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As atividades sociais como possibilidade para construção do currículo de português brasileiro para imigrantes

Social Activities as a Possibility for the Development of a Brazilian Portuguese Curriculum for Immigrants

RESUMO

Este artigo tem como objetivo tratar do ensino de português brasileiro para imigrantes a partir de atividades sociais (VYGOTSKY, 2001VYGOTSKY, L. S. Psicologia pedagógica. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes , 2001. [1a publicação em 1923]; LEONTIEV, 1977LEONTIEV, A. N. Activity and Consciousness. Moscow: Progress Publishers, 1977.; ENGËSTROM, 2011ENGESTRÖM, Y. From Design Experiments to Formative Interventions. Theory and Psychology, Calgary, v. 21, n. 5, p. 598-628, 2011. DOI: https://doi.org/10.1177/0959354311419252
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/...
, VYGOTSKY; LURIA; LEONTIEV, 2010VYGOTSKY, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem . São Paulo: Ícone , 2010.), compreendidas como atividades da vida cotidiana. Para evidenciá-las, comentamos o trabalho didático-pedagógico realizado com base na atividade social “procurar um emprego”. Procuramos, assim, responder à pergunta: de que maneira(s) o ensino de Português como Língua Adicional (PLA), com base em atividades sociais, pode ser uma forma de os educandos imigrantes ampliarem o seu repertório e construírem mobilidade? Visando encontrar uma resposta, discorremos sobre o trabalho desenvolvido em duas turmas de alunos haitianos de um Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos. A análise dos dados parece indicar as atividades sociais como possibilidade para construção do currículo de PLA.

PALAVRAS-CHAVE:
atividade social; português brasileiro para alunos imigrantes; Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos

ABSTRACT

This article discusses the teaching of Brazilian Portuguese to immigrants through social activities (VYGOTSKY, 2001VYGOTSKY, L. S. Psicologia pedagógica. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes , 2001. [1a publicação em 1923]; LEONTIEV, 1977LEONTIEV, A. N. Activity and Consciousness. Moscow: Progress Publishers, 1977.; ENGËSTROM, 2011ENGESTRÖM, Y. From Design Experiments to Formative Interventions. Theory and Psychology, Calgary, v. 21, n. 5, p. 598-628, 2011. DOI: https://doi.org/10.1177/0959354311419252
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/...
; VYGOTSKY; LURIA; LEONTIEV, 2010VYGOTSKY, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem . São Paulo: Ícone , 2010.), understood as activities that allow establishing links between school and life. To highlight these links, we presented didactic-pedagogical work based on the social activity “looking for a job”. In this text, we focus on the question: how can teaching Brazilian Portuguese as an additional language (PAL) based on social activities be a way for immigrant students to expand their repertoire and develop mobility? To answer it, we discussed the work carried out in two groups of Haitian students of an Integrated Center for Youth and Adult Education. The data analysis seems to indicate that the social activities are a possibility for the development of a PAL curriculum.

KEYWORDS:
social activity; Brazilian Portuguese for immigrant students; Integrated Center for Youth and Adult Education

Introdução

O objetivo deste artigo1 1 Este artigo é resultante de um projeto de pesquisa em nível de pós-doutorado aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 17 de maio de 2019. Esta aprovação está registrada sob o parecer nº 3.332.882 e sob o CAAE nº 10487119.8.0000.5482. A referida pesquisa ainda está em andamento; por esse motivo e por limitações de espaço, este texto procurou relatar apenas parte dela. Em textos escritos posteriormente com base em tal pesquisa (que estão no prelo), foram apresentados alguns de seus outros resultados. Apesar disso, este artigo pode trazer, a nosso ver, contribuições para a área de Linguística Aplicada, uma vez que, até o momento atual, encontramos somente um texto que trata do ensino de português para imigrantes com base em atividades sociais (CABABE, 2014). consiste em tratar do ensino de português para imigrantes a partir de atividades sociais, compreendidas como atividades “da vida que se vive”. (MARX; ENGELS, 2006MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução de Sílvio D. Chagas. São Paulo: Centauro, 2006., p. 26). Visando alcançar esse propósito, procuraremos responder à seguinte pergunta: de que maneira(s) o ensino de Português como Língua Adicional (PLA), com base em atividades sociais, pode ser uma forma de os educandos imigrantes ampliarem o seu repertório e construírem mobilidade? Para tal, organizamos este artigo em quatro seções.

Na primeira, explicamos a escolha do termo “língua adicional”, em vez de “língua de acolhimento”, no contexto do ensino de português para imigrantes. Para tal, apresentamos, brevemente, as noções de repertório (BUSCH, 2012BUSCH, B. The Linguistic Repertoire Revisited. Applied Linguistics, Oxford, v. 33, n. 5, 503-523, 2012. DOI: https://doi.org/10.1093/applin/ams056
https://doi.org/https://doi.org/10.1093/...
, 2015BUSCH, B. Linguistic Repertoire and Spracherleben: The Lived Experience of Language. London: King’s College London, 2015.) e mobilidade (BLOMMAERT, 2010BLOMMAERT, J. Language, Globalization and History. In: ______. The Sociolinguistics of Globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.; BLOMMAERT; BACKUS, 2014BLOMMAERT, J; BACKUS, A. From Mobility to Complexity in Sociolinguistic Theory and Method. Tilburg: Tilburg University, 2014.; LIBERALI et al., 2017LIBERALI, F. C.; LIBERALI, C. C.; PADRE, B. T.; SANTOS, J. A. A. Mobilidade e práticas translíngues na construção de um mundo com justiça social: um estudo no projeto Digit-M-ed. In: ROCHA, C. H.; EL KADRI, M. S.; WINDLE, J. A. (org.). Diálogos sobre tecnologia educacional: educação linguística, mobilidade e práticas translíngues. Campinas: Pontes , 2017.).

Na segunda, comentamos, de forma sucinta, algumas pesquisas que, direta ou indiretamente, tratam do currículo de português para imigrantes. Além disso, dada a insuficiência de diretrizes curriculares2 2 No segundo semestre de 2020, foi publicado um documento intitulado Diretrizes Curriculares Nacionais para a Oferta de Educação Plurilíngue (BRASIL, 2020). Nesse documento, a nosso ver, o ensino de português como língua adicional/língua de acolhimento é abordado de maneira bastante equivocada e insuficiente, sobretudo porque une dois contextos diversos - o das escolas de fronteiras e o de migrações de crise - e, ao fazê-lo, desconsidera as singularidades de cada um deles. Não há, além desse, outros documentos que ofereçam orientações curriculares nacionais voltadas ao ensino de português para falantes de outras línguas. Por isso, podemos afirmar que, se até o primeiro semestre de 2020, essas diretrizes eram inexistentes, atualmente, são insuficientes. para o ensino de português como língua adicional (PLA), delineamos uma proposta de organização desse currículo: propomos que seja baseado em atividades sociais.

Na terceira, discorremos acerca da presença de uma grande quantidade de educandos imigrantes em um Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (CIEJA), localizado na periferia da cidade de São Paulo: o CIEJA Perus I, que faz parte da Educação de Jovens e Adultos e que, por isso, possibilita a conclusão do ensino fundamental àqueles que não puderam iniciar ou completar seus estudos na suposta “idade certa”. Embora vários desses discentes tenham um nível alto de escolaridade, eles se matricularam nessa instituição educacional, provavelmente, devido à escassez, no Brasil, de instituições educacionais públicas e gratuitas e que visem ao atendimento das necessidades específicas dos alunos imigrantes.

Na quarta, relatamos o desenvolvimento de algumas atividades didáticas pautadas na atividade social “procurar um emprego”, as quais foram realizadas no segundo semestre de 2019 e que têm se expandido para todo o CIEJA em 2020. Ao fazer esse relato, procuramos evidenciar que a ideia de se trabalhar com essa temática surgiu das próprias condições de vida de grande parte dos discentes imigrantes dessa instituição, muitos dos quais estavam desempregados e precisavam ampliar o seu repertório e construir mobilidade para ir em busca de um emprego.

Por fim, tecemos algumas considerações que sintetizam as principais reflexões tratadas neste artigo.

1 A opção pelo termo “português como língua adicional”

No âmbito da pedagogia de línguas, é bastante usual se fazer a distinção entre os termos “segunda língua” (L2) e “língua estrangeira” (LE), considerando que o primeiro termo se refere a uma língua aprendida, geralmente, em um lugar onde ela tem o status de língua oficial, e que o segundo diz respeito à língua aprendida, em geral, em um espaço onde ela não tem esse status e é estudada em um contexto de educação formal (BALBONI, 1999BALBONI, P. Dizionario di Glottodidattica. Perugia: Guerra Edizioni, 1999.).

