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A linguística aplicada e os estudos brasileiros: (inter-)relações teórico-metodológicas1 1 Professor do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ). Docente e pesquisador do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UFRJ. E-mail: marceldeamorim@yahoo.com.br Este artigo é resultado de parte da pesquisa que realizei depois de concluir o doutorado, em estágio supervisionado pelo Prof. Dr. Vinícius Mariano de Carvalho no King’s Brazil Institute do King’s College London, no Reino Unido

Applied linguistics and Brazilian studies: theoretical-methodological (inter-)relations

Resumo:

Diversos campos de estudo - e suas agendas de pesquisa - têm procurado se (re-)inventar a partir dos novos discursos que emergem na contemporaneidade. Dentre esses campos, a linguística aplicada e os estudos brasileiros são áreas que, recentemente, têm passado por redescrições, em um movimento de contínua readequação a um fazer científico responsivo e responsável. E, nesse movimento de redescrição, ambas as áreas apostam em novas epistemologias, isto é, novas lentes. Sendo adequadas ao momento atual, essas lentes podem dialogar, contribuindo para a construção de um fazer científico sobre uma educação linguística que considere o contexto social, econômico, político e cultural mais amplo, no qual as pessoas vivem suas vidas. Desse modo, é objetivo deste artigo vislumbrar possíveis (inter-)relações teórico-metodológicas entre as áreas de pesquisa mencionadas: a linguística aplicada e os estudos brasileiros. É minha intenção observar a possibilidade de diálogo efetivo entre esses campos do conhecimento, num movimento de transfertilização, isto é, de benefícios mútuos para as duas áreas em destaque. Desse modo, acredito poder trazer contribuições para uma (re-)descrição da investigação em ensinagem de línguas no Brasil.

Palavras-chave:
Linguística aplicada; estudos brasileiros; ensinagem de línguas.

Abstract:

Several fields of study - and their research agendas - are trying to (re-)invent themselves due to new discourses that are emerging in contemporary times. Among these fields, applied linguistics and brazilian studies are areas that have recently experienced (re-)descriptions, in a movement of continuously readjusting themselves to a responsive and responsible way of knowledge construction. In this movement of (re-)description, both areas are experimenting new epistemologies, i.e., new lenses. Besides being more appropriate to the present moment, these new lenses can affect one another by contributing to the construction of a scientific research on language education that takes into consideration the social, economical, political and wider cultural contexts in which people live their lives. Thus, this paper aims at analyzing possible theoretical-methodological (inter-)relations between the aforementioned research areas: applied linguistics and brazilian studies. It is my intention to point out to the possibility of an effective dialogue between them: a movement of cross-fertilization, that is, of mutual benefit for the two highlighted areas. This way, I believe that I could contribute to a (re-)description of the research in the field of language teaching and learning in Brazil.

Keywords:
Applied linguistics; Brazilian studies; language teaching and learning

1 Apresentação

Na segunda década do século XXI, diante do constante fluxo discursivo que é característica predominante da atualidade, diversos teóricos têm procurado reconceituar as bases para a compreensão do mundo em que vivemos e, por consequência, nossos modos de fazer ciência. Bauman (2001BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.), por exemplo, enxerga os tempos atuais - a partir da ideia de modernidade líquida2 2 É importante ressaltar que os tempos atuais são diferentemente conceituados a partir do enfoque e posicionamento de quem fala. Na literatura das humanidades e ciências sociais utiliza-se, por exemplo, além de modernidade líquida (BAUMAN, 2001), conceitos como modernidade recente (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999; RAMPTON, 2006) e modernidade reflexiva (BECK; GIDDENS; LASH, 1997) etc - como um momento sócio-histórico em que podemos observar a presença de uma fricção mais exacerbada entre repetições de discursos historicamente cristalizados e a construção de novos discursos. Beck, Giddens e Lash (1997BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização reflexiva. São Paulo: Unesp, 1997.) apontam ainda que vivemos em um mundo mais propício ao surgimento de reflexividade, uma vez que cada vez mais somos circundados por vozes alternativas, que podem desmantelar formas sólidas de compreender e ordenar o mundo, tornando instáveis as suas bases. Esse embate entre sólidos e líquidos abre espaço para que possamos traçar novas rotas em meio à profusão de discursos, informações e comunicações que nos inundam a todo momento, permitindo, inclusive, a construção de compreensões sobre uma possível nova fase do fenômeno denominado globalização3 3 Kumaravadivelu (2006) distingue três diferentes fases para a globalização. A primeira se refere aos movimentos de colonização espanhola e portuguesa. A segunda diz respeito à missão considerada civilizadora da industrialização no contexto inglês. Por fim, a terceira se refere ao que denominamos por imperialismo norte-americano. (KUMARAVADIVELU, 2006KUMARAVADIVELU, B. A linguística aplicada na era da globalização. In: MOITA LOPES, L. P. da (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola , 2006. p. 129-148.), uma vez que são cada vez mais ventilados processos políticos, econômicos e culturais diversos, favorecedores da emergência de novos designs para a vida social, novas formas de vivenciar a experiência humana.

Nesse contexto, em que o mundo e, por consequência, as pessoas que nele habitam passam por mudanças substanciais, construindo novas formas de existir e de estar, as chamadas ciências humanas e sociais têm, cada vez mais, buscado formas alternativas de criação de inteligibilidades sobre a vida contemporânea. Como aponta Moita Lopes (2006a), novos tempos exigem novas formas de teorizar; pode ser infrutífera a tentativa de enquadrar um novo cenário social, político e econômico a partir de velhos enfoques, velhas rotas. Com efeito, diversos campos de estudo têm procurado se (re-)inventar, se (re-)construir a partir dos novos discursos que emergem na contemporaneidade. Entre esses campos, a linguística aplicada (LA) e os estudos brasileiros são áreas que, recentemente, têm passado por redescrições, em um movimento de contínua readequação a um fazer científico responsivo e responsável4 4 Utilizo aqui os termos responsivo e responsável no sentido bakhtiniano dos vocábulos, isto é, no sentido de se agir responsavelmente no existir-evento por meio de atitudes responsivas do eu para si mesmo, do eu para o outro e do outro para o eu (BAKHTIN, 2010). ao mundo contemporâneo. E, nesse movimento de (re-)descrição, ambas as áreas apostam em novas epistemologias, novas lentes, que, sendo adequadas ao momento atual, podem dialogar, contribuindo para construção de um fazer científico que considere o cenário social, econômico, político e cultural mais amplo no qual as pessoas vivem e a pesquisa se concretiza.

Levando em consideração os apontamentos realizados, é objetivo deste artigo a construção de um movimento de compreensão dos campos de estudos mencionados, a linguística aplicada, sobretudo em sua vertente indisciplinar, e os estudos brasileiros, procurando vislumbrar possíveis caminhos teórico-metodológicos apresentados por essas áreas para suas agendas atuais de pesquisa, vislumbrando também se há a possibilidade de diálogo entre elas, num movimento de transfertilização5 5 Aproprio-me e procuro ressignificar aqui o conceito proposto por Frederick Moehn (2012), na iniciativa do autor de dar conta da dinâmica de diálogo entre duas diferentes culturas que mutuamente se beneficiam. , isto é, benefícios mútuos para as duas áreas em destaque. Para tanto, na primeira seção apresento apontamentos gerais que me permitam caracterizar uma parcela das pesquisas em LA realizadas no Brasil, especialmente a partir de visões indisciplinares (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. Linguística aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola , 2006b. p. 85 -107.a), de desaprendizagem (FABRÍCIO, 2006FABRÍCIO, B. F. Linguística aplicada como espaço de “desaprendizagem”: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. da (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 45-65.) e transgressivas (PENNYCOOK, 2006PENNYCOOK, A. Uma linguística aplicada transgressiva. In: MOITA LOPES, L. P. Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola , 2006. p. 67-83.) da área. Na segunda seção do artigo, traço linhas gerais que permitam a compreensão do campo dos estudos brasileiros, sobretudo a partir de apontamentos de brasilianistas que buscam a fuga de uma compreensão de Brasil como objeto em direção à construção de um pensar brasileiro, isto é, da ressignificação do país enquanto sujeito da produção/ressignificação de conhecimentos e saberes (PEREIRA, 2012PEREIRA, A. Brazilian studies then and now. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 2, n. 1, p. 3-21, 2012.; CARVALHO, 2013CARVALHO, V. M. de. From “Brazilian thought” to “thinking Brazil”. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies, London, v. 2, n. 1, p. 1-2, 2013.). A seguir, na terceira seção, procurarei demonstrar possibilidades de transdiálogos entre as duas áreas, sinalizando benefícios possíveis provenientes de tais diálogos para a pesquisa no campo da ensinagem6 6 Seguindo Nicolaides e Szundy (2013), utilizo o termo “ensinagem” para demarcar a profunda imbricação entre as práticas de ensino e aprendizagem. de línguas na educação linguística7 7 Entendo como “educação linguística” práticas críticas e agenciadas de ensinagem de línguas em contextos formais e que visem ao desenvolvimento sistemático dos saberes linguísticos. brasileira. Por fim, na última seção do texto, apresento as considerações finais do artigo.

