Acessibilidade / Reportar erro

Estudos da linguagem e mente corporificada: uma nova proposta gramatical

Studies of language and embodied mind: a new grammar approach

Resumos

Podemos dizer que Descartes fundamentou a filosofia moderna com uma proposta universal do entendimento mundano. Dissociando as experiências corpóreas de nossa matéria pensante - mente, conseguiríamos captar a verdadeira essência de tudo por meio de um pensamento racional e objetivo. A ideia de mente corporificada, traduzida aqui pelos moldes de Lakoff e Johnson (1980), quebra com a dicotomia do filósofo e com diversas outras tradições enraizadas em nossa cultura ocidental. Nosso objetivo neste artigo é o de amparar a nova proposta teórica de mente corporificada e pensar um novo modelo gramatical que evidencie a corporalidade da mente.

mente corporificada; gramática de construções; linguagem e cognição


We can say that Descartes founded the modern philosophy with an universal proposal of the mundane understanding. Dissociating the bodily experience from our thinking matter - mind, we could capture the true essence of everything through rational and objective thought. The idea of the embodied mind, translated here by Lakoff and Johnson's theories (1980), breaks Descartes' dichotomy and various other traditions rooted in our Western culture. Our goals in this paper is to bolster the new theoretical proposition of embodied mind and think about a new grammatical model that highlights the embodiment of mind.

embodied mind; construcion grammar; cognition and language


ARTIGOS

Estudos da linguagem e mente corporificada: uma nova proposta gramatical

Studies of language and embodied mind: a new grammar approach

Ricardo Yamashita Santos

Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal - Rio Grande do Norte / Brasil, japanatal@hotmail.com

RESUMO

Podemos dizer que Descartes fundamentou a filosofia moderna com uma proposta universal do entendimento mundano. Dissociando as experiências corpóreas de nossa matéria pensante - mente, conseguiríamos captar a verdadeira essência de tudo por meio de um pensamento racional e objetivo. A ideia de mente corporificada, traduzida aqui pelos moldes de Lakoff e Johnson (1980), quebra com a dicotomia do filósofo e com diversas outras tradições enraizadas em nossa cultura ocidental. Nosso objetivo neste artigo é o de amparar a nova proposta teórica de mente corporificada e pensar um novo modelo gramatical que evidencie a corporalidade da mente.

Palavras-chave: mente corporificada, gramática de construções, linguagem e cognição.

ABSTRACT

We can say that Descartes founded the modern philosophy with an universal proposal of the mundane understanding. Dissociating the bodily experience from our thinking matter - mind, we could capture the true essence of everything through rational and objective thought. The idea of the embodied mind, translated here by Lakoff and Johnson's theories (1980), breaks Descartes' dichotomy and various other traditions rooted in our Western culture. Our goals in this paper is to bolster the new theoretical proposition of embodied mind and think about a new grammatical model that highlights the embodiment of mind.

Keywords: embodied mind, construcion grammar, cognition, and language.

E, uma vez reconhecendo que a condição humana é

dependente do trabalho de simbolização, sem o qual sequer

poderíamos falar de cultura, entendemos que são as práticas

discursivas que tornam significativas nossas experiências.

Duque, P. H. e Costa, M. A. (no prelo).

Rápida historiografia dos estudos cognitivos

O ceticismo de Descartes tem influenciado consideravelmente o pensamento ocidental. Podemos dizer, pois, que a epistemologia difundida em nosso meio atual teve como baliza central a concepção do filósofo cartesiano. Para ele, a certeza de existirmos se dá pelo fato de podermos pensar - Cogito ergo sum - sem qualquer influência externa à própria mente. Em outras palavras, nosso corpo e o meio em que vivemos distorceriam o verdadeiro raciocínio que estaria contido na matéria pensante - res cogitans - que seria ligada diretamente ao universo, em detrimento da materialidade mundana, que incluiria nossos aspectos corpóreos - res extensa. Portanto, a mente, para Descartes, seria transcendental, dissociada por completo de qualquer experienciação mundana que a "confundisse".

É pautado em uma mente autônoma, aos moldes cartesianos, que no século XX, Chomsky (1965) criou uma sintaxe gerativa. Para utilizarmos tal conhecimento, seriamos dotados inatamente de uma faculdade da linguagem, que abarcaria a sintaxe por meio de uma Gramática Universal. Esse e diversos estudos sobre a mente, que vinham sendo realizados em áreas como a Psicologia, as Neurociências etc., culminaram com a criação das chamadas Ciências Cognitivas Clássicas.

