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Proporcionar aos índios a valorização das suas línguas?! Problemas discursivos na diferenciação da escola indígena

Providing Indigenous Peoples with the appreciation of their languages? Discursive problems in the differentiation of Brazilian indigenous schools

Resumos

Partindo da crítica às políticas linguísticas baseadas nos regimes metadiscursivos de línguas inventadas para a sua transmissão escolar e dos fundamentos teórico-metodológicos da análise crítica do discurso, este artigo busca apontar obstáculos discursivos à diferenciação da educação escolar indígena e à valorização escolar das línguas indígenas. Através da análise de um corpus composto por excertos da Constituição Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996, e pela reportagem "Por uma escola diferenciada", do programa Globo Educação, a análise aponta dois obstáculos discursivos: a monologização de signos e objetos culturais polivalentes, como a educação, aescola ou a língua, e a alocação assimétrica de agência em relação aos atores representados nos discursos oficial e midiático sobre a educação escolar indígena.

educação escolar indígena; línguas indígenas; análise crítica do discurso; ensino-aprendizagem escolar de linguagens; política linguística


Upon the criticism over linguistic policies based on metadiscursive regimes of languages invented for their school transmission and upon the theoretical and methodological background of Critical Discourse Analysis, this paper aims at pointing out discursive obstacles to the differentiation of the Indigenous School Education and to the school appreciation of indigenous languages in Brazil. Through the analysis of a corpus composed by excerpts of the Brazilian Federal Constitution of 1988 and the Law of National Education of 1996, and by the report "For a differentiated school", by the TV program Globo Educação, the analysis points out two discursive obstacles: themonologization of cultural signs and objects, such aseducation, school or language, and the asymmetric allocation of agency to the actors represented in the official and media discourses on indigenous schooling.

indigenous school education; indigenous languages; critical discourse analysis; language teaching-learning; language policy


1 Introdução

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

(BRASIL, 1988, s/p.BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm >. Acesso em: 15 out. 2014.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
)

Art. 78. O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:

I - proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências.

(BRASIL, 1996, s/p.BRASIL. Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm >. Acesso em: 15 out. 2014.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
)

Como profissional e pesquisador envolvido na formação de professores indígenas, pergunto-me amiúde a respeito da viabilidade de uma educação escolar indígena, financiada pelo Estado e imersa na rede de ensino oficial brasileira, que seja, como pregam os documentos oficiais, diferenciada, intercultural e bilíngue. Questiono-me, além do mais, a respeito da viabilidade da preconizada valorizaçãodas línguas indígenas nessa modalidade educativa. Apesar de muitos indígenas e indigenistas defenderem a escola como um espaço de revitalização das culturas e línguas indígenas, são muitos os empecilhos que obstaculizam a verdadeiradiferenciação das escolas indígenas. Essa diferenciação consistiria na reinterpretação da instituição escolar com base nas cosmovisões indígenas e nas formas de organização social e "processos próprios de aprendizagem" (BRASIL, 1988, s/p.BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm >. Acesso em: 15 out. 2014.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
) dessas comunidades. Contudo, as escolas indígenas distam muito de ser aquilo que os indígenas querem para as suas comunidades. O presente trabalho busca apontar alguns obstáculos discursivos à diferenciação da educação escolar indígena, assim como à valorização das línguas indígenas dentro dela, propondo, nas suas considerações finais, vias para superação desses obstáculos.

Para abrir a reflexão, com base nos excertos acima, extraídos da Constituição Federal (CF) de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, importa refletir: O que é "a educação"? O que é "oEstado"? Que significados há por trás de "o pleno desenvolvimento da pessoa", "o exercício dacidadania" e "a qualificação para o trabalho"? Em que consiste "a recuperação de [suas] memórias históricas", "a reafirmação de [suas] identidades étnicas" e, particularmente, "a valorização de [suas] línguas"?

Para o filósofo da linguagem Gottlob Frege (apud HEIM; KRATZER, 1998MAGALHÃES, E. D. (Ed.) Legislação Indigenista Brasileira e normas correlatas Brasília FUNAI/CGDOC, 3ª ed. 2005.), o uso do artigo definido singular é permissível e compreensível apenas quando o conceito por ele definido faz referência a um único objeto. Ao falarmos para alguém "você falou com o professor?" assumimos que esse alguém está ciente de que estamos nos referindo a um único professor específico, ao qual de alguma forma já se fez referência anteriormente, isto é, já foi definido em momentos anteriores do texto/conversa ou em textos/conversas anteriores. De igual maneira, os excertos acima, ao fazerem referência a "a educação", "a sociedade", "o trabalho" ou "a valorização das [suas] línguas", fazem referência, em cada caso, a um único objeto relevante na interação semiótica. Os enunciadores desses textos não definem o que seja aeducação ou a valorização das línguas por assumirem que tais definições são desnecessárias para que os destinatários do texto compreendam ativamente os sentidos produzidos. Isso implica simultaneamente que os enunciadores pressupõem que os destinatários já tiveram acesso a outros textos em que esses objetos foram representados e definidos e que os definem da mesma forma que eles.

Segundo Bakhtin (2002, p. 86BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. 5ª ed. São Paulo: Hucitec, 2002. ), os objetos são construídos na relação dialógica com os discursos dos outros, isto é, em relação aos "discursos de outrem que já falaram sobre ele[s]". Concomitantemente, os objetos são construídos na relação dialógica com o "fundo aperceptivo" (BAKHTIN, 2002, p. 90BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. 5ª ed. São Paulo: Hucitec, 2002. ) que os enunciadores assumem nos seus destinatários. Com base em assunções no fundo aperceptivo dos destinatários, aguarda-se uma resposta compreensível, uma "compreensão ativa" que é "força essencial da formação do discurso" (BAKHTIN, 2002, p. 90BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. 5ª ed. São Paulo: Hucitec, 2002. ).

Por outro lado, as leis de comunicação semiótica com base nas quais os destinatários são capazes de compreender ativamente, nos termos bakhtinianos, o que nos excertos acima se pretende que "a educação" ou "avalorização das [suas] línguas" signifiquem são, para Bakhtin (2006), diretamente determinadas pelas leis sociais e econômicas, pelas relações de produção e pela estrutura sócio-política. Além disso, aponta Bakhtin (2006, p. 42), no processo de interação verbal existe uma "poderosa influência" exercida pela "organização hierarquizada das relações sociais sobre as formas de enunciação". Isso decorre do consenso na interação em torno dos signos linguísticos estar "marcado pelo horizonte social de uma época e de um grupo social determinados" (BAKHTIN, 2006, p. 43BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006. ).

As classes dominantes, no topo da organização hierárquica das relações sociais, tendem a conferir aos signos "um caráter intangível e acima das diferenças de classe, a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor que aí se trava" (BAKHTIN, 2006, p. 46BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006. ). As classes dominantes buscam, assim, tornar signos e objetos culturais que são de natureza dialógica e polivalente (isto é, que podem ser definidos de múltiplas e diversas maneiras, como, por exemplo, educação, escola oulíngua), em signos e objetos de natureza monológica e monovalente, com significados únicos, pretensamente universais. Neste trabalho, esse processo recebe o nome de monologização. Assim, nele pretendo abordar, como obstáculo discursivo à diferenciação da educação escolar indígena, por um lado, a monologização dos objetos relacionados àvalorização de línguas na ordem do discurso que configura essa modalidade educativa.

Por outro lado, este artigo pretende abordar, como obstáculo discursivo para a diferenciação da educação escolar indígena, a alocação assimétrica de agência em relação aos atores representados nos discursos oficial e midiático que dizem respeito à escola indígena1 1 Considero, para tanto, a definição de papéis temáticos da semântica formal, a qual os define como as relações entre eventos e seus protagonistas (cf. CHIERCHIA, 2003). . Essa alocação de agência pode ser observada, a modo de exemplo, no artigo 78 da LDB, citado no inicio desta introdução. Nele, "a União", através do seu "Sistema de Ensino", junto com os seus colaboradores "as agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios", ocupam os papéis temáticos com maior atribuição de agência no desenvolvimento de "programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural" aos povos indígenas. O artigo 78 da LDB atribui aos povos indígenas o papel temático de receptores ou pacientes em relação ao evento desenvolver, e, portanto, não é aos índios a quem é atribuído o papel de "proporcionar[...] a valorização de suas línguas" e, sim, ao Sistema de Ensino da União.

