconômicos e demográficos. Dada a sua abrangência, esse instrumento pode ser utilizado para uma leitura regional, no sentido de conhecer e espacializar as áreas de maior vulnerabilidade social na MMP, como forma de oferecer subsídios aos tomadores de decisão para colocar em ação políticas públicas integradas, considerando risco, habitação, desenvolvimento social, e priorizar as áreas que perversamente congregam assentamentos precários e áreas de risco (MOURA; CANIL; SULAIMAN, 2019MOURA, R. B.; CANIL, K.; SULAIMAN, S. N. Vulnerabilidade social, suscetibilidade e riscos de deslizamentos: Um estudo sobre a Macrometrópole Paulista . In: Encontro Nacional da ANPEGE, 13, 2019, São Paulo. Anais... , São Paulo: ANPEGE, 2019.).

Por meio de uma combinação de variáveis, socioeconômica e demográfica, o IPVS classifica a vulnerabilidade social em sete grupos (Tabela 3). Ainda se considera nessa combinação a localização (urbana ou rural) e a forma de ocupação territorial (assentamentos precários ou normais/não precários). A condição socioeconômica é traduzida em alta, média e baixa e a composição familiar, entendida como condição demográfica, entre idosa, adulta e/ou jovem (SOUZA; OLIVEIRA; MINERVINO, 2013SOUZA, G. O. C.; OLIVEIRA, F. M.; MINERVINO, L. S. Primeira Análise: retrato socioterritorial da metrópole, São Paulo à luz do IPVS. São Paulo: SEADE, Nov. 2013.).

Tabela 3
Componentes do Índice Paulista de Vulnerabilidade Social.

Essa quantidade de classes de vulnerabilidade social é delimitada a partir de setores censitários, que possuem dimensões muito variadas (de um único condomínio até alguns quilômetros), o que para escala macrometropolitana torna-se um desafio para representá-las e interpretá-las. Assim, optou-se por agregar certos grupos a partir da reinterpretação dos dados, levando em conta a composição original do IPVS proposta por Souza, Oliveira e Minervino (2013)SOUZA, G. O. C.; OLIVEIRA, F. M.; MINERVINO, L. S. Primeira Análise: retrato socioterritorial da metrópole, São Paulo à luz do IPVS. São Paulo: SEADE, Nov. 2013. - também autores do IPVS. Dessa forma, o Mapa de Vulnerabilidade Social para MMP (Figura 4) foi composto pelas seguintes classes:

Baixa (Grupos 1, 2 e 3) - Condição socioeconômica de média a muito alta; de famílias jovens, adultas e/ou idosas;

Média (Grupo 4) - Condição socioeconômica baixa; e de famílias adultas e idosas;

Alta (Grupos 5, 6 e 7) - Condição socioeconômica baixa; e de famílias jovens em áreas urbanas ou assentamentos precários ou famílias jovens, adultas e idosas em setores rurais.

Figura 4
Mapa de Vulnerabilidade Social para MMP. Fonte: Adaptado de IPVS, 2010. (MOURA; CANIL; SULAIMAN, 2019MOURA, R. B.; CANIL, K.; SULAIMAN, S. N. Vulnerabilidade social, suscetibilidade e riscos de deslizamentos: Um estudo sobre a Macrometrópole Paulista . In: Encontro Nacional da ANPEGE, 13, 2019, São Paulo. Anais... , São Paulo: ANPEGE, 2019.)

Os maiores índices de vulnerabilidade concentram-se nos municípios ao sul da Região de Sorocaba, nos municípios da Região do Vale do Paraíba (bordas do Planalto Atlântico), Vale Histórico e municípios limítrofes com o Estado do Rio de Janeiro. As áreas com médio índice de vulnerabilidade predominam nos municípios periféricos da RMSP, retratando a segregação urbana, onde os mais vulneráveis socialmente encontram-se distantes das centralidades da RMSP.

