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Freud e (a ausência de) Pandora

Freud and (the absence of) Pandora

Resumo:

A teoria freudiana da feminilidade é objeto de vários estudos. Tencionamos trazer uma contribuição a esse debate, mas, em vez de abordarmos os textos em que a mulher aparece explicitamente sob a pena freudiana, cuidamos de ler um texto específico de Freud em que ela não aparece, mas deveria aparecer. Trata-se do texto Zur Gewinnung des Feuers, de 1932, em que o pai da psicanálise interpreta o mito de Prometeu. O fato é que, em Hesíodo, a figura da primeira mulher (Pandora) é central, e sem ela o mito não pode ser compreendido em sua inteireza. Na versão de Freud, Pandora inexiste - ela não entra em consideração e não é sequer mencionada. Por isso, em vez do mito de Prometeu e Pandora, temos em Freud o mito de Prometeu - e isso não é sem consequências. Assim, a escrita masculina de Freud jazeria não somente ali onde ele discorre sobre a mulher, mas também onde ela sequer aparece.

Palavras-chave:
Freud; Hesíodo; mulher; Prometeu; Pandora

Abstract:

The Freudian theory of femininity is the object of several studies. We intend to make a contribution to this debate, but instead of approaching the Freudian texts in which woman appears explicitly, we aimed to read a specific Freudian text in which she appears not, although she should do so. It is the 1932 text Zur Gewinnung des Feuers, in which the father of psychoanalysis interprets the myth of Prometheus. The fact is that, in Hesiod, the figure of the first woman (Pandora) is central, and one cannot comprehend the myth in its totality without her. In Freud’s version, Pandora does not exist - she is not taken in consideration and is not even mentioned. Therefore, instead of the myth of Prometheus and Pandora, we have in Freud the myth of Prometheus - and that does not come without consequences. Thus, Freud’s masculine writing would lie not only where he expatiates on women, but also where she does not even appear.

Key-words:
Freud; Hesiod; woman; Prometheus; Pandora

Introdução

Já são muitos os textos que versam sobre a questão da feminilidade em Freud. Silveira (2020SILVEIRA. L. (2020). Entre teses e textos: Como o tema da inferioridade da mulher aparece nos ensaios que Freud dedica à sexualidade feminina? Revista Aurora 33, n.58, p. 6-29.), por exemplo, dedicou um texto inteiro para discutir os argumentos freudianos acerca da suposta inferioridade feminina. Como ela destacou, um dos problemas maiores da letra freudiana nesse quesito é o fato de Freud “valer-se do dado anatômico para com ele construir - como se uma coisa se seguisse da outra - todo um conjunto de valores morais, políticos e sociais, incorporando, reeditando e mesmo produzindo elementos profundamente normativos” (Silveira, 2020SILVEIRA. L. (2020). Entre teses e textos: Como o tema da inferioridade da mulher aparece nos ensaios que Freud dedica à sexualidade feminina? Revista Aurora 33, n.58, p. 6-29., p. 8).

Existem escancarados, dir-se-ia, diversos momentos da teorização freudiana acerca da mulher que parecem injustificáveis de um ponto de vista puramente racional. O mais gritante deles se nos afigura ser o da moralidade feminina (ou da falta dela). Com efeito, a insuficiência do supereu feminino é afirmada por Freud em diversos textos, em especial naqueles em que ele mais se detém na temática espinhosa da sexualidade feminina:1 1 Cf., por exemplo, Freud (1925; 1931; 1933). em virtude de uma especificidade do seu desenvolvimento psicossexual, a fêmea humana estaria fadada a desenvolver uma moralidade menos impessoal, por isso menos racional e mais propensa a julgamentos ilógicos e emocionalmente determinados; isso a faria possuir inevitavelmente uma capacidade sublimatória menor do que a do macho humano. Assim, a mulher estaria fadada a uma falha tripla - “falha em seu supereu, falha em sua moralidade e falha na capacidade de sublimar”, como diz Zafiropoulos (2009ZAFIROUPOULOS, M. (2009). A teoria freudiana da feminilidade: de Freud a Lacan. Reverso 31, n. 58, p. 15-24., p. 17). Ou seja, encontramos, nesses trechos de Freud, aquilo que Silveira (2020SILVEIRA. L. (2020). Entre teses e textos: Como o tema da inferioridade da mulher aparece nos ensaios que Freud dedica à sexualidade feminina? Revista Aurora 33, n.58, p. 6-29.) denomina o “alijamento das mulheres com relação às práticas culturais” (p. 24): em Freud, o elemento “mulher” estaria, senão fora, ao menos em contradição com o que ele chama de “cultura”.

É inegável, pois, que esses passos da teorização freudiana tenham sido bem pouco conformes à sua tão aclamada “visão de mundo científica”. Como mostra Silveira (2020SILVEIRA. L. (2020). Entre teses e textos: Como o tema da inferioridade da mulher aparece nos ensaios que Freud dedica à sexualidade feminina? Revista Aurora 33, n.58, p. 6-29.), trata-se de passagens em que a inferioridade é subscrita e selada como um traço feminino. “O compromisso das teses freudianas sobre a especificidade da sexualidade para com essa consequência e essa intenção não pode ser camuflado nem contemporizado” (p. 27). Não à toa pôde Felman (1981FELMAN, S. (1981). Rereading Femininity. Yale French Studies 62, p. 19-44., p. 21) falar de uma “escrita masculina de Freud” (Freud’s male writing), cuja “enunciação masculina” (male enunciation) seria baseada numa universalidade pretensamente autoevidente.

Neste estudo, visamos abordar a escrita masculina de Freud por um outro viés. Se, por um lado, ler e analisar os textos em que ele discorre aberta e explicitamente a respeito das mulheres é um método comprovadamente frutífero, por outro lado, porém, julgamos ser bastante fecundo estudar o problema da mulher em Freud não exatamente naqueles textos em que a feminilidade aparece enquanto tal. Ora, não pode ser coincidência que, ao analisar um mito em cujo seio a figura da mulher é proeminente e indispensável (como veremos), Freud tenha escrito um texto inteiro sem mencioná-la uma vez sequer. Nesse caso, a escrita masculina de Freud jazeria não em seu palavrório cientificamente desnecessário e ilegítimo acerca das feministas, por exemplo, mas sim precisamente naqueles lugares em que a mulher não aparece, porém claramente deveria aparecer.

Tal é o caso do mito de Prometeu - ou melhor, o mito de Prometeu e Pandora. É por ela, a primeiríssima mulher, brilhar em sua magna ausência durante as argumentações de Freud, que poderemos agregar novos elementos à leitura crítica dessas arestas demasiado masculinas da escritura freudiana. Para isso, teremos de contrapor Freud e Hesíodo.

I

O texto é de 1932; seu título, Sobre a conquista do fogo. A hipótese com que Freud abre o texto é a seguinte: “a precondição para o apoderamento do fogo seria a renúncia ao prazer, de tom homossexual, de apagá-lo por meio do jato de urina” (Freud, 1932, p. 3). Essa conjetura, adiantemos, se alinha a várias outras hipóteses freudianas concernentes à vida cultural dos homens, na medida em que um ganho cultural (no caso, o fogo) só poderia ter lugar quando da renúncia à satisfação de determinados impulsos corporais (no caso, o ato de urinar). Fórmula básica e abstrata do avanço cultural para Freud: cultura é sinônimo de renúncia instintual.2 2 Cf., por exemplo, Freud, 1930. Atentemo-nos desde já, entretanto, ao fato de a renúncia, neste caso específico, ser referente a um prazer marcadamente homossexual. Ora, a pergunta que se pode fazer é: homossexual para quem?

Essa hipótese, diz Freud (1932FREUD, S. (1932). Zur Gewinnung des Feuers.Gesammelte Werke, Band XVI, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, p. 1-9.), “pode ser confirmada por meio da interpretação da saga grega de Prometeu, desde que levemos em consideração as previsíveis deformações [Entstellungen] [que se operam] desde o fato até o conteúdo do mito” (p. 3-4). Entre os fatos e os mitos, dessarte, haveria uma série de deformações que é preciso desfazer por meio de interpretação. Tais deformações, argumenta Freud, são formalmente idênticas àquelas encontradas em ação na formação de sonhos, por meio das quais o conteúdo latente se transfigura em conteúdo manifesto. Ou seja, Freud enuncia aqui o seu programa: interpretar o mito tal como se interpretam, em psicanálise, os sonhos. Método regularmente empregado por Freud também alhures, aliás, ao analisar obras de arte, sintomas, lapsos e assim por diante.

