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Análise sistêmico-funcional como suporte para a leitura de textos: o caso da cerveja Devassa

Systemic-functional analysis as support for reading of texts: the "Devassa" case

Resumos

Partindo do conceito de leitura como um processo que permite ao leitor colocar em relação um discurso com discursos prévios, este trabalho busca ilustrar como a análise subsidiada por categorias propostas pela teoria sistêmicofuncional permite descortinar significados muitas vezes naturalizados como senso comum pela linguagem em textos de diferentes gêneros, podendo ser utilizada pedagogicamente para a formação de leitores críticos em sala de aula. Nessa perspectiva, analisamos significados construídos em uma peça publicitária e sua repercussão em notícias publicadas em jornais on-line da imprensa brasileira durante o carnaval de 2011. Nas notícias, a análise de elementos ideacionais demonstrou uma contradição de representações que se projetam aos consumidores desse produto: libertinos ou descontraídos. A análise dos recursos de modalidade demonstrou preferência pelas proposições epistêmicas especulativas e evidenciais reportadas, que contribuem para agregar confiabilidade às declarações. A análise da peça publicitária indicou que a campanha foi articulada no sentido de atingir um grupo heterogêneo de consumidores, que se identificam com diferentes papéis. Desse modo, verifica-se que diferentes identidades profissionais podem conviver sem que uma identidade anule ou negue a outra.

linguística sistêmico-funcional; significados ideacionais e interpessoais; identidade


Taking into account the concept of reading as a process that allows the reader to relate a particular discourse with previous ones, this article illustrates how an analysis, subsidized by systemic functional categories, can reveal meanings that might be naturalized as common sense in texts belonging to different genres. This effort of analysis can be used pedagogically to educate critical readers in the classroom. Within this perspective, we analyze the meanings built in an advertising billboard and its repercussion in news articles published in Brazilian online newspapers during the 2011Carnival Festival. In these news articles, the analysis of the ideational elements demonstrates a contradiction of representations which project two views to consumers: libertine or laid-back. The modality analysis indicates the preference for speculative epistemic propositions which contribute to give confidence to the assertions. The analysis of the billboard demonstrates that the advertising campaign was articulated to reach a heterogenic group of consumers, exploring the fact that in contemporary society we assume - and identify ourselves - with different roles. As a result, it is possible to verify that different professional identities can coexist, without having one denying the other.

systemic functional linguistics; ideational and interpersonal meanings; identity


ARTIGOS

Análise sistêmico-funcional como suporte para a leitura de textos: o caso da cerveja Devassa

Systemic-functional analysis as support for reading of texts: the "Devassa" case

Cristiane FuzerI; Luciane TicksII; Sara Regina Scotta CabralIII

IProfessora Adjunta do Departamento de Letras Vernáculas, do Laboratório de Português e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria – Rio Grande do Sul / Brasil. crisfuzer@yahoo.com.br

IIProfessora Adjunta do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas, do Laboratório de Leitura e Redação (LabLer) e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria - Rio Grande do Sul / Brasil. lkirchhofticks@gmail.com

IIIProfessora Adjunta do Departamento de Letras Vernáculas, do Laboratório de Português e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria. Rio Grande do Sul / Brasil. sarascotta@yahoo.com.br

RESUMO

Partindo do conceito de leitura como um processo que permite ao leitor colocar em relação um discurso com discursos prévios, este trabalho busca ilustrar como a análise subsidiada por categorias propostas pela teoria sistêmicofuncional permite descortinar significados muitas vezes naturalizados como senso comum pela linguagem em textos de diferentes gêneros, podendo ser utilizada pedagogicamente para a formação de leitores críticos em sala de aula. Nessa perspectiva, analisamos significados construídos em uma peça publicitária e sua repercussão em notícias publicadas em jornais on-line da imprensa brasileira durante o carnaval de 2011. Nas notícias, a análise de elementos ideacionais demonstrou uma contradição de representações que se projetam aos consumidores desse produto: libertinos ou descontraídos. A análise dos recursos de modalidade demonstrou preferência pelas proposições epistêmicas especulativas e evidenciais reportadas, que contribuem para agregar confiabilidade às declarações. A análise da peça publicitária indicou que a campanha foi articulada no sentido de atingir um grupo heterogêneo de consumidores, que se identificam com diferentes papéis. Desse modo, verifica-se que diferentes identidades profissionais podem conviver sem que uma identidade anule ou negue a outra.

Palavras-chave: linguística sistêmico-funcional, significados ideacionais e interpessoais, identidade.

ABSTRACT

Taking into account the concept of reading as a process that allows the reader to relate a particular discourse with previous ones, this article illustrates how an analysis, subsidized by systemic functional categories, can reveal meanings that might be naturalized as common sense in texts belonging to different genres. This effort of analysis can be used pedagogically to educate critical readers in the classroom. Within this perspective, we analyze the meanings built in an advertising billboard and its repercussion in news articles published in Brazilian online newspapers during the 2011Carnival Festival. In these news articles, the analysis of the ideational elements demonstrates a contradiction of representations which project two views to consumers: libertine or laid-back. The modality analysis indicates the preference for speculative epistemic propositions which contribute to give confidence to the assertions. The analysis of the billboard demonstrates that the advertising campaign was articulated to reach a heterogenic group of consumers, exploring the fact that in contemporary society we assume - and identify ourselves - with different roles. As a result, it is possible to verify that different professional identities can coexist, without having one denying the other.

Keywords: systemic functional linguistics, ideational and interpersonal meanings, identity.