A concepção de mente, para essa proposta, seguia os conceitos de Descartes, que entendia-a como independente de seu entorno mundano, sendo ela capaz de decodificar o mundo em moldes lógicos e racionais. Tal perspectiva entendia o ser humano como análogo a um computador, como levanta Brier (1996). Esse entendimento transformava o homem em uma máquina dotada de razão inata, desvinculada, inclusive, de qualquer influência experiencial.

Em 1980, George Lakoff, um dos dissidentes da teoria chomskyana, propôs com Mark Johnson uma virada paradigmática nos estudos cognitivistas ao publicarem Metaphors we live by. As estruturas linguísticas analisadas por Chomsky são construções-modelo de sintaxe, sem preocupação com nossa linguagem cotidiana.

Após um momento de estabilidade nos estudos das ciências cognitivas, houve o que Kuhn (1970) denomina de mudança paradigmática, que culminou com uma ciência cognitiva de segunda geração. A mente, até então entendida conceitualmente como dissociada do corpo, passa a se tornar mente corporificada - embodied mind. Esta se moldaria às experiências do indivíduo com seu meio, tendo na base da linguagem elementos que evidenciam isso, como a metáfora e a metonímia, que seriam os pilares centrais para a construção de sentido (LAKOFF; JOHNSON, 1980) - elementos tais que eram entendidos por Chomsky como desvios da linguagem.

É a partir desse momento histórico que buscaremos aprofundar este artigo, que condiz com os estudos contemporâneos e aponta, especificamente, para uma cognição social que traz novas lentes aos estudos da linguagem. Algumas questões como razão e mente sofreram mudanças de compreensão e é sobre elas que nos debruçaremos para criar um elo com a nova proposta de mente corporificada (LAKOFF; JOHNSON, 1980, 1999) ante a visão tradicional de uma mente autônoma. Essa nova episteme traz um leque de possibilidades para os estudos cognitivos, sobretudo, um remake aos estudos computacionais da mente. Além disso, falaremos da formulação de uma Gramática de Construções Corporificada (BERGEN; CHANG; NARAYAN, 2004) já como o resultado de um desdobramento possível da nova proposta cognitiva.

A razão e a mente na cognição clássica

A razão seria a chave para o pensamento lógico e matemático que nos faria entender o mundo por meio de nossa linguagem. Esse pensamento defendido no século XVII por Descartes foi um forte influenciador das chamadas ciências cognitivas clássicas. Para a cognição clássica, a razão seria formulada abstratamente, dissociada de qualquer relação nossa com o meio social, e a linguagem seria apreendida por meio de uma faculdade da linguagem - uma gramática universal já disponível na mente de cada ser humano. Era, portanto, esperado que pudéssemos reproduzir o modo como nossa mente funcionava, já que a entendíamos como um dispositivo computacional, exatamente como funcionava a máquina Turing, criada em 1943, que manipulava símbolos por meio de decodificações matemáticas.1 1 A máquina de Turing foi criada pelo britânico e matemático Alan Turing em meados da década de 40 do século passado. A ideia era decodificar, por meio de um entendimento matemático e lógico, programações realizadas por máquinas digitais, por exemplo. Mais informações em: < www.plato.stanford.edu/entries/turing-machine/>. Assim, a razão era entendida como algo extremamente consciente, sendo, inclusive, a guia dos processos cognitivos, e nossa linguagem seria um sistema formal de manipulação de símbolos, exatamente como as máquinas processam dados.

Esse entendimento desbancou o behaviorismo, pois mostrou a necessidade de se olhar o organismo internamente para uma compreensão além do espectro "estímulo e resposta", pois tal análise não demonstrava o processamento de nossas habilidades cognitivas.

Fodor (1975), por exemplo, afirma que nosso pensamento é formado por palavras e sentenças, denominadas por mentalese. Além disso, para o pesquisador, a mente é entendida como modular, sendo que os mecanismos cognitivos seriam divididos por módulos e cada módulo responsável por determinada representação mental. Assim, teríamos, por exemplo, módulos computacionais em nossa mente responsáveis pela compreensão de língua, outro para cálculos etc.

A perspectiva até aqui explicitada aponta para uma abordagem autônoma da mente, conhecida por muitos como mentalismo, que entende a semântica por meio da formação estrutural da linguagem - sintaxe - sem qualquer influência externa à própria formação linguística, e nossa capacidade de raciocinar logicamente nos dá condições de manipular os elementos linguísticos na estrutura sintática.