Destarte, o presente trabalho tem como objetivo apontar, através de uma análise crítica do discurso, dois problemas discursivos que obstaculizam a diferenciação da educação escolar indígena e a preconizada valorização escolar das línguas indígenas: em primeiro lugar, a monologização de signos e objetos culturais polivalentes, e, em segundo lugar, a alocação assimétrica de agência em relação aos atores representados nos discursos oficial e midiático a respeito desta modalidade educativa. Este trabalho tem como objetivo, igualmente, apontar para os traços interdiscursivos relacionados com esses obstáculos que é possível identificar entre os discursos oficial e midiático a respeito da escola indígena. Esses traços interdiscursivos podem ajudar a advertir possíveis vínculos entre os interesses do Estado e da mídia industrial de massas em relação à educação escolar indígena e à valorização escolar das línguas indígenas.

Em decorrência desses objetivos, levanto, na fundamentação teórica que se segue, críticas em relação à noção de língua que tem norteado as políticas devalorização de línguas em contextos indígenas. Para isso, articulo a noção de invenção de línguas de Makoni e Pennycook (2006)MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. Disinventing and Reconstituting Languages. In: MAKONI, S.e PENNYCOOK, A. (Ed.). In: Disinventing and Reconstituting Languages. Clevedon: Multilingual Matters, p. 1-4, 2006. à crítica de Errington (2001)ERRINGTON, J. Colonial Linguistics. In: Annual Review of Anthropology, v. 30, p. 19-39, 2001. à filologia europeia como dispositivo para tal invenção, assim como à crítica de Bakhtin (2006) em relação à abordagem da linguagem do objetivismo abstrato, favorecida por aquela. Finalmente, exemplifico em Calvet (2007)CALVET, L. J. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Ed, IPOL, 2007. a tradição das políticas linguísticas embasadas nessa perspectiva teórica. Aponto também para as "consequências insidiosas" (MAKONI; PENNYCOOK, 2006, p. 23MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. Disinventing and Reconstituting Languages. In: MAKONI, S.e PENNYCOOK, A. (Ed.). In: Disinventing and Reconstituting Languages. Clevedon: Multilingual Matters, p. 1-4, 2006. ) que essa visão de políticas linguísticas têm tido para os povos indígenas.

Na seção sobre metodologia que dá continuidade ao artigo, aponto alguns fundamentos teórico-metodológicos da análise crítica do discurso, através de Chouliaraki e Fairclough (1999)CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity. Edinburgh: Edinburgh UP, 1999. e Fairclough (2003). Posteriormente, desenvolvo a análise da conjuntura na qual se situam os discursos oficiais e midiáticos que serão abordados na análise dos dados, ou análise do discurso propriamente dita. O corpus para análise está composto dos seguintes textos: excertos2 2 Os excertos dos textos legais foram selecionados em função do seu caráter exemplar em relação às problematizações deste artigo, e a sua escolha foi antecedida por uma leitura extensiva e aprofundada dos documentos na sua totalidade, de modo que as considerações feitas sobre a análise dos excertos pode ser estendida ao todo dos textos sob análise. Os artigos incluídos no corpus são: artigos 205, 206, 208 e 210 da CF; artigos 1-6 e 78-79 da LDB. da Constituição Federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (instrumentos jurídicos que alicerçaram a configuração dos discursos oficiais sobre a educação escolar indígena diferenciada, intercultural e bilíngue) e a reportagem "Por uma escola diferenciada"3 3 POR UMA escola diferenciada. Globo Educação. Direção: Fernando Acquarone e Lao de Andrade. Apresentação: Helena Lara Resende. Rio de Janeiro, Rede Globo. Exibido em 23 jun. 2012. Publicado online em 27 abr. 2013, Disponível em: <http://globotv.globo.com/rede-globo/globo-educacao/v/por-uma-escola-diferenciada/2539724/> Acesso em: 15 out. 2014. , exibida em 23 de junho de 2012 pela Rede Globo no seu programa Globo Educação, e publicado na internet com data de 27 de abril de 2013.

Na análise de dados, categorizo, nos textos oficiais do corpus, objetos culturaismonologizados por meio do uso do artigo definido sem introdução ou definição prévia dos objetos, em função das ordens do discurso com que eles podem ser vinculados. Posteriormente, classifico os atores dos eventos representados nesses textos em função da agência que lhes é atribuída. Finalmente, aponto os traços interdiscursivos, na reportagem "Por uma escola diferenciada", relacionados à monologização de objetos culturais, através da identificação de semelhanças na reportagem entre as representações da escola diferenciada e a representação da escola monovalente, monologizada, ou escola padrão regular, não indígena. Aponto também os traços interdiscursivos de alocação assimétrica de agência entre os discursos legal e midiático analisando os papéis temáticos atribuídos aos atores representados na reportagem, na sua relação com aqueles identificados nos excertos dos textos legais. Nas considerações finais, sistematizo os apontamentos da análise, relacionando-os com a fundamentação teórica do trabalho, e sugiro orientações para superar os problemas discursivos nele abordados.

2 Fundamentação teórica

Para Makoni e Pennycook (2006)MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. Disinventing and Reconstituting Languages. In: MAKONI, S.e PENNYCOOK, A. (Ed.). In: Disinventing and Reconstituting Languages. Clevedon: Multilingual Matters, p. 1-4, 2006. , as línguas, as concepções de linguagem e as metalinguagens usadas para descrevê-las são invenções, e a sua enumeração, uma invenção a serviço da contenção e do controle. As línguas, no seu sentido mais literal, afirmam os autores, foram inventadas como parte dos projetos cristãos/coloniais nas diferentes partes do mundo. A noção ocidental de língua nasceu da filologia europeia, a qual desempenhou eficientemente o seu papel acadêmico de legislar as diferenças humanas e coloniais (ERRINGTON, 2001ERRINGTON, J. Colonial Linguistics. In: Annual Review of Anthropology, v. 30, p. 19-39, 2001.). A filologia europeia tomou o latim (paradigma de língua escrita, língua da Igreja Católica e da Ciência) como referência, como planilha para estudo das outras línguas (ERRINGTON, 2001ERRINGTON, J. Colonial Linguistics. In: Annual Review of Anthropology, v. 30, p. 19-39, 2001.).

Nesse sentido, Bakhtin (2006, p. 100) aponta que a concepção de língua que emana da reflexão linguística dessa filologia europeia, por ter como planilha o latim, é a de uma "língua morta-escrita-estrangeira", criada para codificar a língua a fim de adaptá-la às necessidades da sua transmissão escolar. Desse modo, a Linguística, para esse autor, "estuda as línguas vivas como se fossem mortas e a língua nativa como se fosse estrangeira" (BAKHTIN, 2006, p. 107BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006. ). Existem muitas e muito diversas concepções de língua(gem) emanando das reflexões linguísticas de múltiplas correntes da Linguística e da Linguística Aplicada na contemporaneidade. Todavia, podemos afirmar com Bakhtin que a concepção de língua mais sedimentada em função da monologização dos discursos sobre a(s) língua(s) é aquela própria do objetivismo abstrato.

Nas palavras de Bakhtin (2006, p. 79-82), o objetivismo abstrato representa a língua objetificada, como um sistema fechado, estruturado, "estável, imutável, de formas linguísticas submetidas a uma norma fornecida", sem vinculação com valores ideológicos. Tal sistema não seria mais que uma abstração, própria de uma visão de mundo racionalista e mecanicista:

A língua, como sistema de formas que remetem a uma norma, não passa de uma abstração, que só pode ser demonstrada no plano teórico e prático do ponto de vista do deciframento de uma língua morta e do seu ensino. Esse sistema não pode servir de base para a compreensão e explicação dos fatos linguísticos enquanto fatos vivos e em evolução. Ao contrário, ele nos distancia da realidade evolutiva e viva da língua e de suas funções sociais (BAKHTIN, 2006, p. 110BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006. )

A visão de língua como sistema fechado, normativo e abstrato exclui a concepção de "língua ideologicamente saturada [...] opinião concreta que garante um maximum de compreensão mútua, em todas as esferas da vida ideológica" (BAKHTIN, 2002, p. 81BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. 5ª ed. São Paulo: Hucitec, 2002. ). Tal representação ocidental de língua escolarizada não passa, na visão de Makoni e Pennycook (2006, p. 23-27MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. Disinventing and Reconstituting Languages. In: MAKONI, S.e PENNYCOOK, A. (Ed.). In: Disinventing and Reconstituting Languages. Clevedon: Multilingual Matters, p. 1-4, 2006. ), de um "regime metadiscursivo", uma "ficção inconveniente" que produz "visões particulares e limitantes de como a linguagem opera no mundo". Parte de um processo de violência epistêmica, a "invenção das línguas" tem tido "consequências insidiosas para os povos indígenas" (MAKONI; PENNYCOOK, 2006, p. 23MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. Disinventing and Reconstituting Languages. In: MAKONI, S.e PENNYCOOK, A. (Ed.). In: Disinventing and Reconstituting Languages. Clevedon: Multilingual Matters, p. 1-4, 2006. ).