Introdução

Este trabalho1 1 As primeiras reflexões sobre as análises foram apresentadas em sessão coordenada no 18º Intercâmbio de Pesquisas em Andamento, na PUC-SP, em junho de 2011. busca exercitar o conceito de leitura como prática social letrada, prática de construção de sentido como meio de conhecimento e reconhecimento do mundo que nos cerca com vistas à transformação social e ao desenvolvimento da cidadania (CERVETTI; PARDALLES; DAMICO, 2001). Nessa perspectiva, o conceito de leitura que emerge é o de um processo que permite ao leitor colocar em relação "um discurso (texto) com outros discursos anteriores a ele, emaranhados nele e posteriores a ele, como possibilidades infinitas de réplica, gerando novos discursos/textos" (ROJO, 2010, p. 3).

Para demonstrar essas relações com base em evidências linguísticas, buscamos ilustrar como a análise subsidiada por categorias propostas pela teoria sistêmico-funcional permite descortinar os múltiplos significados muitas vezes naturalizados como senso comum pela linguagem em textos pertencentes a diferentes gêneros, podendo ser utilizada para a formação de leitores críticos. Esse mesmo senso comum pode legitimar estereótipos pela simples recorrência de comportamentos familiares e rotineiros (FAIRCLOUGH, 1989),no caso em particular, a tentativa de representar a cantora Sandy como "devassa". A peça (divulgada em outdoors e cartazes) traz Sandy como participante principal da publicidade de uma marca de cerveja, e as notícias abordam aspectos relacionados à referida campanha publicitária, lançada durante o carnaval de 2011.

Dentre as várias abordagens funcionalistas para estudos da linguagem, a Linguística Sistêmico-Funcional tem, de acordo com Frances Christie (1998, p.52-53), uma "história razoavelmente bem estabilizada de envolvimento com a educação". Tem sido utilizada em projetos educacionais e relatórios no Reino Unido e na Austrália (CHRISTIE et al., 1991; MARTIN, 1992). Nessa perspectiva teórica, discutimos significados construídos em uma peça publicitária e sua repercussão em notícias publicadas em jornais on-line da imprensa brasileira, com o propósito de ilustrar uma prática de reflexão crítica sobre a linguagem em uso.

No que se refere às notícias, o objetivo é analisar recursos léxicogramaticais usados para construir representações e modalizar o discurso. Para isso, são utilizadas categorias do sistema de transitividade e modalidade, que realizam, respectivamente, as metafunções ideacional (experiencial) e interpessoal da linguagem, com base na teoria sistêmico-funcional de Michael Halliday e Christian Matthiessen (2004). No que se refere à peça publicitária, o objetivo é descortinar os múltiplos significados verbais e não verbais construídos a partir da investigação de significados ideacionais, interpessoais e textuais, levando em consideração a gramática visual de Gunther R. Kress e Theo van Leeuwen (2006).

Fundamentação teórica

A linguagem, na perspectiva sistêmico-funcional, é concebida como um sistema de escolhas, utilizada em um meio social de modo que os indivíduos possam desempenhar papéis sociais. Esse sistema se baseia na gramática, caracterizada pela organização em estratos e pela diversidade funcional. Os estratos são diferenciados de acordo com a ordem de abstração: a semântica (sistema de significados) é realizada pela léxico-gramática (estruturas gramaticais e itens lexicais) que, por sua vez, é realizada pela fonologia e grafologia (sistemas de sonoridade e grafia). Todos esses sistemas interdependentes realizam o contexto (de situação e de cultura).

No estrato semântico, a linguagem desempenha três funções fundamentais: representar experiências (ideacional), estabelecer relações com os outros e trocar significados (interpessoal) e organizar esses significados em forma de texto (textual). Essas são as três metafunções da linguagem que, segundo Halliday (1994), definem a oração como uma unidade gramatical plurifuncional: oração como representação, oração como interação e oração como mensagem. Elementos léxico-gramaticais utilizados neste trabalho para descrição e análise da linguagem verbal, com base em Halliday e Matthiessen (2004), estão descritos nas subseções "Sistema de transitividade: realização de representações" e "Modalidade: recurso interpessoal da linguagem".

As metafunções da linguagem também ajudam a compreender significados construídos em textos não verbais ou imagéticos, bem como a relação estabelecida com textos verbais, conforme propõem Kress e van Leeuwen (2006), em sua gramática do design visual, cujos pressupostos estão descritos na subseção "Gramática do design visual e significados construídos pelo texto verbal e não verbal".

Sistema de transitividade: realização de representações

Representações de mundo são realizadas, léxico-gramaticalmente, pelo sistema de transitividade, um recurso para interpretar um domínio específico das experiências dos indivíduos no fluxo dos acontecimentos. Nesse sistema, as orações são classificadas de acordo com os tipos de processos (realizados por grupos verbais) e os participantes (realizados por grupos nominais), conforme resume o QUADRO 1.


A oração como representação se constitui de processo, participante(s) e, eventualmente, circunstâncias (que podem indicar localização, causa, frequência, ângulo, dentre outras).2 2 Uma introdução à Gramática Sistêmico-Funcional em língua portuguesa com sistematização das principais categorias léxico-gramaticais de cada metafunção da linguagem, exercícios e atividades de análise de textos encontra-se em Cristiane Fuzer e Sara S. Cabral (2010). Ao analisar textos sob esse enfoque, é necessário considerar que "falantes e escritores constroem sua experiência de realidade como discurso" (MARTIN; ROSE, 2003, p.66). Focaliza-se o conteúdo de um discurso com base nestas questões: que tipos de atividade são empreendidos, como os participantes dessas atividades são descritos, como são classificados e do que fazem parte. Assim, a metafunção ideacional diz respeito ao modo como a experiência de "realidade" (material e simbólica) das pessoas é construída em seus discursos, com base nas escolhas que realizam em termos léxico-gramaticais.

