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Resenha de SEBILLOTTE CUCHET, V. (2022). Artémise : une femme capitaine de vaisseaux dans l`Antiquité grecque. Paris, Fayard

Review of SEBILLOTTE CUCHET, V. (2022). Artémise : une femme capitaine de vaisseaux dans l`Antiquité grecque. Paris, Fayard

SEBILLOTTE CUCHET, V.. Artémise : une femme capitaine de vaisseaux dans l`Antiquité grecque . Paris : Fayard , 2022

SEBILLOTTE CUCHET, V. (2022SEBILLOTTE CUCHET, V. (2022). Artémise : une femme capitaine de vaisseaux dans l`Antiquité grecque. Paris, Fayard. ). Artémise : une femme capitaine de vaisseaux dans l`Antiquité grecque. Paris, Fayard

[…] les stéréotypes de genre ne faisaient pas toujours autorité, du moins pour ceux qui savaient les identifier comme des lieux communs et n´étaient pas dupes de l´écran de fumée qu´ils créaient. […] sans doute, parce qu´ils concernent le genre, ces stéréotypes ont souvent été pris par les historiens contemporains au premier degré de leur énoncé, voire généralisés. Toute la finesse qui a été déployée pour déconstruire l´image du monde barbare que les Grecs façonnaient en miroir de leur propre identité n´a pas encore été mobilisée en ce qui concerne les préjugés de genre. Autrement dit, ces stéréotypes continuent leur œuvre celle de produire un discours ignorant la diversité des points de vue et des valeurs produites par les Grecs. Ils ont pour conséquence d´aboutir à une fiction moderne, celle de penser qu´il était impossible qu´une femme accède au pouvoir dans une cité grecque, et que celles qui s´y trouvaient ne pouvaient être qu´étranges, transgressives, masculines, voire barbares. […] Pourtant son existence [Artémise] n´apporte-t-elle pas la prouve que - en faut-il encore une ? - que le monde hellénophone ne se réduisait pas à des stéréotypes ? (Sebillotte Cuchet, 2022, p. 200 - 201)

É forçoso reconhecer que, ainda hoje, há muitos avanços a serem feitos no que diz respeito ao estudo das mulheres enquanto importantes agentes históricos, incluso nas sociedades gregas antigas, ainda que passado cerca de meio século desde as primeiras iniciativas mais sistemáticas nesse sentido. Iniciativas que remontam a um contexto politicamente marcado, em diversos países mundo afora, pela efervescência dos movimentos feministas e de outros movimentos sociais, dentro e fora da academia. Tais avanços devem ser feitos não apenas com o objetivo de iluminar essa agência, em toda a sua diversidade e complexidade, dissipando os persistentes estereótipos ainda presentes na historiografia quanto a essa capacidade de ação, em que pese seus limites; mas também no intuito de fortalecer pesquisas que, para além do gênero, levem em conta a intersecção dessa categoria de análise com outros marcadores sociais e ferramentas analíticas que sejam pertinentes às sociedades gregas antigas estudadas, valendo-se de fontes de naturezas diversas. Neste sentido, o recém-lançado Artémise: une femme capitaine de vaisseaux dans l`Antiquité grecque, de autoria de Violaine Sebillotte Cuchet - professora de história na Universidade Paris 1 Panthéon-Sorbonne, especialista em história antiga, com ênfase no campo da antropologia histórica do político e história das mulheres e do gênero - pode ser tomado como um trabalho bastante representativo e inspirador.

Partindo do interesse por Artemísia, uma personagem histórica que poderia servir de pontapé para uma espécie de micro-história que nos levaria a compreender melhor seu entorno histórico e social, a partir das poucas fontes das quais dispomos, a autora, porém, vai além. Ela nos convida a questionar uma série de estereótipos construídos por autores antigos e modernos em torno dessa personagem histórica bem como das mulheres que viveram em outros lugares menos conhecidos de sociedades que, entre outras, falavam a língua grega, compondo o que hoje ainda por vezes nos referimos como “Grécia Antiga”. Mobilizando uma ampla bibliografia e um variado conjunto de fontes, analisados com rigor, Sebillotte Cuchet também nos oferece valiosas reflexões de ordem teórica e metodológica, cujo potencial de aplicação a outros estudos é eminente.

