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Representação discursiva da situação de rua no jornal Correio Braziliense (2014-2018): uma discussão macroanalítica sobre estereótipo e agenda pública

Discursive Representation of Homelessness in the Correio Braziliense Newspaper (2014-2018): a Macro-Analytical Discussion on Stereotype and Public Agenda

RESUMO

Neste artigo, analisamos a representação de pessoas em situação de rua em notícias veiculadas na plataforma on-line do Correio Braziliense entre 2014 e 2018. O corpus de pesquisa reúne 84 textos que tematizam ações e políticas públicas sobre (e para) a população em situação de rua. Consideramos os estudos críticos do discurso como aporte adequado ao estudo do corpus, pois é uma abordagem interdisciplinar que compreende as práticas sociais no discurso e focaliza a relação particular entre linguagem e sociedade. Com o software NVivo 11 como ferramenta para codificação de dados em pesquisa qualitativa, mapeamos as categorias analíticas de intertextualidade e avaliação nas notícias e exploramos amplamente os textos. Nosso objetivo foi realizar análise panorâmica dos dados considerando categorias analíticas amparadas no suporte teórico-metodológico. O recorte analítico possibilitou a reflexão acerca da percepção social sobre a situação de rua, relevante porque estereótipos negativos e preconceitos influenciam a pauta na agenda pública.

PALAVRAS-CHAVE:
estudos críticos do discurso; situação de rua; políticas públicas; NVivo; Correio Braziliense

ABSTRACT

In this study we analyze the representation of people living on the street in news published on the online platform of Correio Braziliense between 2014 and 2018. The research corpus consists of 84 texts that address public actions and policies on (and for) the homeless population. We consider studies of critical discourse analysis to be an adequate theoretical contribution to the study of the corpus, since it is an interdisciplinary approach that understands social practices in discourse and focuses on the relationship between language and society. With NVivo 11 software as a coding tool and support for qualitative research, we map the analytical categories of intertextuality and evaluation in the news and explore texts extensively. We aimed to perform a panoramic data analysis considering analytical categories based on theoretical and methodological support. The analytical approach makes it possible to reflect about the social perception of homelessness, which is relevant because negative stereotypes and prejudices influence the public agenda.

KEYWORDS:
critical discourse studies; homelessness; public policies; NVivo; Correio Braziliense

1 Introdução

Neste artigo, analisamos notícias e reportagens sobre a população em situação de rua publicadas na plataforma on-line do Correio Braziliense entre os anos de 2014 e 2018. A delimitação do período é decorrência do projeto de pesquisa de que este artigo entrega resultados parciais; o projeto dá continuidade a estudo anterior em que foram analisados textos de 2011 a 2013, e é continuado no presente artigo.1 1 O projeto colaborativo de cujos dados tratamos aqui focaliza a representação midiática da situação de rua, em especial, nas plataformas on-line do Correio Braziliense e da Folha de S. Paulo. As pesquisas mencionadas são, em ordem cronológica, “Representação midiática da violação de direitos e da violência contra pessoas em situação de rua no jornalismo on-line” (CNPq 304075/2014-0), “Representação discursiva no Correio Braziliense e na Folha de S. Paulo: políticas públicas para população em situação de rua e gestão do espaço urbano” (CNPQ 301809/2017-8) e “Situação de rua nos tempos da covid-19: representação cruzada entre políticas públicas e pandemia” (CNPq 303966/2020-3). Os projetos lidam com diversas temáticas, exploradas em profundidade em trabalhos de iniciação científica, mestrado, doutorado e produtividade em pesquisa no âmbito do Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade (NELiS) da Universidade de Brasília (UnB).

A coleta de dados para o projeto amplo foi realizada com a pesquisa das palavras-chave “morador(a)(es) de rua”; “pessoa(s) em situação de rua”; “população (em situação) de rua”; e “situação de rua” em busca no motor próprio do jornal. Com base nessas palavras-chave, os 307 textos que retornaram na busca foram coletados e, em seguida, separados em pastas por critério temático.2 2 O mapeamento das notícias e reportagens desse corpus sugeriu as seguintes pastas temáticas: ações e políticas públicas (com 84 textos), histórias de vida (14), tangencial (23), violação de direitos (56), violência (111) e outros temas (19). A pasta chamada “tangencial” reuniu textos que apenas tangenciam o tema da situação de rua, sem que seja seu assunto central; a pasta “outros temas” reúne textos que abordam temas não frequentes no corpus, que não justificam a criação de pastas temáticas separadas. Para este artigo, concentramo-nos na pasta de ações e políticas públicas para análise,3 3 O mapeamento dos textos também foi realizado com as pastas de histórias de vida, tangencial e outros temas. considerando a relevância da temática quanto à ação do Estado e à concepção social.

O estudo do corpus levou a questionamentos sobre as vozes convocadas para falar sobre ou pela população em situação de rua, os grupos sociais cujas avaliações (dessa população) são trazidas aos textos e os modos de referência a pessoas em situação de rua utilizados nas notícias e reportagens. O foco deste artigo é o aspecto macroanalítico: os cruzamentos de dados com apoio do NVivo viabilizaram o delineamento de um panorama geral dos 84 textos aqui mencionados. Na próxima etapa do projeto, o escopo consistirá em análises centradas em textos específicos, com vistas a mapear em detalhes textos ou grupos de textos.