As políticas linguísticas embasadas nos regimes metadiscursivos de línguas "inventadas", isto é, as políticas linguísticas com base no "objetivismo abstrato", podem ser identificadas na leitura de autores como Calvet (2007)CALVET, L. J. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Ed, IPOL, 2007. . Esse autor, com base em outros autores europeus e estadunidenses como Haugen ou Fishman, divide a política linguística em planejamento de status das línguas, ou seja, a intervenção normativa nas suas funções sociais, e de corpus, isto é, a intervenção nosistema das línguas, para que estas possam assumir as novas funções atribuídas. Para esse último fim, Calvet (2007, p. 62-67, grifo meuCALVET, L. J. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Ed, IPOL, 2007. ) aponta que é necessário às línguas "reduzir seus déficits, equipá-las para que possam desempenhar seu papel". Assim, o primeiro "estágio" desse equipamento seria "dar um sistema de escrita às línguas ágrafas". Outro estágio seria a criação de palavras ou neologismos: uma vez "determinadas as necessidades" erepertoriado o vocabulário existente chegaria a hora de "eventualmente melhorá-lo [...] e depois divulgá-lo sob a forma de dicionários terminológicos, de banco de dados, etc.". Outros estágios no equipamento das línguas seriam a sua padronização, a sua inclusão nos currículos escolares e "ambientes linguísticos", etc. Nessa empreitada, aponta Calvet (2007, p. 86CALVET, L. J. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Ed, IPOL, 2007. ), o papel do linguista é fundamental, pois é ele quem "pode indicar o que é tecnicamente possível fazer e o que será psicologicamente aceitável pelos falantes. Toda a arte da política e do planejamento linguísticos está nessa complementariedade necessária entre os cientistas e os decisores".

As políticas linguísticas embasadas nos regimes metadiscursivos de línguas inventadas constituem igualmente artefatos do pensamento europeu e são agentes (embora muitas vezes não intencionalmente) dos mesmos valores contra os quais buscam lutar (MAKONI; PENNYCOOK, 2006MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. Disinventing and Reconstituting Languages. In: MAKONI, S.e PENNYCOOK, A. (Ed.). In: Disinventing and Reconstituting Languages. Clevedon: Multilingual Matters, p. 1-4, 2006. ). Ao privilegiarem o conhecimento linguístico científico dos especialistas, a partir de mitos como a autonomia, a sistematicidade e a normatividade da língua, elas servem fundamentalmente à legitimação da regulação ou normatização vertical (FABIAN apud MAKONI; PENNYCOOK, 2006MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. Disinventing and Reconstituting Languages. In: MAKONI, S.e PENNYCOOK, A. (Ed.). In: Disinventing and Reconstituting Languages. Clevedon: Multilingual Matters, p. 1-4, 2006. ) e, em definitiva, à legitimação e à reprodução da autoridade. Consequentemente, a desinvenção e a reconstrução dos discursos a respeito das línguas em contextos indígenas, dentre outros, se torna indispensável, uma vez que existe um desencontro entre os problemas relacionados com a linguagem nesses contextos e as línguas que são promovidas como solução:

O discurso mais amplo sobre indigenismo e preservação linguística, por exemplo, emerge de um conjunto de construções particulares sobre os indígenas e as línguas que, com frequência, não dão conta dos problemas atuais enfrentados por pessoas desfavorecidas no mundo contemporâneo (POVINELLI apud MAKONI; PENNYCOOK, 2006, p. 3MAKONI, S.; PENNYCOOK, A. Disinventing and Reconstituting Languages. In: MAKONI, S.e PENNYCOOK, A. (Ed.). In: Disinventing and Reconstituting Languages. Clevedon: Multilingual Matters, p. 1-4, 2006. )

Os discursos oficial e midiático a respeito da educação escolar indígena e davalorização das línguas dentro desta modalidade educativa representam políticas linguísticas embasadas em regimes metadiscursivos sobre as línguas, conforme será apontado na análise. Antes desses apontamentos, no entanto, levanto algumas considerações teórico-metodológicas da análise crítica do discurso. Essa abordagem constitui um olhar alternativo em relação aos fenômenos linguístico-discursivos, e as suas orientações metodológicas servirão de pauta para a análise de dados neste trabalho.

3 Metodologia

Chouliaraki e Fairclough (1999)CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity. Edinburgh: Edinburgh UP, 1999. identificam o discurso como um dos elementos das práticas sociais das comunidades sociodiscursivas. O discurso encontra-se articulado de forma dialógica com os outros elementos das práticas sociais (quais sejam, poder, relações sociais, atividades materiais, instituições/rituais e crenças/valores/desejos), de modo a determiná-los e ser determinado por eles. Na vida social, as práticas constituem modos habituais de ação conjunta, vinculados a espaços e tempos específicos. Nelas, os elementos acima mencionados se articulam com base em permanências relativas com tendência à estabilidade (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity. Edinburgh: Edinburgh UP, 1999. ).

As práticas ganham existência material e histórica por meio dos eventos, acontecimentos imediatos, individuais, instanciações concretas e singulares, e medeiam a relação entre eventos e estruturas (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. : Textual analysis for social research. London: Routledge, 2003. ). As estruturas, por sua vez, são entidades abstratas que definem e excluem potencialidades, conjuntos de possibilidades que servem tanto como recursos a partir de cuja apropriação e rearticulação os sujeitos agem quanto como limites que constrangem sua agência. A relação entre eventos, práticas e estruturas é de articulação dialógica e, portanto, transformações nos eventos podem derivar em transformações nas práticas e, consequentemente, nas estruturas.

Para Fairclough (2003), a semiose de forma geral, e o discurso de forma particular, constituem elementos tanto das estruturas (em forma de línguas) como das práticas (em forma de ordens do discurso) e dos eventos (em forma de textos). As ordens do discurso são o equivalente linguístico das práticas sociais, a estruturação social da diversidade semiótica, ordens sociais particulares de relações entre formas de produzir significados em diversas esferas de interação humana (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity. Edinburgh: Edinburgh UP, 1999. ). As ordens do discurso favorecem a estabilidade nas interações de certas representações das práticas sociais (discursos), de certos padrões de interação discursiva (gêneros) e de certos papéis sociais possíveis (estilos) (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. : Textual analysis for social research. London: Routledge, 2003. ). A educação escolar indígena diferenciada, intercultural e bilíngue é abordada neste trabalho como uma ordem do discurso.

Por outro lado, em relação às orientações metodológicas para análises discursivas,Chouliaraki e Fairclough (1999)CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity. Edinburgh: Edinburgh UP, 1999. sugerem que, uma vez identificado o problema discursivo que será tematizado na análise (identificado, no nosso caso, na introdução deste trabalho), devem ser analisados os obstáculos à sua resolução através de três tipos de análise: a análise da conjuntura orienta-se à configuração da rede de práticas na qual se situam os discursos que serão abordados; por sua vez, a análise da prática ou práticas particulares das quais o discurso em análise constitui um elemento presta atenção especial à relação dialógica entre o discurso e os outros elementos da prática (poder, relações sociais, práticas materiais, instituições/rituais e crenças/valores/desejos); finalmente, a análise do discurso propriamente dita orienta-se à estrutura e à interação, aos recursos das diferentes ordens do discurso que possibilitam e restringem a interação, assim como ao modo em que esses recursos são trabalhados interativamente. A análise do discurso precisa observar com especial atenção o interdiscurso e a sua realização na linguagem.