2 A LA contemporânea: caminhos teórico-metodológicos

A linguística aplicada teve seus impulsos iniciais na década de 1940, sendo, portanto, um campo relativamente novo de investigação. Ao longo dos últimos sessenta anos, a LA passou por diversas reformulações e (re)escrituras, permitindo com isso a emergência de novos questionamentos que trazem o objetivo primário de promover sua consolidação como área relevante de produção de conhecimentos. Com efeito, do foco inicial da pesquisa de aplicação da linguística ao ensino de línguas8 8 Corder (1973, p. 10), por exemplo, afirma que seu livro é sobre “a contribuição que as descobertas e métodos daqueles que estudam a língua(gem) cientificamente, isto é, do linguista, do psicolinguista e do sociolinguista (...) podem fazer na tentativa de solucionar alguns dos problemas que aparecem no movimento de planejamento, organização e elaboração de um programa de ensino de língua”. (CORDER, 1973CORDER, S. P. Introducing applied linguistics. Harmmondsworth: Penguin Education, 1973.; ALLEN; CORDER, 1973ALLEN, J. P. B.; CORDER, S. P. (Eds.). The Edinburgh course in applied linguistics: readings for applied linguistics. Oxford: OUP, 1973a. v. 1.a; 1973bALLEN, J. P. B.; CORDER, S. P. (Eds.). The Edinburgh course in applied linguistics: techniques in applied linguistics. Oxford: OUP , 1974. v. 3.; 1974ALLEN, J. P. B.; DAVIES, A. (Eds.). The Edinburgh course in applied linguistics: testing and experimental methods. Oxford: OUP , 1977. v. 4.; ALLEN; DAVIES, 1977) aos questionamentos sobre a possibilidade de tal aplicação9 9 Nesse sentido, Chomsky (1971, p. 152-153) afirma ser “francamente, cético sobre o significado, para o ensino de línguas, de tais insights e compreensões que têm sido obtidos na linguística e psicologia”. (CHOMSKY, 1971CHOMSKY, N. Language teaching. In: Allen, J. P. B.; VAN BUREN, P. (Eds.). Chomsky: selected readings. London: Oxford University Press, 1971. p. 149-159.; WIDDOWSON, 1979WIDDOWSON, H. G. The partiality and relevance of linguistic descriptions. In: WIDDOWSON, H. G. Explorations in applied linguistics . Oxford: Oxford University Press , 1979b. p. 226-238.a; 1979b) e da adoção de políticas interdisciplinares10 10 Moita Lopes (1996, p. 20-21) afirma que “a LA tem como uma das suas tarefas, no percurso de uma investigação, mediar entre o conhecimento teórico advindo de várias disciplinas (...) e o problema de uso da linguagem que pretende investigar”. (MOITA LOPES, 1996MOITA LOPES, L. P. Oficina de linguística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996.; SIGNORINI; CAVALCANTE, 1998SIGNORINI, I.; CAVALCANTI, M. do C. Linguística aplicada e transdisciplinariedade . Campinas: Mercado de Letras , 1998.) à abrangência de outros contextos que não os escolares, a LA pode se afirmar, finalmente, como campo de atuação independente dos conhecimentos produzidos no âmbito da linguística como ciência-mãe11 11 Cavalcanti (1986, p. 12) afirmava que mesmo “o termo ‘linguística aplicada a...’ é inapropriado, uma vez que em LA não se aplica a linguística seja, por exemplo, ao ensino de línguas, seja à interação médico-paciente”. (CAVALCANTI, 1986CAVALCANTI, M. A propósito de linguística aplicada. Trabalhos em linguística aplicada, Campinas, v. 7, n. 2, p. 5-12, 1986.; MOITA LOPES, 1996). Os linguistas aplicados foram os responsáveis, dessa forma, por (re)descrever constantemente o campo de pesquisas, os referenciais teóricos adotados e os aparatos metodológicos elencados para um fazer aplicado na área da LA.

Na segunda década do século XXI, sendo a LA já um campo solidificado como área de produção de conhecimento aplicado dentro do quadro das humanidades e das ciências sociais, cabe ao linguista aplicado a indagação sobre novos rumos possíveis para a área em que enquadra suas pesquisas, o que tem sido feito constantemente por alguns de seus pesquisadores, na tentativa de construção de vertentes da LA como espaço de desaprendizagem (FABRÍCIO, 2006FABRÍCIO, B. F. Linguística aplicada como espaço de “desaprendizagem”: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. da (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 45-65.), indisciplinar e mestiça (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. Linguística aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola , 2006b. p. 85 -107.a; 2009), transgressiva (PENNYCOOK, 2006PENNYCOOK, A. Uma linguística aplicada transgressiva. In: MOITA LOPES, L. P. Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola , 2006. p. 67-83.), ou, como prefiro me referir, responsável e responsiva (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.; 2010BAKHTIN, M. Por uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.) ao momento contemporâneo. Essas visões de LA procuram a construção do campo como um espaço de imbricações, de engajamento social: como uma atividade político-ideológica. Diferentemente, portanto, de abordagens modernistas da área, as quais, como aponta Rojo (apud DAMIANOVIC, 2005DAMIANOVIC, M. C. O linguista aplicado: de um aplicador de saberes a um ativista político. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 8, n. 2, p. 181-196, 2005.), fundadas em crenças positivistas e estruturalistas, com base numa visão de linguagem apolítica e ahistórica, facilitavam a abordagem separativista entre sujeito e objeto, entre a ciência e o mundo.

Nas vertentes modernistas, como resultado dessa tentativa de garantir uma suposta objetividade científica, acabava-se por situar o sujeito num “vácuo social” (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. Linguística aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola , 2006b. p. 85 -107.a, p. 24). O próprio pesquisador, nessa visão, é dicotomizado em relação ao seu objeto de estudo para que não o contamine, conforme a herança metodológica legada por uma posição positivista do processo de produção de conhecimento, mas que acaba por apartar a pesquisa da vida daqueles que vivem, que sofrem e que se posicionam politicamente por meio do discurso (MOITA LOPES, 2006bMOITA LOPES, L. P. Linguística aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola , 2006b. p. 85 -107.; DAMIANOVIC, 2005DAMIANOVIC, M. C. O linguista aplicado: de um aplicador de saberes a um ativista político. Linguagem & Ensino, Pelotas, v. 8, n. 2, p. 181-196, 2005.). Como consequência da tentativa de separação completa entre sujeito e mundo social, a visão de sujeito adotada por pesquisas ditas modernistas se baseia na ideia de um indivíduo essencializado, homogeneizado: branco, homem, heterossexual e de classe média (MOITA LOPES, 2006b). De acordo com Hall (2005HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005., p. 10-11):

[esse sujeito] estava baseado numa concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades da razão, de consciência e de ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo - contínuo ou “idêntico” a ele - ao longo da existência do indivíduo.

Com isso, esperava-se o alcance da imparcialidade científica, que só seria atingida estando o pesquisador distanciado de suas emoções, desejos ou interesses, se constituindo como “fora do mundo” (RAMPTON, 2006RAMPTON, B. Language in late modernity: interaction in an urban school. Cambridge: Cambridge University Press , 2006., p. 111): apenas fora do mundo, nessa visão do fazer científico, ele seria capaz de criar e usar políticas sociais, tecnologias e novos avanços da ciência para facilitar e melhorar a vida da população em geral, o que instaura, novamente, uma perspectiva positivista do progresso científico. Em resumo, como nos conta Rampton (2006RAMPTON, B. Language in late modernity: interaction in an urban school. Cambridge: Cambridge University Press , 2006., p. 111), os ideais para a pesquisa científica modernista seriam, então, a

compreensão da razão como imparcialidade, estando aquele que usa da razão “separado de suas próprias emoções, desejos e interesses... se abstraindo da situação concreta” (Frazer e Lacey, 1993: 48) [...] uma visão a-histórica e “descorporificada” do indivíduo, visto como tendo uma “primazia moral... contra o clamor de qualquer coletividade social” (Gray, 1986: x) [...] uma convicção de que a realidade social pode ser conhecida e de que a política social e a tecnologia podem ser usadas para melhorar a pobreza, a infelicidade e outros males.

No Brasil dos anos 1980 e 1990, a LA se baseava fortemente nessas premissas, caracterizando-se, a partir da compreensão de que a linguagem é constitutiva da vida institucional (MOITA LOPES, 2009MOITA LOPES, L. P. Da aplicação de linguística à linguística aplicada indisciplinar. In: ROCA, R. C. P. P. (Org.). Linguística aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2009. p. 11-24.), como área de conhecimento que tinha por objetivo a resolução de problemas de uso da linguagem, enfrentados pelos participantes do movimento discursivo em um contexto sócio-histórico definido (CAVALCANTI, 1986CAVALCANTI, M. A propósito de linguística aplicada. Trabalhos em linguística aplicada, Campinas, v. 7, n. 2, p. 5-12, 1986.; MOITA LOPES, 1996). O traço positivista mais latente no objetivo delineado para a área nesse período é a proposição da preocupação do campo com a resolução de problemas, o que, de certo modo, alinhava a LA a outras áreas com tendências solucionistas das ciências humanas e sociais de então. Hoje, essa perspectiva do fazer ciência, assim como o projeto da modernidade e, por consequência, de uma LA que se baseie em paradigmas modernistas, é considerada em si mesmo como contraditória e não resolvida (BHABHA, 1998BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.). A ideia de um sujeito estável está em declínio, o que provoca a emergência de sociabilidades fragmentadas (HALL, 2005HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.). Até mesmo a dita objetividade científica já é tida como utópica, uma vez que não é possível distanciar o pesquisador do chamado objeto: quem pesquisa, se posiciona no mundo em que atua e é justamente seu posicionamento que possibilita a pluralidade e diversidade dos processos de construção de conhecimento (MOITA LOPES, 2004MOITA LOPES, L. P. Contemporaneidade e construção do conhecimento na área de estudos linguísticos. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 7, n. 14, p. 159-171, 2004. ).