Modalidade: recurso interpessoal da linguagem

Além de representar experiências, a linguagem tem a função de estabelecer relações entre indivíduos, o que Halliday (1989) denomina de metafunção interpessoal. Para Halliday (1989; 1994), a manifestação da interpessoalidade se faz por meio de vários traços linguísticos nos textos, especialmente o modo (declarativo, interrogativo, imperativo) e a modalidade (o grau de comprometimento ou de afinidade com as proposições expressas no texto).

A noção de modalidade está relacionada à distinção entre proposições (informações) e propostas (bens e serviços), denominadas, respectivamente, modalização e modulação. Quanto às proposições, há dois tipos de possibilidades intermediárias: graus de probabilidade e graus de usualidade. Ambos podem ser expressos em termos de verbos e adjetivos modais ou de adjuntos modais.

Frank R. Palmer, em obra de 2001, realizou um trabalho minucioso em relação à modalidade, especificando significados que ela pode agregar aos enunciados. Um apanhado do sistema construído por Palmer é apresentado no QUADRO 2, seguido de considerações sobre cada uma das categorias.


A modalidade proposicional pode realizar-se através de duas maneiras: a modalidade epistêmica e a evidencial. As duas dizem respeito à atitude do falante em relação ao valor de verdade ou à factualidade da proposição.

Epistemicamente, a proposição pode apresentar-se em três formas: especulativa, dedutiva ou assumptiva (ou dubitativa). A primeira indica incerteza, a segunda indica evidência observável, e a terceira constitui uma inferência sobre o conteúdo da proposição. Podemos apresentar como exemplos as orações a seguir:

Cerveja pode ser banida da mídia.3 3 http://blogs.estadao.com.br/advogado-de-defesa/cerveja-pode-ser-banida-da-midia

Nova campanha da cerveja "Andes" deve resgatar seus fãs.4 4 http://midiapublicitaria.com/nova-campanha-da-cerveja-andes-deve-resgatar-seusfans

Propaganda de qualquer bebida alcoólica deveria ser banida de todos os meios de comunicação.5 5 http://blogs.estadao.com.br/advogado-de-defesa/cerveja-pode-ser-banida-da-midia

Na perspectiva da modalidade proposicional evidencial, há dois tipos de categorias que merecem destaque: a reportada e a sensorial, isso porque as evidências são observadas no mundo ou através do relato de outrem ou através da percepção pelos órgãos dos sentidos. A categoria de evidencialidade reportada engloba o conhecimento geral (crenças, induções, expectativas e delimitações) e o ouvir-dizer, este último realizado por citações ou relatos, a seguir exemplificados:

Dizem que a bebida mata lentamente, e daí? Eu não estou com pressa!6 6 http://www.flogvip.net/biagoomes/13161856

"O que é importante esclarecer é que isso só vale para o consumo moderado da bebida", conta Augusto Di Castelnuovo, pesquisador que fez parte do estudo.7 7 http://rogerioalexandrino.com.br/v1/2011/11/beber-cerveja-pode-fazer-bem-ao-coracao-diz-estudo.html

Estudantes dizem que USP barrou caminhões com cerveja da "calourada".8 8 http://www.emprestimoonline.com.br/noticias-do-dia/estudantes-dizem-que-uspbarrou-caminh-es-com-cerveja-da-calourada

A modalidade proposicional sensorial refere-se a apreensões que o locutor tem da realidade, seja em termos visuais, auditivos e dos outros sentidos humanos, como nestes exemplos:

Antes mesmo de abrir a garrafa de cerveja, percebeu uma sujeira no interior. Ao olhar mais de perto, viu uma embalagem de bala.9 9 http://www.notisul.com.br/n/geral/uma_garrafa_de_cerveja_premiada-32261

O próprio Michael provou a cerveja e disse aos dois: "Larguem seus empregos. Vão produzir essa cerveja!"10 10 http://clubalfa.abril.com.br/gastronomia/cerveja/com-mais-de-tres-acordes%E2%80%A6

Além da modalidade proposicional, Palmer (2001) apresenta a modalidade de evento, que se refere a eventos potenciais, e abrange as categorias deôntica e dinâmica. A modalidade deôntica de evento pode se configurar em permissiva, obrigativa ou comissiva.

Beber cerveja todo dia pode melhorar a saúde, dizem pesquisas.11 11 http://www.traineeambev.com.br/ambev2011/2011/09/30/beber-cerveja-todo-diapode-melhorar-a-saude-dizem-pesquisas

Todos os dias: assim como o vinho, a cerveja deve ser consumida com moderação.12 12 http://veja.abril.com.br/noticia/saude/beber-cerveja-todo-dia-faz-bem-e-combateate-diabetes

A Colorado põe uma pitada de ingredientes típicos brasileiros (como mandioca ou rapadura) em seus lançamentos, enquanto a Bamberg propõe-se a seguir a Lei da Pureza em vigor na Alemanha desde 1516 (ela restringe os ingredientes da cerveja a água, malte e lúpulo).13 13 http://ogourmet.net/blog/birra/a-revolucao-da-cerveja-arte

Em relação à modalidade dinâmica, Palmer (2001) identifica duas categorias: habilitativa e volitiva. A habilitativa indica poder mental físico e mental, e a volitiva remete à capacidade ou vontade de realizar algo. São exemplos:

Só machos podem beber cerveja...14 14 http://snfs.blogspot.com/2011/09/so-machos-podem-beber-cerveja.html

Arreia cerveja que eu quero beber.