Neste sentido, a minha análise será exposta da seguinte forma: Após a análise da conjuntura e da prática, desenvolvidas de forma conjunta na próxima seção, analiso, na seção subsequente, a monologização de objetos culturais através do uso do artigo definido sem introdução prévia desses objetos nos textos oficiais. Observo, em seguida, os papéis temáticos dos eventos representados nos excertos desses textos em função da agência que lhes é atribuída. Finalmente, aponto os traços interdiscursivos relacionados com esses obstáculos que é possível identificar na reportagem "Por uma escola diferenciada", do programa Globo Educação.

4 Análise da conjuntura

Como um novo estágio de uma tradição de longa data (cf. SANTOS, 1975SANTOS, S. C. D. Educação e sociedades tribais. Porto Alegre: Movimento, 1975.), a ordem do discurso da educação escolar indígena diferenciada, intercultural e bilíngue encontra sua fundamentação legal na CF de 1988 e na LDB de 1996, assim como em outras leis, resoluções, diretrizes e pareceres específicos4 4 Cf. o capítulo 9 da coletânea Legislação Indigenista Brasileira e normas correlatas (MAGALHÃES, 2005). . Esses instrumentos fundamentam o discurso oficial que rege as práticas sociais da educação escolar indígena contemporânea no Brasil. Tais práticas são instanciadas por meio dos eventos e textos do dia a dia nas escolas das comunidades indígenas, nos cursos de formação de professores nas universidades, e em outras instâncias federais (Ministério da Educação, FUNAI), estaduais (secretarias e gerências regionais de Educação) e municipais (secretarias de Educação) que têm algum tipo de envolvimento no funcionamento dessas escolas.

Desenvolvendo mais um texto nessa conjuntura geral, faço neste artigo uma análise crítica do discurso através de excertos de dois textos oficiais e um texto da mídia industrial de massas sobre educação escolar indígena. Tais textos instanciam discursos que emergem em práticas sociais de esferas oficiais do âmbito educacional, legislativo e executivo, como a Presidência da República e o Congresso Nacional, e de esferas empresariais do âmbito da indústria de comunicação de massas, como a Rede Globo.

Na análise dessa rede concreta de práticas sociais, é possível afirmar que, apesar dos avanços dos últimos anos, a distribuição de poder no Brasil continua incontestavelmente assimétrica. Essa assimetria é (re)produzida nas estruturas criadas pela desigual distribuição de recursos econômicos, próprias da globalização neoliberal contemporânea e da história do imperialismo capitalista no país. Cercadas por essas estruturas, as práticas materiais articuladas com a ordem do discurso da educação escolar indígena encontram-se consequentemente governadas pela economia capitalista. Para muitas comunidades indígenas, tal governança econômica faz com que a escola tenha passado a se constituir tanto numa obrigação humana universal quanto num direito humano intercultural (GUEROLA, 2012SANTOS, S. C. D. Educação e sociedades tribais. Porto Alegre: Movimento, 1975.), tendo os indígenas se apropriado dela como arma de luta, de resistência e de sobrevivência. Isso decorre, igualmente, da violação do artigo 231 da CF, que reconhece os direitos indígenas. Essa violação tem resultado no desrespeito à "preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e necessários a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições" (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm >. Acesso em: 15 out. 2014.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
, s/p.).

Ao longo dos últimos anos, o perene conflito entre indígenas e latifundiários, hoje encarnados por empresários do agronegócio e os seus aliados governamentais, vem acirrando-se. Organizações indigenistas, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), identificam "setores político-econômicos anti-indígenas e antidemocráticos, representantes do agronegócio, das mineradoras, das grandes empreiteiras e o próprio governo brasileiro"5 5 Conjuntura político-indigenista no Brasil: enfrentamento ou retrocesso? Instituto Humanitas Unisinos. Notícias. 04 abr. 2013. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/519029-conjuntura-politico-indigenista-no-brasil-enfrentamento-ou-retrocesso>. Acesso em: 15 out. 2014. articulados e empenhados em ampliar o seu acesso, controle e exploração dos territórios indígenas, quilombolas, de preservação ambiental, e de todos aqueles territórios ainda alheios à exploração do capital e do lucro. Esses setores estão promovendo a aprovação de diversos instrumentos político-administrativos, judiciais e legislativos para dificultar ou impossibilitar a demarcação de terras indígenas, como as Propostas de Emenda Constitucional 215/00, 038/99 ou 237/13, dentre outros, e a paralisação da já escassa demarcação de territórios de ocupação tradicional; estratégias essas que estão colocando em risco os já muito massacrados direitos indígenas.

Por outro lado, a violência estatal contra os povos indígenas tem sido exemplificada recentemente, dentre muitos outros casos, na construção da Usina de Belo Monte ou do Complexo Hidrelétrico do Tapajós, na demolição da aldeia Maracanã pelos interesses especulativos ligados à Copa do Mundo de futebol, ou na violência contra as comunidades Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Em todos esses casos, o Estado tem agido violentamente em defesa dos grupos econômicos contrários aos interesses indígenas e, de modo geral, em defesa do modelo capitalista de especulação financeira6 6 A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, APIB, em Carta Pública entregue à presidenta da República Dilma Rousseff, com data de 10 de julho de 2013, confirma o seu rechaço à "forma como o governo quer viabilizar o modelo de desenvolvimento priorizado, implantando a qualquer custo, nos nossos territórios, obras de infraestrutura nas áreas de transporte e geração de energia, tais como, rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, usinas hidroelétricas, linhas de transmissão, desrespeitando a nossa visão de mundo, a nossa forma peculiar de nos relacionar com a Mãe Natureza, os nossos direitos originários e fundamentais, assegurados pela Carta Magna, a Convenção 169 e a Declaração da ONU". Carta Pública dos Povos Indígenas do Brasil à presidenta da República Dilma. APIB. Disponível em: <http://blogapib.blogspot.com/>. Acesso em: 15 out. 2014. . Conforme levantamentos do CIMI7 7 Violências contra os povos indígenas aumentaram em 2012, aponta o CIMI. Brasil de Fato. 27 jun. 2013. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/node/13367>. Acesso em: 15 out. 2014. , ao menos 560 indígenas foram assassinados no Brasil nos últimos 10 anos, em decorrência de conflitos fundiários. Como consequência dessa configuração de poder e violência no país, as relações sociais e práticas materiais, instituições, rituais, crenças, valores e desejos das comunidades indígenas têm sofrido uma transformação progressiva, igualmente violenta. Essa transformação tem provocado, por sua vez, transformações nas suas línguas, discursos, gêneros e textos. Os textos analisados na seção a seguir situam-se na configuração violenta da rede de práticas sociais na qual os indígenas resistem e dissidiam no Brasil do século XXI.

5 Análise de dados

Três tipos de objetos foram categorizados nos textos oficiais do corpus observando a sua monologização por meio do uso do artigo definido sem terem sido previamente introduzidos ou definidos nos textos. Essa identificação foi feita em função das ordens do discurso com que é possível relacioná-los. Em primeiro lugar, foi possível identificar objetos definidos, não introduzidos anteriormente no texto, pertencentes à ordem do discurso legal:

Art. 5º. [...] § 2º Em todas as esferas administrativas, o Poder Público assegurará em primeiro lugar o acesso ao ensino obrigatório, nos termos deste artigo [...]

§ 3º Qualquer das partes mencionadas no caput deste artigotem legitimidade para peticionar no Poder Judiciário, na hipótese do § 2º do art. 208 da Constituição Federal, sendo gratuita e de rito sumário a ação judicial correspondente.

§ 4º Comprovada a negligência da autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade.

()

Nesses excertos, podemos identificar objetos definidos não introduzidos anteriormente no texto por pertencerem à ordem do discurso legal tais como "o Poder Público", "o caput deste artigo", "o poder judiciário", "o § 2º do art. 208 d/a Constituição Federal", "a ação judicial correspondente" e "a negligência d/a autoridade competente". Outros exemplos encontrados no corpus são: "a lei", "a forma desta Lei", "a União", "o Distrito Federal" ou "o Ministério Público".

Em segundo lugar, foi possível identificar objetos definidos, não introduzidos anteriormente no texto, pertencentes à ordem do discurso escolar:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

[...] II - progressiva universalização do ensino médio gratuito;

III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;

[...] V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;

[...] § 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.