A partir dessa revisão sobre as crenças modernistas, diversos pesquisadores da área de LA no Brasil têm buscado por novas formas de fazer pesquisa, que sejam mais responsáveis e responsivas ao mundo contemporâneo, trazendo o sujeito - agora múltiplo e multifacetado em suas sociabilidades - para dentro do campo de pesquisa, mudando seu foco positivista concentrado na solução de problemas do uso da linguagem para uma área híbrida - inter/transdisciplinar - que almeja “criar inteligibilidade sobre problemas sociais em que a linguagem tem papel determinante” (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. Linguística aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola , 2006b. p. 85 -107.a, p. 14). Nesse sentido, atualmente, o que guia grande parte dos linguistas aplicados pelo Brasil12 12 É importante ressaltar que a vertente de LA que é predominantemente descrita ao longo deste artigo, a linguística aplicada indisciplinar, não é a única visão de LA que subjaz às pesquisas do campo produzidas no Brasil: diversas são as investigações que se fundam em outras visões da área. Não procuro, então, homogeneizar o campo, mas apenas apresentar aquela vertente que se apresenta a mim como, atualmente, uma das mais consolidadas. é a compreensão da

LA como prática problematizadora, que, assumindo abertamente suas escolhas ideológicas, políticas, e éticas, submete a reexame e a estranhamento contínuos não só suas construções como também os “vestígios” de práticas modernas, iluministas ou coloniais nelas presentes. (FABRÍCIO, 2006FABRÍCIO, B. F. Linguística aplicada como espaço de “desaprendizagem”: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. da (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 45-65., p. 50-51)

É importante ressaltar, como pontuado por Moita Lopes (2006a), que o movimento de (re)descrição dos rumos da LA por parte dos pesquisadores do campo não pode ser considerado como o processo de fundação de uma “nova escola” de LA. A linguística aplicada tal como aqui descrita não renega a praticada em outras visões do campo: na contemporaneidade, ela surge na tentativa de propor “mudanças possíveis”, novas direções a considerar no estudo da linguagem como prática social e dos seus efeitos na vida das pessoas. Para tanto, é necessária a problematização de antigas epistemologias que guiavam - e ainda guiam - as pesquisas na área e a proposição de novos modos de construir conhecimentos, enxergados como sociais, históricos, culturais e imbricados na vida daqueles que vivem e interagem pelo discurso.

Com efeito, a noção da LA como uma área inter/transdisciplinar é central para o desenvolvimento da visão do campo na contemporaneidade brasileira. Tendo por objetivo a teorização do lugar onde as pessoas vivem e agem, das implicações das mudanças socioculturais, políticas e históricas que vivenciam (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. Linguística aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola , 2006b. p. 85 -107.a), e da percepção do sujeito como multifacetado, aberto a sociabilidades plurais e em constante transformação, os linguistas aplicados lançam mão de leituras nas mais diversas áreas do saber, a partir dos mais diferentes campos de investigação - leituras essas que podem ajudar na compreensão dos problemas de uso da linguagem sob escrutínio nas pesquisas realizadas.

Ademais, é necessário, para o linguista aplicado que atua sob essa perspectiva, a adoção de uma prática de pesquisa problematizadora, que assuma suas escolhas ideológicas, éticas e políticas, negando, dessa forma, ideais modernistas como o objetivismo científico e a neutralidade na produção do conhecimento. Assim, essa vertente da LA passa a focalizar o sujeito como parte do movimento de construção do saber teórico, fazendo dialogarem as vozes dos envolvidos no processo de pesquisa, construindo novos lugares sociais para pesquisadores e pesquisados. De fato, a agenda atual de pesquisa de grande parte dos linguistas aplicados no Brasil tem procurado, cada vez mais, a problematização de questões que envolvam etnia, sexualidade, gênero, classe social, nacionalidade etc. (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. Linguística aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola , 2006b. p. 85 -107.a) ao desenvolver investigações responsivas e responsáveis ao momento contemporâneo, que não poderiam, de maneira alguma, ser conduzidas sob ideais modernistas de pesquisa.

Sobretudo, o linguista aplicado que atua a partir de visões contemporâneas do fazer científico compreende que não é possível executar uma despolitização da prática de pesquisa e a autonomia do conhecimento, e por isso reconhece sempre a impossibilidade de apagar as diferenças que constituem de modo sempre provisório o sujeito, como era almejado por práticas modernistas. Nesse sentido, os linguistas aplicados devem perceber a necessidade de olhar as relações de poder construídas na formação do sujeito no discurso e por meio dele (MOITA LOPES, 2006MOITA LOPES, L. P. Linguística aplicada e vida contemporânea: problematização dos construtos que têm orientado a pesquisa. In: MOITA LOPES, L. P. (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola , 2006b. p. 85 -107.b). Então, entender também o entorno social - o espaço social, histórico e cultural - no qual esse sujeito vive se torna uma tarefa essencial para os investigadores e também para uma área de investigação que se pretende imbricada, engajada: é necessário focalizar as práticas reais e situadas de uso da linguagem para compreender significativamente os problemas de uso da linguagem, sobretudo aqueles que concernem às privações sofridas (ROJO, 2006ROJO, R. H. R. Fazer linguística aplicada em perspectiva sócio-histórica: privação sofrida e leveza de pensamento. In: MOITA LOPES, L. P. da (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar . São Paulo: Parábola , 2006. p. 253-276.) por quem constrói a linguagem e se constrói a partir dela nas mais diversas práticas cotidianas.

A observação do entorno social, local, histórico e cultural - no caso, brasileiros - e a construção de agendas de pesquisa socialmente engajadas e não positivistas são também atribuições de pesquisadores do campo de estudos conhecido como estudos brasileiros. Apesar de não se basearem explicitamente nos problemas de uso da linguagem como condutores da construção de seus projetos de pesquisa, brasilianistas dialogam - e podem dialogar ainda mais -, mesmo que não intencionalmente, com os propósitos da pesquisa em LA atual. Sobre os estudos brasileiros e as pesquisas brasilianistas, construo a próxima seção.

3 Os estudos brasileiros no cenário translocal13 13 Entendo aqui, na esteira de Blommaert (2005), a ideia de contexto como translocal, isto é, como construído em trânsito, por meio de diversas des/recontextualizações, através de diferentes espaços sociais e físicos, num diálogo constante entre as esferas ditas locais e aquelas ditas globais. : apontamentos críticos

Os estudos brasileiros14 14 O termo “estudos brasileiros” surge, na verdade, a partir da evolução do que se costuma denominar por “estudos de área”, um campo de estudos que procura compreender questões geográficas, sociopolíticas e culturais em diferentes “áreas” do mundo. Moita Lopes (1998), de certo modo, alinha a LA aos estudos de área ao discutir a proposição de um caminho transdisciplinar para o primeiro campo no texto “A transdisciplinaridade é possível em linguística aplicada?”. têm sua origem atribuída ao surgimento do que se convencionou chamar de brasilianista, que na acepção convencional do termo, seria o estudioso estrangeiro que se dedicaria ao exame de temas brasileiros15 15 É importante ressaltar que historicamente o termo nunca foi bem apreciado no contexto acadêmico nacional (CARVALHO, 2016), sobretudo por se relacionar à ideia de que quem se encontrava fora do contexto brasileiro, como os estrangeiros, possuía uma visão privilegiada sobre o país. Essa premissa acabava por reafirmar a ideia de uma neutralidade científica, tão criticada hoje na área de estudos brasileiros e na LA, como sinalizei na seção anterior. . Os brasilianistas, tal como aqui definidos, exerceram um papel importante durante a institucionalização das ciências sociais no Brasil, na segunda metade do século XX. Credita-se ao inglês Robert Southey o papel de primeiro brasilianista: observador atento do império colonial português, Southey escreveu, no período da independência, a obra História do Brasil, referência única no campo até o surgimento do primeiro historiador brasileiro, o diplomata Francisco Adolfo Varnhagen16 16 Mais informações sobre a história dos estudos brasileiros podem ser encontradas na página da BRASA, disponível em: <http://www.brasa.org/breve-historia/>. .