Vejamos então como Freud (1932FREUD, S. (1932). Zur Gewinnung des Feuers.Gesammelte Werke, Band XVI, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, p. 1-9.) resume o mito: “o titã Prometeu, um herói cultural [Kulturheros] ainda divino, talvez originalmente um demiurgo e criador de homens, leva aos homens o fogo que ele roubou dos deuses, escondido numa vara oca, num tubo de funcho [Fenchelrohr]” (p. 4). Não entremos em detalhes críticos do mito grego, pois Prometeu não é de fato um herói, mas mantenhamos em mente sua caracterização: ele é um herói cultural, um personagem importante para o estado cultural do homem. O texto assim continua: “em uma interpretação de sonhos, nós compreenderíamos um tal objeto como um símbolo do pênis, ainda que nos incomode a incomum ênfase na sua cavidade” (Freud, 1932, p. 4). Ou seja, essa vara representa um pênis, mas o esquisito dela é que ela seja oca e, mais que isso, que carregue em seu interior nada menos do que o fogo: “mas como nós associamos esse pênis-tubo com a conservação do fogo?” (Freud, 1932, p. 4). Um pênis que contém fogo, argumenta Freud, é algo de fato estranho, e parece mesmo impossível - impossível caso não nos recordemos de um mecanismo amplamente usado nos sonhos, o de transformar as coisas em seu contrário: “o homem não abriga o fogo em seu pênis-tubo, mas sim, ao contrário, o meio de apagar o fogo, a água do seu jato de urina” (Freud, 1932, p. 4). Entre o fato e o mito, portanto, ocorreu uma inversão. O fato: o pênis apaga o fogo com sua urina - o mito: o tubo (pênis) conserva o fogo.

O segundo passo hermenêutico de Freud aponta agora para o caráter de sacrilégio, de delito (Frevel) na aquisição humana do fogo. Ele é dado ao homem mediante um roubo (Raub), um furto (Diebstahl). “Esse é um traço constante de todas as sagas sobre a conquista do fogo, e se encontra nos povos mais diversos e mais longínquos, não apenas na saga grega de Prometeu, o portador do fogo”. A conclusão de Freud? “Aqui deve estar contido, portanto, o conteúdo essencial da deformada reminiscência da humanidade” (Freud, 1932, p. 5). Mas quem é o ser fraudado? Ninguém menos que Zeus. E aqui Freud menciona, apenas de passagem, outro trecho do mito de Prometeu, que supostamente não tem relação com o roubo do fogo

A saga em Hesíodo dá uma resposta direta, pois ela mostra, numa outra narrativa que não está diretamente relacionada com o fogo, que Prometeu, no estabelecimento do sacrifício, engana Zeus em benefício dos homens. Os deuses, portanto, são os fraudados! (Freud, 1932FREUD, S. (1932). Zur Gewinnung des Feuers.Gesammelte Werke, Band XVI, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, p. 1-9., p. 5).

Passo lógico pouco prudente, talvez: Zeus é o fraudado, não os deuses. Mas o mais grave, aqui, é a afirmação peremptória de que o mito do sacrifício do boi não está relacionado ao mito do roubo do fogo. Como veremos, tentar compreender uma parcela do mito sem atentar a outra parcela sua é no mínimo uma estratégia imponderada. Mas só poderemos nos alongar a esse respeito na próxima seção deste nosso estudo.

Sigamos por ora, porém, a argumentação de Freud. Os deuses são os fraudados por Prometeu. Que representam aqui essas entidades divinas, ludibriadas pelo herói cultural? “O mito concede aos deuses todos os desejos [Gelüste] aos quais o ser humano deve renunciar, como conhecemos do incesto” (Freud, 1932, p. 5). Sob essa perspectiva, os deuses representam esses desejos proibidos, esses anseios vetados ao homem. A “reminiscência da humanidade”, deformada como está no tecido narrativo do mito, tem de ter alguma relação com esses desejos interditados. Freud encontra essa relação na punição recebida por Prometeu - eis o terceiro passo hermenêutico do texto. Nesse traço do mito, diz Freud, uma vez mais vemos operante a transformação no contrário. Como resume ele então o castigo dado ao impudente herói cultural? “Prometeu é acorrentado a uma rocha, e um abutre come diariamente do seu fígado” (Freud, 1932, p. 5). É fácil explicar esse órgão corporal, pois que “os antigos”, argumenta Freud (1932), acreditavam ser ele “a sede de todas as paixões e cobiças” (p. 5). Os antigos, esses seres unânimes e unívocos! Mas não nos atenhamos a esses pormenores vocabulares, e continuemos acompanhando o razoamento freudiano:

Um castigo como o de Prometeu seria, portanto, o correto para um criminoso movido por instintos [triebhaft] que delinquira sob o impulso de maus desejos. O exato oposto está correto, porém, para o portador do fogo; ele praticara a renúncia instintual [Triebverzicht] e mostrara quão benfazeja, mas também quão indispensável é uma tal renúncia instintual para os propósitos culturais. E por que, ademais, tal benefício cultural teve de ser tratado pela saga como um crime merecedor de punição? Ora, se ela deixa transparecer, através de todas as deformações, que a conquista do fogo teve uma renúncia instintual como precondição, então exprime escancaradamente o rancor que a humanidade, movida por instintos [triebhaft], deve ter sentido pelo herói cultural (Freud, 1932FREUD, S. (1932). Zur Gewinnung des Feuers.Gesammelte Werke, Band XVI, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, p. 1-9., p. 5).

Ou seja, Zeus - a divindade máxima, representante dos desejos desenfreados e plenamente satisfeitos - pune Prometeu precisamente por ele ter mostrado aos homens quão indispensável lhes é, para que sejam seres culturais, aquela renúncia instintual representada pelo fogo. Este elemento, então - elemento central deste mito -, aufere nova importância simbólica no passo seguinte dado por Freud. “Para o primitivo, o fogo deve ter aparecido como algo análogo à paixão amorosa - nós diríamos: como um símbolo da libido” (Freud, 1932FREUD, S. (1932). Zur Gewinnung des Feuers.Gesammelte Werke, Band XVI, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, p. 1-9., p. 6). Mas, além disso, “o calor que o fogo irradia evoca a mesma sensação que acompanha o estado de excitação sexual, e a chama lembra, na forma e nos movimentos, o falo ativo” (Freud, 1932FREUD, S. (1932). Zur Gewinnung des Feuers.Gesammelte Werke, Band XVI, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, p. 1-9., p. 6). Nós também falamos das chamas devoradoras da paixão, nós também dizemos do fogo como uma língua que lambe, recorda Freud. E agora ao fogo e ao falo vão-se unir outros elementos do mito: o fígado, ao ser carcomido toda noite e renascer durante o dia, também evoca o pênis, que recrudesce e amansa após o coito, e também evoca os desejos amorosos, mudáveis e instáveis como eles são; e mesmo o pássaro, o agente da devoração do fígado, faz Freud lembrar-se da ave mítica denominada Fênix, “que ressurge rejuvenescida de cada morte no fogo, e que provavelmente significou outrora o falo novamente revivescido após seu adormecimento” (Freud, 1932FREUD, S. (1932). Zur Gewinnung des Feuers.Gesammelte Werke, Band XVI, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, p. 1-9., p. 7).

Ou seja, nessa interpretação do mito grego, tudo parece remeter ao falo em ação. Nada escapa a ele. O pau oco é o falo. O fogo é o falo. O fígado é o falo. O pássaro é o falo. É claro, quando colocamos as coisas assim, simplificamos o raciocínio freudiano, que é mais sofisticado do que isso. Mas a centralidade do pênis nessa interpretação é inegável. Afinal, mesmo a renúncia instintual a que Freud remete todo o mito tem relação inequívoca com ele: manter aceso o fogo significa renunciar a apagá-lo com a própria urina. “Na nossa explicação da conquista do fogo já estava contido o pressuposto de que, para o homem original [Urmensch], a tentativa de apagar o fogo por meio da sua própria água significava uma luta [Ringen] prazerosa com um outro falo” (Freud, 1932FREUD, S. (1932). Zur Gewinnung des Feuers.Gesammelte Werke, Band XVI, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, p. 1-9., p. 6).