Além desta primeira seção de introdução, o artigo está organizado em outras seis. A segunda seção define a situação de rua no Brasil, e a terceira pontua particularidades dessa população em Brasília. Em seguida, destacamos os estudos críticos do discurso como abordagem para a pesquisa no intuito de explanar a discussão sobre problemas sociais na relação de linguagem-sociedade. A quinta seção explica o uso do software NVivo 11 para organização das notícias e reportagens, mapeamento de cada texto e cruzamentos de dados, e a sexta seção pontua alguns resultados da macroanálise do corpus de matérias sobre ações e políticas públicas. Posteriormente, na sétima seção, apresentamos nossas considerações finais.

2 Situação de rua no Brasil e políticas públicas

A visibilidade da população em situação de rua pelo poder público no Brasil foi ampliada com a publicação do I Censo e Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua, em 2008, pelo infelizmente extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), uma contribuição significativa para traçar o perfil dessa população no país. O mapeamento do Censo sobre a população em situação de rua, apesar de ter se concentrado apenas em 71 capitais e grandes cidades, evidenciou um grupo de 30 mil pessoas nessa situação (BRASIL, 2008BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Rua: aprendendo a contar. Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua. Brasília, DF, 2008.), estimativa que em 2016 alcançou 101 mil pessoas (NATALINO, 2016NATALINO, M. A. C. Estimativa da população em situação de rua no Brasil. Brasília, DF: IPEA, 2016.), no estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Frisamos que, de acordo com o IPEA, no Brasil não há dados oficiais sobre a população em situação de rua devido à dificuldade de elaborar uma pesquisa de campo com pessoas sem endereço regular, quando a pesquisa censitária nacional é de base domiciliar. A inclusão da população em situação de rua nos dados censitários brasileiros é uma demanda antiga do Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR), ainda não atendida.

Um marco fundamental na agenda pública brasileira sobre a situação de rua é a assinatura do Decreto nº 7.053/2009 (BRASIL, 2009BRASIL. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 16, 24 dez. 2009.) pelo presidente Lula, em 23 de dezembro de 2009. O Decreto teve impactos mais evidentes ao instituir a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNSR), já que posicionou essa população na agenda pública e também nas diretrizes estatais para viabilização de acesso a direitos básicos. Consideramos, para esta pesquisa, a conceituação de pessoa em situação de rua conforme o texto do Decreto:

o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória. (BRASIL, 2009BRASIL. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 16, 24 dez. 2009.)

Para que a instituição da PNSR acontecesse, houve uma grande mobilização popular impulsionada pelo MNPR, movimento constituído após a Chacina da Sé, atentado violento contra pessoas em situação de rua em 2004 na cidade de São Paulo. O MNPR foi fundado em 2005 como instrumento de luta pela efetividade de políticas públicas. (SANTOS, 2017SANTOS, G. P. A voz da situação de rua na agenda de mudança social no Brasil - um estudo discursivo crítico sobre o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR). 2017. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2017.) Segundo Sebastião Nicomedes, participante do MNPR, em reportagem para a Agência Brasil em 2015, “o massacre [da população em situação de rua] não acabou”.4 4 Disponível na plataforma on-line da Agência Brasil em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-08/ato-em-sao-paulo-lembra-11-anos-da-massacre-de-moradores-de-rua-na-praca-da-se. Acesso em: 06 maio 2021.

A fala refere-se à violência, mas pode ser compreendida também simbolicamente, nas articulações sociais para manutenção da exclusão de um grupo economicamente desprivilegiado. O expurgo da população em situação de rua, no Brasil, tem sido efetuado por meio da adoção de medidas higienistas que visam restringir a presença de pessoas pobres, negras e não assalariadas nos centros urbanos. É o caso, por exemplo, da histórica “Lei da Vadiagem” de 1941, que estabelecia a prisão de pessoas pobres e sem trabalho formal que estivessem nas ruas. (BRASIL, 1941BRASIL. Decreto-lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941. Lei das Contravenções Penais. Diário Oficial da União : Brasília, DF, p. 19696, 13 out. 1941.) Como nesse caso emblemático, muitas vezes as políticas dirigidas à situação de rua não objetivam superar a vulnerabilidade, mas apenas administrar sua presença. Tal estratégia foi destacada por Quintão (2008QUINTÃO, P. R. O sujeito (oculto) e a cidade: a arte de Wodiczko. Revista Ide, São Paulo, v. 31, n. 46, p. 104-107, 2008.), quando aponta que, embora decorra de diferentes motivos e contextos, a prática de expurgar a população em situação de rua para localidades periféricas é um processo global de gentrificação. (cf. RESENDE, 2020RESENDE, V. M. A controversy in Folha de S. Paulo: Critical discourse reflections on the representation of homelessness and the coloniality of being. Discourse & Society, London, v. 31, n. 6, p. 584-606, 2020.)

Oportunidades para outras condutas em políticas dirigidas à população em situação de rua são inauguradas com a PNSR. Foram instituídos o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da PNSR (CIAMP Rua), que supervisiona a PNSR e políticas públicas subsequentes; e a integração do Comitê com o Sistema Único da Assistência Social (SUAS) e o Sistema Único de Saúde (SUS), para expandir a rede de atendimento especializado para pessoas em situação de rua, como ocorreu com a fundação dos Centros Pop, os Centros de Referência Especializada, como equipamentos da política de assistência.

