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Platão. Menêxeno. Introdução, tradução e notas

Plato. Menexenus. Introduction, translation and notes

Resumo:

Tradução para o português do diálogo Menêxeno de Platão, com notas culturais, históricas e algumas de elucidação sobre as escolhas tradutórias. Acrescenta-se uma breve introdução ao texto.

Palavras-chave:
Platão; Menêxeno; tradução

Abstract:

This paper aims to present not only a translation of Plato’s Menexenus into Portuguese but also cultural and historical notes, as well as explanatory ones concerning translation choices. It also contains a brief introduction to the dialogue.

Keywords:
Plato; Menexenus; translation

Introdução

Dentre os diálogos de Platão, o Menêxeno apresenta feições únicas, afinal, mais do que um diálogo socrático propriamente dito, é uma oração fúnebre convencional (ὁ ἐπιτάφιος), emoldurada por curtas partes dialogadas que servem de prólogo e epílogo da parte principal. A oração fúnebre é um gênero oratório que fazia parte das celebrações em honra aos mortos de guerra, as Epitáfias (τά ἐπιτάφια). Conforme a tradição ateniense, o governo democrático celebrava esse rito durante o mês de pianepsião (segunda metade de outubro e primeira de novembro), com concursos atléticos e artísticos, construção de um monumento a esses mortos, além da apresentação de um discurso epidítico. Deste gênero oratório, temos da Antiguidade apenas cinco exemplos: o mais famoso deles, e que serve de base para qualquer estudo do gênero, é o discurso de Péricles registrado por Tucídides (2.35-47); o discurso II de Lísias; um epitáfio atribuído a Demóstenes cuja autoria é contestada; e a oração fúnebre composta por Hipérides em 323 para os mortos da Guerra Lamíaca; e, enfim, o Menêxeno de Platão que, nos limites do gênero, apresenta, ao que parece, uma versão paródica1 1 Entendemos o conceito de paródia de acordo com Bakhtin (1993) e Hutcheon (1985), que o entendem como discurso bivocal em que um enunciador se utiliza do discurso de outro, mas mantém sua autonomia justamente na representação nova que dá a esse discurso, modificando, assim, o sentido primeiro. desse tipo de discurso. Isso já fica patente no próprio enquadramento genérico, uma vez que, diferentemente dos outros quatro epitáfios acima mencionados, o texto platônico não foi composto para ser proferido nas festividades públicas e, portanto, a sua finalidade é propriamente metaliterária, fugindo do contexto pragmático do rito.

O interlocutor de Sócrates no diálogo é Menêxeno, filho de Demofonte e pertencente a uma família aristocrática de onde saíram muitos homens que atuaram na política ateniense do século V. Menêxeno é apresentado como um jovem que chegou à idade da efebia - dezoito anos - e está apto a assumir a maior parte dos direitos políticos da constituição ateniense. O encontro se dá em um espaço não definido, depois de o jovem sair do Conselho onde os magistrados adiaram para o dia seguinte a escolha do orador que iria proferir a oração fúnebre. Trazido, então, este tema na conversação, com sutil ironia, Sócrates ensina ao jovem o caráter convencional do gênero retórico, feito de fragmentos previamente preparados pelos oradores que apenas os adaptam para as circunstâncias específicas do presente; na sequência, Sócrates, para provar que não é difícil improvisar sobre tais assuntos, profere ele mesmo um epitáphios convencional que, segundo o próprio filósofo, aprendeu de Aspásia, sua professora de retórica, que também teria ensinado a Péricles as artes do gênero.2 2 É interessante que no curto prólogo que antecede o discurso, Sócrates enumera o esqueleto principal do gênero, esclarecendo o funcionamento e os objetivos dos epitáfios, tanto quanto, indiretamente, deixa entrever o caráter demagógico político do discurso, uma vez que reitera a facilidade em se “elogiar atenienses para atenienses” (234a).

A perfeição, no entanto, com que Platão recria a oração fúnebre levantou a discussão de alguns críticos que indagaram se, por trás da ironia socrática no prólogo, não seria a oração um discurso sério, visando mostrar aos oradores da época como de fato deveria ser construído um belo epitáphios.3 3 Acosta Méndes (1987), em sua introdução à tradução espanhola do diálogo, apresenta uma revisão bibliográfica das principais discussões em torno do Menêxeno de Platão. Já outros críticos, com os quais concordamos, consideram o texto de Menêxeno como uma paródia da retórica contemporânea,4 4 Cf.Berndt (1881); Méridier (1956); Lorraux (1974); Clavaud (1980); Pownall (2004). feita a partir dos exageros dos lugares-comuns5 5 Segundo Pownall (2004, p. 58), dos trinta e nove lugares-comuns do gênero, recolhidos pelos cinco exemplos da Antiguidade que conhecemos, o texto de Platão apresenta trinta e cinco. e do estilo oratório, especialmente o de Górgias, a quem Platão constantemente critica em sua obra.6 6 Cf.Méridier (1956, p. 69-70) que apresenta uma série de elementos estilísticos utilizados no discurso que seguem os preceitos de Górgias. Deve-se, então, levar ou não a sério a oração fúnebre socrática? Em nossa opinião, deve-se levar a sério tanto quanto qualquer texto paródico, na medida em que este revela os limites e os desgastes do gênero parodiado.

Platão utilizou magistralmente os recursos retóricos trazidos pelos oradores nos epitáphia com o objetivo de ridicularizá-los: toda as extravagâncias, exageros, anacronismos, omissões etc. A oração fúnebre é um gênero encomiástico cujo objetivo é elogiar (epaineîn) os mortos, e, por conseguinte, também a cidade e a constituição política que os formou e educou, sempre buscando demonstrar a superioridade de Atenas e de seus cidadãos em relação às outras cidades gregas e aos povos bárbaros.7 7 Se de um lado a oração volta-se aos mortos, ela não esquece dos vivos, já que faz parte da estrutura da oração também uma parte de consolação dos vivos (pais e filhos dos mortos) e a exortação para estes imitarem as virtudes dos homens que são, também, as virtudes da cidade. Para demonstrar a superioridade de Atenas, uma das técnicas utilizadas pelos oradores é a retomada do passado histórico com a finalidade de criar o sentimento de ufanismo e, por conseguinte, conseguir a persuasão.8 8 Cf.Perlman (1961). Porém, o orador, diferentemente do historiador, não se preocupa com a verdade destes fatos, está ausente, da sua forma de apresentar o passado, a ἀκρίβεια (rigor, precisão) do historiador.9 9 A ἀκρίβεια é um requisito básico, segundo Tucídides, para o trabalho do historiador, pois é ela que permite que ele trate o passado sem “pré-conceitos” que o impeçam de compreender as causas e motivos reais que conduziram as ações dos homens e produziram a história; também é ela que faz o historiador privilegiar a verdade em detrimento do prazer dos ouvintes/leitores do presente. Cf. Th. 1.22. Ele faz uso dos fatos apenas de forma genérica, como tópoi que atuam na memória coletiva da cidade, relembrando os eventos de que a cidade se ufana, seja pelos seus aspectos militares, seja pelos conceitos morais imbrincados em tais eventos. Isso se dá pela própria essência da oratória que se dirige ao presente, diferente da história que, guardando os eventos, visa criar uma “aquisição para sempre” (κτῆμα εἰς ἀεί), para que os homens do futuro possam compreender os eventos de então com clareza.

Ao orador, a clareza e a verdade do assunto não são atributos necessariamente imprescindíveis. Está, em jogo, nesse caso, mais uma vez, a tentativa de Platão em desmascarar a falta de fundamento ético e moral dos discursos oratórios; no caso, para agradar ao público elogiado, o orador não teme manipular e mascarar os eventos com o intuito de despertar o prazer desse mesmo público. Um bom exemplo da ausência de rigor ou precisão é que o orador, para justificar a ausência de detalhes dos eventos referidos, diz, em geral, que é desnecessário alongar-se quanto aos eventos passados já que são conhecidos de todos pela tradição, e quanto aos eventos recentes, já que todos ali presenciaram os fatos. Assim, não há nenhum tipo de preocupação em particularizar os fatos, ficando sempre no terreno da generalização.10 10 Cf.Pownall (2004, p. 42).

Pownall (2004POWNALL, F. (2004). Lessons from the past. The moral use of history in fourth-century prose. Michigan, The University of Michigan Press.), Lorraux (1994LORRAUX, N. (1994). A invenção de Atenas. Trad. Lilian Vale. Rio de Janeiro, 34.) e Cânfora (2015CÂNFORA, L. (2015). O mundo de Atenas. Trad. Federico Carotti. São Paulo, Cia das Letras.) entendem que em tal postura se revela um uso político da história ateniense, a fim de, mais do que elogiar os que morreram, criar uma imagem idealizada da cidade e seu sistema político para, evocando certos princípios, exortar os cidadãos a continuarem a seguir o sistema sem discuti-lo. Se tal uso da história é um elemento importante da oração fúnebre, é claro que no Menêxeno esse uso merece tratamento. A ausência de rigor e a manipulação dos fatos é patente em praticamente todos os exemplos históricos citados no texto, tal como ocorre na ausência de referências às Termópilas, quando o orador está falando das Guerras Médicas, porque nessa batalha o protagonismo é todo espartano; ou ao deixar em silêncio as dissenções violentas ocorridas na cidade durante o governo dos Trinta11 11 Durante o texto traduzido, as notas apresentarão, na medida do possível, comentários que desvelem as manipulações efetuadas pela oração fúnebre. etc.

No entanto, há no Menêxeno elementos distorcidos que vão além desse uso “tradicional” da oração fúnebre e que nos auxilia a interpretar o texto antes de tudo como uma paródia crítica, um pastiche. Sócrates, por exemplo, que morreu em 399, menciona anacronicamente a paz de Antálcidas, ocorrida em 387 em decorrência da guerra de Corinto (395-387); porém, em nossa opinião, nada é mais revelador do pastiche platônico quanto a presença de Aspásia citada nas partes dialogadas.12 12 Alguns críticos acreditam que a escolha de Aspásia seja uma referência literária à obra Aspásia de Ésquines, também discípulo de Sócrates, mas adversário de Platão. Nesta obra, a hetaira jônia desempenhava papel similar ao que desempenha no Menêxeno, como mestra e educadora na arte da eloquência. Aspásia, famosa amante de Péricles, é referida por Sócrates não só como a sua mestra em oratória, mas também a mestra do grande estadista do século V, inclusive tendo-lhe ensinado o discurso fúnebre que Tucídides registrou. Além disso, Sócrates diz a Menêxeno que, no dia anterior ao encontro com o jovem, ele ouviu da boca da própria Aspásia um discurso pronto, o qual passa a proferir. Ao que parece, Aspásia nasceu por volta de 470 e morreu mais ou menos em 400 a.C.13 13 Cf. A. E. Taylor (1936). Se aceitarmos que o encontro de Sócrates com Menêxeno se dá quando este atingiu a efebia, ou seja, quando ele está com 18 anos, e se passa em 387, Aspásia morreu quando ele ainda era uma criança. No entanto, Menêxeno afirma que conhece muito bem Aspásia e sabe exatamente como ela é (249d). Não nos parece que tais distorções passassem desapercebidas pelos leitores de Platão do século IV, por isso, em nossa opinião, esse uso livre da cronologia é justamente uma arma platônica para revelar a ausência de critério e interesse pela verdade com que os oradores trabalham, no caso específico, da oração fúnebre, mas que se pode alargar a todos os gêneros textuais quando não preocupados com a verdade filosófica. Por toda a sua obra, Platão faz duras críticas especialmente a prática retórica como um ensino que não conduz ao verdadeiro conhecimento que é reservado àquele que se dedica à filosofia.