Arreia cerveja que eu quero esquecer.15 15 http://www.kboing.com.br/leonardo/1-1061928

Gramática do design visual e significados construídos pelo texto verbal e não verbal

Tomando como base a gramática sistêmico-funcional de Halliday e Matthiessen (2004), Kress e van Leeuwen (2006) propõem categorias para análise de imagens enquanto um sistema próprio de significação. Em outras palavras, imagens representam o mundo que nos cerca e o mundo da consciência (função ideacional); materializam interações e relações sociais (metafunção interpessoal) entre seu produtor, seu observador e o objeto representado e, por fim, constituem-se em textos que constroem diferentes significações (função textual).

Na análise de imagens, levamos em consideração as três metafunções, que também se materializam na linguagem não verbal (QUADRO 3).


Na metafunção ideacional, observamos o potencial da linguagem para representar objetos, entidades e fenômenos que constituem a realidade, bem como a relação existente entre eles. Esses elementos equivalem, no texto verbal, aos grupos nominais, verbais e adverbiais e preposicionais. A maneira como esses participantes estão representados nas imagens define a configuração de uma estrutura narrativa ou de uma estrutura conceitual de significação (FIG. 1).


As estruturas narrativas apresentam vetores ou outros elementos que dão a ideia de ação ou direção. Os vetores são elementos visuais que "encenam" uma ação ou apontam para uma direção em particular. Isso pode acontecer por meio do olhar dirigido por um participante ou, ainda, um braço direcionado para algo ou alguém, por exemplo. Assim, dão maior destaque ao caráter transitório das relações entre os participantes. Por outro lado, as estruturas conceituais enfatizam a descrição do todo em partes ou categorias. São representadas por imagens que apresentam os traços considerados essenciais de um participante, que se mantêm, de certa forma, constantes.

Na metafunção interpessoal, Kress e van Leeuwen (2006, p.115) tratam da relação que se estabelece entre o leitor/espectador e o(s) participante(s) representado(s) nos textos não verbais. Nesse caso, procuramos analisar a natureza do contato estabelecimento entre os participantes, a distância social, a atitude e, ainda, as relações de poder representadas (FIG. 2).


Por fim, na metafunção textual, a proposta de análise de textos não verbais considera três sistemas: 1) Valor da informação - que está relacionado à posição dos elementos nas diferentes regiões da tela (relação dos participantes entre si ou relação da imagem e do texto verbal); 2) Saliência - os elementos utilizados para atrair a atenção do espectador (frente-fundo, tamanho, tonalidades); 3) Moldura - composta por elementos utilizados para conectar ou desconectar a imagem do texto (FIG. 3).


Metodologia

O corpus de análise se constitui de três notícias sobre o lançamento da campanha publicitária da cerveja Devassa, veiculadas na imprensa brasileira, em março de 2011, e uma peça publicitária, veiculada em outdoors e cartazes, que tem a cantora Sandy como participante principal, anunciada pelo Grupo Schincariol e criada pela Agência Mood (QUADRO 4).


A análise das notícias é feita com base nas categorias léxico-gramaticais que realizam as metafunções ideacional (experiencial) e interpessoal da linguagem, conforme Halliday e Matthiessen (2004).

Para a identificação e análise de representações (significados ideacionais) nas notícias, é feito levantamento das ocorrências dos participantes em cada texto e descrição dos papéis léxico-gramaticais desempenhados pelos participantes mais frequentes. Na sequência, analisam-se suas ocorrências em termos de ativação (como Ator, Experienciador, Comportante) e passivação (como Meta, Beneficiário, Fenômeno). Por fim, analisam-se as ocorrências do termo devassa e sistematizam-se seus significados nos cotextos em que ocorrem.

Para a análise dos significados interpessoais, foi realizada inicialmente a identificação de todas as referências, nos três textos verbais, à campanha da cerveja Devassa, o que foi feito manualmente. A seguir, foram selecionadas as ocorrências acompanhadas de modalidade e classificadas segundo a proposição ou o evento. Por fim, os resultados foram distribuídos conforme as subcategorias de modalização apresentadas por Palmer (2001).

A análise da peça publicitária da cerveja Devassa, por sua vez, toma como referência a gramática do design visual (KRESS; VAN LEEUWEN, 2006). Nesse sentido, procuramos explorar os significados construídos pelos elementos não verbais, em associação com os verbais, na configuração da peça publicitária para as três metafunções discutidas na fundamentação teórica.

Análise dos resultados

Representações manifestadas nas notícias

A análise do sistema de transitividade mostrou que os participantes mais frequentes nas orações que constituem as notícias analisadas são: Sandy, Paris Hilton, a campanha publicitária, a marca de cerveja Devassa e os consumidores. As garotas propaganda em campanhas publicitárias da cerveja Devassa participam com mais frequência dos processos (FIG. 4).


Sandy é a que mais aparece desempenhando função de participante no corpus (41,7%), o que indica sua prevalência como assunto principal dos textos. Em comparação com as orações em que Paris Hilton tem função de participante, Sandy desempenha com mais frequência papéis ativos (52,3%) que sua antecessora, como se verifica nestes exemplos:

(1) O locutor convida o público a conhecer o outro lado da moça comportada, que vira de frente, abre uma garrafa de cerveja na quina do balcão, lança o chapéu para a plateia e começa a dançar. (N3).