Exemplificando os estudos gerativistas e computacionais da linguagem, teríamos na frase "O homem acabou o relato" a relação SN + SV (sintagma nominal + sintagma verbal), que corresponderia à decodificação estrutural da sentença, sendo que a estrutura é que seria preenchida pelos elementos por nós selecionados. Em palavras resumidas, a sintaxe seria a base para toda a estruturação da linguagem.

De acordo com Halliday (1985), algumas das principais características da gramática formal seriam:

• a base que a norteia é a relação sintagmática;

• a língua é entendida como uma estrutura regular, com princípios e parâmetros comparáveis;

• demonstração da língua em traços universais baseados na sintaxe.

Tais características resumem o norte pelo qual se orienta a teoria cognitiva clássica e o entendimento de mente como autônoma e modular, além da razão como sendo um elemento totalmente ancorado no raciocínio lógico e dissociado de qualquer influência externa.

Mente dependente e razão sensível?

Como dissemos anteriormente, é notória a influência cartesiana, dos primórdios do séc. XVII, na contemporaneidade. De acordo com Costa (2008, p. 3),

A partir do século XVII, os modernos, primeiramente com Descartes, passaram a perguntar sobre as

possibilidades de se conhecer a realidade

, deslocando os interesses da filosofia para a epistemologia, e subjugando, conseqüentemente, a metafísica, a ontologia e a cosmologia à teoria do conhecimento.

Os tempos atuais da ciência convivem com o dilema: existe uma teoria universal da linguagem que abarque todo o conhecimento do mundo e, simultaneamente, entenda-o em sua pluralidade?

Sabemos que as mais diversas áreas do conhecimento vivem um momento de "ruptura" com as teorias que buscam explicar de um modo universal a linguagem. A proposta gerativa, por exemplo, que influenciou diretamente pesquisadores das mais diversas áreas, não considera um falante real para observação, mas deduz, por meio de um falante ideal, possíveis formulações gramaticais. É notória a limitação de tal análise, visto que as variações lexicais e as construções gramaticais podem resultar em estruturas distintas, mas não explica, por exemplo, a frase "não me coloque as respostas em branco" - a estrutura ideal trabalhada pelos gerativistas seria "não coloque as respostas em branco", que pela solução gerativa seria entendida emergindo dos elementos sintagmáticos em detrimento de um uso. Pensando em uma análise que considere os níveis semântico e pragmático para resolvermos a sentença anterior, teríamos, destarte, uma análise em níveis representativos de sentido e contexto. Tal formulação entenderia a oração descrita como sendo, por exemplo, o sujeito "me" se posicionando como alguém afetado pela situação evocada na oração. Dentre os estudos que consideram elementos como contexto de uso, léxico e estrutura atuando juntos no processo de formação da língua, voltaremos agora a nossa atenção para a Gramática de Construções (GOLDBERG, 1995, dentre outros).

Basicamente, a Gramática de Consruções - GC - rechaça a concepção gerativista de que a relação existente entre as unidades formadoras da língua podem ser entendidas apenas por meio de cálculos matemáticos rígidos. De acordo com essa concepção, a linguagem é autônoma e dissociada de um meio, tendo na sintaxe um elemento determinante para a formação gramatical. O conceito de competência em Chomsky, em detrimento daquilo que ele denomina por desempenho, traduz-se na formação de estruturas sintáticas perfeitas, mas esquece de entender tais estruturas dentro de contextos. Por exemplo, se entramos em uma sala de aula e dizemos ao professor que está quente, podemos estar com o intuito de que ele tome alguma providência do tipo ligar o ar condicionado, ou o ventilador, e não simplesmente evidenciar um fato. A gramática gerativa não atenta para tais usos, bem como não analisa as construções proverbiais idiomáticas, que só fazem sentido no todo, por exemplo, "água mole em pedra dura tanto bate até que fura".