Assim, como paródia das orações fúnebres, o epitáfio proferido por Sócrates é um exemplo perfeito do gênero, já que traz as suas tópicas essenciais, além de ser construído por meio de uma linguagem que imita as práticas retóricas correntes. Porém, os abusos com que os oradores trabalham a história ateniense nesse tipo de discurso, são levados ao extremo por Platão, que assume a falsidade do diálogo, espelhando a falsidade do epitáfio, pelos evidentes anacronismos nas partes dialogadas. O próprio Menêxeno assume esse papel de leitor incrédulo (ou melhor, consciente) de Platão, no epílogo, dando a entender que não acredita que o discurso de Sócrates foi lhe ensinado por Aspásia, reconhecendo, ainda que indiretamente, a inconsistência da cronologia; além disso, com essa descrença, os constantes pedidos para que o jovem não dê com a língua nos dentes e Aspásia venha a descobrir que Sócrates anda repetindo pela cidade os seus discursos não podem deixar de ser vistos como piada - talvez até como piada política com Péricles, como se nas palavras de Sócrates ecoasse uma tentativa do estadista em esconder o decisivo papel que sua amante, conforme a tradição, teve nas suas decisões políticas.

A tradução que ora apresentamos foi feita a partir do texto estabelecido por Louis Méridier (1956MÉRIDIER, L. (ed.) (1956). Platon. Ouvres completes. Vol 5 : Ion. Ménexène. Euthydème. Paris, Les Belles Lettres.) para a edição de Les Belles Lettres. De muita utilidade para sanar dúvidas tanto do texto grego quanto de interpretação de passagens foi a edição de Burnet (1968BURNET, J. (ed.) (1968). Platonis Opera. Vol. 3. Oxford, Oxford University Press.), volume III da Opera Platonis. Buscamos, com ela, deixar transparecer a ironia que subjaz ao texto, mas, principalmente, recriar algo que, em nossa opinião, é fundamental nesse texto platônico: a simplicidade e familiaridade das partes dialogadas, e a falsa erudição e empolamento do discurso “oficial” e público, feito para agradar uma dada assembleia. É, de fato, uma tradução que se volta mais aos aspectos (meta)literários do texto do que à discussão filosófica nele embutido. Quanto às notas, focamos principalmente em esclarecer as anacronias, omissões e manipulações dos eventos históricos, a partir da comparação com as narrativas dos historiadores gregos.

Tradução

[234a] SÓCRATES: Menêxeno,14 14 Personagem que também aparece, como adolescente, no diálogo Lísias (211b) e, como discípulo de Sócrates, em Phd. 59b. A brincadeira que Sócrates faz no Menêxeno a respeito de ele já se sentir pronto a abandonar os estudos e assumir funções políticas, talvez revele que o jovem, neste diálogo, tenha acabado de entrar na classe da efebia, em que o cidadão, com dezoito anos, pode exercer os direitos civis atenienses. é da ágora que você está vindo ou de outro lugar?

MENÊXENO: Da ágora, Sócrates, mais precisamente, da sala do Conselho.

SÓCRATES: E que assunto especial o levou até o Conselho? Ou por acaso acredita que já completou sua educação e filosofia, e, possuindo o suficiente, imagina-se pronto para voltar-se aos assuntos mais elevados?15 15 Sócrates, ironicamente, reproduz a visão dos sofistas de que a filosofia deve ser parte da formação do indivíduo com vista às funções práticas, como a política, e, nesse caso, há uma aparente aproximação entre o conceito de sofística e de filosofia. Irônico este comentário, uma vez que Sócrates, por exemplo na Apologia (29d), mas também em outras partes, acredita que o filosofar é uma atividade que deve ser entendida como permanente durante a vida do homem e Platão (República 525a-530c) se esforça para provar que a filosofia é o ponto culminante da formação humana. Será que está, com a sua idade, tentando nos governar, ó homem admirável, a nós que somos anciãos, [b] para que a sua família jamais deixe de nos oferecer um governante?

MENÊXENO: Se você, Sócrates, permite e aconselha que eu governe, farei isso com o maior prazer; mas se não, não. Contudo, fui agora ao Conselho por ter sido informado de que ele está prestes a eleger quem irá discursar em honra aos mortos, você sabe que eles pretendem organizar cerimônias fúnebres.

SÓCRATES: Ah sim, claro. E a quem elegeram?

MENÊXENO: A ninguém. Adiaram para amanhã. Acredito, porém, que serão eleitos ou Arquino ou Dion.16 16 Arquino foi, junto com Trasíbulo, um dos restauradores da democracia em Atenas após a queda do governo oligárquica e tirânico dos Trinta, no final da Guerra do Peloponeso. Quanto a Dion, não há muitas informações, porém se conjectura que se trate de um orador que serviu de embaixador na Pérsia em 392.

[c] SÓCRATES: Em verdade, Menêxeno, muitas vezes corre-se o risco de ser belo morrer na guerra. Pois, mesmo quem teve seu fim na pobreza, recebe bela e magnífica sepultura, e recebe louvores dos homens sábios, mesmo sendo insignificantes, e não de qualquer um que faz elogios ao acaso, mas sim de quem leva muito tempo preparando discursos.17 17 Em sua nova ironia, revela-se um ponto importante para o entendimento do ἐπιτάφιος λόγος enquanto gênero retórico: trata-se de um texto feito de tópicas usuais que independem do momento em que são pronunciados. [235a] Esses homens louvam tão belamente que, ao dizer o que cabe ou não a cada um, ornando com as mais belas palavras, enfeitiçam as nossas almas, enaltecem a cidade de todas as maneiras, elogiam os que morreram na guerra, todos os nossos antepassados e também a nós mesmos, que ainda estamos vivos, de um jeito que eu mesmo, Menêxeno, fico me sentindo muitíssimo nobre sendo louvado por eles.18 18 Nessa passagem, Sócrates resume os temas essenciais da oração fúnebre e que, posteriormente, serão proferidos no discurso de Sócrates. [b] Cada vez que me deixo escutar e encantar, penso imediatamente ter-me tornado maior, mais nobre e mais belo. É comum que, em muitas dessas ocasiões, me acompanhem e comigo escutem tais discursos homens estrangeiros para quem eu, imediatamente, me torno mais majestoso. Acho que eles sentem em relação a mim o mesmo em relação à cidade, achando-a mais admirável do que antes, persuadidos por quem estava discursando. Na verdade, em mim, essa veneração permanece por mais de três dias; [c] e de tal modo ressoante19 19 A palavra ἔναυλος remete ao som produzido pela flauta. a prosápia e a prosódia20 20 λόγος e φθόγγος, respetivamente, “a palavra” e o “som da voz”, ou seja, o encantamento não se dá apenas pelo conteúdo e estilo, mas pela própria habilidade de proferir o discurso. do orador penetra em meus ouvidos que, penosamente, no quarto ou quinto dia, eu me relembro de quem realmente sou e percebo em que lugar da terra estou; até então, faltava pouco para pensar que estava morando na Ilha dos Bem-Aventurados,21 21 A referência à mitológica Ilha dos Bem-Aventurados também é irônica, na medida em que é um espaço próprio para os heróis ou de pessoas de vida moralmente irrepreensíveis depois da morte. Neste sentido, o encantamento com o discurso é tanto que a própria Atenas real se converte em uma réplica da Ilha, assim Sócrates precisa de mais de três dias para voltar à vida habitual, ou seja, deixar seu estado de aparência heroica e dedicar-se à filosofia. Do mesmo modo, a própria oração fúnebre, como discurso encomiástico, busca heroicizar os mortos colocando-os, de algum modo, no mesmo patamar dos heróis tradicionais. a tal ponto são safos os nossos oradores.

MENÊXENO: Puxa,22 22 Buscamos nas partes dialogadas manter uma linguagem mais corriqueira, tanto por entendermos o encontro de Sócrates com Menêxeno dentro de um contexto de amizade e familiaridade, quanto por acreditarmos que, assim, ficará mais clara a oposição do diálogo com o discurso que será na sequência proferido, como um texto artificioso que se enaltece linguisticamente para enaltecer. Sócrates, você sempre zombando dos oradores! Mas eu acredito que dessa vez o escolhido não terá muito sucesso. Pois a eleição pegou a todos completamente de surpresa, e o orador provavelmente será obrigado a improvisar.23 23 Menêxeno parece acreditar que cada ἐπιτάφιος λόγος é, de fato, composto a cada circunstância específica, desconhecendo a essência convencional do gênero que é, justamente, aquilo que Sócrates visa e visará demonstrar com sua paródia.

[d] SÓCRATES: Por que, meu querido? Cada um deles já tem discursos preparados, e, ao mesmo tempo, não é difícil improvisar sobre tais assuntos. De fato, se fosse necessário falar bem de atenienses na presença de peloponésios ou de peloponésios, na de atenienses, aí sim seria preciso um bom orador para persuadir e obter renome. Mas quando alguém argumenta na presença daqueles mesmos a quem se elogia, falar bem não me parece grande feito.

MENÊXENO: Acha que não, Sócrates?

SÓCRATES: Com certeza que não, por Zeus!

[e] MENÊXENO: Então pensa que você mesmo seria capaz de falar, se fosse necessário, e o conselho o tivesse escolhido?

SÓCRATES: Pois, para mim, Menêxeno, não acho nada espantoso que eu seja capaz de discursar, uma vez que calhei der ter como mestra aquela que com certeza não é insignificante em retórica, mas, pelo contrário, tem formado muitos e bons oradores, dos quais um se distinguiu entre os helenos: Péricles, filho de Xantipo.

MENÊXENO: E quem seria ela? Você está falando de Aspásia, não é verdade?

SÓCRATES: Pois é dela mesmo que falo, e, também de Cónos, filho de Metróbio. [236a] Esses são meus dois mestres, ele de música, ela de retórica. Logo, não é nada espantoso que um homem assim educado seja hábil no falar. Mas mesmo quem foi educado de um jeito inferior ao meu, tenha sido ele educado em música por Lampro ou em retórica por Antifonte de Ramnunte, esse também seria capaz de ser honrado louvando atenienses para atenienses.

MENÊXENO: E se você fosse discursar, o que falaria?

SÓCRATES: Eu, de minha parte, provavelmente nada. [236b] Mas ontem mesmo ouvi com atenção Aspásia enquanto discursava uma oração fúnebre sobre esses homens. Pois ela ouviu isso que você estava falando, que os atenienses estavam se mexendo para escolher quem discursaria. Então, de improviso, expôs para mim uma parte daquilo que seria conveniente dizer, enquanto a outra já havia preparado, quando, me parece, organizara a oração fúnebre que Péricles proferiu, fazendo um retalho com fragmentos daquele discurso.24 24 Muitos críticos apontam essa passagem como uma crítica à famosa oração fúnebre proferida por Péricles e registrada por Tucídides no livro II 35-47. No caso, interessa-nos que o aspecto convencional do gênero é expressado pelo uso de partes de um discurso proferido em 430/31 a.C., com um rearranjo, em uma oração em 387 a.C., mostrando o caráter convencional do gênero epitáfio e que as circunstâncias históricas em que ele é proferido em nada dificulta a composição da peça.