Com base nessas definições, na área de ensino de português brasileiro como língua não materna, há alguns anos, era frequente o uso do termo L2 para designar a língua portuguesa ensinada no Brasil, e do termo LE para designar a língua portuguesa ensinada fora do nosso país. No entanto, para alguns autores, esses dois termos não englobam a complexidade do processo de ensino-aprendizagem de português por parte de sujeitos que não o têm como primeira língua. Por isso, Almeida Filho e Lombello (1992ALMEIDA FILHO, J. C. P.; LOMBELLO, L. (org.). Identidade e caminhos no ensino de português para estrangeiros. Campinas: Pontes, 1992.), Júdice (2005JÚDICE, N. P. M. Tópicos em português como língua estrangeira. Brasília: Editora da UnB, 2005.), entre outros teóricos, propõem o uso do termo “Português para Falantes de Outras Línguas” (PFOL). Esse termo, no entanto, parece não levar em consideração as especificidades dos contextos em que os aprendizes são imigrantes ou refugiados.3 3 De acordo com a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), apesar de a mídia empregar, frequentemente, os termos imigrante e refugiado como sinônimos, há uma diferença essencial entre eles. Para a ACNUR, o imigrante é qualquer pessoa que sai de seu país e vai para outro; já o refugiado é aquele que deixa o seu país de origem para fugir de guerras, perseguições e/ou qualquer outro motivo que coloque a sua vida em risco. Assim, cabe ressaltar que os alunos participantes do trabalho didático-pedagógico relatado neste artigo, são, em sua maioria, imigrantes; mas há, também, um pequeno número de refugiados. Em tais contextos, tem-se utilizado, principalmente, o termo “Português como Língua de Acolhimento” (PLAc), que, segundo São Bernardo (2016SÃO BERNARDO, M. A. de. Português como língua de acolhimento: um estudo com imigrantes e pessoas em situação de refúgio no Brasil. 2016. 206f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2016.), ultrapassa as noções de L2, LE e PFOL e indica a importância e a necessidade do acolhimento e da integração dos imigrantes na cultura e na sociedade brasileiras.

Vale ressaltar que, neste artigo, os termos “integração” e “integrar-se” não designam a “assimilação” da cultura e sociedade brasileiras pelos imigrantes, pois, nesse caso, seria esperado que eles abandonassem a sua cultura de origem para absorver aspectos socioculturais do país que os recebe. Aqui, pelo contrário, empregamos a palavra “integração” compreendendo-a como um “processo de ajuste de repertórios culturais e sociais” (ANUNCIAÇÃO, 2017ANUNCIAÇÃO, R. F. M. de. Somos mais que isso: práticas de (re)existência de migrantes e refugiados frente à despossessão e ao não reconhecimento. 2017. 127f. Dissertação (Mestrado em Linguística Aplicada) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017., p. 9) em que os elementos socioculturais dos imigrantes (dos quais também faz parte a sua língua) são valorizados.

Neste artigo, embora saibamos que o termo PLAc seja amplamente empregado no âmbito da educação de imigrantes e refugiados, optamos por utilizar o termo “Português como Língua Adicional” (PLA). Essa escolha foi feita tendo em vista que, como afirma Anunciação (2018ANUNCIAÇÃO, R. F. M. de. A língua que acolhe pode silenciar? Reflexões sobre o conceito de ‘português como língua de acolhimento’. Revista X, Curitiba, v. 13, n. 1, p. 35-56, 2018. DOI: https://doi.org/10.5380/rvx.v13i1.60341
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), apesar de a palavra “acolhimento” ter, em geral, uma conotação positiva, o termo PLAc foi transposto diretamente do contexto político-linguístico europeu, que, baseado em um multiculturalismo liberal (MAHER, 2007MAHER, T. M. J. Do casulo ao movimento: a suspensão das certezas na educação bilíngue e intercultural. In: CAVALCANTI, M. C.; RICARDO, S. M. B. (org.). Transculturalidade, linguagem e educação. Campinas: Mercado de Letras, 2007. p. 67-94.), desconsidera “as relações de poder que constituem as relações entre culturas, tornando umas hegemônicas, e outras subalternizadas” (ANUNCIAÇÃO, 2018ANUNCIAÇÃO, R. F. M. de. A língua que acolhe pode silenciar? Reflexões sobre o conceito de ‘português como língua de acolhimento’. Revista X, Curitiba, v. 13, n. 1, p. 35-56, 2018. DOI: https://doi.org/10.5380/rvx.v13i1.60341
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, p. 52).

Desse modo, escolhemos empregar o termo PLA para nos referirmos à língua portuguesa aprendida pelos discentes imigrantes. Tal escolha deve-se, também, ao fato de que o termo “língua adicional” diz respeito à língua que se acrescenta “a outras que o educando já possua em seu repertório [...] como parte dos recursos necessários para a cidadania contemporânea” (SCHLATTER; GARCEZ, 2012SCHLATTER, M.; GARCEZ, P. Línguas adicionais na escola: aprendizagens colaborativas em inglês. Erechim: Edelbra, 2012., p. 37), compreendida como a possibilidade de lidar com a complexidade do mundo visando transformá-lo. Essa perspectiva requer o entendimento das “relações humanas como complexas, diversas, situadas e historicamente construídas” (SCHLATTER; GARCEZ, 2012SCHLATTER, M.; GARCEZ, P. Línguas adicionais na escola: aprendizagens colaborativas em inglês. Erechim: Edelbra, 2012., p. 14).

Nessa mesma direção, Leffa e Irala (2014LEFFA, V. J.; IRALA, V. B. O ensino de outras línguas na contemporaneidade: questões conceituais e metodológicas. In: ______. (org.). Uma espiadinha na sala de aula: ensinando línguas adicionais no Brasil. Pelotas: Educat, 2014., p. 22) explicam que, como o ensino da LA parte da primeira língua do aprendiz, há uma tendência “de se valorizar o contexto do aluno, desde suas práticas sociais, os valores de sua comunidade e uma visão crítica da aprendizagem da língua”. Assim, ao termo “língua adicional”, subjaz a ideia de que o ponto de partida para a aprendizagem é o próprio repertório do discente, repertório de cuja constituição fazem parte as línguas que o sujeito já conhece.

Baseando-nos em Busch (2012BUSCH, B. The Linguistic Repertoire Revisited. Applied Linguistics, Oxford, v. 33, n. 5, 503-523, 2012. DOI: https://doi.org/10.1093/applin/ams056
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, 2015BUSCH, B. Linguistic Repertoire and Spracherleben: The Lived Experience of Language. London: King’s College London, 2015.), podemos asseverar que a noção de repertório4 4 Busch (2012, 2015) emprega o termo “repertório linguístico”, embora seja evidente que, em seus textos, a autora não considere que o repertório se restrinja ao âmbito linguístico. Já Blackledge e Creese (2017) bem como Liberali et al. (2017) utilizam o termo “repertório semiótico”. A opção pelo adjetivo “semiótico” é justificada por esses autores com a explicação de que os repertórios são multimodais e incluem, por conseguinte, recursos linguísticos, mas não se limitam a eles. No presente artigo, para apresentar uma definição de repertório, apoiamo-nos, sobretudo, nos postulados de Busch (2012, 2015). Entretanto, também nos pautamos nos postulados dos outros autores citados. Por esse motivo, com o escopo de levar em consideração todos esses postulados, optamos por usar, simplesmente, o termo “repertório” para designar o que Busch (2012, 2015) chama de “repertório linguístico” e o que Blackledge e Creese (2017) e Liberali et al. (2017) chamam de “repertório semiótico”. esteja vinculada à trajetória de vida do sujeito, construída em conformidade com o contexto social, histórico, político e cultural do qual ele faz parte. Uma vez que o repertório tem essa dimensão biográfica, ele é constituído por todos os recursos verbais (as línguas que o sujeito conhece) e não verbais (gestos, expressões faciais, aproximação/distância entre os interlocutores no espaço etc.) de que o sujeito dispõe para interagir no mundo.

Para Blommaert e Backus (2013BLOMMAERT, J; BACKUS, A. Superdiverse Repertoires and the Individual. Current Challenges for Educational Studies. In: SAINT-GEORGES, I.; WEBER, J. (ed.). Multilingualism and Multimodality: Current Challenges for Educational Studies. New York: The Future of Education Research, 2013. p. 11-32. DOI: https://doi.org/10.1007/978-94-6209-266-2_2
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), visto que o repertório reflete a vida do sujeito e, por conseguinte, todas as experiências vivenciadas por ele, o repertório remete não só ao seu local de nascimento, mas também a todos os espaços socioculturais, históricos e políticos onde o sujeito viveu. O fato de o repertório remeter a todas as experiências vivenciadas pelo sujeito em diversos espaços é de relevância crucial no contexto de ensino-aprendizagem da língua portuguesa por imigrantes, pois esses estudantes deixaram seu país de origem em busca de uma melhor qualidade de vida e, ao chegarem ao Brasil, trouxeram consigo todas essas experiências, que os acompanham durante o processo de construção de conhecimentos na e sobre a língua portuguesa.