Segundo Resende e Silva (2016RESENDE, V. M.; SILVA, R. B. Critical discourse analysis: voice, silence and memory - one case about public sphere. Critical Discourse Studies, London, v. 13, n. 4, p. 397-410, 2016.), a instituição dessa Política Nacional deu-se em uma conjuntura de inédito interesse político federal no debate público da situação de rua. A instauração da Política Nacional impele a seguinte discussão:

O interesse público pelo debate do tema e pelo enfrentamento do problema no Brasil […] é muito recente - e agora essa conquista, como muitas outras, põe-se em risco, com o recrudescimento do conservadorismo na política brasileira. Devemos reconhecer que somos uma sociedade apartada, que permite a máxima exclusão de uma parcela de si, que se permite não querer ver e não querer se importar com o que se passa na esquina. (RESENDE, 2016RESENDE, V. M. Representação de pessoas em situação de rua no jornalismo on-line: quais são as vozes convocadas para falar sobre a situação de rua? Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 3, p. 955-988, 2016., p. 960)

Em suma, a PNSR compõe um eixo para as ações públicas. Apesar de as políticas públicas contribuírem com a ampliação dos direitos de cidadania e democratização da sociedade, a própria estrutura social é desigual e a forma como entendemos a situação de rua e a representamos mantém a desigualdade. As fissuras entre segmentos populacionais podem ser vistas de diversas formas, incluindo as metáforas de centro e periferia, de inclusão e exclusão, muito comuns para tratar o tema. No entanto, Castel (1998CASTEL, R. As metamorfoses da questão social. Tradução Iraci D. Poleti. Petrópolis: Vozes, 1998., p. 569) sustenta que “exclusão não é uma ausência de relações […]. Não há ninguém fora da sociedade, mas um conjunto de posições cujas relações com seu centro são mais ou menos distendidas”. Essas relações com o “centro” são de diversas naturezas, pois abrange as relações laborais formais e informais, o acesso a políticas, o exercício de direitos e as possibilidades ou não de autorrepresentação no discurso público - inclusive dos meios massivos de comunicação, nosso objeto neste estudo.

3 Situação de rua em Brasília: uma breve retomada histórica

Brasília, a capital construída para ser a cidade da esperança, apresenta o maior IDHM do país, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2010PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO - PNDU. Ranking IDHM Unidades da Federação. Brasil, 2010.). No entanto, para muitos grupos sociais, Brasília está longe de realizar essa projeção. Segundo Bursztyn e Araújo (1997BURSZTYN, M.; ARAÚJO, C. H. Da utopia à exclusão: vivendo nas ruas de Brasília. Rio de Janeiro: Garamond; Brasília: Codeplan, 1997.), ao retomarmos a história de urbanização do Distrito Federal, a capital aparece como sonho de ascensão econômica para pessoas migrantes, mas a intensa expansão urbana compõe uma complexa trama, pois:

Quem vive no Distrito Federal poderia gabar-se, de acordo com os dados gerais, de viver em uma Unidade da Federação comparável a países de primeiro mundo. No mundo da estatística, o brasiliense (nato ou morador) desfruta de um alto grau, em média, de qualidade de vida. Contudo, qualquer quadro geral precisa ser visto com cuidado, principalmente quando se trata de um quadro estatístico. Nem todos os detalhes e nuanças da realidade podem ser retratados por estatísticas gerais. […] Que os habitantes do Distrito Federal gozam de um bom nível médio de qualidade de vida, não há dúvida. Contudo, também, não há dúvida de que Brasília convive com bolsões de miséria. (BURSZTYN; ARAÚJO, 1997BURSZTYN, M.; ARAÚJO, C. H. Da utopia à exclusão: vivendo nas ruas de Brasília. Rio de Janeiro: Garamond; Brasília: Codeplan, 1997., p. 23-24)

Desde a inauguração da nova capital, a população empobrecida que migrou para o território do DF foi alvo de medidas higienistas que visavam controlar as ocupações consideradas desordenadas no território. Bolsões de pobreza e de miséria se constituíram nesse espaço geográfico historicamente construído para barrar a população em condição de vulnerabilidade social. Os índices de alto padrão em Brasília não impediram que um processo de exclusão se desdobrasse, pois no DF o construto social visou concentrar classes mais abastadas no centro e expulsar os movimentos de migração para as áreas mais afastadas da zona metropolitana.

A população em situação de rua de Brasília assume diversas particularidades, quando comparada com as de outras regiões do país. Por exemplo, em grandes cidades é comum que a população em situação de rua permaneça exposta nos centros urbanos, em busca de ocupações informais e doações (SILVA, 2006SILVA, M. L. L. Mudanças recentes no mundo do trabalho e o fenômeno população em situação de rua no Brasil 1995-2005. 2006. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2006.), mas isso nem sempre ocorre no DF. Uma parte expressiva da população em situação de rua em Brasília busca se manter invisível para evitar medidas de expulsão em direção às regiões administrativas mais distantes. (PEREIRA, 2009PEREIRA, C. P. Rua sem saída: um estudo sobre a relação entre o Estado e a população de rua de Brasília. 2008. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2009.) Nessa cidade, são comuns as malocas no cerrado, ocultas pela vegetação, mas relativamente próximas ao centro abastado onde se encontram as oportunidades de trabalho e renda.