Ainda no século XIX, diversos outros estudiosos, sobretudo ingleses, alemães e franceses, procuraram elaborar diretrizes de como escrever a história do Brasil. A participação de pesquisadores brasileiros no campo era considerada mínima. Estudiosos como o diplomata brasileiro Manuel de Oliveira Lima17 17 Nessas palestras, como indica Anthony Pereira (2012), Oliveira Lima apresenta argumentos sobre o que fazia do Brasil um país distinto e diferente de outros países da América do Sul, além de contribuir com insights sobre como a história, a cultura e a sociedade brasileira de então deveriam ser entendidas. , autor de seis conferências sobre o Brasil na Stanford University (PEREIRA, 2012PEREIRA, A. Brazilian studies then and now. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 2, n. 1, p. 3-21, 2012.), tinham rara ou pouca participação nos estudos brasilianistas de então. No entanto, o termo “brasilianista” como rótulo acadêmico surge apenas na época da Guerra Fria, tendo sido utilizado pela primeira vez no espaço sociocultural brasileiro em 1969, pelo acadêmico Francisco de Assis Barbosa, que procurava classificar um especialista de origem estrangeira nos assuntos que interessavam ao país.

A partir dos anos 1960, o interesse pelo estudo do Brasil também cresceu exponencialmente nos Estados Unidos, o que é atestado, por exemplo, pela presença massiva de publicações nacionais como as de Gilberto Freyre, Celso Furtado, José Maria Bello, José Honório Rodrigues e Caio Prado Jr. traduzidas para o inglês e disponíveis nas mais diversas livrarias estadunidenses. O período inicial da ditadura militar também foi de grande interesse para os estudiosos estadunidenses, que cada vez mais voltavam seus olhares para o Brasil. É importante ressaltar que a influência desses estudiosos no campo não era pacificamente aceita por cientistas sociais brasileiros, pois “ter um ‘estrangeiro’ estudando o Brasil, muitas vezes com mais possibilidades de acesso a dados e arquivos que os próprios brasileiros, soava como submissão ao ‘imperialismo americano’” (CARVALHO, 2016CARVALHO, V. M. de. Brazilian Studies and Brazilianists: conceptual remarks. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 1, n. 5, 2016., p. 2)18 18 O texto “Brazilian studies and brazilianists: conceptual remarks” foi publicado originalmente em inglês na revista Brasiliana – Journal for Brazilian Studies. Neste artigo, utilizo a versão traduzida dessa pesquisa, em versão inédita, gentilmente cedida pelo autor. . No entanto, uma mudança de foco da área pôde ser percebida apenas anos mais tarde, com a publicação de Dependência e desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto: aqui, além de termos um brasileiro, juntamente de um chileno, produzindo conhecimento sobre o país, temos o papel do Brasil também como exportador de ideias e teorias, e não apenas como receptor do conhecimento que era produzido na Europa e Estados Unidos.

A partir dos anos 1980, os brasilianistas expandem seu foco temático, passando a abordar, a partir de diferentes áreas, questões como gênero, raça, meio ambiente, imigração, favelas etc. No início dos anos 1990, mais especificamente em 1992, os brasilianistas de então fundam, em Los Angeles, Califórnia, Estados Unidos, a Brazilian Studies Association (BRASA), que hoje é considerada a maior organização dedicada a reunir estudiosos interessados em fazer estudos brasileiros. Apesar de ter sido fundada nos Estados Unidos, a BRASA tem hoje alta participação de intelectuais brasileiros em suas atividades e congressos. Além disso, registra que mais de 40% de seus membros são brasileiros. No entanto, ainda são raras as universidades e centros de pesquisa no Brasil que se dedicam ao estudo da área; oficialmente, apenas a Universidade de São Paulo (USP) possui um instituto dedicado aos estudos brasileiros. No exterior, no entanto, diversos são os centros de pesquisa dedicados ao campo. Apenas para exemplificar, durante minha formação acadêmica, entrei em contato com programas de estudos brasileiros em instituições na Dinamarca, Inglaterra, Itália e Alemanha, que representam somente uma pequena parcela de países que, na Europa, contam, em suas instituições, com departamentos e institutos dedicados à área.

Talvez por sua tão tardia institucionalização como campo de pesquisa, o que permite a construção de uma visão mais totalizadora da área, os estudos brasileiros, já na segunda década do século XXI, encontram-se em busca de uma definição: o que seria fazer estudos brasileiros em nossos dias? No entanto, definições também podem ser vistas como encapsuladoras e delimitadoras da abrangência de pesquisa possível no interior de determinados campos; como aponta Carvalho (2016CARVALHO, V. M. de. Brazilian Studies and Brazilianists: conceptual remarks. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 1, n. 5, 2016.), o meio acadêmico é acostumado a ser divido em áreas do saber bem delimitadas, a partir de teorias, métodos e objetos claros - forma kantiana de organização do conhecimento que, entretanto, delimita atrasadamente o que é fazer ciência na universidade. Sobre os estudos brasileiros em si, Carvalho afirma que “as definições para este campo estão mais para ‘campo de batalha’ do que para ‘campo fértil’” (2016, p. 1), embora tente, a partir de sua experiência e do seu fazer em pesquisa, delinear um esboço para mapear uma maneira de se produzir conhecimento na área.

Nesse movimento em busca de definição, Carvalho (2016CARVALHO, V. M. de. Brazilian Studies and Brazilianists: conceptual remarks. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 1, n. 5, 2016.) ressalta que, diferentemente dos antigos brasilianistas, acadêmicos de estudos brasileiros não mais enxergam o Brasil como objeto de estudo a partir de áreas específicas, como a história, a ciência política, a antropologia etc. - mudança de atitude que, segundo o autor, procura colocar o Brasil na posição de um sujeito crítico, não mais subalterno e que apenas reproduz um eurocentrismo reforçador de um lugar de objeto, mas como aquele que procura colocar perguntas ao mundo a partir de um novo pensar, um “pensar com sotaque, que provoca uma mudança sintagmática dependente e adaptante de paradigmas vários” (CARVALHO, 2016CARVALHO, V. M. de. Brazilian Studies and Brazilianists: conceptual remarks. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 1, n. 5, 2016., p. 18). O que os novos brasilianistas propõem, desse modo, é um giro epistemológico descolonizador, que possibilite a construção de um olhar brasileiro para as ciências humanas e sociais (CARVALHO, 2013). Com efeito, hoje, quando se aborda a área de estudos brasileiros, abordam-se, na verdade, estudos que considerem o que o Brasil tem “a sugerir como diferença e como novas perspectivas, novas estruturas de pensamento” (RAMBOURG, 2012RAMBOURG, M. M. Por uma discussão ontológica dos ditos “estudos brasileiros” e algumas de suas consequências empíricas na França. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , Londres, v. 1, n. 1, p. 22-43, 2012., p. 24), não excluindo outras formas de construção de conhecimentos e saberes, mas ressignificando-as a partir de um paradigma brasileiro.

Nesse sentido, brasilianistas têm também procurado se afastar da ideia homogeneizante de uma “América Latina”, para, sobretudo, evitar o risco eurocêntrico de afirmar uma compreensão epistemológica que dê conta de povos, línguas, histórias, realidades políticas e sociais tão plurais - mesmo que transcruzadas em algumas instâncias - como as que encontramos no espaço sociocultural sul-americano (CARVALHO, 2016CARVALHO, V. M. de. Brazilian Studies and Brazilianists: conceptual remarks. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 1, n. 5, 2016.). Em suas já citadas palestras, no início do século XX, Oliveira Lima já via especificidades que diferenciavam o Brasil de outros países americanos (PEREIRA, 2012PEREIRA, A. Brazilian studies then and now. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 2, n. 1, p. 3-21, 2012.)19 19 Para uma visão crítica sobre a relação entre Brasil e o termo “América Latina”, sugiro a leitura do já clássico ensaio Brazil and “Latin America”, de Leslie Bethell (2010). . Desse modo, fazer estudos brasileiros a partir de um ponto de vista latino-americano seria apagar tais especificidades, que devem ser consideradas num fazer científico social não modernista e que considere os preceitos da contemporaneidade. Carvalho (2016CARVALHO, V. M. de. Brazilian Studies and Brazilianists: conceptual remarks. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 1, n. 5, 2016.) sinaliza, no entanto, que a fuga do rótulo de América Latina não implica em afirmar que não haja trocas, diálogos e semelhanças entre o Brasil e outros países do sul, mas que essas também ocorrem em relação a Brasil e Ásia, Brasil e África etc. Nesse sentido,

estudos brasileiros são tão latino-americanos quanto africanos, atlânticos, europeus, ameríndios, asiáticos, ou qualquer outro conceito construído que permita diálogos entre condições sócio-histórico-culturais ilustrados pela ideia de estudos de área (CARVALHO, 2016CARVALHO, V. M. de. Brazilian Studies and Brazilianists: conceptual remarks. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 1, n. 5, 2016., p. 13).

A questão que emerge é, então, “como posicionar o Brasil num contexto comparativo e global?” (PEREIRA, 2012PEREIRA, A. Brazilian studies then and now. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 2, n. 1, p. 3-21, 2012., p. 14).