Ressalta-se que os dois instrumentos supracitados, carta de suscetibilidade e IPVS, no âmbito da MMP, que abriga 174 municípios e onde residem mais de 33 milhões de pessoas, quando correlacionados e incluindo outros aspectos, podem nortear ações prioritárias para a gestão dos riscos socioambientais. Aponta-se para uma demanda de articulação política e governança entre municípios e as regiões metropolitanas para equacionar essa problemática com objetivo de enfrentar as situações que levam à formação de áreas de risco por meio de ações de intervenção para melhoria das condições e segurança, sobretudo dos territórios periféricos.

A aplicação desses mapeamentos deve, sobretudo, integrar ao contexto das outras deficiências de infraestrutura tal qual o abastecimento de água e tratamento de esgoto, apresentados anteriormente, compondo os cenários dos riscos socioambientais no espaço territorial. Em sua maioria tais cenários mostram que essas questões são em grande parte indissociáveis e seu efetivo tratamento prescinde de ações de intervenções de forma integrada, passando por questões técnicas, urbanísticas, legislativas, comunitárias etc.

CONCLUSÃO

Ao integrar a leitura dos mapas das áreas de suscetibilidade a processos geodinâmicos (deslizamentos e processos correlatos) ao da vulnerabilidade social e analisar os aspectos do saneamento (taxas de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto), observa-se que a condição da infraestrutura precária relacionada a água e esgoto é correspondente às áreas de maior vulnerabilidade ambiental. A componente suscetibilidade indica a probabilidade de ocorrência de um fenômeno em um determinado território e muito embora seja predominantemente classificada como média, os fatores externos que compõem a precariedade, a desigualdade e a segregação socioespacial podem formar territórios com situações de risco.

No contexto da MMP, a vulnerabilidade fica muito evidente quando se abordam os territórios periféricos que, do ponto de vista do meio físico, são mais frágeis, suscetíveis a processos de deslizamentos e inundações, e do ponto de vista ambiental, são responsáveis pela manutenção dos serviços ecossistêmicos, resguardados pelas leis de proteção ambiental, construindo um conflito entre proteção ambiental e direito à moradia e à cidade.

Compreender o risco como uma construção social atrelada a processo de injustiça ambiental e segregação socioespacial é premissa fundamental para o diagnóstico local e regional, especialmente diante da complexidade territorial da MMP, assim como para o desenho articulado de políticas de ordenamento territorial, desenvolvimento urbano, saúde, meio ambiente, mudanças climáticas, gestão de recursos hídricos, geologia, infraestrutura, educação, ciência e tecnologia, tendo em vista a promoção do desenvolvimento sustentável, como prevê o art. 3° da Lei n° 12.608/2012.

Dessa forma, há de se considerar um grande número de municípios sob condições de diversos riscos socioambientais e que para seu enfrentamento devem ser colocadas em prática ações em nível local (que tratam das condições inseguras de moradias e assentamentos precários em áreas de riscos de deslizamentos e inundações), assim como ações em nível regional (que considera o papel do planejamento fundamental para o equacionamento dos problemas mapeados). Essa é a chave para a construção da agenda de uma política pública para a governança e a gestão dos riscos. A dissolução da EMPLASA, assim como a aprovação do novo marco regulatório do Saneamento (Lei n° 14.026 de 15 de julho de 2020) deixam ainda mais incertos os rumos e como os problemas complexos apontados no presente artigo serão enfrentados. Assim, será ainda mais imperativa a construção de processos participativos e de cidadania ativa almejando a construção de territórios mais resilientes aos efeitos das mudanças climáticas e que afetarão com mais força as populações mais vulneráveis.

NOTE

AGRADECIMENTO

Pesquisa desenvolvida no âmbito do Projeto Temático FAPESP 2015/03804-9, processos 2019/05644-0, 2018/06685-9.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2020
  • Aceito
    04 Out 2020
  • Aceito
    15 Jan 2021
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