Ora, é da luta homossexual e prazerosa entre falos que se trata. A manutenção da chama (real) acesa representa a renúncia à chama (simbólica) homoerótica. Freud usa o verbo substantivado ringen para dizer do combate peniano, o que nos faz lembrar do substantivo Ring, o anel, o círculo, o ringue. Aqui temos um círculo de falos, de órgãos masculinos gozosos a lutar entre si para ver quem apaga as labaredas do fogo. A mulher, não é difícil ver, está ausente desse círculo absolutamente masculino. Não vemos nem mesmo uma sombra dela, nem mesmo um seu reflexo opaco fabricado de través por esse fogo arduamente conquistado pelos homens - e tão-somente por eles. Ou os fatos trazidos à luz por Freud são totalmente masculinos, ou é a interpretação de Freud que é eminentemente masculina. Não nos parece haver outra opção. E é Hesíodo quem nos poderá indicar o caminho exegético doravante.

II

Por que essa nossa insistência na ausência da mulher na interpretação freudiana do mito grego de Prometeu? Porque nesse mesmo mito uma mulher (e não uma mulher qualquer) é personagem central e incontornável. A versão mais importante dessa narrativa mítica é a que o próprio Freud menciona, a de Hesíodo. Trata-se, porém, de duas versões, pois o mito aparece tanto na Teogonia quanto n’Os trabalhos e os dias. Vernant (1975VERNANT, J. P. (1975). Le mythe prométhéen chez Hésiode. In : Œuvres : Religion, Rationalités, Politique I. Paris, Éditions du Seuil, p. 751-764.) fez um belo, sucinto e esclarecedor resumo comparativo das duas versões; segundo ele, elas “formam um conjunto e devem ser analisadas enquanto tal” (p. 751).

Comecemos pela Teogonia. Curiosamente, Hesíodo inicia do “fim” a história de Prometeu, e o descreve acorrentado à rocha, tendo seu fígado devorado por uma águia (αἰετός) toda noite, após vê-lo restaurar-se durante o dia (Th. 521-525). Em seguida, vem descrito o primeiro engano perpetrado por Prometeu diante de Zeus, ludíbrio este apenas mencionado de passagem por Freud, como fizemos notar: o filho de Jápeto oferece duas porções de carne bovina a Zeus, para que este escolha a que preferir; de um lado, a ossada do boi coberta por brilhante gordura, e, de outro, as gordas carnes envoltas pelo ventre pouco brilhoso do animal. O pai dos deuses opta pela superfície brilhante (que esconde um conteúdo ósseo sensabor), deixando aos homens a melhor parte do animal: a sua carne gorda e saborosa (Th. 535-557).

É importante notar que aqui aparece pela primeira vez, no poema, a palavra τέχνη, sempre coligada ao adjetivo δόλιος (Th. vv. 540, 547, 555, 560); se previamente Hesíodo nos dissera da criação dos deuses, de sua fecundidade e gênese, tudo se passava sob o signo da pura φύσις. Nada nos evocava algo artificial ou técnico. É com Prometeu que esse elemento entra em cena. A conduta de Prometeu é sempre técnica, artificiosa, e sua técnica é sempre dolosa, falaz, insidiosa; é sempre uma δόλια τέχνη, cujo intuito é ludibriar o pai dos deuses. Ora, é precisamente graças a esse ardil (δόλος) que Zeus subtrai aos homens o fogo que prazenteiramente lhes concedera até então. Ou seja, diferentemente do que Freud afirmara, há sim uma relação entre o mito do sacrifício e o mito do roubo do fogo.3 3 Aliás, essa será uma possível crítica à interpretação bem parcial feita por Freud: se ele tenciona empregar a técnica de interpretação dos sonhos (Traumdeutung) também com narrativas míticas, não é descabido atentar ao fato de que, caso haja no sonho dois eventos subsequentes, forçosamente haverá alguma relação lógica entre eles. É o caso, sem dúvida, dos dois eventos míticos relatados em sequência por Hesíodo: o engano bovino e o furto do fogo. Ademais, uma leitura mais atenta à letra mesma de Hesíodo mostra que já ali, na Teogonia, a relação entre os dois eventos míticos é explicitamente asseverada. E é somente então que esse furto famígero é relatado por Hesíodo, de modo similar ao resumido por Freud: Prometeu furta o fulgor longivisível do fogo (πυρὸς τηλέσκοπον αὐγήν) dentro da concavidade de uma vara de νάρθηξ (uma férula), e os leva aos homens, o que deixa Zeus extremamente enraivecido (Th. 565-569).

Ora, qual será o castigo de Prometeu por tamanha insubordinação e ultraje? Acorrentá-lo à rocha? Mantê-lo ali, a ter seu fígado sempre renascente devorado por uma ave a cada noite? Nada disso. Na Teogonia, não é esse o castigo relatado logo após o sacrilégio cometido pelo “portador do fogo”. Podemos, é bem verdade, deduzir que esta é de fato a pena individual adscrita a ele (como vimos, trata-se do primeiro retrato de Prometeu a que temos acesso no poema hesiódico). Mas o próprio poema dá-nos agora a descrição de uma outra punição, de uma outra consequência do furto do fogo, consequência esta basicamente ignorada por Freud, que sequer a menciona.

αὐτίκα δ` ἀντὶ πυρὸς τεῦξεν κακὸν ἀνθρωποισιν

γαίης γὰρ σύμπλασσε περικλυτὸς Ἀμφιγυήεις

παρθένῳ αἰδοίῃ ἴκελον Κρονίδεω διὰ βουλάς.

ζῶσε δὲ καὶ κόσμησε θεὰ γλαυκῶπις Ἀθήνη

ἀργυφέῃ ἐσθῆτι∙ κατὰ κρῆθεν δὲ καλύπτρην

δαιδαλέην χείρεσσι κατέσχεθε, θαῦμα ἰδέσθαι∙

ἀμφὶ δέ οἱ στεφάνους, νεοθηλέας, ἄνθεα ποίης,

ἱμερτοὺς περίθηκε καρήατι Παλλὰς Ἀθήνη.

Imediatamente, em contraposição ao fogo, fabricou um mal aos homens:

o ínclito Coxo a modelou da terra,

similar a uma respeitável virgem, de acordo com a decisão do Cronida.

Então a deusa Atena de olhos glaucos a cingiu e a enfeitou

com esplêndida veste. Por cima um véu

elegante espargiu com as mãos, maravilha de se ver;

e em torno coroas de flores verdejantes e ervosas,

amáveis, colocou à cabeça Palas Atena. (Th. 570-577)

Trata-se de uma criação: muito precisamente a fabricação da mulher similar a uma virgem, a virgem θαῦμα ἰδέσθαι, maravilha de se ver, espantosa e admiranda. Ela será um grave ardil (δόλος αἰπυς) aos homens, um engano insuperável diante dos quais eles permanecerão sem meios (ἀμήχανος) (Th. 589). No verso 585, surge o famoso sintagma καλὸν κακόν para caracterizá-la: ela é uma beleza ruim, um mal belo. Sintagma fundamental, situado entre a cacofonia e a eufonia, ele encerra em sua sonoridade a ambiguidade da mulher hesiódica. Esta, pois, a punição direcionada aos homens decorrente do sacrilégio de Prometeu: a primeira mulher, origem da raça de todas as mulheres, cuja presença somente trará males e danos aos homens (Th. 590-593). Situação novamente ambígua: caso contraia núpcias com alguma mulher - para que tenha herdeiros -, o homem terá de sustentá-la e aturá-la; caso não faça isso, acabará a vida sozinho, sem progênie alguma (Th. 603-612). E, ademais, feito os zangões numa colmeia, elas jazerão indolentes, sem labor nenhum, apenas dilapidando o resultado de todo o árduo trabalho executado pelas abelhas, os homens:

Ὡς δ’ ὁπότ’ ἐν σμήνεσσι καηρεφέεσι μέλισσαι

κηφῆνας βόσκουσι, κακῶν ξυνήονας ἔργων·

αἳ μέν τε πρόταν ἦμαρ ἐς ἠελιον καταδύντα

ἠμάτιαι σπεύδουσι τιθεῖσί τε κηρία λευκά,

οἵ δ’ ἔντοσθε μένοντες ἐπηρεφέας κατὰ σίμβλους

ἀλλότριον κάματον σφετέρην ἐς γαστέρ’ ἀμῶνται·

ὢς δ’ αὔτως ἄνδρεσσι κακὸν θνετοῖσι γυναῖκας

Ζεὺς ὐψιβρεμέτης θῆκε, ξυνήονας ἔργων

ἀργαλἐων.