Ao aprenderem o PLA, os educandos imigrantes ampliam o seu repertório e, consequentemente, podem ter maior mobilidade, ou seja, podem expandir as suas possibilidades de circular em diferentes contextos.

Segundo Blommaert (2010BLOMMAERT, J. Language, Globalization and History. In: ______. The Sociolinguistics of Globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.), a mobilidade não consiste apenas em um termo espacial, afinal, também se refere a um movimento no tempo: as duas dimensões sempre ocorrem juntas, dessa forma, um movimento no espaço também é um movimento no tempo. Liberali et al. (2017LIBERALI, F. C.; LIBERALI, C. C.; PADRE, B. T.; SANTOS, J. A. A. Mobilidade e práticas translíngues na construção de um mundo com justiça social: um estudo no projeto Digit-M-ed. In: ROCHA, C. H.; EL KADRI, M. S.; WINDLE, J. A. (org.). Diálogos sobre tecnologia educacional: educação linguística, mobilidade e práticas translíngues. Campinas: Pontes , 2017.), baseando-se em Blommaert e Backus (2014BLOMMAERT, J; BACKUS, A. From Mobility to Complexity in Sociolinguistic Theory and Method. Tilburg: Tilburg University, 2014.), explicam que a mobilidade está relacionada ao entendimento e à tomada de consciência de certa situação de maneira a utilizar os mais apropriados recursos multimodais existentes no repertório.

Tendo em vista esses aspectos, o termo “língua adicional” parece-nos ser o mais adequado para designar a língua portuguesa aprendida por imigrantes no Brasil, razão pela qual o empregaremos neste artigo. Na próxima seção, exporemos o conceito de atividade social e o apresentaremos como uma possibilidade de organização para o ensino-aprendizagem do PLA.

2 A atividade social como possibilidade de organização para o ensino-aprendizagem de Português como Língua Adicional

No Brasil, apesar do crescente número de imigrantes internacionais que têm chegado às escolas públicas e privadas do ensino básico, parece que ainda não há diretrizes curriculares específicas5 5 Como já foi dito, no Brasil, o único documento nacional que menciona o ensino-aprendizagem de português como língua adicional intitula-se Diretrizes Curriculares Nacionais para a Oferta de Educação Plurilíngue. Contudo, esse documento não traz orientações específicas voltadas a esse âmbito educacional. para o ensino de português como língua adicional.

Na cidade de São Paulo, foi publicado, em 2019, o Currículo da Cidade. Trata-se de um documento de diretrizes curriculares para o desenvolvimento do trabalho didático-pedagógico na rede pública municipal de ensino, abrangendo a educação infantil, o ensino fundamental I e II e a Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Apesar do documento intitulado Currículo da Cidade - Educação de Jovens e Adultos mencionar a grande quantidade de alunos imigrantes que tem se matriculado nas instituições de EJA da cidade de São Paulo, ele não propõe o PLA como componente curricular. Aliás, esse documento estabelece diretrizes curriculares para o trabalho didático-pedagógico na EJA, mas não apresenta sequer orientações que levem em consideração a presença de aprendizes imigrantes nesse contexto educacional. A esse respeito, é trazida uma observação, que nos parece óbvia, mas bastante vaga e imprecisa: “deve-se considerar que a presença de imigrantes na EJA requer uma especial configuração curricular, levando em conta as particularidades culturais desses estudantes para a construção das propostas didáticas” (SÃO PAULO, 2019SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Currículo da cidade: educação de jovens e adultos. São Paulo: Prefeitura de São Paulo, 2019., p. 44).

Dessa maneira, devido à inexistência de diretrizes curriculares para o ensino de português para imigrantes, cabe, exclusivamente, a cada instituição educacional a construção do currículo de PLA. Compreendemos o currículo como “um artefacto social e histórico sujeito a mudanças e flutuações” (NÓVOA, 2001NÓVOA, A. Tempos da escola no espaço Portugal-Brasil-Moçambique: dez digressões sobre um programa de investigação. Revista Brasileira de História da Educação, Campinas, v. 1, n. 1, p. 131-150, 2001., p. 145) que possibilita diversas maneiras de propor, organizar e implementar experiências de ensino-aprendizagem. Portanto, o currículo pode ser organizado de diferentes formas, levando-se em conta as especificidades de cada instituição e de cada grupo de discentes.

Parece haver poucas pesquisas no que concerne à organização do currículo de PLA no Brasil e, a esse respeito, Lopez (2016LOPEZ, A. P. A. Subsídios para o planejamento de cursos de português como língua de acolhimento para imigrantes deslocados forçados no Brasil. 2016. 261f. Dissertação (Mestrado em Estudos Linguísticos) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016., p. 189) esclarece que, ao fazer uma revisão da literatura da área, notou “a necessidade de que sejam investigadas questões mais práticas de planejamento de PLAc, particularmente como se constitui o currículo desses cursos”. De fato, encontramos poucos trabalhos que tratam, direta ou indiretamente, da organização curricular direcionada ao ensino de português para imigrantes.

Dentre esses trabalhos, podemos mencionar o de Rezende (2010REZENDE, P. S. A constituição identitária de refugiados em São Paulo: moradias na complexidade do ensino-aprendizagem de português como língua estrangeira. 2010. 212f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 55), que, apesar de ter como objetivo analisar a constituição identitária de um grupo específico de refugiados, apresenta uma proposta de organização curricular baseada em temas, quais sejam: “o Brasil e eu”, “minha terra natal” e “minha experiência com a língua portuguesa no Brasil”.

Kraemer (2012KRAEMER, F. F. Português língua adicional: progressão curricular com base em gêneros do discurso. 2012. 191f. Dissertação (Mestrado em Estudos da Linguagem) - Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.), em sua dissertação de mestrado, propõe que o currículo de PLA seja pautado em gêneros discursivos. Para tanto, essa dissertação descreve uma pesquisa cujos alunos participantes frequentavam o curso de português para falantes de outras línguas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O trabalho trata de estudantes universitários, não de discentes das escolas do ensino básico, contexto que nos interessa, particularmente, por ser aquele em que trabalhamos.

Outro texto que menciona questões curriculares é o de Amado (2013AMADO, R. de S. O ensino de português como língua de acolhimento para refugiados. Revista da SIPLE, Brasília, ano 4, n. 2, p. 11-18, 2013.), que assevera que, em nosso país, faltam políticas públicas que visem ao ensino de português para imigrantes. Consequentemente, a responsabilidade de ensinar PLA é transferida, inclusive, a instituições não educacionais que oferecem apoio aos educandos que não falam português. Tais instituições contam com o trabalho de professores voluntários, que, em sua maioria, não possuem formação em Letras, Educação ou áreas afins. Nesses casos, muitas vezes, o currículo de PLA limita-se ao ensino de regras gramaticais e de listas de vocabulário.

São Bernardo (2016SÃO BERNARDO, M. A. de. Português como língua de acolhimento: um estudo com imigrantes e pessoas em situação de refúgio no Brasil. 2016. 206f. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2016., p. 72), por sua vez, afirma que o ensino de PLA deve ter como propósito o atendimento das necessidades e dos objetivos dos alunos imigrantes. Para atendê-los, a autora propõe que o currículo de português para falantes de outras línguas seja baseado em “situações reais de comunicação, tratando a língua em seu uso social, priorizando os sentidos e não apenas sua organização/estrutura”.

Em sua tese de doutorado, Camargo (2019CAMARGO, H. R. E. Diálogos transversais: narrativas para um protocolo de encaminhamentos às políticas de acolhimento a migrantes de crise. 2019. 272f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) - Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019., p. 220) também faz referência, ainda que brevemente, a questões curriculares. A autora explica que, a seu ver, as línguas dos alunos imigrantes deveriam ser inseridas no currículo, porque essa inserção “pode representar um fator favorável à valorização dos modos de ser do outro [...] e também pode ser vista como uma atitude acolhedora no início dos estudos no novo país”.