()

Nesses excertos, podemos identificar objetos definidos, não introduzidos anteriormente no texto por pertencerem à ordem do discurso escolar, tais como "a educação", "o ensino médio gratuito", "a rede regular de ensino", "o ensino", "a pesquisa", "a chamada" e "a frequência /à escola". Outros exemplos encontrados no corpus são: "o acesso e permanência na escola", "o profissional d/a educação escolar", "a legislação dos sistemas de ensino", "a experiência extraescolar", "o cumprimento da obrigatoriedade de ensino" ou "a matrícula das crianças n/a educação básica", dentre outros.

Os mais numerosos no corpus, contudo, são os objetos do terceiro tipo, isto é, os objetos definidos, não introduzidos anteriormente no texto, não pertencentes a uma ordem do discurso específica, e sim a uma ordem do discurso que denomino geral-universalizante:

Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.

Art. 2º A educação, dever da família e do Estado [...] tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

()

Nos excertos acima, encontramos exemplos deste terceiro tipo em "a vida familiar", "a convivência humana", "o trabalho", "a família", "o Estado", "o pleno desenvolvimento do educando" e "o exercício d/a cidadania". Outros exemplos encontrados no corpus são: "o pensamento", "a arte", "o saber", "a pesquisa", "a saúde", "a cultura", "a liberdade", "a tolerância", "a diversidade étnico-racial", "a recuperação de suas memórias históricas", "a reafirmação de suas identidades étnicas", "a valorização de suas línguas e ciências" ou "a sociedade".

A não introdução prévia nos textos dos objetos listados nas três categorias acima pode estar relacionada ao seu enquadramento em ordens do discurso pretensamente universais. O fato de os objetos não serem introduzidos de forma prévia ao seu uso com artigo definido implica que os enunciadores assumem no fundo aperceptivo dos destinatários (virtualmente todos os cidadãos brasileiros, por se tratar da Constituição Federal e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) uma única representação monovalente desses objetos. Assume-se, por exemplo, uma única representação monovalente de objetos da ordem do discurso legal, como "a Constituição Federal" ou "o Distrito Federal", no fundo aperceptivo de virtualmente todos os cidadãos e cidadãs brasileiros (incluídos os indígenas): Assume-se que todos eles pensam no mesmo documento quando ouvem "a Constituição Federal", e no mesmo espaço geográfico quando ouvem "o Distrito Federal".

Em relação às outras duas ordens do discurso, constitui-se num problema discursivo assumir que os destinatários indígenas dessas leis (as quais haverão de obedecer e fazer cumprir) têm no seu fundo aperceptivo uma única representação monovalente de objetos altamente dialógicos e polivalentes, como "a convivência humana", "a sociedade", "o trabalho", "a família", "o pensamento", "a arte", "a liberdade", "a tolerância", "a diversidade étnico-racial", "a recuperação de memórias históricas", "a reafirmação de identidades étnicas" ou "a valorização de línguas e ciências". Nos atores da escola indígena diferenciada, destinatários dos excertos selecionados para o corpus, os enunciadores assumem também uma única representação monovalente de objetos que já se pressupõem não diferenciados, ligados à ordem do discurso escolar não diferenciada. Isso ocorre com a representação monovalente no discurso oficial de "a educação", "o ensino", "a escola" ou "a chamada". Compartilham todos os destinatários, indígenas e não indígenas, a mesma representação desses objetos nos seus fundos aperceptivos? Que sentido faz uma educação diferenciadase se assumir que os indígenas representam a educação nos seus fundos aperceptivos de uma única forma, se se assumir que a educação tem apenas um único significado?

No que diz respeito à agência atribuída aos atores da educação escolar indígena nos eventos representados no corpus, em primeiro lugar os atores foram classificados em "instituições" (como "o Estado" ou "a União"), "instrumentos" (como "a Lei" ou "os Cursos de formação de professores indígenas") e "(conjuntos de) indivíduos" (como "os Pais ou responsáveis" ou "os Alunos indígenas"). Desconsiderados os atores classificados como "instrumentos", por não se tratar propriamente deatores, foram identificados três graus de agência:+agente (agentes dos eventos), -agente(colaboradores dos eventos) e --agente (receptores dos eventos). Seguem os atores encontrados em cada uma das categorias:

Observemos a relação entre agência e papéis temáticos nos eventos representados nos artigos da LDB incluídos a seguir:

Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa.

§ 1º Os programas serão planejados com audiência das comunidades indígenas.

[...] § 3º No que se refere à educação superior, sem prejuízo de outras ações, o atendimento aos povos indígenas efetivar-se-á, nas universidades públicas e privadas, mediante a oferta de ensino e de assistência estudantil, assim como de estímulo à pesquisa e desenvolvimento de programas especiais.

(BRASIL, 1996: s/p.)

Nos artigos acima, o ator a quem é atribuído o papel temático com o grau+agência é a União (apoiará). Os atores (instituições e conjuntos de indivíduos) a quem é atribuído o papel temático com o grau-agência são as comunidades indígenas (com audiência de) e as universidades públicas e privadas (em). Finalmente, os atores a quem é atribuído o papel temático com o grau --agência são os povos indígenas (atendimento a) e as comunidades indígenas (provimento a).

Nos textos oficiais analisados, é significativa a assimetria na atribuição de agência às instituições governamentais e aos indígenas. Assim, instituições governamentais como a União, o Estado, o poder público ou a autoridade competente recebem o grau+agente em numerosos eventos (como, por exemplo, "Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola"). Nos excertos do corpus, os indígenas nunca recebem o papel temático de +agência.Antes, aos indígenas é atribuído fundamentalmente o grau --agente,representados como receptores dos eventos. Assim ocorre, por exemplo, em "O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem". Vejam como, de acordo com esta atribuição de --agência, o agente do evento ministrar não são "as comunidades indígenas", uma vez que elas são textualizadas como receptoras do evento.

Essa atribuição assimétrica de agência no discurso oficial a respeito da educação escolar indígena também constitui um obstáculo à diferenciação da escola indígena, pois a agência no processo é colocada nas instituições oficiais e não nas comunidades indígenas, às quais é atribuído apenas o papel de--agente, recebendo das mãos do Estado uma educaçãodiferenciada não planejada pelas comunidades, e sim pelo Estadoem audiência com elas.

Dou continuidade à análise identificando a seguir os traços interdiscursivos relativos à monologização de objetos culturais e alocação assimétrica de agência na reportagem "Por uma escola diferenciada", do programa Globo Educação8 8 A sinopse do programa Globo Educação (conforme texto da produtora do programa em <http://www.animalucis.com.br/colaboracoes/46>, acesso em: 15 out. 2014), é o seguinte: "De olho na meta mundial de educar a todos, estabelecida na Conferência Mundial sobre Educação para Todos na Tailândia em 1990, o Brasil busca os meios para fazer a sua parte. O programa Globo Educação espera contribuir para a discussão dos grandes desafios e dificuldades que a educação básica enfrenta no país. Toda semana mostra um exemplo, uma escola, que tenha encontrado uma maneira criativa de superar deficiências e falta de recursos para melhor atender seus estudantes. Exibe experiências escolares de diretores, professores, pais e alunos felizes ao enfrentar a realidade de suas comunidades. Como uma revista, o programa - dividido em quadros - aborda assuntos e questões de educação." . Na reportagem, é possível identificar traços interdiscursivos já na primeira cena, na qual a voz é dada a um pesquisador (estilo da ordem do discurso acadêmico e científico) que dá o seu depoimento em português. Simultaneamente, são incluídas imagens que contribuem para a representação monologizada de escola e que levam o espectador a identificar a escola indígena, diferenciada,com a escola regular de contextos urbanos: Imagens do prédio escolar de alvenaria antecedem imagens de crianças comendo a merenda nas mesas da escola, assim como imagens com desenhos em folhas de papel coladas num mural, com palavras em língua indígena9 9 Ao longo da reportagem, são feitas menções apenas ao nome da escola e ao nome da aldeia, não à etnia ou à(s) língua(s) dos participantes. ; mais tarde, imagens de um professor escrevendo em língua indígena no quadro negro antecedem imagens de uma turma de alunas, sentadas em carteiras, de caneta em mão e caderno sobre a mesa, copiando o texto do professor. Imagens do pesquisador dando o seu depoimento são intercaladas, simultaneamente, até o seu encerramento.