(2) Sandy se esforça para entrar no espírito da marca de cerveja da qual é garota propaganda [...]. (N2).

(3) "Eu bebo socialmente, com moderação e quando eu bebo não dirijo, eu juro", declarou Sandy. (N2).

(4) Nos bastidores os mais de 50 atores e figurantes ficaram espantados com o humor picante da Sandy, que falava vários palavrões durante as gravações [...]. (N2).

(5) Por US$ 1 mi, Sandy "vira Devassa" em campanha de cerveja da Schincariol. (N3).

(6) E qual o lado Devassa da Sandy? Ela adora luta, é fã de "Ultimate Fighting" [competição de vale-tudo]. (N3).

Sandy desempenha a função de Ator para as ações "vira de frente", "abre uma garrafa", "lança o chapéu" em (1); de Comportante em relação a "dançar" em (1), "se esforça" em (2), "beber socialmente" em (3) e "falava vários palavrões" em (4); de Dizente em relação a "juro" e "declarou" em (3); de Portador para o Atributo "Devassa", ao qual se liga pelo processo relacional "vira" em (5), e de Experienciador do processo "adora" em (6). Essas escolhas léxico-gramaticais constroem para Sandy representações que se contrapõem: a da moça bem comportada, que bebe com moderação e não dirige quando bebe, e a da devassa, que dança com garrafa de cerveja na mão, fala palavrões durante as gravações e adora luta de vale-tudo.

Embora em menor frequência (19%), Sandy também aparece desempenhando papéis passivos, como Beneficiário (7 e 10), Meta (8) e Fenômeno (9).

(7) Cruz Neto [...] não revela quanto Sandy ganhou pelo contrato de um ano, renovável por mais um. Diz apenas que ela ganhou bem mais do que cobrou Paris Hilton. (N1).

(8) Cada vez mais, os comerciais trarão não apenas Sandy, mas pessoas bebendo em clima de descontração. (N2).

(9) O locutor convida o público a conhecer o outro lado da moça comportada [...]. (N3).

(10) o inusitado é, indiscutivelmente, uma arma contra as marcas concorrentes. E de quebra, para Sandy, pode representar uma mudança na imagem de boa moça. (N2).

Dessa forma, Sandy é representada como beneficiária de boa remuneração e, principalmente, como alguém que está tendo sua imagem social transformada em função do seu papel na campanha publicitária da cerveja Devassa. O fato de a remuneração ter sido maior que a cobrada pela modelo Paris Hilton, já reconhecida socialmente como "devassa", justifica-se, possivelmente, pela transformação promovida pela campanha na imagem da "jovem casta", como explicitado neste excerto:

(11) Sai a imagem da devassa e entra

a da jovem casta

. (N1).

A participação de Sandy como garota propaganda da cerveja Devassa significaria não somente mais um trabalho publicitário protagonizado pela artista, mas também uma mudança na sua representação perante os brasileiros, que têm acompanhado a carreira da cantora desde criança, quando fazia par com o irmão Júnior.

O comportamento devasso de Sandy, entretanto, não parece convencer os jornalistas. Algumas marcas linguísticas sinalizam isso no texto, como a escolha pela estrutura "se esforça" em (2), o que implica a dificuldade da nova garota propaganda em agir conforme o significado da palavra que dá nome à cerveja, bem como o emprego de aspas em "vira Devassa" em (5), deixando margem para a ironia e, ao mesmo tempo, gerando ambiguidade (característica assumida por Sandy e nome da marca anunciada pela cantora). Contextualmente, dançar num bar, falar palavrões e gostar de competição de vale-tudo não constitui necessariamente um comportamento considerado, na sociedade brasileira, "indecente, desavergonhado, desregrado, imoral, inconveniente, libidinoso, obsceno, pornográfico" (DEVASSA, 2009, p. 676).

O significado dicionarizado da palavra devassa é, nas notícias, associado a Paris, remetendo a libertinagem e indecência. Quando associada a Sandy, devassa remete à alegria e descontração, como mostra este excerto:

(12) Ela [Sandy] substitui a "devassa confessa" Paris Hilton [...]. Sem Paris, a intenção é dissociar o caráter "devasso" de Devassa e associar a marca à descontração. (N3).

A ambiguidade do item lexical "devassa" é estratégica nos textos analisados: ao mesmo tempo em que remete ao nome da marca da cerveja, constrói representações diferentes de acordo com os participantes a que esse item aparece associado nas orações. Verificamos, assim, contradição de representações que podem ser projetadas aos potenciais consumidores desse produto: libertinos ou descontraídos.

Modalização nas notícias

O exame das ocorrências de modalidade presentes nas notícias sobre a vinculação de Sandy à cerveja Devassa mostrou a presença de modalidade proposicional e de eventos.

A modalidade proposicional se fez presente em passagens como (13) a (17).

(13) [A agência] estaria repetindo com a escolha de Sandy [...]. (N1).

(14) [Sandy] tenta demonstrar [intimidade com a bebida] [...]. (N2).

(15) Mas a estratégia - que à primeira vista pode parecer esdrúxula [...]. (N2).

Os excertos (13), (14) e (15) indicam modalidade proposicional epistêmica e especulativa, já que contam com itens lexicais como "estaria", "tenta" e "pode parecer", que não conferem certeza ao enunciador sobre a verdade do fato apontado. O jornalista questiona a atuação da agência e de Sandy, ao mesmo tempo em que está inseguro em relação à estratégia de marketing escolhida pela empresa publicitária.