A única pesquisa sobre o ensino de PLA baseado em atividades sociais que encontramos foi a de Cababe (2014CABABE, B. S. Aprendizagem-desenvolvimento de português como língua adicional: multimodalidade, multiculturalidade e perguntas argumentativas. 2014. 200f. (Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.). Em sua dissertação de mestrado, a autora mostra o trabalho didático-pedagógico realizado a partir da atividade social “fazer uma viagem”. Esse trabalho foi desenvolvido junto a estudantes de diversas nacionalidades que frequentavam cursos privados de uma instituição que oferecia cursos de ensino médio, extensão, graduação e pós-graduação. O trabalho didático-pedagógico descrito no presente artigo vem sendo realizado em uma instituição educacional pública do ensino básico; assim, o contexto de pesquisa dessa autora difere consideravelmente do nosso.

Em suma, vimos que há propostas de organização do currículo de PLA com base em: temas, gêneros do discurso, situações comunicativas, léxico, estruturas gramaticais e atividades sociais. Há, ademais, a proposta de inserir as línguas dos educandos no currículo. Conforme mencionado, encontramos apenas um texto que propõe um trabalho didático-pedagógico que visa ao ensino de português para imigrantes com base em atividades sociais, o que parece reforçar a ideia de que este artigo possa representar contribuições significativas à área de Linguística Aplicada.

O ensino de PLA baseado em atividades sociais é um dos modos de organizar o currículo de português para imigrantes, visto que se apresenta como uma possibilidade de atender, em larga medida, às necessidades socioculturais, linguísticas e educacionais desses alunos. Isso porque um currículo pautado em atividades sociais baseia-se nas experiências de vida dos discentes, visando propiciar a participação plena deles em todas as atividades de que eles precisam participar.

O conceito de atividade social é o cerne da Teoria da Atividade Sócio-histórico-cultural (TASHC). A TASHC, desenvolvida por Vygotsky (2001VYGOTSKY, L. S. Psicologia pedagógica. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes , 2001. [1a publicação em 1923]) e Leontiev (1977LEONTIEV, A. N. Activity and Consciousness. Moscow: Progress Publishers, 1977.) e com extensões posteriores de Engeström (2011ENGESTRÖM, Y. From Design Experiments to Formative Interventions. Theory and Psychology, Calgary, v. 21, n. 5, p. 598-628, 2011. DOI: https://doi.org/10.1177/0959354311419252
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), “focaliza o estudo das atividades em que os sujeitos estão em interação com outros em contextos culturais determinados e historicamente dependentes” (LIBERALI, 2009LIBERALI, F. C. Atividade social nas aulas de língua estrangeira. São Paulo: Moderna, 2009., p. 11-12). Quanto ao conceito de atividade, Leontiev (1983LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo: Centauro Editora, 1983.) explica que se trata de um conjunto de ações realizadas pelos sujeitos para atingir um determinado objetivo/motivo que satisfaça suas necessidades. O autor ressalta que, na base de toda atividade humana, existe o desejo de atingir tais satisfações.

Leontiev (2010LEONTIEV, A. N. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In: VYGOTSKY, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 2010. p. 59-83., p. 69) esclarece, ainda, que nem toda ação pode ser considerada uma atividade. Nas palavras do autor:

distinguimos o processo que chamamos de ação da atividade. Um ato ou ação é um processo cujo motivo não coincide com seu objetivo (isto é, com aquilo para o qual ele se dirige), mas reside na atividade da qual ele faz parte.

Assim, pode-se afirmar que toda atividade é uma ação ou um conjunto de ações, porém nem toda ação consiste em uma atividade. Expandindo esses postulados, Engeström (2011ENGESTRÖM, Y. From Design Experiments to Formative Interventions. Theory and Psychology, Calgary, v. 21, n. 5, p. 598-628, 2011. DOI: https://doi.org/10.1177/0959354311419252
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/...
) define a atividade como um sistema humano dinâmico mediado por artefatos culturais. Nesse sistema, os sujeitos que desejam um objeto atuam em uma comunidade específica, na qual há regras e divisão de trabalho.

Pensando na aplicação da TASHC ao ensino, Liberali (2009LIBERALI, F. C. Atividade social nas aulas de língua estrangeira. São Paulo: Moderna, 2009., p. 11) mostra que:

nessa forma de pensar o ensino, os gêneros [discursivos] não são mais o foco, mas os artefatos culturais que permitiram a transformação e o desenvolvimento da atividade. O foco recai sobre formas para produzir, compreender, interpretar e memorizar um conjunto de gêneros necessários à efetiva participação em atividades da ‘vida que se vive’ (MARX; ENGELS, 2006MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução de Sílvio D. Chagas. São Paulo: Centauro, 2006., p. 26), como ir ao cinema, negociar um contrato, fazer compras, publicar um artigo de pesquisa etc.

Tendo em vista esses postulados, é possível dizer que as atividades sociais são aquelas que fazemos em nossa vida cotidiana e cuja realização pode envolver diversos gêneros discursivos (ou gêneros do discurso). Bakhtin (1997BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.) define os gêneros discursivos como enunciados relativamente estáveis. Para explicar essa definição, o autor russo afirma que

todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas à utilização da língua. [...] A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua - recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais -, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade multiforme da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa (BAKHTIN, 1997BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997., p. 277).

Com base nessa explicação de Bakhtin, pode-se compreender que as atividades sociais e os gêneros discursivos são indissociáveis. A esse respeito, Liberali (2009LIBERALI, F. C. Atividade social nas aulas de língua estrangeira. São Paulo: Moderna, 2009., p. 14) ressalta que, na realização das atividades sociais, os gêneros do discurso são vistos como “instrumentos para a participação efetiva dos sujeitos. A apropriação desses gêneros, de forma crítica e transformadora, torna-se um poder para participar de diferentes esferas da vida humana mais plenamente”.

Dessa forma, o ensino de línguas pautado em atividades sociais busca levar em consideração as diferentes atividades de que o sujeito participa em seu dia a dia e visa contribuir para que ele se aproprie dos gêneros discursivos que lhe são necessários para participar efetivamente dessas atividades.

Uma atividade social que, indubitavelmente, requer a participação de todos os alunos imigrantes adultos consiste em procurar um emprego. Isso porque, ao chegarem aqui, todos eles precisam de um emprego para pagar suas despesas pessoais (gastos com moradia, alimentação, entre outros) e as despesas de suas famílias. Por esse motivo, parece-nos premente trabalhar, nas aulas de PLA, a referida atividade social.

Outras atividades sociais que também são fundamentais para os aprendizes imigrantes são: alugar um imóvel, solicitar o Registro Nacional Migratório (RNM), providenciar o Cadastro de Pessoa Física (CPF) etc. Desse modo, um currículo de PLA organizado a partir de atividades sociais não pode prescindir do trabalho didático-pedagógico com essas e outras atividades das quais, necessariamente, os educandos imigrantes participam. Neste artigo, porém, devido a limitações de espaço, nos restringiremos a abordar apenas o trabalho didático-pedagógico baseado em uma única atividade social: procurar um emprego.

Como se sabe, solicitar o RNM e providenciar o CPF, por exemplo, são atividades sociais que refletem necessidades anteriores às aulas de PLA, ou seja, ao iniciarem as aulas, os imigrantes já devem ter requisitado esses documentos. Por isso, ao propor que essas atividades façam parte das aulas de português como língua adicional, não estamos sugerindo que a instituição educacional onde se realizam as aulas supra todas as necessidades dos imigrantes, inclusive, porque isso seria impossível. O que estamos propondo é que essas necessidades sejam levadas em consideração nas aulas de PLA para que os educandos imigrantes possam desenvolver maior mobilidade ao realizar essas e outras atividades sociais das quais precisem participar.

Na seção 4, discorreremos sobre parte desse trabalho realizado na instituição educacional onde leciona uma das autoras deste artigo, trabalho que se pautou na atividade social “procurar um emprego”. Antes, porém, discorreremos acerca dessa instituição e, mais especificamente, acerca dos alunos imigrantes que a frequentam.

3 Os alunos imigrantes em um CIEJA da cidade de São Paulo

Como se sabe, infelizmente, “o Brasil ainda não possui claramente um planejamento de políticas públicas, educacionais e linguísticas estabelecidas para a recepção e integração de migrantes em situação de vulnerabilidade e refugiados” (CORTEZ et al., 2019CORTEZ, D.; BACK, A. C. P. B.; CIZESKI, F.; MOREIRA, J. Programa de ensino-aprendizagem de português como língua de acolhimento: construindo um projeto de extensão integrador. In: SEMINÁRIO DE EDUCAÇÃO, CONHECIMENTO E PROCESSOS EDUCATIVOS, 3., 2019, Criciúma. Anais [...]. Criciúma: Universidade do Extremo Sul Catarinense, 2019., p. 3). Por isso, como já mencionado, em nosso país, parece não haver diretrizes curriculares voltadas, especificamente, para o ensino-aprendizagem do PLA nesse contexto educacional.