A cena que dá continuidade à reportagem é significativa no que diz respeito à agência. A repórter do programa dirige-se, de costas para a câmera, a um grupo de três crianças, com idades por volta dos sete anos, que aguardam sentadas. Segue o diálogo que a repórter mantém, em português, com as crianças10 10 Na reportagem sob análise, as intervenções dos participantes são entendidas como textos bivocais, uma vez que os depoimentos foram editados por terceiros para a reportagem final. Para Bakhtin (2002, p. 127), o discurso bivocal "serve simultaneamente a dois locutores e exprime ao mesmo tempo duas intenções diferentes: a intenção direta do personagem que fala e a intenção refrangida do autor". , no qual são grifados os recursos que apontam agência:

Repórter: Oi meninos, tudo bom?

Crianças: Tudo

R: Eu notei que vocês tavam super interessados na gravação, né?

C: Ahã.

R: Gostaram?

C: Sim.

R: Tenho uma proposta, querem ouvir? Querem fazeruma equipe de reportagem, indígena?

C: Sim.

R: Então é o seguinte: eu preciso de um câmera. Quem vai ser o câmera? Você vai ligar aqui ô, enquadra lá o Jussemar. Adriano vem cá, vem pra cá, fica aqui do lado dele. Você é o repórter,senta aqui. Vocês vão entrevistarcrianças e pessoas mais velhas da comunidade. Vai lá, repórter, vai lá.

Neste diálogo, a repórter frisa a sua agência representando-se como descobridora do interesse das crianças ("Eu notei que vocês tavam super interessados"). Importa enfatizar aqui a diferença entre essa representação e outras possíveis como, por exemplo, as crianças andando em direção à repórter para exigirem a sua participação na reportagem, de modo que a sua agência fosse frisada na fala "Notamos que vocês estão fazendo uma reportagem e queremos saber o motivo, e a autorizaremos e participaremos nela se, no resultado final, a representação que se fizer de nós estiver de acordo com os interesses da comunidade". Essa frase soaria artificial quiçá na boca de uma criança de sete anos, mas não cabe esquecer que tais cenas são encenações e como tais, são teatralizadas. Cabe ainda enfatizar que é a repórter quem tem uma proposta, e as crianças são quem aceitam fazer uma reportagemindígena. Finalmente cabe notar como, após as crianças mostrarem a sua concordância, é a repórter quem assume a direção da reportagemindígena, e começa a dar ordens, determinando os papéis na reportagem, quem desempenhará tais papéis e o tema da mesma: Então é o seguinte: eu preciso...; você vai ligar...; enquadra lá; Adriano vem cá, vem pra cá, fica aqui; Você é o repórter, senta aqui; Vocês vão entrevistar; Vai lá, etc.

É então que as crianças se dirigem às lideranças mais velhas. Ao longo da entrevista feita por elas, aparece intermitentemente na filmagem um quadro que simula odisplay de uma câmera filmadora, com o fim de relembrar ao espectador que é um indígena quem está filmando a reportagem, numa simulação de atribuição de +agência.

Na entrevista, de novo em português, chamam a atenção tanto as perguntas quanto as respostas:

Criança: Como que era a sua escola antes quando você estudava?

Liderança: Bem antigamente, o índio estudava embaixo de árvore,beeem antigamente. Depois que a gente passou a ser... a ter a aldeia da comunidade. Depois que fizemos a escolinha, né.

C: E hoje em dia o senhor acompanha o estudo dos seus netos?

L: Acompanho né, tem que acompanhar por causa das notas, né.

A primeira pergunta da entrevista sugere aparentemente o desconhecimento da criança-repórter a respeito de se o cacique da sua comunidade (identificado como "cacique aldeia Ekeruá"11 11 A aldeia Ekeruá encontra-se localizada na reserva indígena de Araribá, no município de Avai, no Centro Oeste paulista, e é habitada por comunidades Terena e Guarani. ) frequentou a escola, ou de se havia escola ou não na aldeia no tempo dele. Essa pergunta sugere que as crianças indígenas, igual às não indígenas, naturalizaram a presença da escola na comunidade até o ponto de assumir que ela sempre esteve lá. Outros elementos que aproximam a representação da educaçãodiferenciada daquela da escola não diferenciada são a avaliação por notas ("tem que acompanhar por causa das notas") e a seriação, algumas das crianças participantes sendo identificadas através da série, como "4º ano do ensino fundamental" ou "5º ano do ensino fundamental".

Na sequência da cena recém-relatada, a equipe de crianças da reportagemindígena entrevista, em português, uma aluna colega da escola, obedecendo às ordens da repórter-diretora ("Vocês vão entrevistar crianças e pessoas mais velhas da comunidade"):

Repórter: O que você acha da escola?

Aluna: Legal.

R: Por que é legal?

A: Porque tem tudo que a gente quer... material.

R: Que matéria você gosta mais?

A: Matemática

A edição final da entrevista transcrita acima destaca a importânciamaterial da escola indígena ("tem tudo que a gente quer... material") e a sua disciplinarização curricular ("Que matéria você gosta mais? Matemática"). Esse diálogo é encerrado com a apresentação através de um gráfico escrito da estrutura administrativa da escola, com os cargos próprios da escola não diferenciada: "1 Diretor, 8 professores, 2 funcionários, 28 alunos".

Após mostrar imagens do prédio escolar e de outros alunos sentados nos bancos das salas de aula (copiando, em silêncio, nos seus cadernos), a+agência simulada dos repórteres indígenas é dispensada no último terço da reportagem, no qual a repórter do programa retoma o seu papel, entrevistando, em português, dois professores da escola, identificados como a "Vice-Diretora da Escola" e "Professor Indígena". Segue a transcrição do corte das entrevistas incluídas na reportagem:

Repórter: Qual o projeto político pedagógico da sua escola?

Vice-diretora: A minha escola ela tem o projeto de todas as escolas estaduais, mas com a diferença por causa da escola indígena diferenciada que abrange a cultura, os costumes, poder você tirar o aluno da sala de aula pra você fazer uma pescaria, pra você ensinar os costumes. Então ele é igual a todos do estado, mas com essa diferença da cultura.

Repórter: E como essa cultura é trabalhada no dia a dia?

V: Então... a gente tem um professor de oficina, aonde ele ensina religião, né, os costumes, a fazer o artesanato, né, a língua, a falar a língua, a manter a língua, o resgate da língua. Não só esse professor de oficina, mas também a gente insere as pessoas mais velhas. [No momento em que a professora faz referência à língua, são intercaladas imagens de um professor indígena escrevendo com giz um texto em língua indígena no quadro negro, e crianças copiando nos seus cadernos, para depois mostrar a imagem de uma anciã indígena.]

R: As crianças que se formaram na escola indígena aqui na sua escola no ensino fundamental dois, e vão pro ensino médio na escola da cidade, tem um bom desempenho?

V: Primeiro ano que a gente pegou por ciclo, a gente teve um pouco de dificuldade. Uma porque os professores não tem formação, né. Formados da minha aldeia tenho só dois professores, formação específica para a escola indígena.

R: São quantos professores ao todo na escola?

V: São nove, nove professores ao todo na minha escola. Então, são só dois.

R: Então de nove, dois têm formação.

V: Dois têm formação específica.

R: Para atuar na escola indígena, é necessário que esse professor seja da aldeia onde a escola esteja...

V: Isso.

R: ... localizada?

V: Que seja da comunidade e que seja da etnia.

Repórter: Tiago, por que não existe uma escola indígena de ensino médio aqui na região?

Professor: Pelo fato de ainda os professores não estarem capacitados. Mas assim, é vontade dos pais da comunidade que a escola... o aluno só saia da escola indígena depois de concluir o ensino médio.

Nesta transcrição é possível identificar outras representações que aproximam a escola indígena da escola monologizada ("A minha escola ela tem o projeto de todas as escolas estaduais", "ele é igual a todos do estado"). No que diz respeito àcultura e à língua, a primeira aparece representada, na fala da professora, como uma diferença vinculada aos costumes ("a diferença por causa da escola indígena diferenciada que abrange a cultura, os costumes", "essa diferença da cultura"), a qual é "trabalhada no dia a dia" através do trabalho de um "professor de oficina", que ensina religião, costumes, o artesanato e a língua, junto com as pessoas mais velhas da comunidade. Tal professor também ensina "a língua, a falar a língua, a manter a língua, o resgate da língua", através de práticas como as mostradas nas imagens que acompanham a fala da professora entrevistada, em que a língua indígena é escrita por um professor no quadro, e copiada pelos alunos nos cadernos.