De modo a nos fazer adentrar e mergulhar fundo nessa pesquisa inspirada por essa personagem histórica fascinante, Artemísia, uma mulher que foi nada mais nada menos do que rainha de Halicarnasso e uma capitã de navio digna de ser mencionada nas Histórias de Heródoto (V a. C.), seu contemporâneo e conterrâneo, a autora divide sua obra em cinco capítulos antecedidos por um prefácio e um texto de abertura (Pour une histoire mixte) e sucedidos por um epílogo. O primeiro deles, não por acaso, é intitulado “A Artemísia de Heródoto” (L´Artémise d´Hérodote), hoje a principal e mais célebre fonte de informações sobre Artemísia. Capítulo no qual, em um primeiro momento, Sebillotte Cuchet nos ajuda a compreender as prováveis razões que fizeram Heródoto julgar a participação de Artemísia na batalha naval de Salamina, na Segunda Guerra Médica, como digna de memória - ao contrário do que, séculos mais tarde, julgaria Plutarco (I - II d. C.). Em seguida, a autora busca atestar que Artemísia foi uma figura popular na Antiguidade, esclarecendo também a recorrente confusão da rainha de Halicarnasso com outra Artemísia (IV a. C.), esposa de Mausolo. Nesse primeiro capítulo, a pesquisadora nos oferece, por fim, um breve balanço historiográfico das interpretações modernas em torno de Artemísia. Interpretações comumente centradas em duas oposições por vezes tomadas quase como uma evidência: gregos/bárbaros e masculino/feminino, deixando escapar a riqueza das ambivalências encarnadas por Artemísia.

No segundo capítulo, intitulado “A nova Amazona” (La nouvelle Amazone), Sebillotte Cuchet se propõe a entender como Artemísia - comandante reconhecida por Heródoto sobretudo por sua extraordinária coragem (ἀνδρεία, andreia) -, assim como as Amazonas - guerreiras prototípicas -, pôde ser vista pelos antigos de formas diferentes e até contraditórias: com admiração, com repulsa e indignação, a ponto de sua existência histórica ser posta em questão, ou ainda, percebida a partir de um olhar mais etnográfico, como uma espécie de “nova Amazona”, uma descendente das Amazonas. Para tanto, a pesquisadora faz um percurso pelos traços que nos levam ao encontro dessas lendárias guerreiras. Isto é, a Sebillotte Cuchet nos leva a (re)visitar as menções textuais e as representações visuais nas quais podemos encontrá-las. Com efeito, num primeiro momento, ela percorre as representações presentes na cultura material, em diversos suportes, presentes em diferentes partes do mundo helênico e remontando ao século VII a. C., bem como as menções encontradas na épica homérica, nas quais elas figuram como guerreiras excepcionais cujo valor é comparável àqueles dos heróis com os quais elas combatem. Em um segundo momento, Sebillotte Cuchet analisa a reapropriação dos relatos pan-helênicos acerca dessas guerreiras empreendida pelos atenienses, entre o final do século IV a. C. e o século V a. C., nos quais elas passam a ser retratadas como figuras ilegítimas, guerreiras derrotadas pelos atenienses liderados por Teseu. Sebillotte Cuchet nos mostra, assim, uma mudança de paradigma interpretativo operada pelas representações atenienses, por intermédio das quais as célebres guerreiras passam a figurar como estrangeiras derrotadas, pertencentes a um passado definitivamente acabado, transformadas em potencial objeto de conquista sexual ou, mesmo, em potenciais esposas. Deslocamento que, segundo a autora, muito provavelmente se reflete no modo como os atenienses assimilariam Artemísia: guerreira bárbara e cruel, aliada a seu inimigo, o rei Xerxes.