Além disso, no que concerne às políticas públicas, ainda existem poucas iniciativas direcionadas ao ensino público e gratuito de PLA em instituições educacionais. Em São Paulo, por exemplo, existe apenas o programa Portas Abertas,6 6 Para informações detalhadas sobre essa iniciativa pioneira, recomendamos a leitura da tese de doutorado de Camargo (2019), intitulada Diálogos transversais: narrativas para um protocolo de encaminhamentos às políticas de acolhimento a migrantes de crise. um projeto pioneiro que consiste em

uma iniciativa conjunta entre a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC) e a Secretaria Municipal de Educação (SME), com o objetivo de oferecer curso de português gratuito, contínuo e permanente para alunos imigrantes na Rede Municipal de Ensino (RME), suas famílias e comunidades. Assim, busca garantir os direitos para a população imigrante da cidade de São Paulo, assegurar seu acesso, permanência e aprendizagem na escola, propiciar sua inserção no mercado formal de trabalho e promover sua regularização migratória7 7 Informações retiradas do site da Prefeitura de São Paulo. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/imigrantes_e_trabalho_decente/programas_e_projetos/portas_abertas/index.php?p=259304. Acesso em: 31 mar. 2020. (SÃO PAULO, 2018SÃO PAULO. Secretaria Municipal de Educação. Currículo da cidade: educação de jovens e adultos. São Paulo: Prefeitura de São Paulo, 2019.).

Há poucas escolas da rede pública municipal de ensino de São Paulo que oferecem cursos de português para imigrantes, e, dentre essas poucas, a maioria participa do programa Portas Abertas. Dentro desse projeto, os cursos apresentam um currículo pré-definido, cujo material de base é homônimo do programa e denominado “cartilha” no site da prefeitura de São Paulo.8 8 Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/imigrantes_e_trabalho_decente/programas_e_projetos/portas_abertas/index.php?p=259310. Acesso em: 23 jan. 2020. Consideramos laudável esse programa, pois se trata da primeira política pública pensada para o ensino de português para imigrantes em tal cidade. Entretanto, a nosso ver, um currículo pré-definido, que se baseia, sobretudo, em um único material didático, não é capaz de responder, em larga medida, às demandas desses educandos, visto que, em geral, esse tipo de currículo não consegue dar conta das singularidades de cada grupo de aprendizes.

Devido ao número muito reduzido de escolas públicas específicas para o ensino-aprendizagem do PLA, ao chegarem ao Brasil e procurarem a rede pública de ensino para iniciar ou para dar continuidade a seus estudos, os alunos imigrantes são matriculados nas escolas regulares de ensino fundamental I e II e de ensino médio.

Por um lado, a presença dos discentes imigrantes nas escolas regulares pode propiciar-lhes uma maior integração no país que os recebe, pois esses alunos, em geral, estudam em turmas mistas quanto à nacionalidade, isto é, turmas constituídas por brasileiros e imigrantes. Por outro lado, muitas vezes, a escola regular mostra-se inadequada às demandas dos educandos imigrantes. Com efeito, a principal necessidade desses aprendizes parece ser a aprendizagem da língua portuguesa, por essa razão, seria importante que houvesse muitas instituições educacionais públicas que oferecessem aulas de português específicas para imigrantes.

Em decorrência da quantidade escassa de tais instituições, o CIEJA Perus I, onde leciona uma das autoras deste artigo, tem recebido um grande número de matrículas de educandos imigrantes, sobretudo haitianos. Essa instituição, atualmente, possui cerca de 1600 (mil e seiscentos) alunos, dos quais quase 800 (oitocentos) são haitianos, ou seja, quase metade do corpo discente é constituído por imigrantes.

O CIEJA é uma das modalidades de EJA da cidade de São Paulo, portanto, é uma escola que atende adolescentes (a partir de 15 anos de idade), jovens e adultos brasileiros que, por diversos motivos, não puderam iniciar ou completar seus estudos na chamada “idade certa”. No entanto, esse CIEJA, além de atender os alunos brasileiros, também atende discentes imigrantes. A maioria desses educandos imigrantes procura a escola com o objetivo de aprender a língua portuguesa para, então, poder integrar-se mais facilmente à sociedade brasileira, participando de maneira mais efetiva das diversas atividades sociais.

É importante ressaltar que, embora o CIEJA seja uma instituição educacional de ensino fundamental, muitos dos estudantes haitianos matriculados nessa escola já têm mais de dez anos de escolaridade; alguns, inclusive, já concluíram cursos universitários em seu país de origem. Também há, porém, alunos haitianos que ainda não estão alfabetizados9 9 O termo “alfabetização” pode ter diferentes sentidos, que variam em conformidade com os autores que se propõem a defini-lo. Neste artigo, com base em Galvão e Di Pierro (2012), pode-se dizer que, depois que o termo “letramento” passou a ser amplamente usado no Brasil, a alfabetização passou a designar, especificamente, o processo de ensino-aprendizagem do sistema de notação alfabético, abrangendo as habilidades de leitura e de escrita. Assim, afirmar que alguns estudantes haitianos ainda não estão alfabetizados sequer em sua própria língua significa dizer que eles ainda não se apropriaram do crioulo haitiano em sua modalidade escrita, razão pela qual eles ainda não conseguem ler e escrever. sequer em sua primeira língua: o crioulo haitiano. Dessa forma, pode-se dizer que esses aprendizes imigrantes são bastante heterogêneos no que tange à formação escolar/acadêmica, havendo desde alunos com graduação concluída e que falam quatro línguas (crioulo haitiano, francês, inglês e espanhol) até discentes não alfabetizados e que falam apenas o crioulo haitiano.

A maior parte dos alunos haitianos encontra-se em situação de alta vulnerabilidade social, por essa razão, eles não poderiam pagar um curso privado de português. Daí a grande relevância de que sejam desenvolvidas, no Brasil, mais iniciativas que ofereçam o ensino público e gratuito de PLA, visando atender as necessidades específicas dos educandos imigrantes.

No que concerne a cursos de língua portuguesa em âmbito público, a Universidade de São Paulo, por exemplo, oferece cursos de português para imigrantes universitários. Há, também, instituições não escolares (como as igrejas católicas e evangélicas) que oferecem cursos gratuitos de português para imigrantes.

É, sobretudo, a escassez de escolas públicas com atendimento específico das necessidades de aprendizagem dos discentes imigrantes que tem feito com que tantos haitianos se matriculem no CIEJA Perus I. Na próxima seção, apresentaremos um pouco do trabalho didático-pedagógico que foi desenvolvido no segundo semestre de 2019 em aulas de português ministradas a duas turmas de educandos haitianos, trabalho ao qual se tem procurado dar continuidade em 2020, expandindo-o para toda a instituição educacional.

Convém ressaltar que defendemos uma concepção de ensino-aprendizagem de línguas em que a teoria e a prática são indissociáveis, pois esta é baseada naquela, e aquela também se constitui a partir desta (FREIRE, 1996FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.; KUMARAVADIVELU, 2006KUMARAVADIVELU, B. Understanding Language Teaching: From Method to Postmethod. Mahwah: Lawrence Erlbaum Associates, 2006. DOI: https://doi.org/10.4324/9781410615725
https://doi.org/https://doi.org/10.4324/...
). Assim, a prática de ensino de português para imigrantes aqui descrita é intrínseca à teoria que a alicerça. Por conseguinte, não poderíamos relatar esse trabalho didático-pedagógico sem ter apresentado o arcabouço teórico em que essa prática se pauta.

4 A atividade social “procurar um emprego” nas aulas de português para imigrantes haitianos do CIEJA

Em decorrência do grande número de educandos imigrantes matriculados no CIEJA já citado, todas as turmas dessa instituição educacional são mistas (ou seja, compostas por alunos brasileiros e imigrantes), ou são constituídas, exclusivamente, por haitianos. Esse último é o caso das duas turmas para as quais uma das autoras deste artigo lecionou em 2019.

A primeira turma tinha aulas das 17h30 às 19h45 e era constituída por 25 (vinte e cinco) discentes; já a segunda tinha aulas das 20h às 22h15 e era composta por 16 (dezesseis) estudantes. Nos dois grupos, a frequência dos alunos era muito irregular, isto é, havia educandos que vinham à escola quase todos os dias, mas havia outros que assistiam às aulas somente uma vez por semana (ou, até mesmo, quinzenalmente). Essa irregularidade na frequência deve-se, principalmente, ao fato de os educandos precisarem trabalhar. De acordo com os próprios alunos, todos eles vieram ao Brasil em busca de uma melhor qualidade de vida e, para tanto, precisam de um emprego. Por esse motivo, assim que o conseguem,10 10 Segundo informações dadas pelos próprios alunos haitianos, em conversas informais, algumas de suas principais ocupações são estas: auxiliar de serviços gerais, pintor, pedreiro, zincador, faxineiro(a), vendedor(a) ambulante e coletor(a) de materiais recicláveis. muitos deles privilegiam o trabalho em detrimento dos estudos, o que pode explicar a não assiduidade de boa parte dos aprendizes imigrantes em todas as turmas de discentes haitianos e nas turmas mistas.