Tal quando, em cobertas colmeias, abelhas

nutrem zangões, companheiros em más obras;

elas o dia todo, até o ocaso do sol,

se empenham diurnas e fazem os favos brancos,

eles, esperando dentro, sob o abrigo coberto,

consomem em seu próprio ventre o esforço alheio;

assim um mal igual Zeus tonitruo deu aos mortais

homens: as mulheres, companheiras em obras

molestas. (Th. 594-602)

Assim, como diz Brasete (2012BRASETE, M. F. (2012). A criação da mulher, segundo Hesíodo. Teografias 2, p. 211-220.), “o mito de Prometeu, que antecede o de Pandora, [...] não encerra uma história sobre a criação do homem, como se poderia subentender, mas motiva curiosamente a primeira narrativa sobre a criação da mulher, na poesia grega” (pp. 213-214). Junto à mulher, é criada a condição cultural e ambígua do homem: agora ele tem de usar o fogo para nutrir-se (e nisso depende de τέχνη, não apenas de φύσις),4 4 Sobre isso, é interessante relembrar o que diz Rudhardt (1986): “enquanto Zeus lhes [aos humanos] dispensava ininterruptamente aquilo de que eles necessitavam, o ato de Prometeu é único e não se repetirá. Ele lhes deu o fogo, eles deverão saber consumi-lo. O gesto de Prometeu, que lho leva no oco de uma férula, simboliza essa necessidade: sua existência dependerá doravante de seu saber-fazer” (p. 233). e sua companheira de vida, a mulher, é um καλὸν κακόν, uma beldade que dissimula males inescapáveis. Como mostra Vernant (1975VERNANT, J. P. (1975). Le mythe prométhéen chez Hésiode. In : Œuvres : Religion, Rationalités, Politique I. Paris, Éditions du Seuil, p. 751-764., p. 759), essa primeira mulher corresponde à parte do animal imolado aceita por Zeus, quando do desafio de Prometeu: ela é bela por fora, mas por dentro não carrega bem algum. Ou seja, sob essa perspectiva, a condição cultural do homem (tendo a posse do fogo como um elemento crucial) não é, no mito, algo dissociado da criação e da presença da primeira mulher. Esta é na verdade o castigo de Zeus por terem os homens acesso, ainda que intermitente, ao fogo divino - ela é o ἀντὶ πυρὸς, o anverso do fogo na culturalidade humana. Essa “contrapartida-do-fogo”, diz Lafer (2019LAFER, M. C. N. (2019). Hesíodo. Os trabalhos e os dias (tradução, introdução e comentários). São Paulo, Iluminuras.), “vem em lugar do fogo natural; ele inicia o processo de passagem da natureza para a cultura” (p. 62). Em Hesíodo, portanto, fogo e mulher são dois elementos complementares, e a condição cultural do homem não pode ser compreendida sem que ambos os fatores sejam levados em consideração.

Fato importante, no entanto, dessa fabricação algo artificial da primeira mulher é que “pouco é dito na Teogonia sobre a mulher criada, nem mesmo o seu nome, e sua criação não é realmente detalhada”, como afirma Chanoca (2019CHANOCA, T. A. (2019). O lugar do mito de Pandora nos poemas de Hesíodo: Teogonia 570‐612 e Os trabalhos e os dias 54‐104. Ágora. Estudos Clássicos em Debate 21, p. 21‐42., p. 26). Inanimada e inominada, essa primeira mulher, fabricada por Hefesto a mando de Zeus, “é praticamente uma estátua, uma mulher feita de terra e que tem como atributos apenas vestes e coroas” com que ela é adornada por Atena; “não há voz, mente, caráter, sendo que a única coisa que sugere alguma interioridade é o fato de as mulheres se originarem dela, e mesmo isso não é dito de um modo que mostre alguma ação da parte dela; seria como uma ação ‘passiva’” (Chanoca, 2019CHANOCA, T. A. (2019). O lugar do mito de Pandora nos poemas de Hesíodo: Teogonia 570‐612 e Os trabalhos e os dias 54‐104. Ágora. Estudos Clássicos em Debate 21, p. 21‐42., p. 28). Até a ausência de um nome que a individualize, argumenta Chanoca (2019CHANOCA, T. A. (2019). O lugar do mito de Pandora nos poemas de Hesíodo: Teogonia 570‐612 e Os trabalhos e os dias 54‐104. Ágora. Estudos Clássicos em Debate 21, p. 21‐42., p. 29), contribui para torná-la menos humana. Trata-se do resultado de uma τέχνη divina (uma arte inclusive δαιδαλέη, dedálea, que revela grande esmero e brio), uma estátua forjada à semelhança das mais belas deusas cujo intuito é, como castigo ao ardil prometeico, constituir o ardil insuperável aos humanos.

Ora, a situação n’Os trabalhos e os dias é muitíssimo diferente, apesar de similar ou idêntica em alguns pontos. Tanto os eventos relatados quanto a descrição dessa primeira mulher diferem consideravelmente, se comparados ao tecido narrativo da Teogonia. Primeiramente, é notável que a trapaça de Prometeu, referente à oferta das duas porções de carne bovina, não seja detalhadamente relatada - assim como sua punição (ser acorrentado, ter seu fígado devorado por uma águia...). Faz-se apenas uma rápida menção ao roubo do fogo, e o centro da narrativa é a reação de Zeus e o cumprimento das suas ordens: a criação de Pandora.

“Ἰαπετιονίδη, πάντων πέρι μήδεα εἰδώς,

χαίρεις πῦρ κλέψας καὶ ἐμὰς φρένας ἠπεροπεύσας,

σοί τ᾽ αὐτῷ μέγα πῆμα καὶ ἀνδράσιν ἐσσομένοισιν.

τοῖς δ᾽ ἐγὼ ἀντὶ πυρὸς δώσω κακόν, ᾧ κεν ἅπαντες

τέρπωνται κατὰ θυμὸν ἑὸν κακὸν ἀμφαγαπῶντες”.

Ὣς ἔφατ᾽, ἐκ δ᾽ ἐγέλασσε πατὴρ ἀνδρῶν τε θεῶν τε.

“Filho de Jápeto, sabedor de todas as deliberações,

alegras-te por ter roubado o fogo e por ter enganado meu ânimo,

grande ruína a ti mesmo e aos homens por vir.

Eu lhes darei, em contraposição ao fogo, um mal, com que todos

se contentarão, acolhendo o mal segundo seu ânimo”.

Assim falou, e gargalhou alto o pai dos homens e dos deuses. (Op. 54-59)

Assim como na Teogonia, aqui Zeus mostra ter-se irado com Prometeu, e em represália por seu ultraje decide dar aos homens um mal - mal que será, não obstante, bem acolhido pelos homens, ou seja, ela é um dano, uma ruína que não será percebida enquanto tal. A sequência da narrativa mostra o fabrico desse mal: Hefesto, Atena, Hermes, Afrodite, a Persuasão, as Horas e as Graças - todos trabalham em sua confecção, cujo relato é agora bem mais detalhado. Ela é moldada e modelada, similar a uma respeitável virgem e às deusas imortais, por Hefesto (numa mistura de terra e água), que lhe dá também a potência da fala humana (αὐδή); Atena lhe ensina a arte tecelã; Afrodite lhe incute os desejos amorosos (πόθος); por Hermes lhe é infundido caráter dissimulado, canino (κύνεος νόος);5 5 O termo “canino” (κύνεος), do mesmo étimo de “cão” (κύων), carrega sutilezas que merecem ser ao menos apontadas. A figura do cão é, como se sabe, muito importante em várias culturas, assumindo sentidos diversos a depender do contexto. Ela pode ser, por exemplo, sinônimo de “fidelidade” ao homem, e é assim que geralmente a entendemos hoje em nossas culturas ocidentais. Não é o caso, porém, do poema hesiódico: nele, a figura do cão está associada à astúcia, ao ludíbrio. Como diz Vernant (1975), “em Pandora, o interior [...] consiste em um espírito de cadela [chienne], um temperamento de ladra, uma voz (αὐδή) feita para a mentira e o engano (Op., 67 e 78), mas essa ‘cachorragem’ [chiennerie] interna (o κακόν) é dissimulada sob uma aparência sedutora (o καλόν)” (p. 759-760). Esse caráter astucioso do cão se grafou num moto latino: A cane muto et aqua silente cave tibi - “Toma cuidado com o cão mudo e com a água silenciosa”. Lembremos, por fim, que os pensadores cínicos, que grosso modo desprezavam as convenções humanas, sobretudo o apreço por bens materiais e espirituais supérfluos, tiveram seu nome distintivo também oriundo do famígero “cão” (κυνισμός = agir como o cão, cinismo). Hoje, a palavra “cínico” designa mormente o homem imoral, debochado ou mesmo inescrupuloso e hipócrita, num verdadeiro resíduo filológico dessa concepção negativa do cão. (Agradeço ao parecerista anônimo pela sugestão de incorporar um comentário acerca do adjetivo “canino”; boa parte desta nota advém de suas indicações). e, após a modelagem de Hefesto, Atena a adorna e a cinge, tal como na Teogonia, mas agora as Graças e a Persuasão a enfeitam com colares de ouro, e as Horas a coroam com flores primaveris. Hermes então entra em cena novamente e lhe põe no peito mentiras, palavras aduladoras e conduta enganadora (ψεύδεά θ᾽ αἱμυλίους τε λόγους καὶ ἐπίκλοπον ἦθος) (Op. 60-78), e por fim

... ἐν δ᾽ ἄρα φωνὴν

θῆκε θεῶν κῆρυξ, ὀνόμηνε δὲ τήνδε γυναῖκα

Πανδώρην, ὅτι πάντες Ὀλύμπια δώματ᾽ ἔχοντες

δῶρον ἐδώρησαν, πῆμ᾽ ἀνδράσιν ἀλφηστῇσιν.