Em busca da resposta a questões como essa, os estudos brasileiros - assim como a LA na vertente aqui apresentada, vale ressaltar - têm procurado construir seu fazer científico de modo indisciplinar, isto é, não se constituindo como disciplina acadêmica, mas como uma área (PEREIRA, 2012PEREIRA, A. Brazilian studies then and now. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 2, n. 1, p. 3-21, 2012.) ou uma abordagem, um exemplo (CARVALHO, 2016CARVALHO, V. M. de. Brazilian Studies and Brazilianists: conceptual remarks. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 1, n. 5, 2016.). Pereira (2012PEREIRA, A. Brazilian studies then and now. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 2, n. 1, p. 3-21, 2012.) destaca que, na atualidade, cada vez mais pesquisadores têm sentido a pressão de se especializar. No entanto, essa especialização em demasia é considerada pelo autor como uma barreira para que questões realmente interessantes sobre as mais diferentes facetas societárias brasileiras possam ser construídas. Em busca da resolução desse problema, Pereira (2012) sinaliza a necessidade de buscar estudiosos das mais diferentes disciplinas acadêmicas, os quais, a par de suas áreas de especialização, estejam dispostos a lançar olhares heurísticos sobre o estudo do Brasil e dos problemas a ele relacionados. Nesse sentido, Carvalho (2016CARVALHO, V. M. de. Brazilian Studies and Brazilianists: conceptual remarks. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 1, n. 5, 2016.) chama a atenção para a importância de abordagens interdisciplinares - e, porque não, indisciplinares20 20 Apesar de aproximar as ideias de indisciplinaridade e interdisciplinaridade, entendo esses conceitos de modo diverso: enquanto ser indisciplinar se liga à ideia de se pensar para além de paradigmas consagrados de pesquisa, não relacionando o campo de investigações a uma disciplina, mas o constituindo como um modo de pensamento que viola e atravessa limites (MOITA LOPES, 2009), ser interdisciplinar se refere à necessidade de se ler em diversas áreas do conhecimento, para construir, muitas vezes de modo transdisciplinar, nossas agendas de pesquisa (MOITA LOPES, 2009). - para os estudos brasileiros, que considerem que a pluralidade de formas de pensar é indispensável para a construção de um olhar crítico e de um pensamento não compartimentado a partir do prisma brasileiro. Com efeito, afirma o autor que

de fato, entendo e defendo a interdisciplinaridade como caminho para os estudos de área e os estudos brasileiros dentro destes. Porém, pergunto se realmente quando se usa o termo interdisciplinaridade está se entendendo as implicações do mesmo, a saber, a aplicação de múltiplas teorias, métodos e hermenêuticas, considerando-se uma pluralidade de entendimentos semânticos e epistemológicos de um mesmo objeto, com vistas a uma percepção abrangente e nem sempre unívoca deste objeto estudado (CARVALHO, 2016CARVALHO, V. M. de. Brazilian Studies and Brazilianists: conceptual remarks. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 1, n. 5, 2016., p. 7).

A interdisciplinaridade no campo dos estudos brasileiros, se construída de forma democrática e transversal, pode, sem dúvida, auxiliar na criação de inteligibilidade sobre diversas questões que o Brasil tem colocado no cenário atual, sobretudo aquelas que visam à desconstrução do lugar de objeto dado ao país e aquelas vozes consideradas subalternas que nele habitam. E não se trata, obviamente, de dar voz ao país ou aos considerados subalternos, numa postura marxista excludente que por muito tempo foi regra nos estudos brasilianistas - assim como na LA indisciplinar (MOITA LOPES, 2009MOITA LOPES, L. P. Da aplicação de linguística à linguística aplicada indisciplinar. In: ROCA, R. C. P. P. (Org.). Linguística aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2009. p. 11-24.) -, mas reconhecer que diferentes imaginários, epistemologias, ontologias e cosmologias originadas no cenário geopolítico brasileiro “expressem-se em suas ou em outras línguas, não apenas para expressar suas leituras sobre si mesmos, mas também para formular suas perguntas críticas mais globalmente, representando, com isso, alternativas de um pensamento subjetivo” (CARVALHO, 2016CARVALHO, V. M. de. Brazilian Studies and Brazilianists: conceptual remarks. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 1, n. 5, 2016., p. 15), em vez de apenas se oferecerem como objetos a ser decifrados, explicados. Desse modo, o que o atual rumo dos estudos brasileiros propõe é, mais do que uma simples mudança de paradigma (CARVALHO, 2016), uma forma translocal de fazer ciência no sul-global (PEREIRA, 2012PEREIRA, A. Brazilian studies then and now. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 2, n. 1, p. 3-21, 2012.).

4 LA e estudos brasileiros: (inter-)relações

As duas áreas em discussão, a vertente indisciplinar da LA e os estudos brasileiros, como espero ter sinalizado, têm diálogos evidentes - mesmo que não intencionais. Em primeiro lugar, ambos os campos foram recentemente constituídos como áreas do saber com representatividade por meio de associações internacionais - representatividade fundamental em uma época em que a qualidade do conhecimento produzido é medida também pelo seu poder de difusão e institucionalização. A partir dela, pesquisadores da LA e dos estudos brasileiros puderam, inclusive, agrupar-se a par da divisão departamental oferecida pelas universidades; no caso da LA, a universidade geralmente lota seus pesquisadores em departamentos de língua/literaturas materna ou estrangeiras (MOITA LOPES, 2009MOITA LOPES, L. P. Da aplicação de linguística à linguística aplicada indisciplinar. In: ROCA, R. C. P. P. (Org.). Linguística aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2009. p. 11-24.), enquanto os pesquisadores de estudos brasileiros tinham sua casa em departamentos de estudos latino-americanos ou de área (CARVALHO, 2016CARVALHO, V. M. de. Brazilian Studies and Brazilianists: conceptual remarks. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 1, n. 5, 2016.). Essa não filiação das áreas a departamentos específicos é o que, atualmente, permite que ambas construam sua pesquisa de modo indisciplinar, agregando conhecimentos das mais diversas áreas para a construção de seus objetivos de pesquisa.

No entanto, é importante ressaltar que, no ambiente acadêmico atual, o diálogo entre pesquisadores em diferentes áreas parece ser mais efetivo entre os brasilianistas do que entre os linguistas aplicados. Apenas para exemplificar, cito, no caso da LA, o Programa Interdisciplinar de Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que abriga apenas dois pesquisadores efetivamente formados em áreas outras que letras e linguística: uma pesquisadora da área de medicina social e outra da Antropologia social21 21 É necessário mencionar que o agrupamento prioritário de pesquisadores da área de letras e linguística é normalmente causado pela dificuldade de se derrubar barreiras institucionais e departamentais, uma vez que programas de pós-graduação no Brasil são ligados a departamentos específicos que, prioritariamente, contratam pesquisadores formados em áreas relacionadas (MOITA LOPES, 2009). . Em relação aos estudos brasileiros, um dos mais importantes institutos da área, o Brazil Institute do King’s College London abriga, entre membros do corpo docente efetivo e de colaboradores, pesquisadores das áreas de ciências políticas, letras e linguística, geografia, música, economia, entre outras. Ressalto, no entanto, que a formação prioritária em letras e linguística dos docentes do programa de LA da UFRJ não impede a utilização de outras epistemologias no fazer científico desses linguistas aplicados, uma vez que eles podem, logicamente, optar por ler e navegar por diferentes campos do saber; mas pode sem dúvida restringir a construção de diferentes pontos de vista para os problemas do uso da linguagem na sociedade contemporânea, uma vez que é urgente e necessário se pensar em “outras formas de conhecimento e outras questões de pesquisa que sejam responsivas às práticas sociais em que vivemos” (MOITA LOPES, 2009MOITA LOPES, L. P. Da aplicação de linguística à linguística aplicada indisciplinar. In: ROCA, R. C. P. P. (Org.). Linguística aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2009. p. 11-24., p. 19).

Em segundo lugar, as vertentes das duas áreas retratadas também são implicadas socialmente e concordam ao adotarem a interdisciplinaridade para construção de inteligibilidade para seus problemas de pesquisa. Sobre os estudos brasileiros, Pereira (2012PEREIRA, A. Brazilian studies then and now. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 2, n. 1, p. 3-21, 2012.) indica que a área sempre será enxergada como um campo de estudos amplo e eclético, tanto teórica quanto metodologicamente. Com efeito, o que os brasilianistas parecem oferecer, por meio da interdisciplinaridade, é uma visão global, na tentativa de compreender a complexidade do papel brasileiro na contemporaneidade (PEREIRA, 2012PEREIRA, A. Brazilian studies then and now. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 2, n. 1, p. 3-21, 2012.). A linguística aplicada também aposta na interdisciplinaridade, na tentativa de se constituir como uma área de pesquisa que deseja “ousar pensar diferente, para além dos paradigmas consagrados, que se mostram e que precisam ser desaprendidos (FABRÍCIO, 2006FABRÍCIO, B. F. Linguística aplicada como espaço de “desaprendizagem”: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, L. P. da (Org.). Por uma linguística aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006. p. 45-65.) para compreender o mundo atual” (MOITA LOPES, 2009MOITA LOPES, L. P. Da aplicação de linguística à linguística aplicada indisciplinar. In: ROCA, R. C. P. P. (Org.). Linguística aplicada: um caminho com diferentes acessos. São Paulo: Contexto, 2009. p. 11-24., p. 19). Nesse sentido, Moita Lopes (2009) propõe a necessidade de pensar em epistemologias de fronteira, que seriam essenciais para se compreender o espaço sociopolítico atual. A ideia de uma epistemologia de fronteira, que nos possibilitaria enxergar um mundo de desígnios globais diante de histórias locais, apesar de não explicitamente advogada por brasilianistas, vai ao encontro da ideia de um paradigma brasileiro de pesquisa, cara aos estudos brasileiros.