A modalidade dedutiva se faz presente, especialmente em (16), onde o enunciador escolhe empregar um verbo no tempo futuro. Futuro é indicador de devir, denominada por Palmer de irrealis.

(16) Sandy

será

a principal estrela do camarote da Devassa. (N2).

Já (17) também apresenta modalidade proposicional do tipo assumptivo, através da qual a cantora Sandy tenta provocar inferências por parte dos consumidores da cerveja Devassa, sugerindo seu hábito em beber socialmente.

(17) Eu

costumo

beber entre amigos [...]. (N2).

A modalidade proposicional também acontece no texto através da evidencialidade. Nesta categoria, foram encontradas passagens que têm a função de reforçar as opiniões dos jornalistas acerca dos resultados da campanha.

(18) Na verdade, a proposta soa como uma provocação [...]. (N1).

(19) [...] o inusitado é,indiscutivelmente, uma arma contra as marcas concorrentes. (N2).

(20) O novo mote da campanha, que foi inspirado em várias pesquisas que fizemos nos últimos meses com os consumidores, ressalta que "todo mundo tem um lado Devassa". (N3).

Os exemplos (18) a (20) demonstram as crenças que os enunciadores têm acerca das declarações feitas no decorrer das notícias. Os itens léxicogramaticais "na verdade", "indiscutivelmente" e "ressalta" sinalizam a convicção autoral acerca da novidade da campanha.

O corpus analisado permitiu que identificássemos também algumas passagens em que o enunciador faz indução (21) e deduções (22, 23 e 24) acerca da pessoa escolhida para ser o ícone da campanha.

(21) Mas a estratégia - que à primeira vista pode parecer esdrúxula [...]. (N2).

(22) [...] e estaria repetindo com a escolha de Sandy. (N1).

(23) Afinal, a "devassa" está no nome da própria cerveja. (N1). >

(24) O óbvio seria ir atrás de outra Paris. (N3).

A escolha dos itens lexicais "à primeira vista", "estaria", "afinal" e "seria" reforça a compreensão acerca do sentido de evidencialidade dado a esses trechos do texto.

Bem mais intensa é a presença da evidencialidade através de citações e relatos, o que acontece em (25) a (34).

(25) "[...] já que todos também têm um lado licencioso", explica Cruz Neto. (N1).

(26) "E eu tenho um lado bem devassa, sim", afirmou, num dos vários elogios à marca. (N2).

(27) [...] e quando eu bebo não dirijo, eu juro, declarou Sandy. (N2).

(28) "O óbvio seria ir atrás de outra Paris", diz Aaron Sutton. (N3).

(29) Marqueteiros consultados sobre a tática da empresa apostam que, na verdade, a proposta soa como provocação para gerar comentários pela escolha inusitada. (N1).

(30) Cruz Neto nega que Huck tenha sido remunerado pela missão de comentar a novidade. (N1).

(31) [Cruz Neto] Também não revela quanto Sandy ganhou pelo contrato de um ano, renovável por mais um. (N1).

(32) Aos 28, Sandy afirmou que curtiu o conceito da campanha. (N3).

(33) O novo mote da campanha, que foi inspirado em várias pesquisas que fizemos nos últimos meses com os consumidores, ressalta que "todo mundo tem um lado Devassa". (N1).

(34) Uma troca proposital, segundo o presidente da agência de propaganda Mood [...]. (N1).

De (25) a (28), o dizer realiza-se através de citações, o que constitui discurso direto e consequente transposição da fala do depoente. Já de (29) a (33), o jornalista utiliza o recurso do discurso indireto, o que já demonstra certo grau de interferência do profissional na fala das fontes. O exemplo (34) difere em organização frasal, mas mesmo assim encapsula a evidencialidade, através do uso de uma circunstância de ângulo.

Os exemplos (35) a (37) indicam delimitações que são feitas nas passagens de evidencialidade (CHAFE; NICHOLS, 1986) e (38) a (42) manifestam expectativas por parte dos enunciadores.

(35) Ficará no ar apenas 15 dias. (N1).

(36) [...] no Nordeste e Sul, onde a marca chegou há pouco mais de dois meses. (N1).

(37) Sandy vai receber US$ 1 milhão, cerca de US$ 300 mil a mais do que Paris. (N3).

(38) Apesar do marketing, a cerveja conseguiu uma participação pequena no segmento – hoje, é inferior a 1% do mercado total. (N1).

(39) Mas a promessa é esse conceito ser revisto ao longo da folia momesca. (N2).

(40) Sandy não tem – e nem tenta demonstrar – intimidade com a bebida. (N2).

(41) A cantora é a estrela, mas a constelação que a cervejaria tenta atrair para a Sapucaí é extensa. (N2).

(42) Sem Paris, a intenção é dissociar o caráter "devasso" de Devassa. (N3).

As escolhas lexicais "apenas", "pouco mais" e "cerca de" têm a função de delimitar as proposições, enquanto "apesar do marketing", "a promessa", "e nem tenta", "tenta atrair" e "a intenção" buscam ampliar as expectativas de (in)sucesso da campanha.

A FIG. 5 apresenta os resultados referentes à evidencialidade nas notícias analisadas.


A presença de marcas de evidencialidade proposicional em maior número vem reforçar uma das principais características do gênero estudado - a notícia. Nesse gênero, são importantes os depoimentos das falas externas, mas também são fundamentais as escolhas feitas pelos jornalistas para que possamos identificar, durante a leitura, opiniões que se encontram veladas nos textos. O estudo da modalidade certamente contribui para a melhor compreensão do posicionamento autoral que, nas notícias analisadas, revela certa reserva por parte dos jornalistas em relação ao sucesso da campanha de que Sandy participa.