... nela a voz

o arauto dos deuses pôs, e nomeou a mulher

Pandora, pois todos os que têm morada olímpia

deram um dom, ruína aos homens comedores de pão. (Op. 79-82)

Notemos que, à diferença do que nos apresenta a Teogonia, aqui Pandora tem vários atributos: não apenas as faculdades da fala, do desejo, do pensamento e do agir, mas também um nome bastante significativo. Ela não só contém em si dons dados por todos os deuses, mas é ela mesma um presente, uma dádiva ao irmão de Prometeu. Esta, pois, a parte seguinte da história: Epimeteu a recebe, a despeito dos avisos prudentes de seu irmão, que lhe aconselhara não acolhesse presente algum vindo de Zeus, e Pandora comete aquela falta que todos conhecemos - abre o πίθος, o vaso de onde escapam diversos males e doenças para a humanidade. Grande diferença, portanto, entre a mulher anônima da Teogonia e a mulher denominada Pandora, n’Os trabalhos e os dias: agora “ela recebe mais atributos, passando a assumir qualidades humanas que a mulher da Teogonia não tem. E, aqui, embora não seja dito que as mulheres descendem dela, Pandora tem uma ação, que consiste em abrir o πίθος” (Chanoca, 2019CHANOCA, T. A. (2019). O lugar do mito de Pandora nos poemas de Hesíodo: Teogonia 570‐612 e Os trabalhos e os dias 54‐104. Ágora. Estudos Clássicos em Debate 21, p. 21‐42., p. 29).

Mas, como sabemos todos, esse vaso tão importante é fechado a tempo - e de acordo com os desígnios de Zeus (Op. 99) -, e nele resta então somente a Ἐλπίς, que usualmente se traduz por Esperança, mas que Lafer (2019LAFER, M. C. N. (2019). Hesíodo. Os trabalhos e os dias (tradução, introdução e comentários). São Paulo, Iluminuras., p. 71) traduz por Expectação. Como ela afirma, a palavra “esperança” não contém toda a ambiguidade do vocábulo grego: “expectação” seria melhor justamente por não designar, via de regra, somente um afeto positivo. O que sobra no fundo do jarro não é algo unívoco - é, antes, a marca mesma da ambiguidade constituinte da condição humana. “Para quem é imortal, como os deuses, não há nenhuma necessidade de Ἐλπίς. Nenhuma Ἐλπίς também para quem, como os animais, ignora que é mortal” (Vernant, 1975VERNANT, J. P. (1975). Le mythe prométhéen chez Hésiode. In : Œuvres : Religion, Rationalités, Politique I. Paris, Éditions du Seuil, p. 751-764., p. 764). A Expectação é coisa demasiado humana: signo da inteligência humana, mas de uma inteligência falível, finita, desafortunada, “Ἐλπίς é ambígua, liga-se tanto à presciência de Prometeu quanto à irreflexão de Epimeteu” (Lafer, 2019LAFER, M. C. N. (2019). Hesíodo. Os trabalhos e os dias (tradução, introdução e comentários). São Paulo, Iluminuras., p. 71). Entre Prometeu, o que pensa e vê antes6 6 Sobre o sentido e a origem do nome Prometeu, remeto o leitor ao interessante artigo de Morani (1983). , e Epimeteu, o que pensa e vê somente depois, quando os fatos já são irreversivelmente feitos, jaz o homem, capaz não da plena compreensão do futuro, mas sim tão-somente de esperança, expectação e expectativa.

É a partir de Pandora que os homens se acharão apartados dos deuses, é Pandora quem simboliza ou mesmo introduz, na narrativa hesiódica, essa separação talvez irreversível. Ela é “embebida em negatividade”, como diz Lombardi (1994LOMBARDI, T. (1994). Alcune considerazioni sul mito di Pandora. Quaderni Urbinati di Cultura Classica, 46, n. 1, p. 23-34., p. 31), e isso em vários sentidos e camadas: por um lado, remete a aspectos divinos da existência humana; por outro, no entanto, aproxima-se do reino animal. “Pelo charme de sua aparência externa, similar às deusas imortais, Pandora reflete o brilho divino; pelo aspecto canino de seu espírito e de seu temperamento internos ela toca a bestialidade” (Vernant, 1975VERNANT, J. P. (1975). Le mythe prométhéen chez Hésiode. In : Œuvres : Religion, Rationalités, Politique I. Paris, Éditions du Seuil, p. 751-764., p. 763). Quando comparadas as duas versões do mito, nota-se que ela possui, ademais, uma “natureza artificial e ao mesmo tempo natural” (Chanoca, 2019CHANOCA, T. A. (2019). O lugar do mito de Pandora nos poemas de Hesíodo: Teogonia 570‐612 e Os trabalhos e os dias 54‐104. Ágora. Estudos Clássicos em Debate 21, p. 21‐42., p. 29): é estátua, mas é viva; é ser vivo, mas é fabricado a mando de Zeus.

No processo genealógico do qual a Teogonia nos dá o relato, Pandora constitui uma exceção; ela é figura de acréscimo; nenhum outro ser foi, como ela, produzido por uma operação técnica, à iniciativa de Zeus. Essa inovação não concerne somente, através de Pandora, a toda a tribo das mulheres, cujo caractere segundo, adicionado, factício, ela marcaria, em oposição aos homens. Ela engaja o estatuto da criatura humana em geral. Desde que a raça [gent] feminina foi criada, todos os humanos, qualquer que seja o seu sexo, conhecerão uma forma nova de vir ao mundo (Vernant, 1996VERNANT, J. P. (1996). Les semblances de Pandora. In : Œuvres : Religion, Rationalités, Politique I I. Paris, Éditions du Seuil , p. 2032-2043., p. 2032).

Essa forma, como mencionamos acima, implica a união dos sexos, implica o matrimônio, esse mal menor que remedia o mal maior da vetustez solitária e ἄπαις (sem filhos, sem descendência). Pandora, afinal, é quase uma espécie de aporia ontológica: ela “é modelada à semelhança de uma virgem humana que ainda não existe e cujo protótipo ela vai precisamente constituir” (Vernant, 1996VERNANT, J. P. (1996). Les semblances de Pandora. In : Œuvres : Religion, Rationalités, Politique I I. Paris, Éditions du Seuil , p. 2032-2043., p. 2034). Ela não é nem puro modelo, nem pura cópia; é mescla pavorosa dos dois, fato maior da sua concepção técnica: nascida de uma τέχνη dedálea, esmerada e laboriosa, ela é então dotada de uma φύσις própria, que se vai passar à natureza da raça humana. Entre o artificial e o natural, entre o imagético e o material, entre o bem e o mal, assim Pandora - e assim os homens.