Por fim, é interessante perceber que, como os linguistas aplicados, brasilianistas têm procurado reconhecer e responder a questões que estão sendo construídas a partir do Brasil. Sobre isso, é relevante recordar que, no vídeo promocional para o 18º World Congress of Applied Linguistics, a ser realizado no Brasil em 2017, Claire Kramsch, pesquisadora francesa residente nos EUA, reconhece que “Brazil is asking very good questions, very interesting questions of the field of applied linguistics that are not asked anywhere else”22 22 “O Brasil tem feito perguntas muito boas, perguntas muito interessantes, que não são perguntadas em nenhum outro lugar” (KRAMSCH, tradução minha). . No entanto, muitas vezes essas perguntas têm sido respondidas por meio de olhares e teorias eurocêntricas, e não ressignificadas e repensadas a partir do prisma brasileiro, não excludente do outro, mas crítico e devorador - de certo modo, antropofágico - na criação de uma coisa que seria nossa (ANDRADE, 2011ANDRADE, O. A utopia antropofágica. São Paulo: Globo, 2011.). E não se trata, como afirmado por Angela Kleiman (2013KLEIMAN, A. B. Agenda de pesquisa e ação em linguística aplicada: problematizações. In: MOITA LOPES, L. P. da (Org.). Linguística aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola , 2013. p. 39-58., p. 40), de “trazer outras vozes latino-americanas, a fim de ‘sulear’ (orientar para o Sul) o debate e questionar a hegemonia ocidental do Norte, ainda imperante na definição de nossos problemas de pesquisa”, sobretudo pelo risco de homogeneizar o Brasil a partir da ideia, já debatida na seção anterior, de uma “América Latina”, mas de lançar um olhar brasileiro, um (re)pensar brasileiro, sobre problemas que afligem ambos os campos de pesquisa, tais como a questão da raça, da desigualdade, da educação etc.

Em relação ao último campo citado, a educação, campo tão fértil na LA e que reuniu o maior número de trabalhos apresentados nas três últimas edições do Congresso Nacional de Linguística Aplicada (CBLA), organizado pela Associação de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB), Pereira (2012PEREIRA, A. Brazilian studies then and now. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , London, v. 2, n. 1, p. 3-21, 2012., p. 17) afirma que os “estudos brasileiros têm muito a oferecer”. Nesse sentido, procurarei na próxima subseção realizar um breve levantamento da situação atual da pesquisa em ensinagem de línguas no Brasil, a partir de pesquisadores que têm estudado a questão, bem como de pesquisas publicadas nos últimos dois livros lançados pela ALAB, que, em meu ver, sinalizam de modo abrangente os principais interesses de pesquisa no campo da ensinagem de línguas no Brasil: Linguística aplicada e sociedade: ensino e aprendizagem de línguas no contexto brasileiro (SZUNDY et al., 2011SZUNDY, P. T. C. et al. (Orgs.). Linguística aplicada e sociedade: ensino e aprendizagem de línguas no contexto brasileiro . Campinas: Pontes , 2011.), lançado durante o CBLA de 2011, e Política e políticas linguísticas (NICOLAIDES et al., 2013NICOLAIDES, C. SZUNDY, P. T. C. A “ensinagem” de línguas no Brasil sob a perspectiva da linguística aplicada: um paralelo com a história da ALAB. In: GERHARDT, A. F. L. M.; AMORIM, M. A. de; CARVALHO, A. M. Linguística aplicada e ensino: língua e literatura. Campinas: Pontes , 2013. p. 15-46.), lançado durante o CBLA de 2013. Após esse breve levantamento, tecerei considerações sobre as possíveis contribuições que um olhar brasilianista poderia trazer para o campo da educação linguística no Brasil23 23 Ressalto que não enxergo o campo da LA como sinônimo de pesquisas em ensinagem de línguas, mas abordo esse nicho pelo fato de pesquisas em educação linguística ainda serem predominantes nas agendas de linguistas aplicados brasileiros, como pode ser atestado por uma breve análise da programação e listagem de comunicações/pôsteres das edições dos CBLAs mencionadas. , a partir da discussão levantada durante todo este artigo.

4.1 Contribuições do diálogo entre a LA e os estudos brasileiros para a pesquisa em ensinagem

Moita Lopes (1996), MOITA LOPES, L. P. Oficina de linguística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996.em um texto publicado há vinte e um anos, formulava, como direcionamento das pesquisas em ensino na LA, duas diferentes vertentes: 1) uma de natureza teórico-especulativa, com base teórica advinda especialmente da linguística, que ditava modos e procedimentos para a sala de aula; e 2) uma focada na investigação do produto da aprendizagem de línguas, levando para as salas de aula as implicações possíveis de determinada teoria da área da linguística, sob a forma de abordagem ou método, investigando seus resultados. Na verdade, esses modos de fazer pesquisa em ensinagem de línguas ainda se fazem presentes, mas não mais como encaminhamentos mainstream; o que se verifica hoje é uma tendência de pesquisa em três diferentes vertentes: 1) pesquisas de cunho investigativo/etnográfico; 2) pesquisas de cunho propositivo/intervencionista; e 3) pesquisas calcadas em base político-educacional. As duas primeiras tendências, inclusive, apresentam ecos das visões diagnóstica e intervencionista propostas por Moita Lopes (1996), como continuidade das tradições de pesquisa dos anos 1990. No entanto, a crescente construção do tipo de pesquisa a que chamo de político-educacional é fenômeno relativamente recente na área da LA. Ademais, é necessário ressaltar que a diferenciação aqui efetuada tem caráter didático, e que, muitas vezes, esses modos de fazer pesquisa se intercambiam, auxiliam-se mutuamente no fazer científico de pesquisadores brasileiros.

Metodologicamente, o que chamo de pesquisa de cunho etnográfico/investigativo agrupa investigações que visam, a partir de etnografia contextualizada ou análise de textos/discursos em situações de ensinagem, a compreender de que modo práticas de educação linguística e seus agentes têm se comportado e se construído em território brasileiro. Exemplos de pesquisas nessa direção são encontrados no texto de Eliane G. Lousada (2011LOUSADA, E. G. Aprendendo o “métier” de professor: uma análise de textos produzidos em situações de formação inicial de professores de francês. In: SZUNDY, P. T. C. et al. (Orgs.). Linguística aplicada e sociedade: ensino e aprendizagem de línguas no contexto brasileiro . Campinas: Pontes , 2011. p. 111-134.), “Aprendendo o ‘métier’ de professor: uma análise de textos produzidos em situação de formação inicial de professores de francês”, no qual a autora realiza uma análise discursiva e enunciativa de textos produzidos em situações de formação profissional para compreender como ocorre a aprendizagem do “métier” de professor por jovens professores e mestrandos, e no trabalho de Douglas Altamiro Consolo e Priscila Petian Anchieta (2011CONSOLO, D. A.; ANCHIETA, P. P. Avaliação de proficiência em língua estrangeira em meios virtuais: alguns princípios e características de exames e testes eletrônicos. In: SZUNDY, P. T. C. et al. (Orgs.). Linguística aplicada e sociedade: ensino e aprendizagem de línguas no contexto brasileiro. Campinas: Pontes, 2011. p. 197-215.), “Avaliação de proficiência em língua estrangeira em meios virtuais: alguns princípios e características de exames e testes eletrônicos”, no qual os autores examinam algumas das características de exames de avaliação de proficiência em línguas estrangeiras, levantando pontos positivos e negativos.

Por pesquisas propositivas/intervencionistas, enxergo aquele modo do fazer científico que, partindo de investigações sobre a natureza da linguagem e do ensino, traz propostas para a concretização da ensinagem de línguas em território nacional. Nesse sentido, investigações sobre gêneros discursivos/textuais e na área de produção de materiais didáticos e formação do professor têm exercido enorme influência na fortificação dessa tradição de pesquisa. Exemplos desse tipo de investigação são os textos de Branca Falabella Fabrício (2011FABRÍCIO, B. F. O processo de negociação de novas identidades profissionais. In: SZUNDY, P. T. C. et al. (Orgs.) Linguística aplicada e sociedade: ensino e aprendizagem de línguas no contexto brasileiro . Campinas: Pontes , 2011. p. 137-157.), “O processo de negociação de novas identidades profissionais” - no qual, a partir de um processo de implementação de novas abordagens teórico-metodológicas, a autora investigou fricções e mudanças na identidade dos profissionais envolvidos nesse processo -, e o de Christine Nicolaides e Rogério Tílio (2011NICOLAIDES, C.; TILIO, R. O material didático na promoção da aprendizagem autônoma de línguas por meio do letramento crítico. In: SZUNDY, P. T. C. et al. (Orgs.). Linguística aplicada e sociedade: ensino e aprendizagem de línguas no contexto brasileiro . Campinas: Pontes , 2011. p. 175-196.), “O material didático na promoção da aprendizagem autônoma de línguas por meio do letramento crítico”, que, a partir de uma discussão teórica, traz um levantamento do que os autores acreditam ser relevante para materiais didáticos voltados ao ensino de línguas, a partir da ideia de promoção da autonomia do aprendiz.