MENÊXENO: E você conseguiria lembrar o que Aspásia lhe disse?

SÓCRATES: Se eu não me enganar! De fato, eu recebia lições dela [236c] e por pouco não tomava umas pancadas por causa da minha falta de memória.

MENÊXENO: Por que então você não o profere?

SÓCRATES: Mas devo me precaver para que a mestra não se irrite comigo, por eu tornar público o discurso dela.

MENÊXENO: De jeito nenhum, Sócrates, mas fale, e você me alegrará muito se quiser falar ou como Aspásia ou como qualquer outro, mas simplesmente fale!

SÓCRATES: Mas provavelmente você rirá de mim, se eu, mesmo sendo um velho, parecer que estou fazendo criancices.25 25 O verbo aqui utilizado por Platão é παίζω cujo sentido primeiro é “fazer-se de criança”, retomando a radical παῖς, criança. Daí, nossa escolha tradutória por um termo que evidenciasse essa etimologia.

MENÊXENO: De jeito nenhum, Sócrates. Mas fale de todo modo.

SÓCRATES: Pois bem, sem dúvida eu devo te agradar, ao ponto que, se você me pedisse para dançar tirando a roupa, por pouco não faria isso para sua diversão, já que estamos sozinhos. Mas então ouça, pois ela, como penso, falava começando o discurso a respeito dos mortos da seguinte maneira:

“Quanto às ações,26 26 A oposição ἔργον λόγος se refere às honras públicas aos mortos, o monumento e as celebrações funerárias e o discurso fúnebre. Cf. Th. 2.46. estes homens, pela sorte que lhes coube, recebem de nós aquilo que é conveniente e marcham pelo caminho fixado pelo destino, escoltados publicamente em cortejo fúnebre pelos cidadãos e, privadamente, pelos familiares. Porém, quanto ao discurso, a lei estabelece conceder a esses homens uma honra que ainda precisa ser feita e que é um dever fazê-la.27 27 Implica-se aqui que, mais do que uma obrigação legal (νόμος), é uma obrigação moral e religioso (χρή). [e] Pois, é com um discurso bem pronunciado que a memória retém as ações bem realizadas, e se faz a homenagem dos que ouvem para quem as praticou. É preciso um tal discurso capaz de louvar devidamente os que morreram, porém também capaz de exortar amavelmente os que estão vivos, encorajando aos descendentes e irmãos a imitar a virtude deles, e confortando os pais, mães e quaisquer antepassados que ainda estejam vivos. [237a] Mas que discurso se revelaria com tal forma para nós? E de que ponto poderíamos começar com equidade a louvar esses valorosos homens, eles que, enquanto vivos, encantavam os seus por causa da virtude e deram a vida em troca da salvação dos sobreviventes?28 28 Uma tópica constante nas orações fúnebres atenienses é que a morte dos guerreiros se deu pela salvação da cidade, especialmente, pela luta em favor da liberdade da cidade e de todos os gregos. No contexto da democracia ateniense, o ideal da bela morte converte-se de uma ação particular, como na épica, em ação coletiva em prol do coletivo. Parece-me natural que, por terem se tornado homens valorosos, assim eles devam ser elogiados. E tornaram-se bons por terem nascido de homens bons. Por isso, primeiramente, começaremos a celebrar a origem nobre desses homens, e em seguida a sua criação e educação.29 29 Origem, natureza e educação são tópicas dos gêneros epidíticos cujo desenvolvimento gerou a estrutura da biografia antiga. [b] Depois disso, ilustraremos quão belos e dignos eles mostraram ser os resultados de suas ações.

“Assim, em primeiro lugar, advém da nobreza dos ancestrais a sua origem, que não era estrangeira, e revela que esses descendentes não são imigrantes na terra, vindos de qualquer outro lugar, mas nascidos da terra30 30 Traduzimos αὐτόχθον pelo seu sentido literal, já que o emprego abstrato desse termo é moderno, cf.Miller (1982, p. 13). A valorização da autoctonia é uma tópica recorrente nas orações fúnebres. Tal crença aparece também em outros autores, como Heródoto (7.161), Aristófanes (Ran. 1076) e em alguns dramas de Eurípides. Junta-se a essa tópica, o elogio dos ancestrais que também ocorre em Th. 2.36. que viviam e habitavam sua verdadeira pátria,31 31 Os mitos de Erictónio talvez sejam os que mais se aproximam de uma ideia de autoctonia ateniense. Hefesto, tendo se apaixonado por Atena, a perseguiu e, mesmo coxo, conseguiu alcançá-la. A deusa, porém, se defendeu, mas um pouco do esperma do deus caiu sobre ela; ela, enojada, limpou-se com uma manta de lã e a jogou no solo e esse esperma fecundou a Terra, que deu à luz a uma criança que a própria Atena recolheu, passou a cuidar e deu o nome de Erictónio, cujo sentido retoma tanto a palavra lã (ἔριον), quanto terra (χθών) (cf. Apollod. 3.14). alimentados não por madrastas como os outros, [c] e sim pela própria mãe, a terra em que habitavam, e agora que pereceram eles jazem no recinto familiar que os gerou, criou e acolheu. É mais justo, então, começar pela celebração dessa mãe, pois, assim, ao mesmo tempo também a sua nobre estirpe é celebrada. De fato, nossa terra é digna de ser enaltecida por todos os homens, e não apenas por nós, e isso por muitos e diferentes motivos: o primeiro e mais importante é porque ela tem a sorte de ser amada pelos deuses. Atesta nosso argumento a discórdia e a luta dos deuses que por ela se rivalizavam.32 32 Atena e Poseidon lutaram para dar nome à cidade. [d] Se os deuses louvaram esta terra, como então não seria justo ela ser louvada por todos os homens em uníssono? Em segundo lugar, seria justo louvá-la, porque naquele tempo em que toda terra produzia e gerava toda a sorte de animais, ferozes e domesticáveis, nesse tempo, nossa terra exibia-se estéril e purificada de feras e animais selvagens; dentre os animais, escolheu para si e gerou o homem, aquele que supera todos os outros em entendimento e o único que honra os deuses e a justiça. [e] E para este argumento há uma grande prova, a de que nossa terra gerou os ancestrais nossos e os destes homens. Pois todo aquele que gera, provê o sustento suficiente à sua cria, e, com isso, é evidente que a mulher que verdadeiramente é mãe se distingue daquela que não é, mas finge ser, por não levar consigo as fontes de nutrição de seu rebento. Nossa terra e, ao mesmo tempo, mãe fornece uma prova irrefutável de que concebeu os homens: [238a] ela foi a primeira e a única, naquele tempo, a fornecer como alimento à humanidade o fruto do trigo e da cevada, com a qual a raça humana se alimenta da melhor e mais bela maneira, uma vez que ela mesma concebeu esse animal. E mais para a terra do que para mulher, tais provas convêm aceitar; de fato, não é a terra que imita a mulher na concepção e gestação, e sim a mulher que imita a terra. E ela não recusou esse fruto, mas o compartilhou com os outros. E depois disso, concedeu aos descendentes o azeite, útil contra as fadigas. [b] Nutriu-os, fortificou-os até a juventude, e depois introduziu como seus governantes e mestres os deuses, cujos nomes convém omitir - pois todos os conhecemos - e eles organizaram a nossa vida quanto aos hábitos diários, instruindo os primeiros nas artes e educando na aquisição e utilização de armas para a defesa do território.33 33 Conforme os mitos, Atena e Hefesto ensinaram aos atenienses as artes, enquanto Ares os ensinou o uso das armas. Nascidos assim e assim educados, os ancestrais destes homens mortos viviam a constituição que estabeleceram, a qual com equidade convém mencionar brevemente, [c] porque a constituição é o alimento dos homens, dos bons, se ela é bela, e dos maus, se ela é má.34 34 A tópica do elogio da constituição também é encontrada em Tucídides (2.37), Lísias (17-19), e Demóstenes (25-26), e visa opor o governo democrático contra o oligárquico, especialmente espartano, afirmando que é aquele que, de fato, é constituído pelos melhores homens (aristocratia). Faz-se necessário, portanto, demonstrar que nossos antepassados foram educados em uma bela constituição e é por causa dela que aqueles homens foram bons e, também são os de hoje, dentre os quais se encontram aqueles que morreram. Pois essa constituição, que era de antanho e é a mesma de agora, é o governo dos melhores,35 35 A palavra utilizada é “aristocracia” que, literalmente, significa o governo dos melhores. Seja qual for o sentido que se entenda nessa passagem, em nossa opinião, nas duas opções há uma evidente ironia de Platão. Afinal, sendo o governo democrático, ao chamá-lo de aristocracia, estaria o orador revelando a real natureza do governo, que, embora com a aprovação da maioria, continua a ser governada pelos mesmos homens dos tempos oligárquicos; se, por acaso, entendermos como “governo dos melhores”, devemos lembrar que uma das críticas ao sistema democrático ateniense, por Platão, Xenofonte, Aristóteles, entre outros, baseia-se na ausência de critérios na seleção dos magistrados e governantes, uma vez que a escolha de quem representava esses cargos tão vitais para a saúde da cidade se dava por sorteio. sob a qual agora vivemos como cidadãos e que se tem mantido, desde aquela época, a maior parte do tempo.36 36 Referência aos breves períodos em que as dissensões de 411 e 404 tomaram Atenas e instalaram governos oligárquico dos Quinhentos e dos Trinta, respectivamente. [d] Alguns a chamam de democracia, outros, conforme lhes agrade, porém é, na verdade, uma aristocracia com o consenso da maioria. Reis, nós sempre os tivemos; às vezes os são pela origem,37 37 Refere-se aos primeiros Reis, aristocráticos que descendem dos personagens conhecidos pela mitologia. às vezes, pela eleição38 38 Aqui, segundo Méridier (1956), o termo βασιλῆς refere-se ao conjunto dos arcontes eleitos anualmente pela Assembleia popular em Atenas. - mas o poder da cidade é frequentemente da maioria, que concede as magistraturas e o poder àqueles que, para cada caso, lhes parecem ser os melhores.39 39 Em sintonia com a nota anterior, aqui novamente revela-se um importante aspecto da crítica de Platão, pela constante presença do verbo δοκέω, vinculado ao conceito de δόξα que, na filosofia platônica, implica o falso conhecimento da realidade, em oposição ao conhecimento verdadeiro que apenas o filósofo pode alcançar. Assim, para o governo democrático são eleitos homens que “pareçam” ser sábios, “pareçam” ser os melhores, “pareçam” ser virtuosos. E nem por fraqueza, nem por pobreza ou por orfandade, alguém é expulso;40 40 Tópica também presente no discurso de Péricles. Cf. Th. 2.37. tampouco é reverenciado pelos atributos contrários, como acontece nas outras cidades. Há apenas um critério: quem aparenta ser sábio ou honesto pode comandar e governar. [e] A causa desse nosso sistema político é a igualdade de nascimento, pois as outras cidades são compostas de homens de todo tipo e heterogêneos, de sorte que também seus regimes políticos são heterogêneos, tiranias e oligarquias; nelas, alguns vivem como servos, outros como senhores, considerando assim uns aos outros. [239a] Mas nós e os nossos, por termos nascido irmãos de uma mesma mãe, não julgamos digno sermos servos e senhores uns dos outros, e nossa igualdade de nascimento nos constrange, naturalmente, a buscar também a igualdade perante a lei e, por nenhuma razão, a nos submeter uns aos outros nem pela fama nem pela inteligência. Por causa disso, os pais destes homens e os nossos, assim como eles próprios, foram criados em total liberdade e, tendo crescido de modo formidável, deram mostras de inúmeros e belos feitos a todos os homens, privada e publicamente, [b] crentes da necessidade de, em nome da liberdade dos helenos, lutar contra helenos, e em nome de todos os helenos, lutar contra os bárbaros.41 41 A partir dessa passagem, a oração se volta à narrativa dos eventos históricos (lendários ou não) importantes da história ateniense. Conforme já discutido na introdução, as informações são generalizadas e referidas apenas com intuitos políticos, na tentativa de provar a superioridade de Atenas frente às outras cidades gregas. Interessante que, nesse processo, algumas estratégias discursivas são retiradas dos próprios historiadores, ainda que sejam deformadas pela oratória.