Em conversas informais com os educandos das duas turmas, a professora11 11 Em alguns trechos deste artigo nos quais são relatadas as experiências ocorridas em sala de aula, será usada a denominação “a professora” ou “a professora-autora”, pois são experiências de ensino-aprendizagem vivenciadas apenas por uma das autoras do presente texto. descobriu que mais da metade dos discentes estava desempregada, embora a maioria deles estivesse no Brasil há quase um ano e estivesse procurando emprego há vários meses. Descobriu, também, que alguns alunos não sabiam por onde começar a busca por um emprego. É o caso, por exemplo, de um estudante de 42 anos que estava no Brasil há um ano e meio, mas, por não saber como e onde procurar emprego, trabalhou apenas por três meses coletando e vendendo materiais recicláveis. Esse trabalho, como se sabe, é degradante, mal remunerado e, inclusive, parece ser malvisto por grande parte da população brasileira. Dessa maneira, diante da precariedade dessa ocupação laboral, esse aluno haitiano não deu continuidade a tal trabalho e, por isso, tem buscado outro emprego.

Por conhecerem pouco a língua portuguesa, muitos aprendizes ainda não conseguiam fazer o seu curriculum vitae (CV) nessa língua, nem pesquisar vagas de emprego em jornais, revistas, sites etc.

Alguns discentes já tinham se apropriado de gêneros discursivos presentes na atividade social “procurar um emprego” (tais como: o CV, os anúncios de emprego, a carta de apresentação etc.), o que lhes dava certa mobilidade ao realizar essa atividade social em seu país de origem. Contudo, aqui, no Brasil, muitos estudantes haitianos, por terem pouco conhecimento da língua portuguesa, ainda não tinham o seu próprio CV em português e possuíam dificuldade para procurar vagas de emprego. Por isso, foi proposto aos dois grupos um trabalho didático-pedagógico centrado na atividade social “procurar um emprego”, ou seja, a proposta surgiu de uma necessidade premente dos educandos.

Com o escopo de ampliar o repertório dos discentes para que eles pudessem ter maior mobilidade no que concerne à busca por um emprego, foram realizadas algumas atividades didáticas que comentaremos a seguir.

Dentro do trabalho com a atividade social “procurar um emprego”, a primeira atividade didática que foi feita concentrou-se em um gênero discursivo primordial para quem está em busca de uma (re)colocação no mercado de trabalho: o curriculum vitae. Quando a professora perguntou aos alunos das duas turmas se eles já tinham o seu CV em português, apenas três educandos lhe responderam afirmativamente.

A fim de que eles produzissem esse gênero do discurso (BAKHTIN, 1997BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.), inicialmente, sob orientação da professora, os discentes observaram e analisaram alguns modelos de CV disponíveis na internet. O objetivo dessa atividade inicial consistia em possibilitar aos educandos a identificação, nesses modelos, de características em comum, as quais configuram o conteúdo temático, o estilo e a estrutura composicional desse gênero.

Para a aula posterior, com base em alguns desses modelos, fez-se um template de CV, que deveria ser preenchido por cada estudante com seus dados pessoais, sua formação escolar/acadêmica e suas experiências profissionais. Os alunos preencheram esse template durante a aula, com o auxílio da professora e dos colegas que já tinham mais familiaridade com o português. Alguns estudantes não conseguiram concluir o preenchimento durante a aula, por isso, foi-lhes solicitado que o terminassem em casa e que mandassem à professora mensagens pelo Whats App caso tivessem alguma dúvida. Foi acordado que, quando terminassem de preencher o modelo de CV, eles entregariam essa atividade para que a professora pudesse corrigi-la, devolvê-la e solicitar-lhes que, se necessário, reescrevessem o seu CV antes de entregá-lo a potenciais empregadores.

Na aula seguinte, foi trabalhado o gênero “anúncio de emprego” a partir destas questões: “Onde você costumava procurar emprego no Haiti? Você já procurou emprego no Brasil? Se sim, como e onde você procurou?”. Alguns estudantes disseram que, quando estavam no Haiti, conseguiram emprego por indicação de algum parente ou amigo; outros disseram que viram anúncios de emprego e se candidataram a vagas aqui, no Brasil, mas não obtiveram êxito; outros, ainda, afirmaram que já tinham entregado muitos CVs em diversas empresas e lojas brasileiras, porém essas tentativas de busca de emprego também não foram bem-sucedidas.

Diante dessas respostas, foi feita uma busca online de anúncios de emprego. Para isso, a professora foi com as duas turmas à sala de informática do CIEJA e apresentou para os alunos alguns sites12 12 Sites que foram visitados junto com os discentes haitianos durante a aula: www.catho.com.br, www.manager.com.br, www.empregos.com.br e www.indeed.com.br. brasileiros em que eles podiam cadastrar o seu próprio CV para se candidatar a algumas vagas. Em seguida, explicou-lhes que muitos desses sites requerem o pagamento de valores mensais, trimestrais e/ou semestrais, mas que a maioria deles permite usar alguns serviços gratuitos, como a candidatura a determinadas vagas, serviços que são gratuitos, geralmente, por uma semana ou, no máximo, um mês.

Ainda nos sites, a professora mostrou às duas turmas que todos eles têm uma seção com vagas de emprego na qual os estudantes poderiam se candidatar às vagas cujos pré-requisitos eles atendessem. Em pequenos grupos, os aprendizes selecionaram alguns anúncios para que lessem, juntos, na aula posterior. Para tal aula, imprimiram-se alguns desses anúncios e fez-se uma leitura coletiva, procurando identificar características em comum entre eles.

Ao trabalhar o gênero “anúncio de emprego” e fazer uma busca de anúncios em sites de emprego, os nossos principais objetivos eram que os alunos haitianos ampliassem o seu repertório (BUSCH, 2012BUSCH, B. The Linguistic Repertoire Revisited. Applied Linguistics, Oxford, v. 33, n. 5, 503-523, 2012. DOI: https://doi.org/10.1093/applin/ams056
https://doi.org/https://doi.org/10.1093/...
, 2015BUSCH, B. Linguistic Repertoire and Spracherleben: The Lived Experience of Language. London: King’s College London, 2015.) no tocante à aprendizagem da língua portuguesa e desenvolvessem maior mobilidade (BLOMMAERT, 2010BLOMMAERT, J. Language, Globalization and History. In: ______. The Sociolinguistics of Globalization. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.; BLOMMAERT; BACKUS, 2014BLOMMAERT, J; BACKUS, A. From Mobility to Complexity in Sociolinguistic Theory and Method. Tilburg: Tilburg University, 2014.) nesse contexto específico.

Ademais, na lousa da área externa do CIEJA, em outubro de 2019, a professora confeccionou um mural com anúncios de vagas de emprego. Conversou sobre esse mural com professores, alunos e funcionários dessa instituição e pediu-lhes que, se soubessem de vagas disponíveis, divulgassem-nas nesse mural. No momento que o mural foi apresentado aos discentes das duas turmas, verificou-se que, imediatamente, alguns deles fotografaram, com seus celulares, o mural. Isso parece indicar que viram, ali, vagas às quais eles podiam se candidatar.

Paralelamente a essas atividades didáticas, foi trabalhado o conto O arquivo, de Victor GiudiceGIUDICE, V. O arquivo. In: GIUDICE, V. Necrológio. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1972.. A ideia de trabalhar esse texto surgiu de um comentário de um dos estudantes haitianos (da turma do primeiro horário) numa das aulas em que se conversou sobre a busca por empregos. O comentário foi o seguinte: “Professora, no meu CV, vou colocar que faço qualquer coisa, aceito qualquer trabalho”. Os próprios discentes, ao ouvirem essa frase, disseram a esse estudante que ele não deveria aceitar qualquer trabalho.

O comentário desse aluno desencadeou discussões sobre a exploração dos trabalhadores imigrantes e brasileiros e culminou em relatos de alguns aprendizes, que afirmaram já ter sido explorados aqui, no Brasil. Um discente relatou, por exemplo, que trabalhou por quatro meses em uma fazenda sem receber nenhum pagamento. A partir desse relato, mais dois estudantes fizeram relatos símiles, então, a professora conversou com as duas turmas sobre a importância de denunciar trabalhos com condições irregulares e ilegais (o que pode ser feito no Ministério do Trabalho e pelo telefone 158) e sobre a necessidade de os discentes não aceitarem tamanha exploração.