Tais particularidades tecem a situação de rua brasiliense e abrem espaço para a compreensão de seus fatores históricos. Assim, podemos delimitar a discussão direcionando um olhar crítico à consecução de políticas sociais efetivas. Políticas públicas existem, mas a agenda pública não atende às demandas sociais e articula morosamente suas formas de ação. Mesmo com um alto IDHM, as políticas públicas implementadas em Brasília não foram capazes de erradicar a fome e a pobreza, pois mantêm foco no controle da presença de pessoas em situação de rua no centro, a fim de as redirecionar para a periferia, onde não encontram meios para seu sustento.

A forma como as políticas públicas são representadas em veículos jornalísticos repercute na consecução e elaboração de novas diretrizes e influencia a maneira como a população em situação de rua é vista pela sociedade. Ademais, o discurso jornalístico permeia estruturas de poder ao (re)construir significados sociais. Nesta pesquisa, o corpus delimitado é constituído por textos da plataforma do Correio Braziliense, jornal de maior circulação no DF e que nos últimos quatro anos observou aumento de 179% de circulação digital. (IVC, 2020) A quantidade de acessos à ferramenta on-line do Correio Braziliense já ultrapassou a da convencional e o veículo se consolidou no meio digital, ampliando seu alcance na região.

Ao tornar a realidade um acontecimento jornalístico, veículos de mídia também atuam sobre relações sociais pré-existentes, pois o discurso midiático está imerso em poder ao narrar o que aconteceu. (SOUSA, 2012SOUSA, C. P. M. Discurso e Mídia: as relações de poder nas/das revistas. Revista Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 41, n. 3, p. 926-935, 2012.) Segundo Navarro-Barbosa (2003NAVARRO-BARBOSA, P. L. O papel da imagem da memória na escrita jornalística da história do tempo presente. In: GREGOLIN, M. R. (Org.). Discurso e mídia: a cultura do espetáculo. São Carlos: Claraluz, 2003. p. 111-124., p. 115-116), o “objeto da prática midiática é também o presente, transmutado em acontecimento jornalístico e, muitas vezes, em espetáculo”. Quando sustentamos que o discurso jornalístico exerce poder político, também reconhecemos que os sentidos do discurso podem estar dissimulados ou velados em escolhas, que (in)volutariamente orientam percepções sociais.

A apropriação de textos jornalísticos para análise discursiva apoia-se na concepção da linguagem como um processo produtivo que, por dispor de largo alcance, influencia nossa ação no mundo. Nossas compreensões sobre iniquidades sociais também estão ligadas a escolhas discursivas que impactam a visibilidade de políticas públicas voltadas para a população em situação de rua. Com modos de representação amplamente visíveis socialmente, os meios de comunicação consolidam significados de grupos e sua existência na agenda pública, além de organizarem maneiras de interpretar a situação de rua.

4 Estudos críticos do discurso na abordagem da situação de rua

Os estudos críticos do discurso permitem discutir problemas sociais pelo viés discursivo, dado que trata-se de uma perspectiva crítico-analítica para a investigação de desigualdades sociais legitimadas e reproduzidas na linguagem. Há várias abordagens nos estudos críticos do discurso, que por isso não se enquadram como uma escola com uniformidade teórica e metodológica, mas compartilham um esforço para explanar problemas sociais particulares, compreendendo que a linguagem mantém um tipo especial de relação com outros elementos sociais. Na perspectiva crítico-discursiva desenvolvida nos estudos de Fairclough (2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.), entende-se que os usos da linguagem não só representam a realidade como também identificam e participam na construção discursiva da realidade - por isso, o modelo teórico propõe os significados representacional, identificacional e acional para o discurso. Assim, o discurso é tanto prática de representação quanto de significação do mundo. (FAIRCLOUGH, 2001FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Tradução Izabel Magalhães. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 2001.)

O discurso, então, mantém, estabelece e transforma relações de poder. Os estudos críticos do discurso objetivam, em suma, explanar a maneira como as práticas linguístico-discursivas estão engendradas com as estruturas sociopolíticas de poder e dominação. Assim, a análise de discurso crítica é essencialmente política em seu propósito. (CALDAS-COULTHARD; COULTHARD, 1996CALDAS-COULTHARD, C. R.; COULTHARD, M. (Org.). Texts and Practices: Readings in CDA. London, New York: Routledge, 1996.) Com vistas a esse propósito, consideramos a ideia de Resende (2017RESENDE, V. M. Reflexões teóricas e epistemológicas quase excessivas de uma analista obstinada. In: RESENDE, V. M.; REGIS, J. F. S. (Org.). Outras perspectivas em análise de discurso crítica. Campinas: Pontes, 2017. p. 11-52., p. 23), segundo a qual para se “analisar problemas sociais discursivamente manifestos é preciso operacionalizar conceitos e categorias desenvolvidos pelas Ciências Sociais”, rompendo com as fronteiras disciplinares.

De acordo com Resende e Gomes (2018RESENDE, V. M.; GOMES, M. C. A. Representação da situação de rua no jornalismo eletrônico em textos verbo-visuais - a violência em discurso no Correio Braziliense (2011-2013). Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 18, n. 1, p. 165-191, 2018.), discursos enquanto modos de representação são concebidos como formas de conhecimento socialmente construído sobre algum aspecto da realidade, e que impactam a própria realidade social e as identidades-alteridades constituídas nesse entremeio. Assim, a notícia é vista como um processo interpretativo e construtivo, e não simplesmente um relato. (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.)