Outras aproximações à representação monovalente de escola são as menções a "crianças que se formaram", "ensino fundamental", "ensino médio", "ciclos" ou "bom desempenho". A ênfase no final da reportagem é dada, com saliência, à formação dos professores, o que pode ser relacionado ao grau --agência, pois, se eles não têm formação, é porque deles mesmos não podem recebê-la, dependendo para tal de uma instituição formadora +agente ("Os professores não tem formação", "Formados da minha aldeia tenho só dois professores, formação específica para a escola indígena", "de nove, dois têm formação", "dois têm formação específica", "Pelo fato de ainda os professores não estarem capacitados").

É possível identificar nos dados, portanto, abundantes traços interdiscursivos entre discursos produzidos em diferentes esferas, quais sejam, a esfera legislativa e governamental e a esfera da comunicação industrial de massas. Esses traços foram identificados a partir das categorias centrais de análise do corpus: Em primeiro lugar, a monologização dos objetos, isto é, a sua representação como monovalentes, quer através do uso do artigo definido com objetos não introduzidos ou definidos previamente nos textos, quer através das aproximações na reportagem entre as representações da escola diferenciada e a representação da escola monovalente, monologizada, ou escola padrão regular, não indígena. Em segundo lugar, foi observada a agência atribuída aos protagonistas ou atores dos eventos textualizados nos excertos das leis do corpus e também aquela atribuída aos participantes da reportagem.

Na próxima seção apresento as considerações finais sobre a análise, nas quais aponto, conforme as orientações de Chouliaraki e Fairclough (1999)CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in Late Modernity. Edinburgh: Edinburgh UP, 1999. , orientações possíveis para vencer os obstáculos identificados nesta análise crítica.

6 Considerações finais

As classes dominantes buscam monologizar os discursos, determinar nos signos, constitutivamente ideológicos, "um caráter intangível [...] a fim de abafar ou de ocultar a luta dos índices sociais de valor" que se trava neles (BAKHTIN, 2006, p. 46BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006. ). Em português, uma das estratégias para determinar nos signos um caráter monovalente é textualizá-los através do artigo definido sem introduzi-los previamente no texto, assumindo que tal introdução prévia pode ser dispensada. Ao prever, apesar da dispensa, uma "compreensão ativa" (BAKHTIN, 2002, p. 90BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. 5ª ed. São Paulo: Hucitec, 2002. ) por parte dos destinatários, essa dispensa pressupõe no fundo aperceptivo dos destinatários um único significado para os signos definidos, uma única representação relevante desses objetos na interação. Uma única representação relevante dos objetoseducação, escola, língua, liberdade oudiversidade, dentre tantos outros.

Assim, na análise de textos oficiais, foi possível constatar uma representação monovalente de objetos culturais, através do artigo definido sem introdução prévia no discurso, por esses objetos serem enquadrados nas ordens do discurso escolar, legal e geral-universalizante. Para assumirem a compreensão ativa dos destinatários, os enunciadores precisam imaginar que os signos e objetos dessas ordens do discurso dispensam introdução por serem pretensamente monovalentes e alheios a diferenças culturais. É a partir da discursivização monovalente desses objetos dialógicos, considerados pertencentes não a uma cultura particular, e sim a uma culturade todos, da humanidade, que se diferencia a escola indígena intercultural. Tal diferenciação desenvolve-se dentro dos rígidos moldes impostos pela monologização histórica e presente dos discursos sobre o direito/obrigação humana à educação, intimamente ligados à escola.

Em linha com esse problema discursivo, na reportagem foi possível observar a representação de múltiplas semelhanças entre a escola diferenciadae a escola (monologizada, não-diferenciada), semelhanças que, nos discursos oficial e midiático, dispensam diferenciação. Tendo um único significado, uma única representação relevante na interação, a monologização dea escola, diferenciada e não diferenciada, naturaliza muitas das suas características. Assim, a escola diferenciada também tem um prédio; nesse prédio há cadeiras, mesas, professores que escrevem em quadros e alunos que copiam, calados, caneta em mão, nos seus cadernos; funcionários, diretor, projeto político pedagógico, ciclos, conhecimento disciplinarizado e alunos agrupados por idades em diferentes séries. Esse modelo institucionalizado de ensino, a educação (a educação escolar, frisam os indígenas), não é representado no corpus como cultural, uma vez que é possível que a partir dele existam escolas "igual a todos do estado, mas com essa diferença da cultura". A escola não indígena não teria, nessa visão, nenhuma "diferença da cultura". A cultura, na ordem do discurso da educação escolar indígena, aparece comumente representada como um conteúdo curricular adicional, ensinado por professores e lideranças mais velhas em atividades no contexto escolar.

Essa monologização faz com que a ordem do discurso da escola indígena diferenciada assuma como próprios outros traços interdiscursivos tomados da ordem do discurso da educação escolar não diferenciada, tais como: os estilos (professor, aluno, diretor, outros servidores, técnicos), os discursos (dos livros, dos materiais didáticos, dos cursos de formação), os gêneros (apresentações, ditados, redações, trabalhos, aulas, atas, ofícios, chamadas, contracheques, cardápios escolares), as atividades materiais (sala de aula, quadro, cadernos, caneta, computadores, fones de ouvido, televisões, câmeras filmadoras, horários, calendários, férias, salários), as instituições (secretarias estaduais, gerências regionais, universidades), os rituais (aula, formatura, semana cultural, congresso, evento) e as relações sociais e as tensões de poder entre elas (professor/aluno, diretor/professor, técnico/professor, professores/outros servidores, professor com formação/professor sem formação, formador/formando, docentes/discentes, empregador/empregado, orientador/bolsista, escolarizado/não-escolarizado, etc.). Tal configuração de elementos das práticas sociais sobredetermina dialeticamente os eventos que as instanciam e as estruturas que as possibilitam. Deste modo, a educação escolar indígena fica extraordinariamente restrita para a suadiferenciação efetiva, aquela que é hoje objetivo de grande parte dos indígenas envolvidos nela.

Em relação à língua, correspondente semiótico das estruturas que servem como conjunto de potencialidades às práticas sociais, cabe ressaltar que todos os textos do corpus foram textualizados a partir das potencialidades estruturais identificadas com a língua portuguesa, não apenas as leis como também a interação ao longo de toda a reportagem, tanto entre indígenas e não-indígenas quanto entre os indígenas entre si. No registro televisivo, a língua indígena aparece apenas escrita em folhas de papel coladas num mural, escrita pelos professores no quadro e pelos alunos nos seus cadernos. A língua indígena ("falar a língua, manter a língua, o resgate da língua") é discursivizada dentro da sala de aula, através da escrita, e não através da interação em língua indígena na entrevista entre a criança e a liderança mais velha da comunidade, ou na entrevista entre colegas, ou, ainda, na legendagem da reportagem para aqueles indígenas com menor conhecimento da língua portuguesa, por exemplo. Tudo isso pode parecer incabível numa reportagem indígenacomandada por uma diretora, +agente, alheia à comunidade e desconhecedora da língua indígena, a qual, a partir dos seus moldes e objetos culturais, se representa como capacitada para dirigir uma reportagemindígena.

Em relação à atribuição de agência nos eventos representados no corpus, quer na reportagem, quer nos documentos oficiais analisados, a análise desenvolvida evidencia a falta de agência dos indígenas, os quais na maior parte das representações recebem a atribuição de --agência. Desse modo, eles são representados como sujeitos passivos, receptores tanto da educação escolarindígena quanto da "valorização das suas línguas".

A língua indígena, tal qual discursivizada no corpus, pode ser identificada com o metadiscurso sobre a língua do objetivismo abstrato e com as políticas linguísticas concebidas a partir de tal visão de língua, como aquelas defendidas por Calvet (2007)CALVET, L. J. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Ed, IPOL, 2007. . Tais políticas consideram o "resgate da língua" de forma análoga à representação na reportagem analisada. Esse resgate consiste fundamentalmente na escrita da língua e na sua inclusão nos currículos escolares e "ambientes linguísticos". O "papel fundamental do linguista" (CALVET, 2007, p. 86CALVET, L. J. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Ed, IPOL, 2007. ) e a legitimidade da normatização vertical foram representadas na reportagem, por exemplo, através da priorização da voz do pesquisador acadêmico na abertura da mesma.