Por fim, as pesquisas de cunho político-educacional seriam aquelas que se centram nas características do fazer política linguística e na análise política das consequências de tal fazer. Sobretudo, agrupam-se aqui pesquisas que analisam o cenário político nacional e sua relação com documentos oficiais de orientação curricular e/ou com aspectos funcionais, logísticos e teóricos de currículos oficiais, materiais didáticos etc., sempre tendo em mente a relação entre tais objetivos de pesquisa e a construção da ensinagem de línguas em território nacional como forma de construção do cidadão crítico e de rumos para o país. Como exemplos específicos desse modo de fazer pesquisa, temos o capítulo “Ensino do espanhol no Brasil: uma (complexa) questão de política linguística”, de Xoán Carlos Lugares (2013LUGARES, X. C. Ensino do espanhol no Brasil: uma (complexa) questão de política linguística. In: NICOLAIDES, C. et al. (Orgs.). Política e políticas linguísticas. Campinas: Pontes , 2013. p. 181-198.) - que estuda a situação do ensino da língua espanhola no Brasil após a implantação da lei que torna obrigatória a oferta da disciplina no ensino médio brasileiro -, e o capítulo “As políticas de ensino de línguas e o projeto de letramentos”, de Walkyria Monte Mór (2013), que discute as políticas de ensino de línguas e formação de professores de idiomas na educação formal, identificando desafios e avaliando a propriedade de teorias de letramentos para consolidação de uma educação de qualidade e socialmente inclusiva. Ressalto que esse tipo de pesquisa concentra muitas das qualidades investigativas do fazer investigativo/etnográfico; no entanto, a pesquisa político-educacional se concentra em contextos mais amplos, perscrutando contribuições em áreas como a do planejamento linguístico em contextos municipais, estaduais e até federais.

Advogo, com base nos apontamentos até aqui realizados, que o diálogo da pesquisa em LA com o olhar proposto por brasilianistas pode, sem dúvida, contribuir para a construção de uma agenda de pesquisa - seja ela investigativa/etnográfica, propositivo/intervencionista ou político-educacional - mais responsável e responsiva no campo da educação linguística brasileira, sobretudo na ensinagem das línguas maternas e estrangeiras. De fato, o diálogo “transfértil” entre a LA e os estudos brasileiros pode auxiliar nos seguintes fatores: 1) na construção de uma efetiva relação entre práticas de pesquisa de ensinagem de línguas e os contextos e estruturas macropolíticos nos quais a ensinagem efetivamente ocorre; 2) na problematização e estranhamento de teorias importadas para a ensinagem de línguas que, por vezes, sem um mínimo movimento de apropriação, são aplicadas no contexto brasileiro; e 3) a relativização da ideia de América Latina e de solo comum entre o Brasil e outros países sul-americanos, que permeia algumas pesquisas em ensinagem que têm em vertentes culturais suas lentes para o enxergar da educação linguística no Brasil.

Em primeiro lugar, os estudos brasileiros podem facultar aos linguistas aplicados a ideia de que as práticas de ensinagem de línguas ocorrem situadamente, não apenas em microestruturas político-econômicas e sociais, mas também considerando o diálogo dessas com macroestruturas de poder. Em outras palavras, toda prática de ensinagem, apesar de se situar em salas de aula específicas, onde circulam alunos e professores específicos sob especificas normatizações e visões do que seja o ensinar-e-aprender línguas, situa-se também sob discursos mais amplos, que constroem as macroestruturas de poder. A partir de um olhar brasilianista, ao nos debruçarmos sobre práticas de letramentos, por exemplo, mais do que reconhecermos a necessidade de prepararmos nossos alunos para lidar criticamente com as tecnologias da leitura e da escrita, os preparamos também para a vida em um país que abre espaço para a circulação de determinados discursos, epistemologias, cosmologias, e não de outros, sendo necessário que nossos alunos sejam capazes de compreender que discursos são esses, para que possam, efetivamente, contribuir para a tão almejada mudança social.

Nesse sentido, é importante ressaltar que todo e qualquer conhecimento construído na escola é guiado macrossocialmente; exemplos simples relacionados a essa afirmativa podem ser encontrados nas decisões políticas, e não apenas político-linguísticas, concernentes a questões como, por exemplo: “que língua ensinar na escola?”. Sabemos que a língua materna brasileira, por resultado da colonização portuguesa sobre o país, é a língua portuguesa, e a visão normativa dessa língua é, como determinam as diretrizes para o ensino em território nacional, aquela que deve ser valorada nas escolas e em outras instituições formais de ensino. Da forma como proposta, essa determinação, apesar de até certo ponto necessária, exclui a abordagem de centenas de outras línguas existentes, faladas no espaço sócio-histórico-cultural chamado Brasil, que também contribuem para a construção da aparente identidade desse país - especialmente as línguas indígenas. Os estudos brasileiros podem contribuir, inclusive, para um pensar sobre possíveis revoluções epistemológicas que o estudo, ensino, difusão e prática das línguas indígenas trariam para o mundo, em geral, e para a ensinagem brasileira, em particular. Desse modo, um fazer pesquisa em LA que considere apenas o contexto local, chamado microcontexto, e as especificidades de salas de aula em particular, sem considerar a relação entre as mudanças operadas nessas conjunturas e o contexto macropolítico e social do país, a partir de um olhar brasilianista, contribui para a manutenção da separação entre a pesquisa em sala de aula e modos de fazer ciência responsáveis e responsivos ao cenário brasileiro contemporâneo, isto é, que não consideram a prática da pesquisa como propiciadora de mudanças em nível nacional.

Nesse sentido, é importante dar destaque aqui a alguns pesquisadores que já têm buscado construir suas investigações tendo em vista questões necessárias na atualidade do espaço social, geográfico e cultural que chamamos de Brasil, seja no pensar de práticas de ensinagem de línguas que procurem problematizar o que normalmente se entende como performances identitárias de raça, gênero e sexualidade, por exemplo, em diferentes níveis de ensino (ROCHA, 2013ROCHA, L. L. Teoria queer e a sala de aula de inglês na escola pública: performatividade, indexicalidade e estilização. 2013. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.; SILVA, 2015SILVA, L. L. da. Letramentos queer e trajetórias de socialização na "sala de aula de inglês" no ensino fundamental I. 2015. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.) - questão altamente em voga no cenário brasileiro -, seja no pensar do ensino de habilidades linguísticas em língua estrangeira como forma de propiciar ao aluno as ferramentas necessárias para a compreensão de discursos translocais em práticas de letramentos críticos nas escolas brasileiras (GERHARDT; LEMOS, no prelo). Apesar de importantes, pesquisas como essas representam uma pequena parcela do que vem sendo produzido no âmbito da LA nacional, que, na maior parte das vezes, se concentra nas microestruturas e microcontextos, iluminando situações específicas de aprendizagem sem relacionar tais situações ao entorno socioeconômico e cultural mais amplo. A mencionada problemática do ensino de línguas indígenas no país, por sua vez, não é, ainda hoje, uma questão amplamente abordada por linguistas aplicados brasileiros, com poucas exceções como os projetos de pesquisa “O índio e a escola: linguagem na construção de representações sobre a educação indígena pós-contato”, realizado no período 1997-1999 e “Políticas linguísticas, políticas de identidade: representações em práticas discursivas” (2009-2012) capitaneados, respectivamente, pelas linguistas aplicadas Marilda do Couto Cavalcanti e Terezinha de Jesus Machado Maher da Unicamp.

No encalço da necessidade de se relacionar a pesquisa em ensino ao contexto brasileiro mais amplo, outra contribuição de um olhar dos estudos brasileiros para a LA pode se dar na problematização da importação de teorias para o fazer pesquisa em LA na academia nacional. Isso pode se concretizar, particularmente, a partir do levantamento de questões específicas e caras ao contexto brasileiro. Moita Lopes (2013, p. 16) já levanta a necessidade de pensar em questões que “necessitam ser formuladas e/ou respondidas, notadamente, no Brasil” e que, acrescento, possam ser respondidas a partir de lentes e teorias brasileiras ou ressignificadas/apropriadas pelo contexto brasileiro. A simples importação de bases teórico-metodológicas - como o que ocorre, por exemplo, com grande parte de pesquisas sobre o interacionismo sociodiscursivo e a ideia de sequências didáticas e sua posterior aplicação em salas de aula brasileira - traz mais riscos do que elucidações sobre a problemática de ensinar e aprender línguas no Brasil. As citadas sequências didáticas, por exemplo, inicialmente propostas para a ensinagem de língua materna no contexto francófono pelo Grupo de Genebra, têm sido constantemente transpostas para a pesquisa e escola brasileiras sem que antes questões como o que e como o aluno brasileiro, em escolas brasileiras, aprende sejam perguntadas.