Embora o foco deste artigo recaia no significado representacional - pois nosso objetivo é analisar como discursos particulares em torno da situação de rua, propagados midiaticamente como universais, representam perspectivas que pautam a agenda pública -, sabemos que essa é apenas uma das facetas de investigação dessa complexa questão. A representação discursiva da situação de rua modula a forma como a percebemos e lidamos com ela, além dos modos como enxergamos pessoas em situação de rua e percebemo-nos em relação a essa situação. (RESENDE, 2008RESENDE, V. M. Análise de discurso crítica e etnografia: o movimento nacional de meninos e meninas de rua, sua crise e o protagonismo juvenil. 2008. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2008., 2012RESENDE, V. M. Representação discursiva de pessoas em situação de rua no “Caderno Brasília”: naturalização e expurgo do outro. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 12, n. 2, p. 439-465, 2012.) No entanto, é essencial destacar que a relação linguagem-sociedade é uma via de mão dupla, pois essas mesmas representações, produzidas nos textos jornalísticos, também são efeitos de práticas e relações sociais, isto é, se sustentam em estruturas prévias.

Por exemplo, para van Dijk (2014VAN DIJK, T. Discourse and knowledge. New York: Palgrave Macmillan , 2014.), um aspecto essencial dos estudos críticos do discurso é a noção de poder, o que inclui o poder de dispersar modos de representação como “conhecimento” das coisas sociais. Sobre preconceitos e estereótipos, ele sustenta que preconceitos são atitudes que derivam de generalizações sobre outros grupos sociais, tomados como fatos objetivos a seu respeito. Muitas vezes, grupos poderosos que professam preconceitos e dispersam estereótipos os concebem como se fossem conhecimentos irrefutáveis a respeito dos grupos sociais que são seu alvo - e assim os estereótipos podem ser repetidos como “verdades” dificilmente contestadas.

A situação de rua também pode ser compreendida, como evidencia Laperriere (2007LAPERRIÈRE, H. Práticas de enfermagem em saúde coletiva nos contextos de pobreza, incerteza e imprevisibilidade: uma sistematização de experiências pessoais na Amazônia. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 15, p. 721-728, 2007.), como limiaridade, conceito associado a pessoas vivendo em situações limites, neste caso, a rua, uma dimensão da marginalidade em relação às classes dominantes. Abib (2014ABIB, L. T. Crônicas urbanas: Consultório na rua, população em situação de rua, clínica menor e outras histórias. 2014. Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências) - Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, 2014.) considera que a sociedade tem calcado a imagem de pessoas em situação de rua como um “anormal contemporâneo”, o que tem validado formas de criminalizá-las. Logo, desloca-se a ideia de que a pessoa em situação de rua está em sofrimento para a concepção de que essa pessoa oferece algum tipo de risco e ameaça. (COSTA, 2007COSTA, D. L. R. A rua em movimento: experiência urbanas e jogos sociais em torno da população de rua. 2007. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.) Por isso, estudamos também como a representação midiática pode impactar a formulação e a consecução de políticas e ações públicas, e o quanto os recursos jornalísticos reproduzem ou não estereótipos relacionados à violência, criminalidade e pobreza desse grupo, perpetuando o medo e a insegurança social.

Estudar a representação da situação de rua no veículo de maior circulação do Distrito Federal, o Correio Braziliense, viabiliza a compreensão do tipo de visibilidade conferida ao grupo no discurso midiático e das formas de exposição de demandas da população em situação de rua, como promoção dos direitos civis, direito à convivência familiar, respeito à dignidade e atendimento humanizado. Ao apreender enquadres teóricos e analíticos dos estudos críticos do discurso nesta pesquisa, pretendemos acessar modos como a linguagem contribui para essa dinâmica, especialmente no caso da representação da rua no veículo estudado.

5 O uso do software NVivo para a organização de dados e a macro análise

Diferentes práticas apontam a natureza íntima da relação linguagem-sociedade e, por isso, ao buscarmos compreender o discurso também entendemos o mundo e os problemas da sociedade. Interpretamos o discurso como indissociável dos modos de ação institucionalizados e situados no tempo e no espaço (RESENDE, 2017RESENDE, V. M. Reflexões teóricas e epistemológicas quase excessivas de uma analista obstinada. In: RESENDE, V. M.; REGIS, J. F. S. (Org.). Outras perspectivas em análise de discurso crítica. Campinas: Pontes, 2017. p. 11-52.), o que torna os estudos críticos do discurso úteis para destrinchar desigualdades sociais pela (e na) linguagem. Tal perspectiva se realiza por meio da sistemática aplicação de categorias analíticas que revelam “formas de significar o mundo” atreladas a diferentes práticas sociais e estruturadas em função de interesses particulares. (FAIRCLOUGH, 2010FAIRCLOUGH, N. Critical discourse analysis: the critical study of language. 2. ed. London: Pearson, 2010.)