As políticas linguísticas embasadas em línguas inventadas assumem que os programas de educação escolar bilíngue podem valorizar as línguas indígenas, escolarizando-as e transformando-as em conteúdos curriculares. Contrariando essa visão, considerando a relação dialógica e a determinação mútua entre os elementos das práticas sociais, cabe afirmar que a transformação de qualquer um dos elementos poder, relações sociais, atividades materiais, instituições/rituais e crenças/valores/desejos, assim como a transformação dos seus equivalentes semióticos (discursos, gêneros e estilos) desencadeiam transformações na totalidade dos elementos. É, portanto, uma ilusão não esperar transformações violentas nas línguas quando são violentamente transformadas as atividades materiais, as relações sociais, as instituições, os rituais, os discursos e os valores, crenças e desejos de uma determinada comunidade sociodiscursiva.

Essa é, contudo, a transformação favorecida pela monologização de objetos comoa escola, a língua ou aeducação, a qual abafa e oculta "a luta dos índices sociais de valor" que se trava nesses signos (BAKHTIN, 2006, p. 46BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006. ). É essa também a transformação decorrente da conjuntura de violência física e simbólica contra os indígenas em que esses discursos emergem. A ênfase interdiscursiva, dentro do discurso oficial e midiático, na promoção da escola como instrumento paravalorizar línguas e conhecimentos indígenas sugere a semelhança de interesses que ambas as esferas compartilham em relação à educação escolar indígena. Dentre eles, poderíamos destacar o interesse de representar avalorização das culturas e línguas indígenas completamente desvinculada da conjuntura de violência física e simbólica em que os indígenas são obrigados a viver. Conjuntura essa que é favorável ao capital financeiro atrelado às altas esferas estatais e midiáticas e cuja transformação não é abrangida pelas políticas linguísticas propostas nessas esferas.

Como orientações para superar os obstáculos identificados na análise, cabe ressaltar que a educação escolar indígena apenas terá opção de tornar-se efetivamente diferenciada, intercultural e bilíngue a partir da desconstrução da monovalência de objetos culturais como a escola e de regimes metadiscursivos sobrea língua. Nesse sentido, a promoção de uma maior atribuição de+agência aos indígenas nos discursos oficial e midiático que orientam a educação escolar indígena constitui-se numa outra orientação para superar os obstáculos discursivos levantados. Apenas os próprios indígenas, as próprias comunidades, a partir das suas teias de significados, com senso crítico e imaginação afiada, poderão diferenciar suas escolas e valorizar as suas línguas. Caso contrário, se os índios continuarem sendo construídos discursivamente como receptores (--agentes) de objetos culturais monologizados, a escola indígena corre o risco de, de modo análogo à reportagem indígenarepresentada na reportagem do Globo Educação, ter de indígena apenas o nome, e de não indígena, a cabeça, a estrutura, os moldes e as ordens.

  • BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. 5ª ed. São Paulo: Hucitec, 2002.
  • BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 12ª ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
  • BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm >. Acesso em: 15 out. 2014.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm
  • BRASIL. Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm >. Acesso em: 15 out. 2014.
    » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
  • CALVET, L. J. As políticas linguísticas. São Paulo: Parábola Ed, IPOL, 2007.
  • CHIERCHIA, G. Semântica. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
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  • FAIRCLOUGH, N. : Textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.
  • GUEROLA, C. M. Às vezes tem pessoas que não querem nem ouvir, que não dão direito de falar pro indígena: a reconstrução intercultural dos direitos humanos linguísticos na escola Itaty da aldeia guarani do Morro dos Cavalos. 2012. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Linguística, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
  • HEIM, I.; KRATZER, A. Semantics in Generative Grammar. Malden, MA: Blackwell, 1998.
  • MAGALHÃES, E. D. (Ed.) Legislação Indigenista Brasileira e normas correlatas Brasília FUNAI/CGDOC, 3ª ed. 2005.
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  • SANTOS, S. C. D. Educação e sociedades tribais. Porto Alegre: Movimento, 1975.
  • 1
    Considero, para tanto, a definição de papéis temáticos da semântica formal, a qual os define como as relações entre eventos e seus protagonistas (cf. CHIERCHIA, 2003).
  • 2
    Os excertos dos textos legais foram selecionados em função do seu caráter exemplar em relação às problematizações deste artigo, e a sua escolha foi antecedida por uma leitura extensiva e aprofundada dos documentos na sua totalidade, de modo que as considerações feitas sobre a análise dos excertos pode ser estendida ao todo dos textos sob análise. Os artigos incluídos no corpus são: artigos 205, 206, 208 e 210 da CF; artigos 1-6 e 78-79 da LDB.
  • 3
    POR UMA escola diferenciada. Globo Educação. Direção: Fernando Acquarone e Lao de Andrade. Apresentação: Helena Lara Resende. Rio de Janeiro, Rede Globo. Exibido em 23 jun. 2012. Publicado online em 27 abr. 2013, Disponível em: <http://globotv.globo.com/rede-globo/globo-educacao/v/por-uma-escola-diferenciada/2539724/> Acesso em: 15 out. 2014.
  • 4
    Cf. o capítulo 9 da coletânea Legislação Indigenista Brasileira e normas correlatas (MAGALHÃES, 2005).
  • 5
    Conjuntura político-indigenista no Brasil: enfrentamento ou retrocesso? Instituto Humanitas Unisinos. Notícias. 04 abr. 2013. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/519029-conjuntura-politico-indigenista-no-brasil-enfrentamento-ou-retrocesso>. Acesso em: 15 out. 2014.
  • 6
    A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, APIB, em Carta Pública entregue à presidenta da República Dilma Rousseff, com data de 10 de julho de 2013, confirma o seu rechaço à "forma como o governo quer viabilizar o modelo de desenvolvimento priorizado, implantando a qualquer custo, nos nossos territórios, obras de infraestrutura nas áreas de transporte e geração de energia, tais como, rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, usinas hidroelétricas, linhas de transmissão, desrespeitando a nossa visão de mundo, a nossa forma peculiar de nos relacionar com a Mãe Natureza, os nossos direitos originários e fundamentais, assegurados pela Carta Magna, a Convenção 169 e a Declaração da ONU". Carta Pública dos Povos Indígenas do Brasil à presidenta da República Dilma. APIB. Disponível em: <http://blogapib.blogspot.com/>. Acesso em: 15 out. 2014.
  • 7
    Violências contra os povos indígenas aumentaram em 2012, aponta o CIMI. Brasil de Fato. 27 jun. 2013. Disponível em: <http://www.brasildefato.com.br/node/13367>. Acesso em: 15 out. 2014.
  • 8
    A sinopse do programa Globo Educação (conforme texto da produtora do programa em <http://www.animalucis.com.br/colaboracoes/46>, acesso em: 15 out. 2014), é o seguinte: "De olho na meta mundial de educar a todos, estabelecida na Conferência Mundial sobre Educação para Todos na Tailândia em 1990, o Brasil busca os meios para fazer a sua parte. O programa Globo Educação espera contribuir para a discussão dos grandes desafios e dificuldades que a educação básica enfrenta no país. Toda semana mostra um exemplo, uma escola, que tenha encontrado uma maneira criativa de superar deficiências e falta de recursos para melhor atender seus estudantes. Exibe experiências escolares de diretores, professores, pais e alunos felizes ao enfrentar a realidade de suas comunidades. Como uma revista, o programa - dividido em quadros - aborda assuntos e questões de educação."
  • 9
    Ao longo da reportagem, são feitas menções apenas ao nome da escola e ao nome da aldeia, não à etnia ou à(s) língua(s) dos participantes.
  • 10
    Na reportagem sob análise, as intervenções dos participantes são entendidas como textos bivocais, uma vez que os depoimentos foram editados por terceiros para a reportagem final. Para Bakhtin (2002, p. 127), o discurso bivocal "serve simultaneamente a dois locutores e exprime ao mesmo tempo duas intenções diferentes: a intenção direta do personagem que fala e a intenção refrangida do autor".
  • 11
    A aldeia Ekeruá encontra-se localizada na reserva indígena de Araribá, no município de Avai, no Centro Oeste paulista, e é habitada por comunidades Terena e Guarani.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2015
  • Aceito
    16 Jun 2015
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