Na aula seguinte a essas discussões, foi lido o referido conto de Victor Giudice, que trata da exploração do trabalhador e de como a submissão a esse tipo de circunstância pode fazer o sujeito perder sua humanidade e reificar-se. Os relatos de exploração dos discentes haitianos, que dialogavam com o conto desse escritor brasileiro, propiciaram, na aula de PLA, o desenvolvimento de reflexões sobre a necessidade e a importância de os estudantes não permitirem que os explorem, embora precisem trabalhar para pagar suas despesas pessoais e as despesas de seus familiares (alguns dos quais estão no Brasil, e outros no Haiti).

Quando foi iniciado o trabalho didático-pedagógico com essa atividade social, já era quase o final do ano letivo, assim, não foi possível concluir o trabalho. Por isso, a sua continuidade está ocorrendo no ano letivo de 2020 e, para tanto, os dois gêneros discursivos já trabalhados (CV e anúncio de emprego) foram retomados. Também serão feitas atividades didáticas baseadas no gênero “entrevista de emprego” e “carta de apresentação”.

Ademais, juntamente com outros professores e com a equipe gestora do CIEJA, a professora-autora tem buscado parcerias com órgãos e instituições que possam ajudar a (re)colocar no mercado de trabalho os educandos imigrantes e brasileiros que estão desempregados. Dentre esses, podem ser mencionados o CAT (Centro de Apoio ao Trabalhador, órgão da prefeitura do município de São Paulo), o CRAI (Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes) e a ONG “Estou refugiado”.13 13 O CIEJA Perus I tem pouco mais de 30 (trinta) estudantes refugiados. Por isso, a professora-autora já entrou em contato com a ONG supramencionada, solicitando-lhe uma parceria para que dê suporte a esses discentes no processo de busca de emprego, uma vez que essa organização não governamental é especialista em ajudar refugiados a se (re)colocarem no mercado de trabalho. Mais informações sobre a “Estou refugiado” podem ser obtidas no site: https://estourefugiado.com.br/. Acesso em: 25 fev. 2020. Tem-se buscado essas parcerias, inclusive, pelo fato de se ter consciência de que a instituição educacional, sozinha, não consegue dar conta de atender essas demandas dos estudantes.

Em suma, essas foram algumas das atividades didáticas trabalhadas junto aos educandos haitianos no final do segundo semestre de 2019 (e/ou que ainda serão trabalhadas com eles). No início de 2020, tais atividades já vêm sendo propostas nas novas turmas da professora-autora e têm se expandido a outros grupos. Em todas as atividades propostas, de maneira geral, as duas turmas se mostraram bastante interessadas e envolvidas. Isso pôde ser percebido em sua participação ativa em todas as atividades, nas discussões suscitadas por tais atividades e nos questionamentos levantados pelos alunos na sala de aula. Ademais, também se percebeu isso por meio das mensagens de Whats App que alguns educandos enviaram à professora para solicitar ajuda na elaboração de seus CVs e para agradecer pelo trabalho feito, de maneira colaborativa, nas aulas de língua portuguesa.

Dessa maneira, pode-se afirmar que a atividade social “procurar um emprego” tem se mostrado uma possibilidade interessante e enriquecedora dentro do currículo de português como língua adicional no CIEJA, pois parece ter, de certo modo, contribuído para a ampliação do repertório dos educandos haitianos, para o desenvolvimento de reflexões sobre a realidade em que eles vivem e para a expansão de sua mobilidade.

Considerações finais

Neste artigo, procuramos explicar a nossa opção pelo termo “língua adicional” em lugar de “língua de acolhimento”. Para tanto, esclarecemos que, embora esse último seja muito mais usado para se referir ao ensino de português para imigrantes, ele pode ter uma conotação negativa, porque os coloca, de certa forma, em situação de subalternização (ANUNCIAÇÃO, 2018ANUNCIAÇÃO, R. F. M. de. A língua que acolhe pode silenciar? Reflexões sobre o conceito de ‘português como língua de acolhimento’. Revista X, Curitiba, v. 13, n. 1, p. 35-56, 2018. DOI: https://doi.org/10.5380/rvx.v13i1.60341
https://doi.org/https://doi.org/10.5380/...
).

Além disso, discorremos, sucintamente, sobre algumas pesquisas que abordam questões curriculares no ensino de PLA e trouxemos o conceito de atividade social (VYGOTSKY, 2001VYGOTSKY, L. S. Psicologia pedagógica. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes , 2001. [1a publicação em 1923]; LEONTIEV, 1977LEONTIEV, A. N. Activity and Consciousness. Moscow: Progress Publishers, 1977.; ENGËSTROM, 2011ENGESTRÖM, Y. From Design Experiments to Formative Interventions. Theory and Psychology, Calgary, v. 21, n. 5, p. 598-628, 2011. DOI: https://doi.org/10.1177/0959354311419252
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) para propô-lo como uma possibilidade para construção do currículo de português como língua adicional. Essa proposta foi resultante tanto da insuficiência de diretrizes curriculares para o ensino de PLA quanto, especialmente, das necessidades e dos interesses dos educandos haitianos.

Discorremos, também, brevemente, sobre o fato de o documento intitulado Currículo da Cidade - Educação de Jovens e Adultos, publicado em 2019, mencionar a presença de imigrantes na EJA da cidade de São Paulo, sem, no entanto, fornecer diretrizes para o trabalho didático-pedagógico com esses alunos. Isso parece revelar certa falta de preocupação com o atendimento das necessidades específicas dos educandos imigrantes por parte dos órgãos responsáveis pelo sistema educacional de São Paulo.

Ao que parece, existem, no Brasil, poucas instituições educacionais públicas e gratuitas que visem ao atendimento das necessidades socioculturais, linguísticas e educacionais dos alunos imigrantes. Esse número reduzido faz com que muitos imigrantes em situação de alta vulnerabilidade social procurem a rede pública de ensino e matriculem-se em escolas de ensino fundamental I e II e de EJA, mesmo quando já têm um nível de escolaridade mais alto. Esse é, possivelmente, o principal motivo que fez com que tantos estudantes haitianos tenham se matriculado no CIEJA já mencionado.

Com base na experiência docente de uma das autoras deste artigo, que é professora de PLA nesse CIEJA, apresentamos um pouco do trabalho didático-pedagógico realizado a partir da atividade social “procurar um emprego”. A escolha dessa atividade social como organizadora de parte do trabalho desenvolvido em sala de aula foi decorrente das próprias condições de vida dos educandos haitianos, pois, ao fazer tal opção, levamos em conta o fato de grande parte dos discentes estar desempregada.

A nosso ver, a implementação das atividades didáticas propostas com base nessa atividade social possibilitou aos alunos haitianos a ampliação de seu repertório, o desenvolvimento de reflexões sobre a realidade em que vivem e a expansão de sua mobilidade. Em outras palavras, podemos afirmar que o trabalho com essa atividade social parece ter sido profícuo para os educandos imigrantes, visto que lhes possibilitou: construir conhecimentos na e sobre a língua portuguesa; apropriar-se dos gêneros discursivos de que necessitam para participar, de forma mais efetiva, da atividade social “procurar um emprego”; desenvolver reflexões sobre a importância da não aceitação da exploração no trabalho; buscar formas de transformar a realidade em que vivem, refletindo de maneira crítica sobre ela.

Desse modo, uma possível resposta à pergunta levantada no início deste artigo pode ser esta: o ensino de PLA com base em atividades sociais pode ser uma forma de os educandos imigrantes ampliarem o seu repertório e construírem mobilidade ao levarmos em conta, na organização curricular, as condições de vida dos estudantes, suas experiências de vida, suas necessidades, seus interesses e suas singularidades. Portanto, todas essas especificidades precisam ser consideradas nas propostas curriculares que visem, de fato, ao atendimento das necessidades linguísticas, socioculturais e educacionais dos aprendizes imigrantes.

Por fim, salientamos que a proposta apresentada neste artigo consiste apenas em um exemplo, sendo uma proposta dentre tantas possíveis na organização do ensino de português para imigrantes, área que, como procuramos mostrar, carece de diretrizes curriculares.