Nosso objetivo não se centrará em distinguir cada estudo específico da Gramática de Construções, mas salientar que, dentre elas, a mais convergente com a ideia de mente corporificada é o trabalho denominado por Embodied Construction Grammar - ECG, ou Gramática de Construções Corporificada2 2 Denominamos a proposta por Gramática de Construções Corporificada, tendo a tradução "corporificada" aos moldes de Zanotto (2002), feita em Metáforas da Vida Cotidiana. Outros autores denominam por "incorporada" tal estudo gramatical, como Salomão e Miranda (2009). GCC. Quando, em 1999, Lakoff e Johnson escreveram Philisophy in the flesh, ratificaram a perspectiva de uma mente corporificada que evidencia tal proposta de uma gramática construída em ações e conceitualizações cotidianas. Temos conhecimento de uma gramática, bem como de uma sociedade, de um contexto. A construção gramatical, dessa forma, não é dissociada da semântica e nem do uso, mas se dá de um modo simbiótico. Utilizamos o léxico como ferramenta integralizadora da nossa necessidade de estruturar o sentido, pautando-nos, evidentemente, ao modo como se dá o relacionamento em cada contexto de uso.

Uma construção idiomática do tipo "tu ligado, meu irmão?", provavelmente não se refere a alguém conversando com um eletrodoméstico ligado à tomada. Se partirmos da metáfora conceptual (LAKOFF; JOHNSON, 1980) ESTAR LIGADO É ENTENDER, fica mais clara a construção acima referida, bem como entender que o irmão citado pode ser um colega. Outras construções do tipo "coloque seu fio na tomada para ver se você entende o que eu estou te dizendo", "seu transistor está com defeito" poderiam ser feitas por meio da metáfora conceptual HOMEM É ELETRODOMÉSTICO, por exemplo. Esse entendimento requer também a análise de variações letais, pois em um contexto formal, notadamente, tal vocábulo não faria parte, sendo que o contexto também é auxiliador no processo de escolha linguística, exatamente como um jogo de linguagem (WITTGENSTEIN, 1991).

Começamos a entender que os processos mentais não são autônomos, mas dependentes de experiências, que se formam por meio de negociações semânticas de nosso contato com o mundo, sem dissociações com nossa percepção sensitiva, pois, para a teoria, tudo é resultado de constructos experienciais. Inquestionavelmente, a teoria da metáfora conceptual (LAKOFF; JOHNSON, 1980) auxiliou enfaticamente nesse estudo, conjuntamente à Gramática Cognitiva proposta por Langacker (1987), que diz ser a sintaxe uma semântica congelada, e, posteriormente, a formulação teórica da Gramática de Construções Corporificada. A gramática, muito além de autônoma e meramente imanente, revela-se experiencial e contextual.

E é assim que a proposta dicotômica de Descartes entre corpo e mente se esvai, pois, para a teoria, deixamos claras as influências advindas de nossas experiências corpóreas para nosso entendimento de mundo, tendo, basilarmente, nas construções metafóricas tais compreensões - TEMPO É DINHEIRO, AMOR É UMA VIAGEM e VIDA É UM PERCURSO, estudadas exaustivamente por Lakoff e Johnson (1980). Essas metáforas conceptuais abarcam estruturas gramaticais que se relacionam diretamente com as duas projeções específicas "Não me faça perder o dia" - perder - DINHEIRO, dia - TEMPO, "Veja a que ponto chegou nossa relação" - ponto - VIAGEM, relação - AMOR. "Pela longa estrada da vida" etc. Ou seja, a gramática se forma a partir da motivação dos domínios a serem projetados, justamente por ser a gramática o resultado de uma relação entre sujeitos e entorno sociocultural.

Mente corporificada e a queda secular de paradigma

Se a teoria cartesiana defendeu a dissociação corpo e mente, a teoria Johnson-lakoffiana diz que nossa mente possui funcionalidade corporificada, como vimos anteriormente. Essa mudança de entendimento traz consigo uma revolução paradigmática, focando, principalmente as seguintes questões:

• a mente é corporificada, diferentemente de uma mente autônoma;

• nosso pensamento emerge, em sua maioria, em um nível inconsciente, diferentemente de um pensamento racional consciente de base cartesiana, pois o processamento dos constructos linguísticos e conceituais são ativados pelos de espaços mentais (FAUCONNIER, 1994) que estão na base da produção de nossa linguagem;

• a formulação de conceitos abstratos é fundamentalmente metafórica, entendida por meio de nossa experiência e não pautada em uma logicidade abstrata, dissociada de qualquer vínculo experiencial;

• a mente não seria dividida em módulos, mas, sim, trabalharia com conexões neurais que seriam motivadas pela nossa interação e o modo como mesclamos linguagem, cognição e cultura.