Considerando que o foco deste artigo é o significado representacional do discurso, bem como a investigação da representação midiática da situação de rua, mapeada com o aporte teórico dos estudos críticos do discurso, a pesquisa qualitativa foi a escolha mais apropriada para a abordagem dos dados. Isso se deve ao fato de que as investigações qualitativas atentam ao “significado dos fenômenos e processos sociais, levando em consideração as movimentações, crenças, valores, representações sociais e econômicas, que permeiam a rede de relações sociais”. (SILVA, 2008SILVA, A. C. R. de. Metodologia da pesquisa aplicada à contabilidade: orientações de estudos, projetos, artigos, relatórios, monografias, dissertações e teses. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2008., p. 29) Apesar de haver outras abordagens possíveis para a pesquisa, o paradigma qualitativo se mostra adequado ao buscar explicar os porquês e comos de “aspectos da realidade que não podem ser quantificados, centrando-se na compreensão e visualização da dinâmica das relações sociais”. (FONSECA, 2002FONSECA, J. J. S. Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza: UECE, 2002., p. 20)

Os dados do Correio Braziliense - notícias e reportagens publicadas na plataforma on-line do jornal entre 2014 e 2018 - foram ordenados e codificados no software NVivo 11 (sobre o processo de codificação, cf. RAMALHO, 2020RAMALHO, I. S. Representação discursiva da violência e da violação de direitos contra pessoas em situação de rua nas plataformas on-line do Correio Braziliense (2014 a 2018). 2020. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2020.). Após a etapa de organização dos textos coletados em pastas temáticas, foram estabelecidos dois tipos de categorias para codificação dos dados: as categorias de análise e as categorias de preparação.

Nas categorias de análise, foram pré-determinados nós para mapear aspectos do campo de estudos discursivos críticos da linguagem. Os nós estabelecidos no software para codificação foram: intertextualidade e fontes jornalísticas, modos de avaliação de pessoas em situação de rua, modos de referência a pessoas em situação de rua e modos de representação de pessoas em situação de rua. Tais categorias são relevantes em estudos que visam análises do significado representacional, em seus complexos cruzamentos com os demais significados do discurso (acional e identificacional).5 5 O extenso trabalho com a codificação dos dados do NVivo está descrito com mais detalhes em “Representação discursiva da violência e da violação de direitos contra pessoas em situação de rua nas plataformas on-line do Correio Braziliense (2014 a 2018)” (RAMALHO, 2020) e em “Contribuições do uso do software NVivo em pesquisa discursiva crítica”. (RAMALHO; RESENDE; ARAÚJO, [2021?], no prelo)

Para cada nó, foram criados indutivamente subnós, de acordo com as informações extraídas dos textos, o que propiciou respostas a questões específicas para o recorte dos dados. Por exemplo, ao observar o nó intertextualidade e fontes jornalísticas cruzado ao nó modos de avaliação de pessoas em situação de rua, foi possível observar os cruzamentos entre as vozes que (mais) avaliam pessoas em situação de rua e as avaliações mais recorrentes. O cruzamento do nó intertextualidade e fontes jornalísticas com o nó modos de referência a pessoas em situação de rua, por sua vez, favoreceu outro panorama geral dos dados, permitindo compreender como as vozes articuladas no discurso jornalístico se referem ao grupo no corpus. No NVivo, ainda podemos efetuar, por exemplo, o cruzamento entre os textos de uma pasta específica (por exemplo, a pasta temática de políticas públicas) com o nó intertextualidade e fontes jornalísticas, o que proporcionou a apuração de resultados sobre a frequente omissão de vozes discursivas (in)diretas de pessoas em situação de rua, enquanto esse espaço discursivo é reservado para ativistas e vozes do governo. Esses são alguns exemplos de resultados analíticos panorâmicos propiciados pelas ferramentas analíticas que utilizamos como categorias de análise (para uma exemplificação mais detalhada sobre intertextualidade e avaliação, cf. RESENDE, 2016RESENDE, V. M. Representação de pessoas em situação de rua no jornalismo on-line: quais são as vozes convocadas para falar sobre a situação de rua? Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 26, n. 3, p. 955-988, 2016.).

Já nas categorias de preparação, os nós editoria, assinatura e tipo textual foram criados considerando características importantes para os gêneros em estudo e a prática jornalística. Os três nós foram úteis para observar em quais cadernos do Correio Braziliense a situação de rua era mais abordada, qual tipo textual (narrativo ou argumentativo) era predominante em cada pasta, quais textos eram assinados por jornalista do Correio Braziliense, por agência externa ou não era assinado, entre outras questões.

As categorias organizadas na plataforma do NVivo orientaram a codificação dos textos. Pudemos realizar o mapeamento da representação discursiva em cada texto, e assim a ferramenta cumpriu seu papel de facilitar o processo de organização, análise e compartilhamento de dados. Este trabalho de análise, fundamentado na análise de discurso crítica, investiga os fatores sociais e culturais que influenciam a produção jornalística e os discursos reproduzidos. Isto porque as estratégias discursivas não são aleatórias, mas sim resultado do aparato ideológico que sustenta instituições de poder e legitima escolhas de políticas públicas.

As notícias e reportagens do Correio Braziliense sobre a situação de rua, publicadas entre 2014 e 2018, são predominantemente argumentativas e, dentre 84 textos, somente 46 são produções próprias do jornal, enquanto 38 são republicadas de agências e outros veículos. Dos 46 textos de autoria do Correio, 23 estão assinados, ou seja, apenas 27% das notícias e reportagens sobre ações e políticas públicas vinculadas à situação de rua na plataforma do Correio registram assinatura de quem escreveu a matéria. Além disso, 41% (35 textos) das matérias concentram-se no caderno cotidiano Cidades, que cumpre também o papel de caderno policial naquele jornal. (RAMALHO, 2020RAMALHO, I. S. Representação discursiva da violência e da violação de direitos contra pessoas em situação de rua nas plataformas on-line do Correio Braziliense (2014 a 2018). 2020. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2020.) Esses dados ilustram a forma como o jornalismo desse veículo organiza e seleciona pautas sobre a situação de rua em suas publicações.