Nesse sentido, o que os estudos brasileiros nos fazem enxergar é a necessidade de construirmos um olhar teórico translocal para a pesquisa em LA, seja pela apropriação crítica de teorias estrangeiras devidamente ressignificadas para o contexto brasileiro, seja pela utilização de lentes brasileiras em nosso fazer científico: poucas ainda são as pesquisas em LA que se apropriam de Paulo Freire para a ressignificação de conceitos como os de autonomia ou letramento crítico - vale lembrar que, apesar de não falar conceitualmente em letramento, o educador discorre extensamente sobre a ideia de criticidade em sua obra - (NICOLAIDES, 2005NICOLAIDES, C. S. Inglês no contexto de Hong Kong: um olhar de fora em relação ao aprendizado autônomo de línguas. In: FREIRE, M. M.; ABRAHÃO, M. H. V.; BARCELOS, A. M. F. (Orgs.). Linguística aplicada e contemporaneidade. Campinas: Pontes , 2005. p. 155-172.), e inexistentes são aquelas que procuram pensar questões como a interculturalidade no ensino de línguas a partir da antropofagia, por exemplo, conceito procedimental nos ofertado por Oswald de Andrade para pensar a violenta - e não pacífica, como imbuído no prefixo inter - relação entre culturas nacionais e estrangeiras (AMORIM, 2016AMORIM, M. A. de. Da tradução/adaptação como prática transcultural: um olhar sobre o Hamlet em terras estrangeiras. 2016. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.). E, como já afirmado, não se trata aqui, como proposto por Kleiman (2013KLEIMAN, A. B. Agenda de pesquisa e ação em linguística aplicada: problematizações. In: MOITA LOPES, L. P. da (Org.). Linguística aplicada na modernidade recente: festschrift para Antonieta Celani. São Paulo: Parábola , 2013. p. 39-58.), de se centrar em teorias amplamente designadas como latinas, o que é tão problemático, a meu ver, quanto a consideração de olhares apenas europeus ou americanos nos modos de fazer pesquisa no Brasil.

A negação de uma relação explícita entre o Brasil e o que usualmente se denomina “América Latina”, um conceito advindo da França e originalmente usado por intelectuais franceses na tentativa de justificar o imperialismo napoleônico no México (BETHELL, 2010BETHELL, L. Brazil and “Latin America”. Journal of Latin American Studies, Cambridge, v. 42, p. 457-485, 2010.), é, desse modo, mais uma contribuição possível dos estudos brasileiros à LA e aos estudos em ensinagem. A ideia de uma América Latina surge num contexto em que era necessário construir uma suposta afinidade entre os países sul-americanos, de modo que eles pudessem se defender de uma influência anglo-saxã, especialmente norte-americana (BETHELL, 2010). Entretanto, já em sua origem, intelectuais franceses não enxergavam o Brasil como parte desses países, sendo “América Latina” apenas outro nome para “América Espanhola”. O Brasil, como Estado, já se diferenciava de outros países sul-americanos em sua constituição; o processo de colonização portuguesa sobre o Brasil foi notadamente diferente do processo de colonização espanhola em países como a Argentina e o Chile, sendo também diversos os processos de independência desses países. Ainda hoje, como sinaliza Bethell (2010BETHELL, L. Brazil and “Latin America”. Journal of Latin American Studies, Cambridge, v. 42, p. 457-485, 2010., p. 481), o Brasil não possui “um engajamento profundo com o resto da região”, mesmo se considerarmos a criação de associações como o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL)24 24 Processo de integração comercial regional que se iniciou em 26 de março de 1991, a partir da assinatura do Tratado de Assunção pelos governos da Argentina, do Brasil, do Paraguai e do Uruguai. . Aliás, é interessante notar que se trata de um mercado comum do Sul e não Latino.

Nesse sentido, as pesquisas em ensinagem realizadas no âmbito da LA deveriam se voltar à compreensão do espaço sociopolítico e geográfico que chamamos de Brasil, sem explicitamente constituírem olhares generalizadores sobre a região que denominamos “América Latina” e sobre as diferentes práticas de ensino realizadas em países sul-americanos tão diversos como o Brasil e o Paraguai. Com efeito, mais do que um movimento de regionalização da LA na América Latina, como proposto por alguns pesquisadores brasileiros em relação à observação de políticas linguísticas em espaços sul-americanos, a investigação em LA poderia se ater ao contexto nacional e à necessidade de construção de olhares e lentes translocais. Tal postura não ignora as semelhanças e cruzamentos entre o Brasil e nossos vizinhos da América do Sul, mas postula que os problemas concernentes às salas de aula brasileiras são específicos, uma vez que nosso país se desenvolve de acordo com suas próprias especificidades: apesar de fortificarem a imagem da região institucionalmente, uniões como a proporcionada pelo uso do termo “América Latina” podem desingularizar o país, e, por consequência, impedir a construção de paralelos entre a pesquisa em ensinagem no Brasil e as pesquisas em ensinagem em outros contextos, como o africano, o europeu, o asiático etc., que têm tanto ou mais a oferecer em relação à pesquisa em contextos sul-americanos.

Por fim, ressalto que não apenas a LA pode lucrar com esse encontro epistemológico com os estudos brasileiros, mas também os próprios brasilianistas podem se apropriar criticamente do que a LA nacional oferece na construção de seus projetos de pesquisa: a LA indisciplinar é conhecida por discutir perguntas importantes que emergem dos modos de vida da população nacional, sobretudo de práticas de ensinagem de línguas na educação linguística brasileira. E, nos estudos brasileiros, ainda é baixo o volume de textos que tenham como foco a investigação sobre a sala de aula e sua relação efetiva com o espaço social, geográfico e político que chamamos de Brasil. Na principal revista dedicada aos estudos brasileiros, a Brasiliana - Journal for Brazilian Studies, em cinco anos, apenas dois textos publicados refletiam, direta ou indiretamente, acerca da questão educacional nacional; um deles é o interessante e necessário trabalho de Adonia Antunes Prado e Luciana Siqueira da Costa D’Arrochella (2013PRADO, A. A.; D’ARROCHELLA, L. S. da C. Panorama da educação para a prevenção do trabalho forçado no Brasil. Brasiliana - Journal for Brazilian Studies , Londres, v. 2, n. 2, p. 219-235, 2013.), que desenha um panorama da educação que auxiliaria na prevenção do trabalho forçado no Brasil, efetivando o que aqui defendo como a relação entre práticas contextualizadas e problemas do cenário nacional. Advogo, então, a necessidade de propor àqueles que fazem estudos brasileiros que, a partir de seus lugares de pesquisa, olhem também para o ensino brasileiro, de modo geral, e para a prática de ensinagem de línguas, em específico. Ou ainda, é necessário que os próprios linguistas aplicados se constituam enquanto brasilianistas, construindo pesquisas sobre a sala de aula nacional a partir de um olhar brasileiro crítico e questionador. O diálogo entre essas duas áreas, além de necessário, pode concretizar modos de fazer ciência, como já afirmei, realmente responsáveis e responsivos ao contexto e cenário contemporâneos.

5 Considerações finais

Neste artigo foi traçado como objetivo a construção de paralelos entre a LA, sobretudo em sua vertente indisciplinar, e os estudos brasileiros, áreas relativamente novas e emergentes no cenário acadêmico. Também se pretendeu discutir de que modo esse diálogo poderia contribuir para o atual cenário das pesquisas em ensinagem de línguas na educação linguística nacional. Para tanto, inicialmente, empreendi esforços em uma breve compreensão sobre cada uma das áreas, contextualizando suas trajetórias e apresentando as principais compreensões epistemológicas adotadas por seus pesquisadores na atualidade. Depois, efetuei um paralelo entre as áreas, apontando, por meio de generalizações fundamentadas na literatura, o estado e os direcionamentos da pesquisa em ensinagem de línguas no Brasil, sinalizando, finalmente, para as contribuições possíveis dos estudos brasileiros para um movimento de se pensar a escola - pública e privada - nacional.

A partir de tal objetivo e do caminho investigativo traçado, sinalizo que o diálogo entre esses dois campos de pesquisa pode auxiliar: 1) na construção de projetos e pesquisas em ensinagem que relacionem contextos locais a estruturas macrossociais mais amplas; 2) na problematização e estranhamento de teorias importadas para a ensinagem de línguas no contexto brasileiro; e 3) na relativização da ideia de América Latina que guia algumas investigações em ensinagem e iniciativas de regionalização da LA nacional. Além disso, a partir da comparação entre a estrutura docente de um importante programa de pós-graduação em LA no espaço sociopolítico brasileiro - sobretudo, pelo fato desse programa abrigar atuantes pesquisadores do campo - e a estrutura docente de um grande centro inglês produtor de conhecimento em estudos brasileiros, advogo também a necessidade de repensar a inter/multi/transdisciplinaridade na formação docente do pesquisador - e, por consequência, de programas - em LA: é evidente que a abertura de portas a investigadores de outras áreas pode contribuir para a construção de uma LA contemporânea e realmente indisciplinar.

Por fim, ressalto que, assim como sinalizado por Moita Lopes (2006a) em relação à proposta de sua obra Por uma linguística aplicada indisciplinar, apresentei, neste artigo, apenas um rumo possível para esse campo de investigações, não pretendendo concretizar aqui um caminho crítico único ou uma rota segura para a construção de agendas de pesquisa. No entanto, problematizações como as aqui construídas são necessárias se concordarmos com o projeto de construção de modos de fazer ciência responsáveis e responsivos ao momento e contexto contemporâneos: no nosso caso, ao Brasil da segunda década do século XXI.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2016
  • Aceito
    21 Out 2016
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