Mas façamos notar que cada elemento do mito há de ser remetido a essa ambiguidade mulíebre primária para que seja plenamente compreendido. Comecemos pela Ἐλπίς, a única dádiva divina deixada aos homens dentro do vaso: não podemos jamais saber se ela é um bem ou um mal travestido de bem - e aqui ela deve ser remetida a Pandora, a mulher que abriu o jarro, o καλὸν κακόν dado aos homens em retaliação ao roubo do fogo (notemos que também n’Os trabalhos e os dias Pandora é dita ser um ἀντὶ πυρός).7 7 Aqui poderíamos fazer uma pergunta a Freud: como é que, ao tomar em mãos um tecido narrativo mítico (ou onírico), a fim de analisar nele a conquista do fogo, Freud simplesmente deixou de lado o elemento que é chamado duas vezes de anti-fogo (anverso, reverso, contraposto do fogo)? E mesmo o fogo é apresentado por Hesíodo, em seu caráter sintético e simbólico da culturalidade do homem, como um elemento ambíguo, necessariamente a ser também remetido a Pandora: se, por um lado, ele é um bem, uma conquista cultural indispensável à vida social do homem cultural, por outro ele representa o labor, o suor e a fatiga dantes inexistentes. Na raça de ouro, os homens viviam numa bem-aventurança plena, sem necessidade de esforços, em contato constante e imediato com os deuses (Op. 111-112). O fogo representa uma certa autonomia dos homens, capazes doravante de viver apartados dos deuses de que descendem, mas essa capacidade só vem a duras penas, por meio de labuta diária e incessante (Op. 176-178). Também o fogo, então, é um análogo do καλὸν κακόν. Assim, se cada elemento do mito era remetido por Freud ao falo, nos poemas de Hesíodo tudo é remetido à (primeira) mulher. Isso não nos parece ser uma coincidência.

Adiantando-nos um pouco, pode-se dizer que em Hesíodo a mulher é dotada de uma característica fundamental do falo freudiano: ela pode ser removida e mutilada do todo ao qual pertence de direito. A isso se dá o nome, em psicanálise, de castração. Falaremos rapidamente sobre a castração na próxima seção deste texto, mas nos foquemos nessa amovibilidade da mulher hesiódica. Seu exemplo mais marcante se nos afigura ser o do símile das abelhas e zangões. Como vimos, na Teogonia Hesíodo compara a raça feminina ao magote de zangões a consumir, preguiçosos, o mel fabricado arduamente pelas abelhas. Ora, n’Os trabalhos e os dias esse símile vem mais uma vez empregado por Hesíodo, mas, como bem notou Rudhardt (1986RUDHARDT, J. (1986). Pandora : Hésiode et les femmes. Museum Helveticum 43, n.4, p. 231-246.), agora “são os homens que ele assimila a tais parasitas” (p. 243), e não as mulheres. Leiamos a passagem em questão:

τῷ δὲ θεοὶ νεμεσῶσι καὶ ἀνέρες ὃς ἀεργὸς

ζῴῃ, κηφήνεσθι κοθούροις εἴκελος ὀργήν,

οἵ τε μελισσάω κάμαιτον τρύχουσιν ἀεργοὶ

ἔσθοντες.

Aos deuses e aos homens desagradam aquele que vive

sem trabalhar, no ânimo similar aos zangões sem ferrão,

que exaurem o mel das abelhas ao comê-lo

sem trabalhar. (Op. 303-306)

É claro, após narrar os mitos de Pandora e das cinco raças, Hesíodo passa a exortar seu irmão a bem trabalhar, donde a generalidade com que o símile das abelhas e zangões é agora empregado. Mas essa retirada da mulher dessa famosa comparação não nos parece ser plenamente explicável assim. De um texto ao outro, foi operada como que uma elipse do elemento feminino. Como é bem sabido, é Homero o poeta em cujas obras há uma abundância magnífica e desconcertante de símiles e analogias8 8 Sobre isso, cf., v. g., Shorey (1922), Coffey (1957), Magrath (1982). . Nos dois principais poemas de Hesíodo, por sua vez, os deuses e as criaturas míticas são nomeados, e os eventos são descritos em sua importância cosmogônica e antropológica. Comparações não são tão comuns em Hesíodo, e não nos parece uma mera coincidência, pensando-se assim, que o mesmo símile se repita nos dois poemas, com uma diferença capital: no primeiro, a mulher está presente; no segundo, está ausente.

Essa alternância presença-ausência da mulher não ocorre apenas nesse símile. Como vimos, o que uma leitura comparativa das duas versões do mito de Prometeu e Pandora nos mostra é que a (primeira) mulher ora possui certas qualidades, ora é despojada delas. Se marcarmos com + ou - a atividade, a aquisição de um nome, o caráter animado e vivo, e a própria presença da mulher, veremos que, ali onde, na Teogonia, ela é dotada de positividade (sua presença no símile das abelhas), n’Os trabalhos e os dias ela é dotada de negatividade. Igualmente, ali onde ela é dotada de positividade n’Os trabalhos e os dias (seu nome, sua atividade, sua vividez), ela é dotada de negatividade na Teogonia.

Uma tabela comparativa entre os pontos que nos interessam ficaria assim:

Teogonia Os trabalhos e os dias Mulher anônima (-) Pandora9 (+) Quase estátua, inanimada, artificial (-) Mulher viva, animada (+) Passiva (-) Ativa (+) As mulheres, que descendem da mulher anônima, são comparadas aos zangões (+) Na comparação com os zangões, as mulheres não se fazem presentes (-) Trapaça do boi imolado e punição de Prometeu (+) Ø (-) Ø (-) Epimeteu e sua desconsideração para com o conselho fraterno (+)

Ou seja, há uma espécie de passa-anel ou de esconde-esconde da mulher em Hesíodo. Essa alternância positivo-negativo (ou presença-ausência) da mulher se faz notar quando de uma leitura comparativa precisamente das duas versões do mito que, ao sofrer a intervenção interpretativa de Freud, não apresenta traço feminino algum, nem mesmo uma mera menção à criação de Pandora. É como se a leitura freudiana a houvesse apagado ou obliterado do tecido mitológico a ser lido e examinado. Em Freud, tudo o que concerne diretamente a Pandora se encontra eliminado. Numa nova tabela mais completa, podemos comparar as três versões do mito:

Teogonia Os trabalhos e os dias Interpretação de Freud Mulher anônima (-) Pandora (+) Ø (-) Quase estátua, inanimada, artificial (-) Mulher viva, animada (+) Ø (-) Passiva (-) Ativa (+) Ø (-) As mulheres, que descendem da mulher anônima, são comparadas aos zangões (+) Na comparação com os zangões, as mulheres não se fazem presentes (-) Ø (-) Trapaça do boi imolado e punição de Prometeu (+) Ø (-) A trapaça do boi imolado é apenas mencionada, e a punição de Prometeu recebe destaque (+) Ø (-) Epimeteu e sua desconsideração para com o conselho fraterno (+) Ø (-)

Assim, nesse jogo de mostrar e ocultar a mulher (que reflete o caráter ambíguo de Pandora, a mostrar o bem, mas trazer oculto o mal), Freud é o que mais a esconde, de forma quase absoluta. Toda a sua versão do mito contém somente Prometeu, e não Pandora, e toda a importância do elemento feminino está aí eliminada: é como se ela não existisse no mito, ou como se fosse tão desimportante a ponto de não ser preciso sequer mencioná-la. Consultando-se Hesíodo, fica claro que não é o mito que contém apenas elementos masculinos: é a interpretação que dele faz Freud que enxerga e disseca somente pênis e masculinidade por todo lado.

Nesse jogo eminentemente masculino, entretanto, em que o elemento “mulher” é como um anel que ora está em nossas mãos, ora não está mais ali, nós devemos lembrar-nos do grande nome que há por trás de todas essas maquinações: o grande mestre Zeus, pai dos homens e dos deuses. É ele quem ordena que se crie a primeira mulher como fonte ou origem de todo o mal da humanidade; ora, ele só faz isso porque é μητίετα, porque é prudente e sábio e quer contrapor-se ao ardil sacrílego de Prometeu. Por um lado, sabemos que existe uma “dupla Prometeu-Zeus” (Morani, 1983MORANI, M. (1983). Il nome di Prometeo. Aevum 57, n. 1, p. 33-43, p. 35): ambos são ditos μήδεα εἰδώς (Th. 559 e 561), sabedores de desígnios e deliberações, ambos são astutos e se empenham no jogo dos ardis. Por outro lado, porém, há também a dupla Prometeu-Cronos, na medida em que aos dois é conferido o epíteto ἀγκυλομήτης (Th. 168; Op. 48), “de curvo pensar” - ou seja, de uma prudência falível (cf. Lafer, 2019LAFER, M. C. N. (2019). Hesíodo. Os trabalhos e os dias (tradução, introdução e comentários). São Paulo, Iluminuras., pp. 59-60) -, e na medida em que ambos sucumbem ao νόος (o intelecto, a razão) infalível de Zeus. Mas o νόος de Zeus só é perfeito porque ele não seguiu o modelo de seu pai: este, ao saber que um herdeiro o destronaria, devorou cada filho que saísse do ventre de sua esposa. Enganado por ela, como se sabe, foi vencido por Zeus. Este, por sua vez, ao ouvir de Urano e Gaia notícia muito similar (que, de seu conúbio com Μῆτις, a Astúcia, teria não só Atena, mas também um filho destinado a reinar sobre os homens), ele engoliu antes sua primeira esposa, evitando dessarte o parto de tal filho indesejado (Th. 886-900). Zeus, por conseguinte, só é μητίετα porque engoliu Μῆτις, sua própria esposa. Na prudência infalível de Zeus, então, também há uma mulher: uma mulher oculta, em cuja desaparição providencial se encerra a ambiguidade do estatuto da mulher no mito.