“De como se defenderam de Eumolpo e as Amazonas, quando estes atacavam nossa terra, e outros ainda antes desses, e como defenderam os argivos frente aos cadmeus e os heráclidas, frente aos argivos,42 42 Esses são eventos tradicionais que remontam aos tempos míticos da cidade de Atenas e, pelo seu caráter poético, já teriam sido matéria de obras literárias. Porém, também os historiadores fazem comentários a respeito de tais eventos, como Heródoto (9.27) e Xenofonte (HG 6.5.46). O importante é que, desse contexto mítico, retira-se a ideia de que Atenas ajuda quem é oprimido e é uma sociedade sempre defensora da liberdade. o tempo é curto para fazer um relato digno;43 43 ἀξίως διηγήσασθαι. Um dos argumentos dos historiadores para justificar quais eventos eles irão narrar ou deixar no esquecimento relaciona-se à ideia pessoal que o autor faz do que é digno de narração. ademais, os poetas, hineando belas canções, já desvelaram a virtude deles. [c] De fato, se intentássemos organizar estes eventos com um simples discurso,44 44 Méridier (1956) entende a expressão τὰ αὐτὰ λόγῳ ψιλῷ como “uma simples prosa”, em virtude da tópica recorrente da inferioridade estética da prosa diante da poesia. No caso, preferimos manter o sentido de discurso, pois trata-se de um texto que, pretensamente é construído para ser falado e ouvido em uma situação pública, em que a qualidade sonora (inclusive com recursos poéticos) é fundamental, e a ideia de prosa parece-nos estar muito marcada pela ideia de leitura. rapidamente nos revelaríamos inferiores. Por causa disso, parece-me melhor omitir tais casos, pois eles já têm o seu devido valor. Pelo contrário, os feitos pelos quais, até esse momento, nenhum poeta ganhou fama digna por contar temas dignos e ainda estão no esquecimento, estes eu julgo necessário mencionar,45 45 Em sintonia com a tópica historiográfica do que é digno de narrar, apresenta-se aqui a tópica do passado já tem quem preserve a memória, os poetas, enquanto os eventos recentes e presentes necessitam de alguém que, com a beleza da linguagem, valorize as virtudes e impeça que eles sejam esquecidos com o tempo. louvando-os e solicitando que outros produzam odes e poesias apropriadas àqueles que realizaram esses feitos.

“Dos fatos a que me refiro, este é o primeiro: [d] No tempo em que os persas imperavam na Ásia e escravizavam a Europa, os filhos desta terra, nossos ancestrais, os repeliram e deles é justo e necessário relembrar primeiro e louvar a sua virtude.46 46 As Guerras Médicas são fundamentais na imagem criada pelos atenienses para Atenas. Isso porque, com as vitórias conquistadas, Atenas inicia um império marítimo, dominando as ilhas e as cidades da jônia. A justificativa para sua soberania é dada pela participação fundamental na vitória contra os persas. E se alguém pretende louvá-los belamente, é preciso contemplá-la transportando-se por meio do discurso para aquela época, quando toda a Ásia era escravizada pela terceira vez pelo Rei. O primeiro deles foi Ciro que, tendo dado a liberdade aos persas, ao mesmo tempo subjugou seus concidadãos e os senhores medos com a mesma arrogância, [e] e governou o resto da Ásia até o Egito. O seu filho fez o mesmo com o Egito e a Líbia e até onde ele conseguiu chegar. O terceiro foi Dario, que delimitou por terra a fronteira do império até os citas, e com os navios, dominou o mar e as ilhas, [240a] ao ponto de não haver nenhum adversário à sua altura. Também as opiniões de todos os homens foram escravizadas.47 47 Entendo essa passagem como uma forma de oposição entre o imperialismo ateniense e o imperialismo persa, na medida em que este, agora, é referido por escravizar os outros povos, enquanto garante a liberdade dos próprios persas, enquanto, na sequência do discurso, Atenas será elogiada por manter e lutar pela liberdade mesmo daqueles que ela domina. Assim, o império Persa submetera muitos, grandes e belicosos povos. Então, depois de acusar a nós e aos eritreus, pretextando que havíamos conspirado contra Sardes, Dario enviou mil e quinhentos homens em barcos e navios e trezentos navios sob o comando de Dátis e disse que ele retornasse trazendo os eritreus e atenienses, [b] se ele quisesse manter a própria cabeça. Dátis, então, tendo navegado para Erétria, capturou em três dias homens que, entre os helenos de então, estavam entre os mais estimados quanto à guerra, e não eram poucos, e para que ninguém fugisse examinou o território deles do seguinte modo: após ter chegado às fronteiras da Erétria, seus soldados se posicionaram de uma ponta do mar à outra, uniram-se as mãos e percorreram toda a terra, [c] para que pudessem dizer ao Rei que nenhum havia escapado. Com essa mesma intenção, desceram por mar da Erétria até Maratona, crentes de que estavam prontos para capturar os atenienses com a mesma imposição com que haviam atrelado os eritreus. Quando algumas destas ações já haviam sido feitas e outras estavam em andamento, nenhum dos helenos saiu em auxílio dos eritreus nem dos atenienses, salvo os lacedemônios - e eles de fato chegaram no dia seguinte à batalha - enquanto todas as outras cidades, cheias de medo, contentando-se com a sua própria segurança, [d] permaneceram inativas nesse momento.48 48 Assim como o orador busca distinguir as ações dos atenienses em relação aos persas, ele fez o mesmo em relação aos outros gregos, mostrando, assim, a superioridade moral da cidade de Atenas. Ao retornarmos a esse tempo, com efeito é possível compreender a virtude daqueles homens que, em Maratona, esperaram o exército dos bárbaros, castigaram a arrogância de toda a Ásia e foram os primeiros a erguer troféus de vitória sobre os bárbaros, liderando e ensinando os demais que o poder persa não era imbatível, e que toda grandeza e riqueza se rendem à virtude. [e] Portanto, eu afirmo que aqueles homens são pais não apenas de nossos corpos, mas sobretudo de nossa liberdade e da de todos que habitam esse continente, pois, olhando com atenção esse feito, os helenos ousaram a arriscar-se nas batalhas seguintes em nome da sua segurança, e com isso se tornaram discípulos dos varões de Maratona. Deve-se, portanto, atribuir a eles neste discurso o primeiro posto de valentia. [241a] E o segundo posto aos homens que ao redor de Salamina e no Artemísio travaram um combate naval e venceram. Muito a respeito destes homens se poderia narrar, como resistiram os ataques por terra e por mar, e como os repeliram. O que me parece ser o mais belo a respeito desses homens, no entanto, isso eu recordarei, já que eles completaram o feito começado pelos varões de Maratona. De fato, estes mostraram aos helenos somente [b] que por terra eles eram capazes de se defender de muitos bárbaros com poucos homens, porém, com as naus, ainda era desconhecido o resultado e os persas tinham a fama de serem invencíveis por mar, tanto pela quantidade e riqueza da frota, quanto pela técnica e força. Logo, é digno louvar isso acerca dos homens que, outrora, travaram a batalha naval, pois puseram fim ao medo dos helenos e acabaram com o temor que tinham de numerosos navios e homens. Por ambos, os que combateram em Maratona [c] e os que por mar guerrearam em Salamina, os demais helenos foram educados; por eles, aprenderam e se habituaram a não temer nem por terra nem por mar os bárbaros. Para o terceiro posto,49 49 Como discurso oratório destinado ao elogio de atenienses para atenienses, não é mencionada a batalha de Termópilas cujos protagonistas foram os lacedemônios; tampouco se menciona a presença dos aliados nas batalhas de Artemísion e Salamina. Desse modo, toda a glória das Guerras Médicas é reservada a Atenas. Cf. Hdt. 8.1-2, 44-48. falo, tanto por ordem cronológica quanto por virtude, da ação em Plateia em favor da salvação da Hélade, já desta vez unidos lacedemônios e atenienses.50 50 Cf. Hdt. 9.6-12, 28-29, 30-32. Eles todos repeliram a maior e mais difícil ameaça e, por causa da virtude, eles são agora enaltecidos por nós e, também o serão no futuro pelos nossos descendentes. [d] Porém, mesmo depois disso, muitas cidades helenas ainda estavam ao lado dos bárbaros e o próprio Rei anunciava o plano de novamente atacar os helenos. Por isso, é necessário que também por nós sejam lembrados aqueles que concluíram os feitos de seus antecessores em favor da completa salvação, limpando e banindo todos bárbaros do mar. Foram estes os homens que travaram a batalha naval no Eurimedonte,51 51 Cf. Th. 1.100. [e] os homens que participaram da expedição à Chipre52 52 Cf. Th. 1.112. e os homens que navegaram até o Egito53 53 Cf. Th. 1.109-110. Ao referir-se à expedição ao Egito, Sócrates não menciona o desastre para os atenienses com que ela terminou, pois, em 455, as tropas atenienses que permaneciam no Egito foram atacadas pelas tropas do persa Megabizo e foram feitos numerosos prisioneiros. e muitas outras regiões. Deles é necessário recordar e agradecer, pois conseguiram que o Rei, temeroso, voltasse a mente para a sua própria salvação, ao invés de planejar a ruína dos helenos. Toda a cidade suportou essa guerra contra os bárbaros até o fim [242a] em favor dos seus cidadãos e dos demais que falam a mesma língua. Porém, quando houve a paz e a nossa cidade era respeitada, caiu sobre ela aquilo que costuma acontecer da parte dos homens para aqueles que obtêm êxito: primeiro, a rivalidade, e da rivalidade, a inveja.54 54 Tópica também encontrada em Lísias (48). Há que se ressaltar que Sócrates omite que as dissensões das cidades aliadas decorrem também dos excessos do imperialismo ateniense. E, involuntariamente, isso conduziu a cidade à guerra contra os helenos. E quando começou a guerra, se bateram com os lacedemônios em Tanagra, combatendo pela liberdade dos beócios, [b] embora a guerra tenha sido arduamente disputada, a ação seguinte foi decisiva: enquanto os lacedemônios partiam, retirando-se e abandonando os beócios a que vieram socorrer, os nossos homens, vencedores em Enófita, em três dias55 55 Cf. Th. 1.108. Tucídides testemunha que a expedição contra a Beócia durou sessenta e dois dias em Tanagra. Por outro lado, segundo Diodoro Sículo (11.83), a batalha se resolveu em um dia inteiro. trouxeram de volta os que haviam sido injustamente exilados. Esses homens foram os primeiros, depois das guerras pérsicas, que ajudaram, em nome da liberdade, helenos contra helenos. [c] Eles agiram como homens nobres e, tendo conseguido a liberdade de quem vieram ajudar, foram os primeiros a serem reverenciados pela cidade e a receberem esse monumento. Depois disso, muitas outras guerras aconteceram, quando todos os helenos se dirigiram a nós e devastaram nosso território, pagando indignamente a gratidão à nossa cidade, enquanto os nossos, depois de vencerem a batalha naval e capturado os líderes lacedemônios em Esfagia,56 56 Cf. Th. 4.8. Ao evocar a guerra de Arquidamos (431-421), a primeira parte da Guerra do Peloponeso, Sócrates mantém o silêncio quanto as revoltas das cidades da Trácia e Calcídia, e a tomada de Anfípolis pelo espartano Brásidas. [d] embora fosse possível esmagá-los, tiveram piedade deles, libertaram-nos e concluíram a paz,57 57 Na realidade, os prisioneiros foram devolvidos apenas depois da paz de Nícias. Cf. Th. 4.31-41. acreditando que, contra um povo da mesma raça, deve-se combater até a vitória, mas não destruir a comunidade dos helenos por causa de um ressentimento particular de uma cidade; já contra os bárbaros, deve-se combater até a ruína deles. É justo, portanto, louvar esses homens que guerrearam nessa guerra e aqui jazem, pois deram mostras de que, se alguém algum dia afirmou que, na guerra anterior, qualquer um fora superior aos atenienses, não afirmou verdadeiramente. [e] Eles, naquele templo, provaram isso, ao sobressaírem na guerra quando a Hélade estava em dissensão, e ao subjugarem os líderes dos outros povos helenos, vencendo em uma causa particular aqueles que, em outra época, ajudaram a vencer os bárbaros em uma causa comum. Uma terceira guerra, depois dessa paz, imprevista e terrível aconteceu, na qual muitos e valorosos homens foram mortos e aqui jazem. [243a] Muitos deles morreram ao redor da Sicília, mas erigiram numerosos troféus pela liberdade dos leontinos,58 58 Cf. Th. 3.86. Para o historiador, o verdadeiro motivo da expedição era cortar o aprovisionamento do Peloponeso. pelos quais navegaram até aquele lugar para socorrê-los, cumprindo os juramentos. No entanto, por causa da extensão da navegação, a cidade se encontrava em dificuldades e não tinha condições de ajudá-los. Renunciaram a esta guerra e sofreram reveses. A eles, no entanto, os inimigos, depois de haver contra eles combatido, fazem-lhes mais elogios por causa da sua temperança e virtude do que para com os seus próprios aliados. Muitos pereceram também nas batalhas navais no Helesponto, depois de em um só dia capturar todas as naus dos inimigos e de terem vencido muitas outras também.59 59 Cf. X. HG 1.1.12. Trata-se da batalha de Cízico em 410. [b] Quando afirmo que algo terrível e inesperado aconteceu nessa guerra, refiro-me com isso ao fato de os outros helenos terem chegado a tal nível de rivalidade contra a nossa cidade que ousaram negociar com o mais odioso inimigo, o Rei,60 60 Refere-se ao tratado de 412 entre os lacedemônios e seus aliados com o rei Persa (cf. Th. 8.18) que passou, no final da Guerra do Peloponeso, a atuar financiando a armada espartana. Posteriormente, também os atenienses enviaram uma embaixada ao Rei (cf. Th. 4.50). a quem antes, em comunhão conosco, haviam expulsado; em causa particular, trouxeram-no como aliado, um bárbaro contra os helenos, e contra a nossa cidade, todos os helenos e bárbaros se uniram. [c] Nisso, certamente, ficou evidente a força e a virtude de nossa cidade, pois, quando já a consideravam derrotada e seus navios capturados em Mitilene, enviaram em ajuda sessenta navios nas quais embarcaram os próprios cidadãos e, mostrando-se homens reconhecidamente valorosos, venceram os inimigos e libertaram os amigos. Porém, sobreveio-lhes uma sorte imerecida e não foram recolhidos do mar os mortos para serem enterrados aqui.61 61 Referência a Batalha de Arginussas em 406 em que os estrategos atenienses, depois da vitória, foram impossibilitados por causa de uma forte tempestade de recolher os mortos. Por causa disso, eles foram julgados e condenados a morte pela Assembleia atenienses, especialmente pela forte participação de Teramênes na acusação. Xenofonte, que em HG 1.6, narra esses sucessos, diz que, rapidamente, a população se arrependeu de ter condenado os estrategos. Deles também é necessário sempre recordar e elogiar. [d] Graças à sua virtude, não vencemos apenas essa batalha naval, mas toda a guerra. Graças a eles, a cidade ganhou a fama de que jamais poderia ser subjugada em uma guerra, nem mesmo por todos os homens - reputação merecida, pois se fomos derrotados, não foi pelas mãos alheias, mas sim pelos nossos próprios desacordos.62 62 Essa afirmação omite a derrota em Egospótamos que deu fim à Guerra do Peloponeso. Sob o comando de Lisandro, os espartanos colocaram os atenienses numa situação difícil, em que eles, constrangidos pela força do inimigo e pela fome, aceitaram as imposições dos inimigos, derrubando, inclusive, as grandes muralhas atenienses. Logo em seguida, é criado o governo oligárquico dos Trinta que, assumindo para redigir novas leis, exerce o poder tiranicamente com banimentos ilegais, espoliação de riquezas, além de massacres contra rivais políticos, criando uma guerra civil em Atenas. Nós ainda hoje não fomos vencidos por aqueles inimigos, apenas pelas nossas próprias mãos vencemos e fomos vencidos. [e] Depois, quando a calmaria e a paz se restabeleceram entre as cidades, uma guerra intestina entre nós foi travada, de tal modo que, se fosse destinado aos homens ter dissensões, ninguém desejaria que sua própria cidade de outro modo fosse atingida por essa doença. Com que felicidade e familiaridade os cidadãos do Pireu e os da cidade se mesclaram contra a expectativa de todos os outros helenos! [244a] Com que moderação acabaram com a guerra contra os eleusinos!63 63 Em X. HG 2.4.24-43, os fatos narrados se dão de uma maneira muito distinta a esta, especialmente quanto ao comportamento dos Trinta. Este é um bom exemplo da diferença de atitude de um historiador e de um orador em relação aos fatos passados. E a causa de tudo isso não foi outra a não ser o parentesco, que proporciona uma sólida e congenital amizade, não por palavras, mas por ações. É preciso, portanto, reter na memória os homens mortos de ambos os lados nessa guerra e reconciliá-los na medida do possível, com preces e sacrifícios em ocasiões como esta, rogando aos superiores,64 64 Alusão aos deuses infernais. uma vez que nós mesmos já estamos reconciliados. Pois não se atracaram por maldade ou ódio, [b] senão por infortúnio. E nós, que ainda vivemos, somos testemunhas disso: sendo da mesma linhagem que eles, perdoamo-nos mutualmente tanto pelo que causamos quanto pelo que sofremos.