Em seguida, no terceiro capítulo intitulado “Artemísia, uma mulher comum” (Artémise, une femme ordinaire), Sebillotte Cuchet visa a demonstrar que Artemísia não deve ser tomada como uma exceção que confirma a regra, isto é, a ideia de que toda e qualquer mulher grega tinha sua experiência restrita ao espaço privado da casa e às atividades domésticas. Assim, em um primeiro momento, a pesquisadora faz uma análise bastante acurada dos relatos relativos à Pandora, que encontramos na Teogonia e em Os trabalhos e os dias, atribuídos a Hesíodo (VII a. C.), de modo a mostrar que a mulher - γυνή (gyne) -, proposta ou criada pelo relato hesiódico sobre Pandora, diz respeito a um certo tipo de mulher, e não às mulheres em geral, isto é, ela representa as esposas legítimas destinadas a gerar os herdeiros legítimos, “a mulher” alinhada a um projeto que visa a instaurar uma sociedade adequada a um determinado ideal de justiça. Tais textos e suas variantes não se tratam, então, de uma representação que dava a ver a sociedade tal como ela era, mas sim de instrumentos discursivos de defesa de um modelo que hoje podemos qualificar como heteronormativo e centrado no matrimônio. Consequentemente, elas não englobavam outros tipos de relações que não se conformavam a esse ideal e que, eventualmente, manifestam-se nas canções de outros poetas como Safo e Anacreonte - para citar dois exemplos cujas produções estão situadas entre os séculos VII e V a.C. Seja como for, conforme ressalta a autora, embora rainha e capitã, Artemísia foi ela mesma esposa e mãe, ou seja, ela correspondia ao ideal de normalidade propagandeado pelas narrativas hesiódicas, o que, contudo, não a impediu de ser lembrada com admiração, na narrativa herodoteana, por sua inteligência política, vigor e coragem. Tais características, contudo, lhe renderam, por parte de alguns estudiosos modernos, qualificações como “virago” ou “mulher-homem”, dando erroneamente a entender que seu comportamento tivesse sido seguramente incompatível com o seu sexo/gênero. Ora, como mostra a autora, se de fato as mulheres foram tomadas como objetos de discursos que muitas vezes as descreveram como naturalmente opostas aos homens bem como socialmente dominadas por eles, é preciso problematizar, confrontar e analisar diferentes discursos de autores antigos como Heródoto, Hipócrates, Platão e Aristóteles. Pois, se por um lado, as obras atribuídas a esses autores veiculavam, cada um a seu modo, estereótipos de gênero - colocados na boca da própria Artemísia na narrativa herodoteana (8.68-69); por outro lado, é preciso levar em conta que essas obras se inserem em um panorama de realidades sociais e representações mais diversas, as quais muitas vezes esses mesmos textos nos permitem acessar, desde que nos aproximemos deles de maneira cautelosa e crítica, buscando nos distanciar dos estereótipos de gênero que marcam as sociedades antigas, assim como daqueles que se inscrevem nas sociedades contemporâneas.

Intitulado sugestivamente “Artemísia, uma grega da Cária” (Artémise, une Grecque de Carie), o quarto capítulo faz uma verdadeira incursão no contexto histórico e sociocultural vivenciado pela protagonista deste estudo. Investigação que permite à autora questionar, de forma contundente, as leituras que visam a sustentar que apenas uma estrutura sociopolítica marginal ao mundo grego, isto é, “bárbara”, poderia ter possibilitado a ascensão de uma mulher às funções de dirigente de uma cidade e comandante. Questionamento que, ademais, reforça ainda mais a tese defendida pela autora, a qual, conforme apontado acima, vai no sentido de defender que, se observada em seu contexto, a trajetória de Artemísia pode não parecer tão excepcional assim. Assim, Sebillotte Cuchet ressalta que, além de ser filha de um pai de origem cariana e de uma mãe de origem cretense, Artemísia nascera em Halicarnasso; cidade que, ainda que situada na Ásia Menor, parece ter sido vista como tão grega quanto as cidades gregas da Europa, já que, segunda as fontes manuscritas antigas indicam, sua fundação teria sido obra de gregos vindos do Peloponeso. Ou seja, a origem e a trajetória de Artemísia encontram-se vinculadas a uma região que, na perspectiva da autora, poderia ser mais propriamente assimilada como uma região de middle-ground, tendo em vista que a Cária, região na qual Halicarnasso se encontrava, caracterizava-se pela confluência de diferentes culturas (cariana, grega e persa). Considerando que Artemísia era filha de um dinasta e, ao que as fontes indicam, fora reputada como um modelo memorável para a dinastia posterior - a dinastia Hecatomnida -, Sebillotte Cuchet investiga, então, a hipótese de que Artemísia talvez já fizera o que continuariam a fazer as mulheres daquela dinastia, a saber: tornar-se esposas de seus irmãos de modo a garantir a continuidade do poder no seio de um mesmo grupo parental. Logo, Artemísia talvez tenha exercido o poder de dirigente política e militar, em um primeiro momento, ao lado de seu irmão-esposo e, após a morte dele, sozinha. Dito de outro modo, se olharmos para Artemísia valendo-nos das críticas exaustivas, feitas pela historiografia produzida a partir do final do século XX, à oposição discursiva entre gregos e bárbaros, bem como para Artemísia em seu contexto, levando ainda em conta a sua posição social e de gênero, ela aparecerá como uma mulher menos excepcional, ainda que não menos notável.