Também foram mapeadas questões discursivas relevantes aos estudos da linguagem, desde quais vozes discursivas foram articuladas até a abordagem representacional da população em situação de rua. Assim, identificou-se a produção jornalística como um palco discursivo que reconstitui, recontextualiza e representa práticas sociais.

6 A situação de rua no Correio Braziliense: vozes que avaliam e referem

Três questões fundamentais delimitaram nossa análise a seguir: (1) Como o espaço discursivo é distribuído para falar sobre a situação de rua nos textos sobre políticas públicas do corpus? (2) Quais grupos sociais mais avaliam pessoas em situação de rua no contexto de ações e políticas públicas representadas no Correio Braziliense entre 2014 e 2018? (3) Quais modos de representação são mais articulados para caracterizar a população em situação de rua nesses textos? Essas questões serão respondidas a seguir, considerando o enfoque macroanalítico deste artigo.

6.1 Intertextualidade e modos de avaliação

Com a categoria analítica de Intertextualidade e fontes jornalísticas, foi possível mapear a primeira questão, observando que os grupos sociais mais convocados pelo Correio são ativistas, religiosos, voluntários e organizações não governamentais, com 87 referências em 29 textos. Um exemplo da presença dessas vozes no corpus pode ser observado a seguir:

Antes do Brechó, eu tinha um certo receio da aproximação intensa com pessoas nessa situação. Hoje, isso mudou radicalmente. Eles se sentam com a gente, contam suas histórias de vida, se unem conosco.6 6 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2015/06/22/interna_cidadesdf,487427/brecho-pretende-proporcionar-experiencia-de-consumo-para-moradores-de.shtml. Acesso em: 10 maio 2021.

Nesta reportagem, publicada em 22 de junho de 2015, a temática da situação de rua constrói-se em torno de um evento beneficente. O Brechó é uma iniciativa que, de acordo com seus idealizadores, “pretende proporcionar experiência de consumo” e compõe um exemplo das ações públicas direcionadas à situação de rua. O foco no consumo - em oposição ao direito - mostra o tom da ação e de sua cobertura. O texto organiza vozes de ativistas para falar sobre o que é considerada a filosofia do brechó e, também, relatos de voluntários, no formato de depoimento, para incentivar mais participação.

O fato de ativistas terem acesso prioritário de fala nesse espaço discursivo sugere que jornalistas selecionam essas vozes por considerá-las representantes sociais adequados para vocalizar a população em situação de rua. (RESENDE; MENDONÇA, 2019RESENDE, V. M.; MENDONÇA, D. G. População em situação de rua e políticas públicas: representações na Folha de São Paulo. D.E.L.T.A.: Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, São Paulo, v. 35, n. 4, p. 1-8, 2019.) Já pessoas em situação de rua são convocadas para se autorrepresentarem em uma frequência expressivamente menor, com 51 codificações na pasta temática de ações e políticas públicas. Um exemplo é a fala a seguir, de homem em situação de rua descrito como “um rapaz de 27 anos que pede para não ser identificado”:

Um dia, quero trabalhar como assistente social para ver se as coisas melhoram. Porque, para a sociedade, nós somos lixo. Aliás, somos tratados como lixo. Passa um guarda-civil metropolitano e diz: “Ei, lixo, levanta daí”, afirma.7 7 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2017/05/10/interna-brasil,594036/novo-abrigo-para-moradores-de-rua-de-sp-tem-canil-e-funciona-24-horas.shtml. Acesso em: 10 maio 2021.

O texto em questão foi publicado em 10 de maio de 2017 e trata da inauguração do Centro Temporário de Acolhimento (CTA) para pessoas em situação de rua, que, além de ter funcionamento 24 horas, permite a entrada de animais e conta com garagem destinada a carroças, frequentemente usadas por pessoas em situação de rua em suas atividades laborais. Esses pontos são considerados inovadores, já que, comumente, são proibidos animais e carroças em equipamentos de abrigamento. Segundo a matéria, o espaço foi construído para “atrair moradores de rua, que queixam-se de horários restritos, presença de percevejos e falta de espaço para abrigar os cães em outros albergues municipais [do município de São Paulo]”.

Para entender a disparidade quantitativa entre vozes atribuídas a ativistas, religiosos, voluntários e organizações não governamentais e vozes atribuídas a pessoas em situação de rua, é preciso presumir a vantagem do repórter como agente inteligente da produção noticiosa (LAGE, 2001LAGE, N. A Reportagem: Teoria e Técnica de Entrevista e Pesquisa Jornalística. Rio de Janeiro: Record, 2001.), pois “construíram, ao longo da vida, uma série de crenças e padrões de comportamento que nem sempre se adaptam à tarefa que executam”. (LAGE, 2001LAGE, N. A Reportagem: Teoria e Técnica de Entrevista e Pesquisa Jornalística. Rio de Janeiro: Record, 2001., p. 11) Na relação complexa entre linguagem e sociedade, os textos noticiosos como produtos de discurso, por um lado, são instrumentos de ação e representação que conformam nossos modos de percepção dos problemas sociais noticiados, mas também são instâncias de reprodução dessas mesmas percepções, na medida em que jornalistas estão sujeitos(as) às mesmas formulações ideológicas.