Essa ambiguidade, todavia, carrega aquilo que Lombardi (1994LOMBARDI, T. (1994). Alcune considerazioni sul mito di Pandora. Quaderni Urbinati di Cultura Classica, 46, n. 1, p. 23-34.) chama de “aspiração utópica ao aniquilamento da feminilidade”, que, segundo a pesquisadora, está “implícita em Hesíodo na descrição da vida dos homens antes da aparição de Pandora”, mas que é notável, “em primeiro plano, no augúrio de que o matrimônio com uma jovem virgem a ser educada (Op. 698-699) sirva para gerar filhos similares aos pais” (p. 33). Ora, não nos soa injusto diagnosticar essa mesma aspiração como constituinte da interpretação freudiana do mito: tal como Zeus, ele parece ter deglutido a mulher em sua releitura do mito, e eis que, na conquista do fogo e na renúncia instintual que dela participa inevitavelmente, o elemento feminino se encontra completamente apagado, invisível, à margem longínqua dessa rixa, desse ringue de falos a apagar o fogo prometeico. O mito de Prometeu e Pandora é agora nada menos que o mito de Prometeu, e cada elemento seu será remetido ao órgão masculino. A mulher, que em Hesíodo detém esse caráter ambíguo fundacional, será agora deixada de lado. A conquista do fogo, essa aquisição cultural tão fundamental, será agora questão de homens - e tão-somente deles.

III

Nós afirmamos acima não haver sequer uma sombra da mulher na interpretação freudiana do mito de Prometeu. A verdade, entretanto, é que existe essa sombra (mas nada além dela) na continuação imediata dessa interpretação. Retornemos ao texto de 1932: após analisar a narrativa prometeica, Freud (1932FREUD, S. (1932). Zur Gewinnung des Feuers.Gesammelte Werke, Band XVI, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, p. 1-9.) se volta para um outro mito, “que aparentemente tem muito pouco a ver com o mito do fogo” (p. 7). Trata-se da história da Hidra de Lerna, “dragão aquático, segundo seu próprio nome”, que possui inúmeras cabeças de serpente agitadiças, uma das quais é imortal:

Héracles, herói cultural [Kulturheros], a combate, ao cortar suas cabeças, mas elas sempre crescem novamente, e ele somente se torna o senhor do monstro após ter apagado [ausgebrannt] com fogo a cabeça imortal. Um dragão aquático, que é dominado por meio do fogo - isso não faz nenhum sentido. Todo o sentido surge, porém, como em muitos sonhos, com a inversão do conteúdo manifesto. Então a hidra é um incêndio, as agitadas cabeças de serpente são as chamas do incêndio, e como indício de sua natureza libidinosa elas mostram, como o fígado de Prometeu, repetidamente o fenômeno do renascimento, da renovação após a tentativa de destruição (Freud, 1932FREUD, S. (1932). Zur Gewinnung des Feuers.Gesammelte Werke, Band XVI, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, p. 1-9., pp. 7-8).

Em seguida, Freud (1932FREUD, S. (1932). Zur Gewinnung des Feuers.Gesammelte Werke, Band XVI, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, p. 1-9.) dá o passo que nos interessa: “Héracles apaga então esse incêndio por meio de - água. (A cabeça imortal é certamente [wohl] o falo mesmo; e sua aniquilação, a castração.)” (p. 8). Eis exposta a única palavra do texto inteiro em que é possível entrever qualquer coisa de feminino: a castração. Uma vez mais Freud interpreta um elemento do mito (nesse caso, a cabeça da Hidra) como sendo um símbolo do falo; mas aqui emerge a sua decapitação, a sua mutilação. Indício tímido e indireto da mulher, a castração mitologicamente representada nos remete a um outro mito analisado por Freud: o mito da Medusa.

Aqui, num pequeno texto de 1922 mas publicado apenas postumamente, em 1940, a figura da mulher aparecerá de forma explícita. Trata-se de um texto de uma página e meia, na qual Freud não se dá ao trabalho, como em 1932FREUD, S. (1932). Zur Gewinnung des Feuers.Gesammelte Werke, Band XVI, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, p. 1-9., de retomar e resumir minudentemente a narrativa em questão.

Decapitar = castrar. O espanto [Schreck] com a Medusa é, portanto, espanto à castração, ligado a uma visão. De numerosas análises nós conhecemos esse ensejo; ele ocorre quando o menino, que até então não queria acreditar na ameaça, avista um genital feminino (Freud, 1940FREUD, S. (1940). Das Medusenhaupt. In: Gesammelte Werke, Band XVII. Frankfurt am Main, Fischer Verlag , p. 45-48 [1922]., p. 46).

A cabeleira do monstro, acrescenta Freud, é muitas vezes representada como um conjunto de serpentes: isso também advém do complexo de castração. Essas serpentes “servem na verdade para amenizar o horror [Grauen], pois elas substituem o pênis, cuja ausência é a causa do horror [Grauen]. - Uma regra técnica (multiplicação de símbolos penianos significa castração) é aqui confirmada” (Freud, 1940FREUD, S. (1940). Das Medusenhaupt. In: Gesammelte Werke, Band XVII. Frankfurt am Main, Fischer Verlag , p. 45-48 [1922]., p. 46). As serpentes: novo ponto de contato entre a Hidra e a Medusa. Por fim, ver a Medusa causa espanto (Schreck) e transforma o espectador em pedra. “A mesma origem no complexo de castração e a mesma mudança de afeto! Pois o tornar-se pedra significa a ereção, isto é, o consolo do espectador na situação original” (Freud, 1940FREUD, S. (1940). Das Medusenhaupt. In: Gesammelte Werke, Band XVII. Frankfurt am Main, Fischer Verlag , p. 45-48 [1922]., p. 46), qual seja: ver um genital feminino e aperceber-se de que é possível ser despojado do próprio pênis.

Aqui, como antes, temos um mito que, sob a interpretação freudiana, é remetido a uma situação eminentemente masculina. É o menino quem padece do complexo de castração tal qual Freud o descreve ali: com medo e horror ao feminino, à ausência de pênis. Mas agora a mulher voltou ao palco, e curiosamente traz consigo a mesma marca do espanto com que era definida em Hesíodo; com efeito, nos poemas hesiódicos a primeira mulher é descrita como θαῦμα ἰδέσθαι, maravilha ou espanto de se ver - visão assombrosa, apavorante que se reflete no Grauen e no Schreck com que o genital feminino é avistado pela primeira vez pelo garoto.

Isso pode estar na origem, segundo a teoria freudiana, de uma escolha homossexual de objeto: para o homossexual, afirma Freud (1908FREUD, S. (1908). Über infantile Sexualtheorien. In: Gesammelte Werke, Band VII. Frankfurt am Main, Fischer Verlag, p. 171-188., pp. 178, 179), “a mulher real” (das wirkliche Weib) é fonte de “repulsa” (Abscheu); ao ver a genitália feminina, o homossexual sente “horror” (Graus). Notemos que é de prazeres homossexuais que Freud discorre ao analisar a renúncia instintual envolvida na conquista do fogo. Enxergando somente Prometeu (e pênis para todo lado) no mito grego, Freud está, de forma análoga, repelindo a mulher de seu quadro de visão, está enxotando-a para fora da análise.