Por fim, no quinto, intitulado “As companheiras de Artemísia. Dinastas e cidadãs das cidades gregas” (Les compagnes d´Artémise. Dynastes et citoyennes des cités grecques) Sebillotte Cuchet nos exorta, ainda uma vez, a questionar a ideia de uma exclusão radical das mulheres gregas no que diz respeito ao exercício de poder, reiterando o seu esforço de fazer com que Artemísia deixe de ser tomada como uma mera exceção. Para tanto, em um primeiro momento, a autora (re)considera fontes diversas relativas aos contextos políticos mesopotâmicos e aquemênidas. Contextos cujas dinastias permitiam a ascensão de mulheres ao poder. Realidade essa que fazia parte do imaginário grego, a ponto de serem de algum modo integradas à sua tradição mítico-histórica. Com efeito, podemos encontrar ecos dessas práticas dinásticas cantadas em catálogo pelos poetas - catálogos nos quais figuravam a união entre mortais e imortais, mulheres e homens, apropriadas por certas elites como fundamento de suas ascendências - bem como (re)colocadas em cena por tragediógrafos como Eurípides e Ésquilo, incarnadas por figuras como Penélope e Clitemnestra. Em um segundo momento, a autora investiga as ações de mulheres que integraram as realezas macedônicas do período helenístico (III - II a. C.). Em seguida, de modo a questionar a ideia de que esse exercício do poder por mulheres seria apanágio de regimes monárquicos, ela faz uma análise de fontes arqueológicas que remontam aos períodos helenístico e imperial, evidenciando a participação das mulheres da elite nas funções cívicas, em cidade gregas, sob regime de outras naturezas.

Ainda no quinto e último capítulo, o esforço analítico feito pela pesquisadora incluirá, por fim, aquelas que por vezes nos parecem como demasiado familiares: as mulheres de Atenas, sobretudo as que viveram durante os séculos V e IV a. C. Afinal, questiona-se a autora, o que o estudo detalhado da trajetória e discursos construídos em torno de Artemísia podem nos ensinar sobre nosso modo de olhar e investigar essas mulheres? Sebillotte Cuchet nos impulsiona, assim, a buscar e a iluminar as possibilidades de experiências vividas pelas mulheres gregas para além de seus lares, isto é, a investigar as possibilidades de ação dessas mulheres no campo político. Para tanto, lembra a autora, é necessário que a própria noção de política seja ela mesma (re)considerada. Pois, se é fato que as atenienses da elite, contemporâneas a Artemísia, nunca governaram suas cidades, não participaram de espaços de poder deliberativos e judiciários e tampouco comandaram navios; elas, na condição de cidadãs, contudo exerceram, e em público, diferentes tipos de autoridade e de comando, de ἀρχή (arche), como bem mostra Sebillotte Cuchet. Assim sendo, questiona a autora, Artemísia pode parecer (mais ou menos) estranha, a depender da perspectiva a partir da qual ela é considerada. Posto isso, fica a questão: afinal, a partir de quais perspectivas teóricas e metodológicas queremos estudar as mulheres que viveram em diferentes períodos e sociedades do passado? De uma maneira que corrobore e continue a perpetuar estereótipos antigos e/ou modernos, ou a partir de novas perspectivas teóricas e ferramentas de análise?

Sobre a autora, vale mencionar ainda que, juntamente com as professoras e pesquisadoras Sandra Boehringer, Adeline Grand-Clément e Sandra Péré-Noguès, ela é uma das idealizadoras e coordenadoras do projeto Eurykleia. Celles qui avaient un nom . Base de dados que visa a ser um instrumento de trabalho que reúne os nomes de mulheres que de fato viveram, a partir da aparição desses nomes nos documentos antigos (VII a.C. e III d. C.). Iniciativa que, entre muitas outras contribuições, deu lugar a um Projeto Internacional de Cooperação Científica (CNRS), em parceria com a professora Claudia Beltrão, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e equipe de pesquisa da Universidade Federal Fluminense (NEREIDA-UFF).

Bibliografia

  • SEBILLOTTE CUCHET, V. (2022). Artémise : une femme capitaine de vaisseaux dans l`Antiquité grecque Paris, Fayard.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2022
  • Aceito
    07 Nov 2022
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