É nessa reteorização que foi galgada a nova episteme cognitiva. O entendimento de mente autônoma cai por terra ante uma nova formulação da experiência, que constrói sentido na interação. As metáforas conceptuais já analisadas à exaustão por Lakoff e Johnson trouxeram uma base sólida para essa revolução paradigmática. A metáfora passa a ser entendida como uma racionalidade imaginativa, que une razão e imaginação no processo de construção de sentido. É dessa forma que ela permite formularmos metáforas conceptuais observadas em construções como A VIDA É UM PERCURSO: "esta longa estrada que percorro cheia de dificuldades", "aos trancos e barrancos eu vou levando a vida" etc.

Assim, a pretensão cartesiana e de diversos filósofos de que existe um pensamento universal cai por terra; a verdade não seria mais uma realidade a priori, mas uma construção multifacetada, que é negociada em sociedade.

Lakoff e Johnson dizem que os mesmos mecanismos neurais e cognitivos que estão atrelados a nossa percepção dos sentidos são os mesmos que criam nosso sistema conceptual e nosso pensamento racional. Tal racionalidade não seria, portanto, um elemento essencial de separação entre os animais, mas nos colocaria em um continuum a eles, diferenciado pela nossa capacidade abstracional e categorial de compreender o mundo. Além disso, nossa mente inicia a produção forma / sentido em um processo inconsciente, que tem pré-armazenado em sua base construcional frames experienciais que possibilitam, de acordo com cada situação e o modo como queremos constituir sentido, reconstruir os conceitos, mesclá-los, reelaborá-los etc., em uma rapidez incalculável, conscientemente falando.

As categorizações são feitas não por meio de traços essenciais das coisas, como almejava Aristóteles,3 3 Ver mais a respeito no artigo Wittgenstein e a Teoria dos Protótipos sob a ótica da Linguística Sociocognitiva, Revista Linguasagem, 14ª edição. Texto nosso. mas se constituem do modo como construímos sentido para elas. O que ocorre são efeitos de prototipicidade, justamente por experienciarmos os fatos. É de destaque, inclusive, a reformulação sofrida pela Filosofia pós-Lakoff. Afinal, a Filosofia se denominava como sendo a única área do conhecimento a transcender as demais por meio do entendimento universal do mundo, aos moldes racionalistas. Porém, como vimos, a razão postulada por nós não parece ser formada por uma literariedade, mas, sim, baseada metaforicamente em nossas experiências. Isso envolve também entendermos que a dicotomia razão x emoção não é mais usual, já que tal dicotomia não existe para a teoria. Saímos definitivamente do pensamento Objetivista para adentrarmos no entendimento de Realismo Experiencialista (LAKOFF; JOHNSON, 1980).

Assim, fica clara a distinção de um mundo construído cognitivamente, em vez de um mundo pronto e acabado, esperando apenas que nomeemos suas coisas. Essa construção mundana é, portanto, intermitente e por isso os neurocientistas têm constantemente utilizado o termo plasticidade cerebral para retratar a capacidade de readaptação de nossa mente em resposta aos estímulos provenientes também do meio em que vivemos (DAMÁSIO, 1996). A ruptura epistemológica sugerida por Mafesoli (2001) também é convergente com a experiencialidade, pois não podemos pensar mais em uma razão impositiva em contraste com aquilo que podemos experienciar nas diversas sociedades.

Lakoff e Johnson ao advogarem por um pensamento de base experiencialista nos mostram que a metáfora é uma condição cognitiva humana que auxilia no processo de construção de sentido. Ao compararmos conceitos instituídos e criarmos conceitos estamos reconfigurando o nosso modo de compreender o mundo e não somente os comparando. Eis o motivo de pensarmos em um mundo experienciado, que se constrói a cada dia.

Como ficam as construções gramaticais em uma teoria de mente corporificada?

Embora encontremos divergências nas propostas construcionistas da gramática, existe um consenso entre elas: a necessidade de formularmos uma computação cerebral que agregue a mente ao corpo, atrelando conjuntamente os processos de construção de sentido, sempre tendo como alicerce a busca por uma solução mais apropriada e que atenda às necessidades, cada vez mais urgentes, do ser humano. Essa proposta vai ao encontro da hipótese de mente corporificada, que foi o elemento motivador das obras de George Lakoff. Não pretendemos neste artigo nos ater à teoria da metáfora conceptual de Lakoff e Johnson (1980, 1999), nem tampouco falar mais aprofundadamente sobre a teoria dos espaços mentais de Fauconnier (1994), porém, tais teorias, assim como os pressupostos de Goldberg, Chang e Bergen, dentre outros, são, sem sombra de dúvida, basilares para o entendimento de nossa proposta de Gramática de Construções Corporificada (GCC).