“Depois disso, quando houve uma completa paz entre nós, a cidade se manteve tranquila. Perdoaram os bárbaros, posto que, ao sofrerem os males causados por ela, defenderam-se de modo suficiente, porém eles se indignaram com os helenos, ao relembrarem como retribuíram o favor que um dia haviam concedido, [c] pois, eles se uniram aos bárbaros, suprimiram as naus que um dia salvaram, e derrubaram as muralhas como recompensa por nós termos impedido que as deles caíssem;65 65 Cf. X. HG 2.2.20. a cidade, então, decidiu não mais defender os helenos caso fossem escravizados uns pelos outros ou pelos bárbaros, e desse modo passou a viver. Quando tínhamos isso em mente, os lacedemônios, considerando que nós, os defensores da liberdade, estávamos enfraquecidos [d] e que, a partir de então, era tarefa deles escravizar as outras cidades, puseram isso em prática.66 66 Cf. X. HG 3.2.23. E qual a necessidade de prolongar-se a respeito disso? Pois nem de tempos antigos nem de homens antigos são as ações subsequentes a que me referi.67 67 A partir deste momento, inicia-se o problema cronológico, uma vez que os eventos subsequentes ocorreram após a morte de Sócrates. Nós mesmos sabemos como, apavorados, vieram pedir ajuda a nossa cidade, os primeiros dos gregos, os argivos, beócios e o coríntios,68 68 Sócrates afirma que os atenienses ajudaram essas cidades, apesar do justo ressentimento, porém, segundo Xenofonte (HG 3.5), eles receberam ouro do persa Titraustes para guerrear contra os espartanos. Os atenienses, com medo de sucumbir diante dos espartanos, aceitaram o patrocínio bárbaro. e o que é mais maravilhoso de tudo, o próprio Rei chegou com tal dificuldade que de nenhum outro lugar, a não ser dessa cidade, poderia prover a sua salvação,69 69 Nessa passagem, Sócrates dá novamente a entender que a ajuda dos atenienses foi desinteressada. Cf. X. HG 4.8. esta cidade que, em outros tempos, esteve empenhado [e] em destruir. De fato, se alguém quisesse acusar a cidade de injustiça, acusaria com correção apenas se dissesse que ela sempre se mostra excessivamente piedosa e dedicada aos mais fracos; em verdade, naquele tempo, não foi capaz de ser firme nem de manter a decisão tomada: a de não socorrer nenhuma cidade que havia sido injusta com ela, enquanto elas estivessem sendo escravizadas. [245a] Voltou atrás da decisão e partiu para socorrê-las, e tendo assistido aos helenos, a cidade os afastou da escravidão,70 70 Cf. X. HG 4.2.8. de modo que elas permaneceram livres até que elas mesmas se escravizaram umas às outras.71 71 Cf. X. HG 5.2-4. Ao Rei, não se atreveu a socorrer, por respeito aos troféus de Maratona, Salamina e Plateia; consentiu, porém, que exilados e voluntários, e apenas eles, fossem ajudá-lo e, reconhecidamente, o salvaram.72 72 Alusão a Cónon que, com a permissão dos atenienses, ajudou os persas na luta contra os lacedemônios. O Rei persa o colocou no comando da frota, com a qual venceu os lacedemônios na batalha de Cnido em 394. Depois de reconstruírem as muralhas e de restabelecer a frota, [b] a cidade se viu constrangida a guerrear e guerreou em favor de Paros73 73 Segundo Isócrates (18), refere-se à tomada de Paros por Pasinos, personagem desconhecido por nós. contra os lacedemônios. O Rei, com medo da cidade, ao ver que os lacedemônios desistiam da batalha marítima, querendo se afastar de nós, exigiu a rendição dos helenos do continente, aqueles que anteriormente os lacedemônios lhe haviam entregado,74 74 Cf. Th. 8.18. caso quiséssemos manter a aliança conosco e com os demais aliados, crendo que não desejávamos isso, para que isso fosse um pretexto legítimo para a sua deserção. [c] Mas enganou-se quanto aos outros aliados: quiseram entregá-los coríntios, argivos, beócios e os demais aliados; aceitaram, juraram entregar-lhe os helenos do continente, se ele estivesse disposto a conceder-lhes dinheiro; nós fomos os únicos a recusar a jurar e a entregar as cidades helenas. Assim, é sólida e sadia a nobreza e a liberdade de nossa cidade, por natureza hostil aos bárbaros, [d] porque somos helenos genuínos e não mesclados com bárbaros. Não vivem conosco os filhos de Pélops, nem os de Cadmo, nem egípcios nem dânaos, nem tantos outros que, embora helenos por lei, são bárbaros por natureza, mas vivemos com nós mesmos, helenos, e não semibárbaros, de onde nasce na cidade um puro ódio à natureza estrangeira. Todavia, mais uma vez ficamos isolados [e] porque não queríamos praticar a vergonhosa e ímpia ação de entregar helenos aos bárbaros.75 75 Referência à paz de Antálcidas em 387 cuja iniciativa partiu dos Lacedemônios. Chegados, pois, à mesma situação em que antes havíamos sido derrotados, com o auxílio do deus, aceitamos a guerra. Com as naus, a muralha e nossas próprias colônias,76 76 Cf. X. HG 5.1.28-31. empreendemos a guerra com satisfação, assim como os inimigos. Sem dúvida, fomos privados de homens valorosos nessa guerra, homens que em Corinto sofreram com um terreno irregular e em Lequeu,77 77 Cf. X. HG 4.4.6. com a traição. [246a] Também foram valorosos aqueles que libertaram o Rei e expulsaram do mar os lacedemônios. De tais homens eu vos farei recordar e a vós, juntos, convém louvar e celebrar.