Recursos verbais e não verbais na peça publicitária

Esta seção reúne os significados ideacionais, interpessoais e textuais encontrados na análise da peça publicitária da cerveja Devassa (FIG. 6). Inicialmente, lembramos que essa peça publicitária se configura em um híbrido semiótico (LEMKE, 1998), uma vez que reúne componentes verbal e não verbal.


Em peças publicitárias, é recorrente a utilização de processos conceituais, neste caso em particular, um processo conceitual simbólico. O arranjo visual das participantes (Sandy e Devassa) propõe uma nova classificação (ou identidade) para Sandy - até então estereotipicamente representada pela mídia como menina "responsável", "certinha", "de família" - como devassa. Essa característica identitária é construída por elementos tipicamente relacionados à sensualidade feminina (boca e unhas pintadas de vermelho, decote acentuado, por exemplo). Ao propor tal configuração, em última instância, o texto procura construir relações de identificação de Sandy (em seu novo papel de devassa) e a audiência.

Em termos ideacionais, estão presentes diferentes processos narrativos, marcados por vetores (o olhar de Sandy em direção à audiência, seu braço esquerdo que convida ao brinde, por exemplo). Essas ações (indicadas pelo olhar de Sandy em direção à audiência e pelo braço esquerdo da cantora na FIG. 6) provocam o leitor, convidando-o ao consumo da cerveja.

Esses processos narrativos (QUADRO 5) colocam Sandy, via de regra, no papel de Ator que interpela a audiência (Meta), convidando ao consumo da cerveja (Meta). Sua mão esquerda segura um copo da cerveja Devassa (Meta) que está na direção de sua boca. Um último processo narrativo pode ser observado na garrafa e na lata (Vetores) de cerveja que estão prestes a estourar, ação indicada pelas borbulhas, sugerindo que a cerveja (Meta) será expelida. O braço direito, por sua vez, realiza a conexão de Sandy com a cerveja.16 16 Agradecemos à professora e colega Graciela Rabuske Hendges por nos alertar para esse detalhe.


Vale lembrar que, no contexto de cultura brasileiro, as peças publicitárias não têm mais permissão para mostrar pessoas ingerindo bebidas alcóolicas.17 17 Essa é uma determinação governamental, assim como há limites impostos pelo Ministério da Saúde à publicidade de cigarros. Assim, a maneira naturalizada pela publicidade para representar o consumo da bebida é a prática social do "brinde", que Sandy também parece realizar com a mão esquerda.

Em termos interpessoais, a relação de interação é de demanda de Sandy com a audiência, marcada pelo olhar. Todavia, esse olhar não define uma atitude de intimidação por parte de Sandy, pois o plano frontal é suavizado pela ligeira inclinação de sua cabeça. Além disso, o enquadramento de câmera relativamente fechado (vemos apenas a parte superior do corpo da participante Sandy) sugere proximidade entre os participantes interativos (Sandy e a audiência), complementada por uma relação - de poder- de igualdade, materializada pela posição (dos olhos) de Sandy, no mesmo nível daqueles da audiência.

Essas escolhas feitas na confecção da peça demarcam a sutileza do convite feito por Sandy ao consumo da cerveja e a identificação com sua nova imagem. Essa identificação está igualmente marcada pela seleção de cores escolhidas para representar os componentes verbal e não verbal. O branco no texto verbal ("Todo mundo tem") é representado por Sandy, que tem pele clara e veste um traje prata, no texto não verbal. O amarelo-alaranjado no texto verbal ("um lado Devassa") remete à (cor da) cerveja, objeto de consumo. Em outras palavras, ser devassa pode significar apenas consumir a cerveja, em trajes e visual sensuais.

Por fim, o valor informacional da peça publicitária está organizado pela representação dado-novo. As informações que observamos no lado esquerdo da página representam informações que já conhecemos (dado) e são o ponto de partida para a mensagem. Já o lado direito traz a informação nova que necessita de uma atenção especial por parte do leitor (novo). No caso do outdoor, as informações conhecidas são a proposição de que "todo mundo tem um lado Devassa" e a imagem da cerveja em si. Já a informação nova encontrase na representação de Sandy como "consumidora Devassa". A imagem de Sandy ocupa boa parte do outdoor (saliência), enfatizada também pela iluminação frontal e no pano de fundo,18 18 Agradecemos novamente à professora Graciela Rabuske Hendges por esse insight, bem como pela revisão cuidadosa do texto de análise do outdoor. demonstrando o quanto essa nova informação é importante na configuração da peça. Ainda, a composição espacial conecta todas as informações e os participantes (particularmente o braço direito de Sandy à cerveja), uma vez que não há nítida distinção de traços e linhas separando-os. Além disso, não há uma moldura que delimite a configuração visual da peça publicitária.

Podemos pensar, ainda, que a peça argumenta retoricamente por meio da configuração em que o hipotético ("todo mundo tem um lado devassa") articula-se com o real (a Sandy). Assim, o conjunto de atributos que caracterizam o novo papel de devassa da menina "regrada", "de família", "responsável" tenta provar a hipótese levantada pelo texto verbal.

Alguns significados construídos pela peça publicitária

A peça publicitária analisada foi produzida como parte de uma campanha publicitária lançada no Carnaval de 2011 e inicialmente veiculada em outdoors e nos camarins da Praça da Apoteose, no Rio de Janeiro. Em função da polêmica provocada pela campanha e sua nova protagonista, a peça ganhou espaço nas redes sociais da internet e foi fartamente comentada por reportagens jornalísticas em diferentes veículos.