Para início de entendimento, vamos tirar como exemplo o verbo ir e algumas construções que se formam conjuntamente a ele. As falas seguintes são análises de falantes da cidade de Natal -RN. Vamos considerar observações cotidianas feitas de um modo ocasional, em fala espontânea, na qual as anotações quantitativas eram feitas no momento da fala - foram utilizados três falantes como análise, considerando o dialeto local. As ocorrências, no caso, são duas, mas com intencionalidades iguais de sentido:

1. Vou embora!

2. Vou chegando!

As duas construções tem o mesmo objetivo: constatar que alguém quer ir embora, ou seja, estaria nesse princípio semântico a formulação desse enunciado. O primeiro exemplo dos dois seria o mais corriqueiro. Nele, existe um pragmatismo que reforça o contexto de uso e a opção por determinada construção gramatical, pois, em nossa concepção cognitiva, criamos a noção de relações vitais, baseada na escala humana (FAUCONNIER; TURNER, 2002). Ao todo, temos quinze relações vitais que norteam nossa percepção: tempo, espaço, causa-efeito, parte-todo, representação, papel, analogia, desanalogia, propriedades, similaridade, categorias, intencionalidade e singularidade. Como bem atesta Lakoff e Johnson (1980), entendemos nossa relação corpórea como uma gestalt conceptual, pois, a forma como nos relacionamos experiencialmente com o entorno sociocultural guia nossa percepção, como "hoje estou meio para baixo". Sabemos que se digo que "estou para baixo" significa entender que não estou bem. Essa relação é construída pela metáfora conceptual ESTAR MAL É ESTAR PARA BAIXO, tratada na obra pelos linguistas. Já na relação sugerida pela construção gramatical em tela, "vou embora", temos outra relação de espaço, sendo pensada em termos de trajetória a ser percorrida - ORIGEM - CAMINHO - META. Essa perspectiva pode ser entendida da seguinte forma:

Essa construção nos mostra um pareamento entre forma e sentido, não sendo, portanto, a estrutura definidora da semântica, como almejam os gerativistas de base chomskyana. O verbo ir requer, de fato, um entendimento espacial, pois sua construção idiomática se dá, primeiramente, por existir uma experiência corpórea que remete à construção de ir a algum lugar partindo de outro. A temporalidade do verbo, inclusive, associa a noção de TEMPO conjuntamente ao ESPAÇO - "vou embora", ou seja, teríamos na base da construção cognitiva a seguinte informação: SAIREI DE UM LUGAR E IREI PARA OUTRO - IR DE X A Y.

No segundo exemplo, existe uma inversão no sentido de ir a algum lugar e chegar a algum lugar. O "estou chegando" poderia ser entendido como os recursos ativados no processo de noção direcional que fazemos (FELDMAN; NARAYANAN, 2004). O que acontece, portanto é uma mudança em nossa focalização conceptual, ou seja, o chegando também se refere a um dos domínios ativados para a construção gramatical, no caso, focalizado na META - CHEGAR EM Y. Enquanto eu digo que "vou embora" requer o entendimento de uma ação que ainda irá se realizar, que ainda focaliza a ORIGEM - SAIR DE X. Nesse sentido, ambas as construções são utilizadas e focalizadas por meio de contextos de uso, existindo uma "recognição" de espaços mentais em ambas, refletidos na construção gramatical. Obviamente, estamos tratando neste artigo apenas de noções básicas de uma GCC, pois nosso objetivo é o de trazer à baila tal proposta, que se constitui como uma nova formulação gramatical.

Esse estudo aprofunda a noção semântica e pragmática do léxico em contextos de uso e suas motivações idiomáticas nas mais diferentes línguas. A ideia, ao analisarmos as duas construções idiomáticas, foi a de mostrar o quanto o conhecimento lexical está atrelado ao gramatical, semântico e pragmático, e não pensar tais elementos de forma dissociada.