“Assim, dos homens que aqui jazem e de outros que pela cidade pereceram, são muitos e belos os feitos que já foram expostos, porém são ainda mais numerosos e belos aqueles que ainda faltam enumerar. [b] Muitos dias e noites não seriam suficientes para quem se dispusesse a elogiar todos eles. É preciso que, ao trazê-los na memória, todos os homens exortem seus descendentes, tal qual acontece na guerra, a não abandonarem os postos de seus antepassados, nem a fugir como covardes. Eu mesmo, ó filhos de homens valorosos, vos exorto, agora e no futuro, aonde quer que eu calhe de vos encontrar, também lembrarei e vos exortarei [c] a se esforçar a serem o mais valorosos possível. Nesta ocasião, é justo mencionar aquilo que os pais nos encarregaram de transmitir aos sobreviventes, caso algo acontecesse quando se preparavam para afrontar os perigos da guerra. Direi a vós aquilo que deles próprios escutei e aquilo que diriam com prazer se tivessem o poder de fazê-lo, tomando como testemunho o que anteriormente disseram. Mas é necessário que vós considereis, como se deles próprios ouvísseis, a mensagem. Pois eles assim disseram:78 78 A peroração que segue é uma inovação às orações fúnebres que conhecemos, pois nela o orador mimetiza uma possível fala dos mortos, encorajando os filhos e os pais a seguir um determinado tipo de vida, ou seja, se na primeira parte do discurso, ele se foca ao passado, agora ele volta-se para o futuro. Deve-se, no entanto, notar que inovação se restringe à construção de um discurso dos mortos mimetizado pelo orador, afinal, toda a fala é feita de tópicas usuais.

[d] “‘Filhos, que sois filhos de nobres pais essa ocasião deixa manifesto: pois, uma vez que é possível viver com desonra, preferimos antes cumprir as ações com nobreza do que lançar a vós e a vossos sucessores à injúria, do que envergonhar nossos pais e toda a linhagem que os precedeu, julgando que é indigna a vida de quem envergonha os seus. Para este tipo de homem não há nenhum amigo dentre os homens, nem dentre os deuses, nem sobre nem sob a terra, depois de ter perecido. É, portanto, necessário recordar as nossas palavras, e qualquer que seja a atividade a praticar, que se pratique com virtude, sabendo que, quando ela é abandonada, todas as riquezas e atividades são vergonhosas e vis, já que nem a riqueza produz beleza a quem a adquiriu sem hombridade - pois ele é rico para os outros, não para si mesmo - nem a beleza do corpo nem a força, quando unidas à covardia e à vileza, se mostram apropriadas, mas inapropriadas, pois põem em evidência quem as possui, e revelam claramente a sua covardia. [247a] Todo conhecimento, se apartado da justiça e de outras virtudes, não é sabedoria, mas fraude. Por causa disso, em primeiro e em último lugar, a todo tempo e de todos os modos, empenhai-vos a agir com zelo para que, principalmente, venhais a superar a nós e a nossos ancestrais em glória. Caso o contrário, sabeis que, se em virtude nós sobressairmos a vós, a nossa vitória nos trará vergonha, e a nossa derrota, se formos vencidos, nos trará a felicidade - sobretudo, seremos vencidos e vós vencedores, se vós vos dispuséreis a não fazer mau uso da glória dos antepassados [b] e a destruí-la, cientes de que para o homem que busca ter alguma valia, nada é mais vergonhoso que permitir ser louvado não pela sua própria fama, mas pela dos seus antepassados. As honras ancestrais são para os descendentes um belo e magnífico tesouro. No entanto, servir-se de um tesouro feito de riquezas e honras e não os legar aos descendentes, por falta de bens e reputação próprias, é vergonhoso e indigno de um homem. [c] Se praticardes tais conselhos, vireis a nós como amigos a casa de amigos, quando a sorte que lhes cabe vos trouxer. Porém, se fordes negligentes e covardes, ninguém vos acolherá com benevolência. Às crianças dizei tais coisas. Aos nossos pais e mães ainda vivos, sempre se deve encorajar a suportar da melhor maneira possível o infortúnio, se este por acaso lhes ocorrer, e a não lamentar - pois não terão necessidade de mais lamentação [d] já que o infortúnio acontecido fornecerá suficiente pesar - mas acalmando-os e tranquilizando-os, devemos recordá-los que os deuses escutaram e realizaram as suas principais súplicas, porque não lhes suplicavam ter filhos imortais, mas sim filhos nobres e valentes, e esses bens que são os maiores, obtiveram. E não é fácil para um homem mortal que toda as coisas resultem em sua vida segundo seu desejo. Suportando com coragem os infortúnios, parecerão que são pais de filhos corajosos e que eles mesmos também os são. [e] Todavia, se cederem à dor, levantarão a suspeita de que não são nossos pais ou de que está mentindo aquele que vos louva. Nada disso é conveniente. Devem ser eles a nos elogiar com suas ações, fornecendo provas de que são homens e de que são filhos de homens. Em verdade, a antiga máxima, “nada em excesso”, parece ser um belo dito. O homem que se vangloria de que sua felicidade depende apenas de si mesmo, ou próximo disso, [248a] e não de outros, cuja boa ou má sorte faria a sua própria oscilar, a ele a melhor vida está à disposição. Esse é o homem moderado, esse é o homem corajoso e sensato! Esse homem, quando lhe chegam riquezas e filhos, e quando ele os perder, confiará ainda mais no provérbio; pois, nem alegre nem demasiado triste ele se revelará, porque confia em si mesmo,79 79 Cf. R. 387d-e. e tais homens exigimos que sejam os nossos, desejamos e rogamos, [b] e assim nós mesmos nos apresentamos hoje, nem indignados nem temerosos em excesso se tivermos de morrer neste momento. Rogamos, então, a nossos pais e mães que se utilizem desse pensamento para conduzir o restante de suas vidas, e saber que, sobretudo, não nos agradarão nem as lamentações nem os gemidos, e se os mortos têm alguma percepção dos vivos, [c] seriam imensamente desagradáveis a nós se estiverdes aflitos e suportando os infortúnios com dificuldade; porém, com leveza e moderação, assim nos agradariam. O nosso fim, a partir de então, será o que há de mais belo para os homens, e por isso convém mais celebrar do que lamentar. Quanto às nossas mulheres e filhos, cuidando deles, alimentando-os, e direcionando isso às suas mentes, mais facilmente será esquecido nosso infortúnio, [d] e viverão da maneira mais bela e correta, e mais agradável para nós. Para nós, é suficiente transmitir isso aos nossos. À cidade, recomendemos que ela cuide de nossos pais e jovens: estes, educando convenientemente; aqueles, amparando dignamente na velhice. Porém, já sabemos que mesmo que nós não a exortemos, ela cuidará deles suficientemente.’80 80 Cf. Th. 2.46.

“Estas palavras, ó filhos e genitores dos mortos, [e] eles me encarregaram de vos transmitir, e eu, com o maior zelo de que sou capaz, as transmito. De minha parte, rogo aos filhos, em nome deles, que os imiteis, e aos progenitores, que sejais confiantes, pois, privada ou publicamente, vos acolheremos e cuidaremos na velhice, sempre que a cada um de nós vos encontramos. Sobre a cidade, vós, sem dúvida, conheceis a sua dedicação, afinal, desde que estabeleceu leis em favor dos filhos e dos pais dos mortos em guerra, ela cuida deles; [249a] mais do que aos outros cidadãos, delega à máxima autoridade para que os pais e mães não sofram injustiças, enquanto aos filhos, a própria cidade ajuda a criar, empenhando-se em tornar a orfandade algo desconhecido, colocando-se no papel de pai enquanto são crianças; quando chegam a maturidade, a cidade os envia para a posse de seus bens, depois de revesti-los com as armaduras; ela os ensina e os faz lembrar dos costumes dos pais, entregando-lhes os instrumentos da virtude dos ancestrais, [b] e, ao mesmo tempo, sob um bom auspício, permite que se dirijam pela primeira vez ao lar paterno para governarem com força, revestidos de suas armas. E ela jamais deixa de honrar aqueles que morreram, e a cada ano ela mesma realiza publicamente cerimônias que é costume celebrar-se privadamente. Além disso, estabelece concursos atléticos, hípicos e musicais de todos os tipos, e ela, naturalmente, coloca-se na posição de herdeira e filha dos que morreram. [c] Diante dos filhos, o lugar do pai; diante dos pais, o lugar de tutor, cuidando com diligência de todos em todo e qualquer momento.

“Considerando, pois, estas reflexões, é necessário suportar o infortúnio com mais tranquilidade. Assim sereis mais queridos tanto para os mortos quanto para os vivos, livres para cuidar e receber cuidados. E agora, vós e todos os demais, tendo já lamentado os mortos publicamente conforme a lei, retirai-vos.”81 81 Cf. Th. 2.46.

[d] Esse foi, Menêxeno, o discurso de Aspásia de Mileto.

MENÊXENO: Por Zeus, Sócrates, bem-aventurada é, segundo você diz, Aspásia se ela é capaz de, sendo mulher, compor discursos como esse.

SÓCRATES: Mas se você não acredita, venha comigo para escutar ela discursando pessoalmente.

MENÊXENO: Muitas vezes, Sócrates, eu já me encontrei com ela por acaso e sei muito bem como ela é.

SÓCRATES: E então? Não está admirado com ela e não está agradecido hoje pelo seu discurso?

MENÊXENO: Muitíssimo agradecido, Sócrates, a ela [e] ou a qualquer outro que tenha proferido esse discurso para você. E, além disso, sou ainda mais grato a aquele que o pronunciou para mim.

SÓCRATES: Eu também estaria. Mas, olhe lá, de jeito nenhum me denuncie, para que no futuro eu possa transmitir muitos e belos discursos políticos dela.

MENÊXENO: Fique tranquilo, não te denunciarei. Somente, os transmita.