Mas todo esse horror ao feminino não vale apenas para os homossexuais. No artigo de 1927 sobre o fetichismo, encontramos escrito: “o espanto à castração [Kastrationsschreck] na visão do genital feminino não poupa provavelmente nenhum ser masculino” (Freud, 1927FREUD, S. (1927). Fetischismus. In: Gesammelte Werke, Band XIV . Frankfurt am Main, Fischer Verlag , p. 309-317., p. 314). Aliás, esse mesmo espanto diante da genitália feminina tem consequências bem mais genéricas para com as mulheres: “o menosprezo pela mulher, a aversão [Abneigung] para com ela, e mesmo a repulsa [Abscheu] diante dela geralmente derivam da descoberta, feita muito cedo, de que a mulher não possui nenhum pênis” (Freud, 1922FREUD, S. (1922). Über einige neurotische Mechanismen bei Eifersucht, Paranoia und Homosexualität. In: Gesammelte Werke, Band XIII. Frankfurt am Main, Fischer Verlag , p. 195-207., p. 205). A mulher é menosprezada pelos homens: Freud sabe disso muito bem. Encontramos em sua teoria uma série de termos para se referir a essa aversão que têm os homens pela mulher - Schreck, Grauen, Graus, Abneigung, Abscheu -, todos da ordem da repulsa, do horror, do repúdio, do espanto diante de algo visto com os próprios olhos (masculinos). Nesse caso, algo é avistado pelo homem, e este faz de tudo para não vê-lo mais, ou para negá-lo, diminuí-lo, depreciá-lo, degradá-lo.

Voltemos ao mito de Prometeu e Pandora: na interpretação freudiana, a primeira mulher simplesmente inexiste. Está obliterada, apagada; em suma: negada. Tudo é questão de homens e falos, e tudo o que remete à mulher, inclusive o próprio espanto diante do feminino, é eliminado. A mulher é entrevista, ela está lá, nas entrelinhas da castração, mas toda a sua centralidade mitológica é simplesmente excluída da narrativa e da leitura freudiana. Como vimos, em Freud o feminino enquanto tal é imagem vista e visível a ser apagada da visão, a ser tornada invisível. Não pode ser uma coincidência que, em sua versão do mito grego, esta tenha sido precisamente a sua atitude diante do feminino.

Entre Pandora e Prometeu, Freud se decide pelo “herói cultural” masculino. Em Hesíodo, ao menos o espanto, o θαῦμα diante da mulher não é apagado nem negado. Na versão freudiana do mito, nem a isso temos acesso diretamente. A escrita masculina de Freud (e de qualquer autor) também pode estar aí: onde a mulher sequer aparece. Em vez de uma mera leitura psicanalítica do mito, Freud parece ter tecido uma nova versão sua - e o fundamental é que o mito em questão não é outro senão o mito de fundação da cultura. Freud alija uma vez mais o elemento “mulher” da cultura, que ele tanto prezava - mas, desta vez, fá-lo de forma sub-reptícia. Como Prometeu, Freud nos engana: ao nos ofertar apenas falos, ele está nos entregando mulheres - mulheres denegadas.

Bibliografia

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  • FREUD, S. (1922). Über einige neurotische Mechanismen bei Eifersucht, Paranoia und Homosexualität. In: Gesammelte Werke, Band XIII. Frankfurt am Main, Fischer Verlag , p. 195-207.
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  • VERNANT, J. P. (1996). Les semblances de Pandora. In : Œuvres : Religion, Rationalités, Politique I I. Paris, Éditions du Seuil , p. 2032-2043.
  • ZAFIROUPOULOS, M. (2009). A teoria freudiana da feminilidade: de Freud a Lacan. Reverso 31, n. 58, p. 15-24.
  • 1
    Cf., por exemplo, Freud (1925FREUD, S. (1925). Einige psychische Folgen des anatomischen Geschlechtsunterschieds. In: Gesammelte Werke, Band XIV. Frankfurt am Main, Fischer Verlag , p. 17-30.; 1931; 1933).
  • 2
    Cf., por exemplo, Freud, 1930FREUD, S. (1930). Das Unbehagen in der Kultur. In: Gesammelte Werke, Band XIV . Frankfurt am Main, Fischer Verlag , p. 419-506..
  • 3
    Aliás, essa será uma possível crítica à interpretação bem parcial feita por Freud: se ele tenciona empregar a técnica de interpretação dos sonhos (Traumdeutung) também com narrativas míticas, não é descabido atentar ao fato de que, caso haja no sonho dois eventos subsequentes, forçosamente haverá alguma relação lógica entre eles. É o caso, sem dúvida, dos dois eventos míticos relatados em sequência por Hesíodo: o engano bovino e o furto do fogo. Ademais, uma leitura mais atenta à letra mesma de Hesíodo mostra que já ali, na Teogonia, a relação entre os dois eventos míticos é explicitamente asseverada.
  • 4
    Sobre isso, é interessante relembrar o que diz Rudhardt (1986RUDHARDT, J. (1986). Pandora : Hésiode et les femmes. Museum Helveticum 43, n.4, p. 231-246.): “enquanto Zeus lhes [aos humanos] dispensava ininterruptamente aquilo de que eles necessitavam, o ato de Prometeu é único e não se repetirá. Ele lhes deu o fogo, eles deverão saber consumi-lo. O gesto de Prometeu, que lho leva no oco de uma férula, simboliza essa necessidade: sua existência dependerá doravante de seu saber-fazer” (p. 233).
  • 5
    O termo “canino” (κύνεος), do mesmo étimo de “cão” (κύων), carrega sutilezas que merecem ser ao menos apontadas. A figura do cão é, como se sabe, muito importante em várias culturas, assumindo sentidos diversos a depender do contexto. Ela pode ser, por exemplo, sinônimo de “fidelidade” ao homem, e é assim que geralmente a entendemos hoje em nossas culturas ocidentais. Não é o caso, porém, do poema hesiódico: nele, a figura do cão está associada à astúcia, ao ludíbrio. Como diz Vernant (1975VERNANT, J. P. (1975). Le mythe prométhéen chez Hésiode. In : Œuvres : Religion, Rationalités, Politique I. Paris, Éditions du Seuil, p. 751-764.), “em Pandora, o interior [...] consiste em um espírito de cadela [chienne], um temperamento de ladra, uma voz (αὐδή) feita para a mentira e o engano (Op., 67 e 78), mas essa ‘cachorragem’ [chiennerie] interna (o κακόν) é dissimulada sob uma aparência sedutora (o καλόν)” (p. 759-760). Esse caráter astucioso do cão se grafou num moto latino: A cane muto et aqua silente cave tibi - “Toma cuidado com o cão mudo e com a água silenciosa”. Lembremos, por fim, que os pensadores cínicos, que grosso modo desprezavam as convenções humanas, sobretudo o apreço por bens materiais e espirituais supérfluos, tiveram seu nome distintivo também oriundo do famígero “cão” (κυνισμός = agir como o cão, cinismo). Hoje, a palavra “cínico” designa mormente o homem imoral, debochado ou mesmo inescrupuloso e hipócrita, num verdadeiro resíduo filológico dessa concepção negativa do cão. (Agradeço ao parecerista anônimo pela sugestão de incorporar um comentário acerca do adjetivo “canino”; boa parte desta nota advém de suas indicações).
  • 6
    Sobre o sentido e a origem do nome Prometeu, remeto o leitor ao interessante artigo de Morani (1983MORANI, M. (1983). Il nome di Prometeo. Aevum 57, n. 1, p. 33-43).
  • 7
    Aqui poderíamos fazer uma pergunta a Freud: como é que, ao tomar em mãos um tecido narrativo mítico (ou onírico), a fim de analisar nele a conquista do fogo, Freud simplesmente deixou de lado o elemento que é chamado duas vezes de anti-fogo (anverso, reverso, contraposto do fogo)?
  • 8
    Sobre isso, cf., v. g., Shorey (1922SHOREY, P. (1922). The Logic of the Homeric Simile. Classical Philology 17, n.3, p. 240-259.), Coffey (1957COFFEY, M. (1957). The Function of the Homeric Simile. The American Journal of Philology, 78, n. 2, p. 113-132.), Magrath (1982MAGRATH, W. T. (1982). Progression of the Lion Simile in the “Odyssey”. The Classical Journal 77, n. 3, p. 205-212.).
  • 9
    O próprio nome de Pandora é também ambíguo: pode significar aquela que recebeu todos os dons ou aquela que os dará. Para Hesíodo, escreve Marquardt (1982MARQUARDT, P. A. (1982). Hesiod’s Ambiguous View of Women. Classical Philology 77, n. 4, p. 283-291.), “o fato básico da incerteza da vida é visto incorporado na feminilidade. Os grandes e necessários presentes concedidos pelas mulheres, especialmente a comida e o prazer sexual, são negativos tão amiúde quanto positivos” (p. 291).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2021
  • Aceito
    24 Fev 2022
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