Nesses termos, a relação de base conceptual se caracteriza pela metáfora construída em nossa relação vital com o espaço. Mesmo que não fique explicitado o lugar ao qual queremos ir ou chegar, entendemos a construção-base alicerçada na relação forma / sentido, pois, como bem atesta Salomão e Miranda (2009), no pólo da forma teríamos duas dimensões: uma dimensão física do significante (fonemas, letras e gestos, como em Libras) e uma dimensão morfossintática (classe sintática dos constituintes das estruturas e as relações de dependência e hierarquia entre os constituintes). No pólo do sentido, teríamos também duas dimensões: uma conceptual e uma discursiva. A dimensão conceptual inclui os esquemas imagéticos, sensório-motores, frames, metáforas, mesclagens etc. E, por fim, a dimensão discursiva que envolve a ativação dos espaços mentais, por meio dos domínios estáveis (FAUCONNIER, 1994), a interpretação contextual que envolve reconhecimento de gêneros discursivos, registro sociolinguístico etc. Isso nos faz pensar que as teorias formalistas estariam focadas apenas no pólo da forma.

Portanto, são construções advindas do entendimento de que nossa mente é corporificada e que, por isso, qualifica nossas experiências e as evidencia na linguagem. Destarte, o sentido advém de nossa relação com o meio. Muitos trabalhos sobre a Gramática de Construções Corporificada podem ser facilmente encontrados no site do Grupo NTL - Neural Theory of Language - do qual Lakoff faz parte. A intenção do grupo é analisar formalmente a linguagem humana, criando, inclusive, uma nova proposta de estudo computacional por meio da construção linguística, considerando, obviamente, a nova concepção de GCC. As perguntas motivadoras das pesquisas são as seguintes:

• How can the brain - a highly structured network of neurons - support thought and language? How do the specific neural structures of the human brain shape the nature of thought and language?;

• How are language and thought related to other neural systems, including perception, motor control, and social cognition?;

• What are the computational properties of neural systems?;

• What are the applications of neural computing?

Algumas noções como espaços mentais, frames, slots são bem dissecadas na teoria computacional da mente, resultando em um estudo formal da linguagem que pode ser utilizado computacionalmente. Trata-se de um avanço nos estudos das ciências cognitivas, principalmente na proposta de mente artificial.

Conclusões e relevâncias ao ensino

Pretendemos ter deixado clara uma evolução nas ciências cognitivas da linguagem, em nível de continuum, com o modo como tal era encarada e embasada há algumas décadas. A proposta cartesiana de res cogitans como algo dissociado de qualquer influência mundana ou física cai por terra nessa nova proposta.

Os estudos atuais apontam para uma mente corporificada, que constrói sentido por meio de estímulos provenientes de um meio. A noção gramatical advinda desse estudo atrela léxico e estrutura com a semântica, diferentemente da proposta gerativa que hierarquizava a estrutura da língua como elemento basilar. É nesse cenário que uma nova teoria cognitiva da linguagem surge, unificando elementos que eram entendidos como fragmentados, pois tais fragmentos são um continuum. A hipótese de uma mente modular dá espaço a uma mente que trabalha em conexões de redes, corporificada, que categoriza e referencia os elementos de acordo com as experiências. Não estamos mais focados em uma teoria universal da linguagem, mas em uma teoria construcional, irregular, que entende a língua como uma possibilidade heterogênea, bem como a possibilidade de viver em culturas distintas, com construções de sentido distintas.

Podemos, por exemplo, pensar em uma aplicação mais sistemática dessa observação de gramática ao ensino. Levar para a sala de aula uma compreensão de que a gramática, em vez de ser apenas regida por regras abstratas e imanentes, é constituída de uma relação que agrega nossa experiência com a estrutura linguística para a produção de nossa linguagem é, sem sombra de dúvida, uma revolução epistemológica que deve ser considerada para as práticas pedagógicas que vem sendo regidas pelo estudo mais formal da gramática.

Obviamente, sair de uma proposta minimalista dos estudos gramaticais para um estudo maximalizado (DUQUE; COSTA, no prelo), ou seja, que considera cada situação contextual e cognitiva como um caso específico, requer, antes de tudo, uma reelaboração teórica bem sistemática e complexa. Em nosso entendimento, estamos no momento exato para darmos esse salto, visto que atualmente já temos ferramentas e conhecimentos suficientes para tal formulação. Sairíamos da mera "decoreba das regras" para um entendimento contextual da gramática. Eis o nosso próximo passo.

Recebido em 14 de março de 2010.

Aprovado em 5 de outubro de 2010.