SÓCRATES: Assim será!82 82 Esse trabalho foi desenvolvido com auxílio da bolsa de Pós-doutorado da FAPESP (nº 2018/07096-7). Agradeço também ao professor Brunno Vinícius Gonçalves Vieira (UNESP/Araraquara) pela amigável leitura e apontamentos críticos que fez inicialmente dessa tradução, que muito auxiliaram tanto para aparar pequenas arestas, quanto para refletir nos possíveis caminhos na tentativa de recriação do estilo paródico de Platão em nossa tradução.

Bibliografia

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  • TAYLOR, A. E. (1936). Plato: The Man and his Work New York, The Dial Press.
  • 1
    Entendemos o conceito de paródia de acordo com Bakhtin (1993BAKHTIN, M. (1993). Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo, Huicitec.) e Hutcheon (1985HUTCHEON, L. (1985). Uma teoria da paródia. Lisboa, Edições 70.), que o entendem como discurso bivocal em que um enunciador se utiliza do discurso de outro, mas mantém sua autonomia justamente na representação nova que dá a esse discurso, modificando, assim, o sentido primeiro.
  • 2
    É interessante que no curto prólogo que antecede o discurso, Sócrates enumera o esqueleto principal do gênero, esclarecendo o funcionamento e os objetivos dos epitáfios, tanto quanto, indiretamente, deixa entrever o caráter demagógico político do discurso, uma vez que reitera a facilidade em se “elogiar atenienses para atenienses” (234a).
  • 3
    Acosta Méndes (1987)ACOSTA MÉNDES, E. (1987). Introducción. In: CALONGE RUIZ, J.; ACOSTA MÉNDES, E.; OLIVIERI, F. J.; CALVO, J. L. (trads.). Platón. Diálogos: Górgias, Menéxeno, Eutidemo, Ménon, Crátilo. Madrid, Gredos, p. 149-159., em sua introdução à tradução espanhola do diálogo, apresenta uma revisão bibliográfica das principais discussões em torno do Menêxeno de Platão.
  • 4
    Cf.Berndt (1881BERNDT, T. (1881). De ironia Menexeni Plaionici. PhD thesis. Westphälische Wilhelms-Universität Münster.); Méridier (1956)MÉRIDIER, L. (ed.) (1956). Platon. Ouvres completes. Vol 5 : Ion. Ménexène. Euthydème. Paris, Les Belles Lettres.; Lorraux (1974)LORRAUX, N. (1974). Socrate contrepoison de l’oraison funèbre. Enjeu et signification du Ménexène. L’Antiquité Classique 43, p. 172-221.; Clavaud (1980CLAVAUD, R. (1980). Le Menexene de Platon et la rhetorique de son temps. Paris, Les Belles Lettres.); Pownall (2004POWNALL, F. (2004). Lessons from the past. The moral use of history in fourth-century prose. Michigan, The University of Michigan Press.).
  • 5
    Segundo Pownall (2004POWNALL, F. (2004). Lessons from the past. The moral use of history in fourth-century prose. Michigan, The University of Michigan Press., p. 58), dos trinta e nove lugares-comuns do gênero, recolhidos pelos cinco exemplos da Antiguidade que conhecemos, o texto de Platão apresenta trinta e cinco.
  • 6
    Cf.Méridier (1956MÉRIDIER, L. (ed.) (1956). Platon. Ouvres completes. Vol 5 : Ion. Ménexène. Euthydème. Paris, Les Belles Lettres., p. 69-70) que apresenta uma série de elementos estilísticos utilizados no discurso que seguem os preceitos de Górgias.
  • 7
    Se de um lado a oração volta-se aos mortos, ela não esquece dos vivos, já que faz parte da estrutura da oração também uma parte de consolação dos vivos (pais e filhos dos mortos) e a exortação para estes imitarem as virtudes dos homens que são, também, as virtudes da cidade.
  • 8
    Cf.Perlman (1961PERLMAN, S. (1961). The historical example, its use and importance as political propaganda in the Attic Orators. Scripta Hierosolymitana 7, p. 150-166.).
  • 9
    A ἀκρίβεια é um requisito básico, segundo Tucídides, para o trabalho do historiador, pois é ela que permite que ele trate o passado sem “pré-conceitos” que o impeçam de compreender as causas e motivos reais que conduziram as ações dos homens e produziram a história; também é ela que faz o historiador privilegiar a verdade em detrimento do prazer dos ouvintes/leitores do presente. Cf. Th. 1.22.
  • 10
    Cf.Pownall (2004POWNALL, F. (2004). Lessons from the past. The moral use of history in fourth-century prose. Michigan, The University of Michigan Press., p. 42).
  • 11
    Durante o texto traduzido, as notas apresentarão, na medida do possível, comentários que desvelem as manipulações efetuadas pela oração fúnebre.
  • 12
    Alguns críticos acreditam que a escolha de Aspásia seja uma referência literária à obra Aspásia de Ésquines, também discípulo de Sócrates, mas adversário de Platão. Nesta obra, a hetaira jônia desempenhava papel similar ao que desempenha no Menêxeno, como mestra e educadora na arte da eloquência.
  • 13
    Cf. A. E. Taylor (1936TAYLOR, A. E. (1936). Plato: The Man and his Work. New York, The Dial Press.).
  • 14
    Personagem que também aparece, como adolescente, no diálogo Lísias (211b) e, como discípulo de Sócrates, em Phd. 59b. A brincadeira que Sócrates faz no Menêxeno a respeito de ele já se sentir pronto a abandonar os estudos e assumir funções políticas, talvez revele que o jovem, neste diálogo, tenha acabado de entrar na classe da efebia, em que o cidadão, com dezoito anos, pode exercer os direitos civis atenienses.
  • 15
    Sócrates, ironicamente, reproduz a visão dos sofistas de que a filosofia deve ser parte da formação do indivíduo com vista às funções práticas, como a política, e, nesse caso, há uma aparente aproximação entre o conceito de sofística e de filosofia. Irônico este comentário, uma vez que Sócrates, por exemplo na Apologia (29d), mas também em outras partes, acredita que o filosofar é uma atividade que deve ser entendida como permanente durante a vida do homem e Platão (República 525a-530c) se esforça para provar que a filosofia é o ponto culminante da formação humana.
  • 16
    Arquino foi, junto com Trasíbulo, um dos restauradores da democracia em Atenas após a queda do governo oligárquica e tirânico dos Trinta, no final da Guerra do Peloponeso. Quanto a Dion, não há muitas informações, porém se conjectura que se trate de um orador que serviu de embaixador na Pérsia em 392.
  • 17
    Em sua nova ironia, revela-se um ponto importante para o entendimento do ἐπιτάφιος λόγος enquanto gênero retórico: trata-se de um texto feito de tópicas usuais que independem do momento em que são pronunciados.
  • 18
    Nessa passagem, Sócrates resume os temas essenciais da oração fúnebre e que, posteriormente, serão proferidos no discurso de Sócrates.
  • 19
    A palavra ἔναυλος remete ao som produzido pela flauta.
  • 20
    λόγος e φθόγγος, respetivamente, “a palavra” e o “som da voz”, ou seja, o encantamento não se dá apenas pelo conteúdo e estilo, mas pela própria habilidade de proferir o discurso.
  • 21
    A referência à mitológica Ilha dos Bem-Aventurados também é irônica, na medida em que é um espaço próprio para os heróis ou de pessoas de vida moralmente irrepreensíveis depois da morte. Neste sentido, o encantamento com o discurso é tanto que a própria Atenas real se converte em uma réplica da Ilha, assim Sócrates precisa de mais de três dias para voltar à vida habitual, ou seja, deixar seu estado de aparência heroica e dedicar-se à filosofia. Do mesmo modo, a própria oração fúnebre, como discurso encomiástico, busca heroicizar os mortos colocando-os, de algum modo, no mesmo patamar dos heróis tradicionais.
  • 22
    Buscamos nas partes dialogadas manter uma linguagem mais corriqueira, tanto por entendermos o encontro de Sócrates com Menêxeno dentro de um contexto de amizade e familiaridade, quanto por acreditarmos que, assim, ficará mais clara a oposição do diálogo com o discurso que será na sequência proferido, como um texto artificioso que se enaltece linguisticamente para enaltecer.
  • 23
    Menêxeno parece acreditar que cada ἐπιτάφιος λόγος é, de fato, composto a cada circunstância específica, desconhecendo a essência convencional do gênero que é, justamente, aquilo que Sócrates visa e visará demonstrar com sua paródia.
  • 24
    Muitos críticos apontam essa passagem como uma crítica à famosa oração fúnebre proferida por Péricles e registrada por Tucídides no livro II 35-47. No caso, interessa-nos que o aspecto convencional do gênero é expressado pelo uso de partes de um discurso proferido em 430/31 a.C., com um rearranjo, em uma oração em 387 a.C., mostrando o caráter convencional do gênero epitáfio e que as circunstâncias históricas em que ele é proferido em nada dificulta a composição da peça.
  • 25
    O verbo aqui utilizado por Platão é παίζω cujo sentido primeiro é “fazer-se de criança”, retomando a radical παῖς, criança. Daí, nossa escolha tradutória por um termo que evidenciasse essa etimologia.
  • 26
    A oposição ἔργον λόγος se refere às honras públicas aos mortos, o monumento e as celebrações funerárias e o discurso fúnebre. Cf. Th. 2.46.
  • 27
    Implica-se aqui que, mais do que uma obrigação legal (νόμος), é uma obrigação moral e religioso (χρή).
  • 28
    Uma tópica constante nas orações fúnebres atenienses é que a morte dos guerreiros se deu pela salvação da cidade, especialmente, pela luta em favor da liberdade da cidade e de todos os gregos. No contexto da democracia ateniense, o ideal da bela morte converte-se de uma ação particular, como na épica, em ação coletiva em prol do coletivo.
  • 29
    Origem, natureza e educação são tópicas dos gêneros epidíticos cujo desenvolvimento gerou a estrutura da biografia antiga.
  • 30
    Traduzimos αὐτόχθον pelo seu sentido literal, já que o emprego abstrato desse termo é moderno, cf.Miller (1982MILLER, M. J. (1982). The Athenian autochthonous heroes from the Classical to the Hellenistic Period. PhD dissertation. Cambridge, Harvard University., p. 13). A valorização da autoctonia é uma tópica recorrente nas orações fúnebres. Tal crença aparece também em outros autores, como Heródoto (7.161), Aristófanes (Ran. 1076) e em alguns dramas de Eurípides. Junta-se a essa tópica, o elogio dos ancestrais que também ocorre em Th. 2.36.
  • 31
    Os mitos de Erictónio talvez sejam os que mais se aproximam de uma ideia de autoctonia ateniense. Hefesto, tendo se apaixonado por Atena, a perseguiu e, mesmo coxo, conseguiu alcançá-la. A deusa, porém, se defendeu, mas um pouco do esperma do deus caiu sobre ela; ela, enojada, limpou-se com uma manta de lã e a jogou no solo e esse esperma fecundou a Terra, que deu à luz a uma criança que a própria Atena recolheu, passou a cuidar e deu o nome de Erictónio, cujo sentido retoma tanto a palavra lã (ἔριον), quanto terra (χθών) (cf. Apollod. 3.14).
  • 32
    Atena e Poseidon lutaram para dar nome à cidade.
  • 33
    Conforme os mitos, Atena e Hefesto ensinaram aos atenienses as artes, enquanto Ares os ensinou o uso das armas.
  • 34