Embora não tenhamos encontrado informações estatísticas acerca dos resultados de vendas alcançados pela campanha (a empresa Schincariol, que produz a cerveja, havia projetado um aumento no consumo de 20% ao lançála, segundo reportagem publicada pela Folha de S.Paulo), pudemos constatar a polêmica alcançada nas redes sociais. A pesquisa realizada pelas agências Sampa.ad e Riot, em aproximadamente 700 mil tweets no período do Carnaval, demonstrou uma incidência muito superior (187%) de citações referentes à Devassa em relação às demais cervejas (FIG. 7).


Ao nos depararmos com os resultados encontrados nesta análise, vemos como processos identitários são fenômenos relacionais - as pessoas se identificam e são identificadas por outras (FAIRCLOUGH, 2003) ao atuarem em diferentes práticas sociais. A peça publicitária procura construir um processo de identificação de Sandy com uma audiência potencialmente heterogênea pela ampliação dos significados de "devassa".

Construir uma identidade devassa ou, como conjectura a peça, "ter um lado Devassa", pode acontecer pelo simples ato de consumir a cerveja, que leva o mesmo nome. Ainda, "ter um lado devassa" pode significar usar um decote ousado, batom e/ou esmalte vermelhos. Essas referências sensuais são exploradas com discrição na peça, de modo que um número maior de consumidoras se reconheça nessa imagem. Afinal de contas, nossas identidades são fragmentadas (MOITA LOPES, 2003): podemos ser, ao mesmo tempo, mães, profissionais, amantes e consumidoras da cerveja Devassa.

Considerações finais

Procuramos demonstrar, neste trabalho, como a análise de diferentes textos, subsidiada pela teoria sistêmico-funcional, possibilita refletir e desconstruir diferentes significados, via de regra, naturalizados como senso comum pela/na linguagem.

A análise de elementos léxico-gramaticais que realizam a metafunção ideacional nas notícias analisadas mostrou que, ao mesmo tempo em que remete à marca da cerveja, a palavra devassa, quando associada a Paris Hilton, remete a libertinagem e indecência e, quando associada a Sandy, remete a alegria e descontração. Verificamos, assim, uma contradição de representações que se projetam aos consumidores desse produto: libertinos ou descontraídos.

A análise dos recursos de modalidade empregados nas mesmas notícias demonstrou a preferência pelas proposições epistêmicas especulativas e evidenciais reportadas. As primeiras se justificam pela opção que o jornalista faz para indicar incerteza, espírito de observação e inferências sobre o sucesso da campanha recém-lançada. Tendo em vista o caráter especulativo do gênero e a incerteza sobre as inferências lançadas no texto, a voz jornalística precisa apoiar-se em mais evidências, recorrendo desta vez a citações e relatos, além de outras formas de indicação da fala de outrem. Tais estratégias contribuem para agregar um pouco mais de confiabilidade a suas declarações. Suas expectativas em relação ao sucesso da campanha são incertas e precisa convencer o público de algo que, para ele próprio, é inusitado e de difícil concretização.

A análise da peça publicitária, por sua vez, que tem como "protagonistas" a cantora Sandy e a cerveja Devassa, parece indicar que a campanha foi articulada no sentido de atingir um grupo heterogêneo de consumidores e consumidoras, explorando o fato de que na sociedade contemporânea assumimos - e nos identificamos com - diferentes papéis. Desse modo, podemos ser/ter uma identidade profissional séria e recatada, como é o caso de Sandy, e ao mesmo tempo mostrar um "lado devassa", sem que uma identidade anule ou negue a outra. A peça também poderia estar buscando atrair, com a presença de Sandy, uma parcela masculina de consumidores que responderia ao apelo da mulher "comportada", mas "com um lado devassa". Seria possível especular que esse mesmo público não reagiria do mesmo modo à campanha anterior da Devassa, que tinha uma protagonista sexualmente mais agressiva, a socialite Paris Hilton.

Análises sistêmico-funcionais como essa, em que os significados construídos nos textos são depreendidos com base em evidências léxicogramaticais associadas a dados contextuais e sociais, possibilitam desenvolver práticas de leitura acerca de recursos verbais e não verbais da linguagem e seu funcionamento nos discursos que circulam na sociedade. Esse exercício pode contribuir para o processo de formação de leitores críticos, capazes de relacionar, nos termos de Roxane Rojo (2010), um texto com outros textos, como possibilidades de réplicas que podem gerar novos textos.

Referências dos exemplos e corpus

Recebido em 15/03/2012

Aprovado em 22/08/2012

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  • 1
    As primeiras reflexões sobre as análises foram apresentadas em sessão coordenada no 18º Intercâmbio de Pesquisas em Andamento, na PUC-SP, em junho de 2011.
  • 2
    Uma introdução à Gramática Sistêmico-Funcional em língua portuguesa com sistematização das principais categorias léxico-gramaticais de cada metafunção da linguagem, exercícios e atividades de análise de textos encontra-se em Cristiane Fuzer e Sara S. Cabral (2010).
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  • 7
  • 8
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  • 15
  • 16
    Agradecemos à professora e colega Graciela Rabuske Hendges por nos alertar para esse detalhe.
  • 17
    Essa é uma determinação governamental, assim como há limites impostos pelo Ministério da Saúde à publicidade de cigarros.
  • 18
    Agradecemos novamente à professora Graciela Rabuske Hendges por esse
    insight, bem como pela revisão cuidadosa do texto de análise do
    outdoor.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      15 Mar 2012
    • Aceito
      22 Ago 2012
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