  • BRIER, S. The usefulness of cybersemiotics in dealing with problems of knowledge organization and documents mediating systems. Cybernetica 4, v. XXXIV, p. 273-299, 1996.
  • BERGEN, B. K; CHANG N.; NARAYAN S. Simulated action in an embodied construction grammar. ANNUAL MEETING OF THE COGNITIVE SCIENCE SOCIETY, 26th, Proceedings... Chicago, IL, 2004.
  • CHOMSKY, N. Aspects of a theory of sintax The MIT Press: Cambridge, 1965.
  • COSTA, M. A. Os estudos linguísticos na interface das ciências humanas e sociais. ENCONTRO NACIONAL SOBRE HIPERTEXTO, II, Anais.. Fortaleza, 2008.
  • DAMÁSIO, A. O erro de Descartes. Emoção, Razão e o Cérebro Humano. Mem Martins: Public. Europa-América, 1996.
  • DESCARTES, R. Letter (to Morus). In: EATON, R. M. (Org.). Descartes Selections, 1927 [1649]
  • DUQUE, P. H.; COSTA, M. A. Linguística Cognitiva: em busca de uma arquitetura de linguagem compatível com modelos de armazenamento e categorização de experiências. (no prelo).
  • FAUCONNIER, G. Mental spaces: aspects of meaning construction in natural language. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
  • FAUCONNIER, G.; TURNER, M. The way of think New York: Basic Books, 2002.
  • FELDMAN, J; NARAYANAN, S. Embodied Meaning in a Neural Theory of Language. Brain and Language 89, p.385-392, Elsevier Press, 2004.
  • FILLMORE, C. J; KAY, P; O´CONNOR, M. C. Regularidade e idiomaticidade na Gramática de Construções; o caso de 'let alone'. Language, 64, p. 501-538, 1988.
  • FODOR, J. A. The language and thought New York: Crowell, 1975.
  • GOLDBERG, A. E. Constructions: A construction Grammar approach to argument structure. Chicago: Universidade de Chicago, 1995.
  • GUTIÉRREZ, C. M. Crítica do livro Philosophy in the Flesh. In: A Parte Rei Disponível em: <http://serbal.pntic.mec.es/aparterei/>
  • HALLYDAY, M. A. K. An introduction to Functional Grammar Baltimore: Edward Arnold, 1985.
  • KUHN, T. The Structure of Scientific Revolutions Chicago: The University of Chicago Press, 1970.
  • LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metaphors we live by Chicago: Chicago Press, 1980.
  • LAKOFF, G.Philosophy in the flesh New York: Basic Books, 1999.
  • LAKOFF, G.; JOHNSON, M. Metáforas da vida cotidiana Coord. de tradução de Mara Zanotto. Campinas: Mercadão das Letras, 2002.
  • LANGACKER, R. W. Foundations of Cognitive Grammar v. 1: Theoretical Prerequisites. Stanford: Stanford University Press, 1987.
  • MAFESOLI, M. Elogio da Razão Sensível Petrópolis: Vozes, 2001.
  • SALOMÃO, M. M. M; MIRANDA, N. S. Construções do português do Brasil: da gramática ao discurso. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2009.
  • THE TURING MACHINE. Disponível em: <www.plato.stanford.edu/entries/turing-machine/>. Acesso em: 22 dez. 2009.
  • WITTGENSTEIN, L. J. J. Investigações Filosóficas Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
  • 1
    A máquina de Turing foi criada pelo britânico e matemático Alan Turing em meados da década de 40 do século passado. A ideia era decodificar, por meio de um entendimento matemático e lógico, programações realizadas por máquinas digitais, por exemplo. Mais informações em: <
  • 2
    Denominamos a proposta por Gramática de Construções Corporificada, tendo a tradução "corporificada" aos moldes de Zanotto (2002), feita em Metáforas da Vida Cotidiana. Outros autores denominam por "incorporada" tal estudo gramatical, como Salomão e Miranda (2009).
  • 3
    Ver mais a respeito no artigo
    Wittgenstein e a Teoria dos Protótipos sob a ótica da Linguística Sociocognitiva, Revista Linguasagem, 14ª edição. Texto nosso.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Recebido
      14 Mar 2010
    • Aceito
      05 Out 2010
    Faculdade de Letras - Universidade Federal de Minas Gerais Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Letras, Av. Antônio Carlos, 6627 4º. Andar/4036, 31270-901 Belo Horizonte/ MG/ Brasil, Tel.: (55 31) 3409-6044, Fax: (55 31) 3409-5120 - Belo Horizonte - MG - Brazil
    E-mail: rblasecretaria@gmail.com