    A tópica do elogio da constituição também é encontrada em Tucídides (2.37), Lísias (17-19), e Demóstenes (25-26), e visa opor o governo democrático contra o oligárquico, especialmente espartano, afirmando que é aquele que, de fato, é constituído pelos melhores homens (aristocratia).
  • 35
    A palavra utilizada é “aristocracia” que, literalmente, significa o governo dos melhores. Seja qual for o sentido que se entenda nessa passagem, em nossa opinião, nas duas opções há uma evidente ironia de Platão. Afinal, sendo o governo democrático, ao chamá-lo de aristocracia, estaria o orador revelando a real natureza do governo, que, embora com a aprovação da maioria, continua a ser governada pelos mesmos homens dos tempos oligárquicos; se, por acaso, entendermos como “governo dos melhores”, devemos lembrar que uma das críticas ao sistema democrático ateniense, por Platão, Xenofonte, Aristóteles, entre outros, baseia-se na ausência de critérios na seleção dos magistrados e governantes, uma vez que a escolha de quem representava esses cargos tão vitais para a saúde da cidade se dava por sorteio.
  • 36
    Referência aos breves períodos em que as dissensões de 411 e 404 tomaram Atenas e instalaram governos oligárquico dos Quinhentos e dos Trinta, respectivamente.
  • 37
    Refere-se aos primeiros Reis, aristocráticos que descendem dos personagens conhecidos pela mitologia.
  • 38
    Aqui, segundo Méridier (1956MÉRIDIER, L. (ed.) (1956). Platon. Ouvres completes. Vol 5 : Ion. Ménexène. Euthydème. Paris, Les Belles Lettres.), o termo βασιλῆς refere-se ao conjunto dos arcontes eleitos anualmente pela Assembleia popular em Atenas.
  • 39
    Em sintonia com a nota anterior, aqui novamente revela-se um importante aspecto da crítica de Platão, pela constante presença do verbo δοκέω, vinculado ao conceito de δόξα que, na filosofia platônica, implica o falso conhecimento da realidade, em oposição ao conhecimento verdadeiro que apenas o filósofo pode alcançar. Assim, para o governo democrático são eleitos homens que “pareçam” ser sábios, “pareçam” ser os melhores, “pareçam” ser virtuosos.
  • 40
    Tópica também presente no discurso de Péricles. Cf. Th. 2.37.
  • 41
    A partir dessa passagem, a oração se volta à narrativa dos eventos históricos (lendários ou não) importantes da história ateniense. Conforme já discutido na introdução, as informações são generalizadas e referidas apenas com intuitos políticos, na tentativa de provar a superioridade de Atenas frente às outras cidades gregas. Interessante que, nesse processo, algumas estratégias discursivas são retiradas dos próprios historiadores, ainda que sejam deformadas pela oratória.
  • 42
    Esses são eventos tradicionais que remontam aos tempos míticos da cidade de Atenas e, pelo seu caráter poético, já teriam sido matéria de obras literárias. Porém, também os historiadores fazem comentários a respeito de tais eventos, como Heródoto (9.27) e Xenofonte (HG 6.5.46). O importante é que, desse contexto mítico, retira-se a ideia de que Atenas ajuda quem é oprimido e é uma sociedade sempre defensora da liberdade.
  • 43
    ἀξίως διηγήσασθαι. Um dos argumentos dos historiadores para justificar quais eventos eles irão narrar ou deixar no esquecimento relaciona-se à ideia pessoal que o autor faz do que é digno de narração.
  • 44
    Méridier (1956MÉRIDIER, L. (ed.) (1956). Platon. Ouvres completes. Vol 5 : Ion. Ménexène. Euthydème. Paris, Les Belles Lettres.) entende a expressão τὰ αὐτὰ λόγῳ ψιλῷ como “uma simples prosa”, em virtude da tópica recorrente da inferioridade estética da prosa diante da poesia. No caso, preferimos manter o sentido de discurso, pois trata-se de um texto que, pretensamente é construído para ser falado e ouvido em uma situação pública, em que a qualidade sonora (inclusive com recursos poéticos) é fundamental, e a ideia de prosa parece-nos estar muito marcada pela ideia de leitura.
  • 45
    Em sintonia com a tópica historiográfica do que é digno de narrar, apresenta-se aqui a tópica do passado já tem quem preserve a memória, os poetas, enquanto os eventos recentes e presentes necessitam de alguém que, com a beleza da linguagem, valorize as virtudes e impeça que eles sejam esquecidos com o tempo.
  • 46
    As Guerras Médicas são fundamentais na imagem criada pelos atenienses para Atenas. Isso porque, com as vitórias conquistadas, Atenas inicia um império marítimo, dominando as ilhas e as cidades da jônia. A justificativa para sua soberania é dada pela participação fundamental na vitória contra os persas.
  • 47
    Entendo essa passagem como uma forma de oposição entre o imperialismo ateniense e o imperialismo persa, na medida em que este, agora, é referido por escravizar os outros povos, enquanto garante a liberdade dos próprios persas, enquanto, na sequência do discurso, Atenas será elogiada por manter e lutar pela liberdade mesmo daqueles que ela domina.
  • 48
    Assim como o orador busca distinguir as ações dos atenienses em relação aos persas, ele fez o mesmo em relação aos outros gregos, mostrando, assim, a superioridade moral da cidade de Atenas.
  • 49
    Como discurso oratório destinado ao elogio de atenienses para atenienses, não é mencionada a batalha de Termópilas cujos protagonistas foram os lacedemônios; tampouco se menciona a presença dos aliados nas batalhas de Artemísion e Salamina. Desse modo, toda a glória das Guerras Médicas é reservada a Atenas. Cf. Hdt. 8.1-2, 44-48.
  • 50
    Cf. Hdt. 9.6-12, 28-29, 30-32.
  • 51
    Cf. Th. 1.100.
  • 52
    Cf. Th. 1.112.
  • 53
    Cf. Th. 1.109-110. Ao referir-se à expedição ao Egito, Sócrates não menciona o desastre para os atenienses com que ela terminou, pois, em 455, as tropas atenienses que permaneciam no Egito foram atacadas pelas tropas do persa Megabizo e foram feitos numerosos prisioneiros.
  • 54
    Tópica também encontrada em Lísias (48). Há que se ressaltar que Sócrates omite que as dissensões das cidades aliadas decorrem também dos excessos do imperialismo ateniense.
  • 55
    Cf. Th. 1.108. Tucídides testemunha que a expedição contra a Beócia durou sessenta e dois dias em Tanagra. Por outro lado, segundo Diodoro Sículo (11.83), a batalha se resolveu em um dia inteiro.
  • 56
    Cf. Th. 4.8. Ao evocar a guerra de Arquidamos (431-421), a primeira parte da Guerra do Peloponeso, Sócrates mantém o silêncio quanto as revoltas das cidades da Trácia e Calcídia, e a tomada de Anfípolis pelo espartano Brásidas.
  • 57
    Na realidade, os prisioneiros foram devolvidos apenas depois da paz de Nícias. Cf. Th. 4.31-41.
  • 58
    Cf. Th. 3.86. Para o historiador, o verdadeiro motivo da expedição era cortar o aprovisionamento do Peloponeso.
  • 59
    Cf. X. HG 1.1.12. Trata-se da batalha de Cízico em 410.
  • 60
    Refere-se ao tratado de 412 entre os lacedemônios e seus aliados com o rei Persa (cf. Th. 8.18) que passou, no final da Guerra do Peloponeso, a atuar financiando a armada espartana. Posteriormente, também os atenienses enviaram uma embaixada ao Rei (cf. Th. 4.50).
  • 61
    Referência a Batalha de Arginussas em 406 em que os estrategos atenienses, depois da vitória, foram impossibilitados por causa de uma forte tempestade de recolher os mortos. Por causa disso, eles foram julgados e condenados a morte pela Assembleia atenienses, especialmente pela forte participação de Teramênes na acusação. Xenofonte, que em HG 1.6, narra esses sucessos, diz que, rapidamente, a população se arrependeu de ter condenado os estrategos.
  • 62
    Essa afirmação omite a derrota em Egospótamos que deu fim à Guerra do Peloponeso. Sob o comando de Lisandro, os espartanos colocaram os atenienses numa situação difícil, em que eles, constrangidos pela força do inimigo e pela fome, aceitaram as imposições dos inimigos, derrubando, inclusive, as grandes muralhas atenienses. Logo em seguida, é criado o governo oligárquico dos Trinta que, assumindo para redigir novas leis, exerce o poder tiranicamente com banimentos ilegais, espoliação de riquezas, além de massacres contra rivais políticos, criando uma guerra civil em Atenas.
  • 63
    Em X. HG 2.4.24-43, os fatos narrados se dão de uma maneira muito distinta a esta, especialmente quanto ao comportamento dos Trinta. Este é um bom exemplo da diferença de atitude de um historiador e de um orador em relação aos fatos passados.
  • 64
    Alusão aos deuses infernais.
  • 65
    Cf. X. HG 2.2.20.
  • 66
    Cf. X. HG 3.2.23.
  • 67
    A partir deste momento, inicia-se o problema cronológico, uma vez que os eventos subsequentes ocorreram após a morte de Sócrates.
  • 68
    Sócrates afirma que os atenienses ajudaram essas cidades, apesar do justo ressentimento, porém, segundo Xenofonte (HG 3.5), eles receberam ouro do persa Titraustes para guerrear contra os espartanos. Os atenienses, com medo de sucumbir diante dos espartanos, aceitaram o patrocínio bárbaro.
  • 69
    Nessa passagem, Sócrates dá novamente a entender que a ajuda dos atenienses foi desinteressada. Cf. X. HG 4.8.
  • 70
    Cf. X. HG 4.2.8.
  • 71
    Cf. X. HG 5.2-4.
  • 72
    Alusão a Cónon que, com a permissão dos atenienses, ajudou os persas na luta contra os lacedemônios. O Rei persa o colocou no comando da frota, com a qual venceu os lacedemônios na batalha de Cnido em 394.
  • 73
    Segundo Isócrates (18), refere-se à tomada de Paros por Pasinos, personagem desconhecido por nós.
  • 74
    Cf. Th. 8.18.
  • 75
    Referência à paz de Antálcidas em 387 cuja iniciativa partiu dos Lacedemônios.
  • 76
    Cf. X. HG 5.1.28-31.
  • 77
    Cf. X. HG 4.4.6.
  • 78
    A peroração que segue é uma inovação às orações fúnebres que conhecemos, pois nela o orador mimetiza uma possível fala dos mortos, encorajando os filhos e os pais a seguir um determinado tipo de vida, ou seja, se na primeira parte do discurso, ele se foca ao passado, agora ele volta-se para o futuro. Deve-se, no entanto, notar que inovação se restringe à construção de um discurso dos mortos mimetizado pelo orador, afinal, toda a fala é feita de tópicas usuais.
  • 79
    Cf. R. 387d-e.
  • 80
    Cf. Th. 2.46.
  • 81
    Cf. Th. 2.46.
  • 82
    Esse trabalho foi desenvolvido com auxílio da bolsa de Pós-doutorado da FAPESP (nº 2018/07096-7). Agradeço também ao professor Brunno Vinícius Gonçalves Vieira (UNESP/Araraquara) pela amigável leitura e apontamentos críticos que fez inicialmente dessa tradução, que muito auxiliaram tanto para aparar pequenas arestas, quanto para refletir nos possíveis caminhos na tentativa de recriação do estilo paródico de Platão em nossa tradução.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2019
  • Aceito
    03 Jun 2020
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