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  • VYGOTSKY, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem . São Paulo: Ícone , 2010.
  • 1
    Este artigo é resultante de um projeto de pesquisa em nível de pós-doutorado aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 17 de maio de 2019. Esta aprovação está registrada sob o parecer nº 3.332.882 e sob o CAAE nº 10487119.8.0000.5482. A referida pesquisa ainda está em andamento; por esse motivo e por limitações de espaço, este texto procurou relatar apenas parte dela. Em textos escritos posteriormente com base em tal pesquisa (que estão no prelo), foram apresentados alguns de seus outros resultados. Apesar disso, este artigo pode trazer, a nosso ver, contribuições para a área de Linguística Aplicada, uma vez que, até o momento atual, encontramos somente um texto que trata do ensino de português para imigrantes com base em atividades sociais (CABABE, 2014CABABE, B. S. Aprendizagem-desenvolvimento de português como língua adicional: multimodalidade, multiculturalidade e perguntas argumentativas. 2014. 200f. (Mestrado em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.).
  • 2
    No segundo semestre de 2020, foi publicado um documento intitulado Diretrizes Curriculares Nacionais para a Oferta de Educação Plurilíngue (BRASIL, 2020BRASIL. Diretrizes curriculares nacionais para a oferta de educação plurilíngue. Brasília: Ministério da Educação, 2020.). Nesse documento, a nosso ver, o ensino de português como língua adicional/língua de acolhimento é abordado de maneira bastante equivocada e insuficiente, sobretudo porque une dois contextos diversos - o das escolas de fronteiras e o de migrações de crise - e, ao fazê-lo, desconsidera as singularidades de cada um deles. Não há, além desse, outros documentos que ofereçam orientações curriculares nacionais voltadas ao ensino de português para falantes de outras línguas. Por isso, podemos afirmar que, se até o primeiro semestre de 2020, essas diretrizes eram inexistentes, atualmente, são insuficientes.
  • 3
    De acordo com a Agência da Organização das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), apesar de a mídia empregar, frequentemente, os termos imigrante e refugiado como sinônimos, há uma diferença essencial entre eles. Para a ACNUR, o imigrante é qualquer pessoa que sai de seu país e vai para outro; já o refugiado é aquele que deixa o seu país de origem para fugir de guerras, perseguições e/ou qualquer outro motivo que coloque a sua vida em risco. Assim, cabe ressaltar que os alunos participantes do trabalho didático-pedagógico relatado neste artigo, são, em sua maioria, imigrantes; mas há, também, um pequeno número de refugiados.
  • 4
    Busch (2012BUSCH, B. The Linguistic Repertoire Revisited. Applied Linguistics, Oxford, v. 33, n. 5, 503-523, 2012. DOI: https://doi.org/10.1093/applin/ams056
    https://doi.org/https://doi.org/10.1093/...
    , 2015BUSCH, B. Linguistic Repertoire and Spracherleben: The Lived Experience of Language. London: King’s College London, 2015.) emprega o termo “repertório linguístico”, embora seja evidente que, em seus textos, a autora não considere que o repertório se restrinja ao âmbito linguístico. Já Blackledge e Creese (2017BLACKLEDGE, A.; CREESE, A. Translanguaging and the Body. International Journal of Multilingualism, Oxfordshire, v. 14, n. 3, p. 250-268, 2017. DOI: https://doi.org/10.1080/14790718.2017.1315809
    https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
    ) bem como Liberali et al. (2017LIBERALI, F. C.; LIBERALI, C. C.; PADRE, B. T.; SANTOS, J. A. A. Mobilidade e práticas translíngues na construção de um mundo com justiça social: um estudo no projeto Digit-M-ed. In: ROCHA, C. H.; EL KADRI, M. S.; WINDLE, J. A. (org.). Diálogos sobre tecnologia educacional: educação linguística, mobilidade e práticas translíngues. Campinas: Pontes , 2017.) utilizam o termo “repertório semiótico”. A opção pelo adjetivo “semiótico” é justificada por esses autores com a explicação de que os repertórios são multimodais e incluem, por conseguinte, recursos linguísticos, mas não se limitam a eles. No presente artigo, para apresentar uma definição de repertório, apoiamo-nos, sobretudo, nos postulados de Busch (2012BUSCH, B. The Linguistic Repertoire Revisited. Applied Linguistics, Oxford, v. 33, n. 5, 503-523, 2012. DOI: https://doi.org/10.1093/applin/ams056
    https://doi.org/https://doi.org/10.1093/...
    , 2015BUSCH, B. Linguistic Repertoire and Spracherleben: The Lived Experience of Language. London: King’s College London, 2015.). Entretanto, também nos pautamos nos postulados dos outros autores citados. Por esse motivo, com o escopo de levar em consideração todos esses postulados, optamos por usar, simplesmente, o termo “repertório” para designar o que Busch (2012BUSCH, B. The Linguistic Repertoire Revisited. Applied Linguistics, Oxford, v. 33, n. 5, 503-523, 2012. DOI: https://doi.org/10.1093/applin/ams056
    https://doi.org/https://doi.org/10.1093/...
    , 2015BUSCH, B. Linguistic Repertoire and Spracherleben: The Lived Experience of Language. London: King’s College London, 2015.) chama de “repertório linguístico” e o que Blackledge e Creese (2017BLACKLEDGE, A.; CREESE, A. Translanguaging and the Body. International Journal of Multilingualism, Oxfordshire, v. 14, n. 3, p. 250-268, 2017. DOI: https://doi.org/10.1080/14790718.2017.1315809
    https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
    ) e Liberali et al. (2017LIBERALI, F. C.; LIBERALI, C. C.; PADRE, B. T.; SANTOS, J. A. A. Mobilidade e práticas translíngues na construção de um mundo com justiça social: um estudo no projeto Digit-M-ed. In: ROCHA, C. H.; EL KADRI, M. S.; WINDLE, J. A. (org.). Diálogos sobre tecnologia educacional: educação linguística, mobilidade e práticas translíngues. Campinas: Pontes , 2017.) chamam de “repertório semiótico”.
  • 5
    Como já foi dito, no Brasil, o único documento nacional que menciona o ensino-aprendizagem de português como língua adicional intitula-se Diretrizes Curriculares Nacionais para a Oferta de Educação Plurilíngue. Contudo, esse documento não traz orientações específicas voltadas a esse âmbito educacional.
  • 6
    Para informações detalhadas sobre essa iniciativa pioneira, recomendamos a leitura da tese de doutorado de Camargo (2019CAMARGO, H. R. E. Diálogos transversais: narrativas para um protocolo de encaminhamentos às políticas de acolhimento a migrantes de crise. 2019. 272f. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) - Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2019.), intitulada Diálogos transversais: narrativas para um protocolo de encaminhamentos às políticas de acolhimento a migrantes de crise.
  • 7
    Informações retiradas do site da Prefeitura de São Paulo. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/imigrantes_e_trabalho_decente/programas_e_projetos/portas_abertas/index.php?p=259304. Acesso em: 31 mar. 2020.
  • 8
  • 9
    O termo “alfabetização” pode ter diferentes sentidos, que variam em conformidade com os autores que se propõem a defini-lo. Neste artigo, com base em Galvão e Di Pierro (2012GALVÃO, A. M. de O.; DI PIERRO, M. C. Preconceito contra analfabeto. São Paulo: Cortez, 2012.), pode-se dizer que, depois que o termo “letramento” passou a ser amplamente usado no Brasil, a alfabetização passou a designar, especificamente, o processo de ensino-aprendizagem do sistema de notação alfabético, abrangendo as habilidades de leitura e de escrita. Assim, afirmar que alguns estudantes haitianos ainda não estão alfabetizados sequer em sua própria língua significa dizer que eles ainda não se apropriaram do crioulo haitiano em sua modalidade escrita, razão pela qual eles ainda não conseguem ler e escrever.
  • 10
    Segundo informações dadas pelos próprios alunos haitianos, em conversas informais, algumas de suas principais ocupações são estas: auxiliar de serviços gerais, pintor, pedreiro, zincador, faxineiro(a), vendedor(a) ambulante e coletor(a) de materiais recicláveis.
  • 11
    Em alguns trechos deste artigo nos quais são relatadas as experiências ocorridas em sala de aula, será usada a denominação “a professora” ou “a professora-autora”, pois são experiências de ensino-aprendizagem vivenciadas apenas por uma das autoras do presente texto.
  • 12
    Sites que foram visitados junto com os discentes haitianos durante a aula: www.catho.com.br, www.manager.com.br, www.empregos.com.br e www.indeed.com.br.
  • 13
    O CIEJA Perus I tem pouco mais de 30 (trinta) estudantes refugiados. Por isso, a professora-autora já entrou em contato com a ONG supramencionada, solicitando-lhe uma parceria para que dê suporte a esses discentes no processo de busca de emprego, uma vez que essa organização não governamental é especialista em ajudar refugiados a se (re)colocarem no mercado de trabalho. Mais informações sobre a “Estou refugiado” podem ser obtidas no site: https://estourefugiado.com.br/. Acesso em: 25 fev. 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2020
  • Aceito
    18 Dez 2020
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