Assim, a produção de textos jornalísticos é resultante de um processo histórico sobre como vemos o outro e permite restrito espaço para vozes de minorias, muitas vezes desrespeitando seu lugar de fala ao assumir representações por outros grupos, como ativistas, religiosos ou organizações não governamentais, que assumem uma voz da rua. Os excertos atribuídos a ativistas e voluntários também potencializam ações sociais de cunho caritativo e assistencialista, que reforçam a tutela do grupo vulnerável por não acionar pessoas em situação de rua para avaliarem essas ações.

Outras vozes com influência no espaço discursivo são aquelas compreendidas como fontes oficiais, que incluem vozes da lei, do governo e da polícia. Com 44 referências codificadas, os discursos governamentais engendrados para falar sobre pessoas em situação de rua vocalizam a implementação de medidas de contenção, e tampouco estas buscam como base para o discurso a vivência de quem está ou esteve na rua, ou seus movimentos sociais. Não discutem as relações causais por trás da situação de rua, não questionam a eficácia de procedimentos e veiculam uma imagem negativa ao grupo, frequentemente representando a situação de rua como uma escolha. A seguir, um exemplo do discurso relatado em notícia:

O problema é antigo. Vai chegar a 12 mil vagas, mas continuam milhares nas ruas, sem lugar para dormir ofertado pela Prefeitura. Para essa população, a única solução é a rua. Eles não querem ir para abrigo, porque há disciplina rígida. Essa população não adere. Mesmo assim, a proposta é positiva.8 8 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2016/06/18/interna-brasil,536838/tenda-de-haddad-para-moradores-de-rua-e-insuficiente-diz-defensoria.shtml. Acesso em: 10 maio 2021.

O discurso oficial nesse trecho veicula um cenário de contradição quando se refere à situação de rua. No texto, que trata da disponibilização de uma tenda, papel atribuído à voz da lei convocada é a defesa dos direitos humanos. No entanto, ao traçar o panorama que poderia esmiuçar as reais demandas do grupo, o representante do governo reforça a concepção de que pessoas em situação de rua permanecem sem assistência por escolhas individuais e por falta de “disciplina”, um estereótipo com valor de conhecimento objetivo, nos termos de van Dijk (2014VAN DIJK, T. Discourse and knowledge. New York: Palgrave Macmillan , 2014.). O discurso da autoridade no texto qualifica que a política pública ofertada é positiva e que, portanto, a eventual falta de adesão de pessoas em situação de rua à proposta não é responsabilidade prioritária do Estado.

Esse estereótipo reforça o baixo grau de humanidade atribuído a identidades vulneráveis nos meios de comunicação, que não raro desqualificam a imagem e as opiniões de pessoas em situação de rua, o que se logra também pela articulação de falas em textos, como neste caso. O conhecimento vivencial da população em situação de rua não é considerado para apontar as necessidades e demandas pertinentes do grupo ou para avaliar a execução de políticas públicas na ponta.

Na categoria analítica de Modos de avaliação, o subnó mais expressivo corresponde a assistidas, acolhidas, atendidas, um dado que reforça a representação de pessoas em situação de rua como receptoras de ações e políticas públicas e como usuárias de equipamentos públicos. Nas 62 codificações com esses qualificadores, a população em situação de rua é considerada atingida positivamente pelas ações e políticas públicas instauradas, uma avaliação advinda de ativistas ou do próprio jornal, com baixa presença de avaliação por vozes da rua. Ameaçadas, agredidas, assustadas, desassistidas, violadas também foram avaliações codificadas, em um número expressivamente menor, mas que indicam episódios simbólicos de violência sofrida por pessoas em situação de rua e noticiados no Correio Braziliense.

Para situarmos essas avaliações, vejamos o seguinte excerto: “Um gesto de solidariedade de um grupo de amigos fez a alegria de pessoas em situação de rua de Brasília” (texto publicado em 31 de maio de 2014).9 9 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2014/05/31/interna_cidadesdf,430275/amigos-montam-especie-de-brecho-para-atender-moradores-de-rua.shtml. Acesso em: 10 maio 2021. Nesse trecho, o jornal atribui eficiência à ação pública de ativistas e considera a iniciativa de doação de roupas uma forma de atendimento a pessoas em situação de rua. A mesma notícia recorre à voz de uma ativista, organizadora do projeto, que comenta “A gente quis simular uma loja para eles não se sentirem como se estivessem recebendo alguma esmola ou doação, mas como uma maneira diferente de receber”, corroborando a avaliação positiva do evento quanto a seu foco na simulação do consumo.

Observe-se que a percepção negativa sempre carrega pressupostos - neste caso, avaliativos - da situação de rua e das pessoas em situação de rua. Reproduzem-se sentidos limitados (estereotipados) para compreender essa população como um grupo para o qual “qualquer coisa serve” e reforçar os preconceitos em torno da mendicância - apagando o fato de que a maior parte das pessoas em situação de rua trabalha, segundo a pesquisa nacional do MDS antes mencionada. (BRASIL, 2008BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Rua: aprendendo a contar. Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua. Brasília, DF, 2008.) Ao mesmo tempo, esse trecho também reforça características positivas da elite brasiliense, representada como solidária, outro sentido bastante comum em textos do Correio Braziliense sobre a rua, como apontado na pesquisa de Ramalho (2020RAMALHO, I. S. Representação discursiva da violência e da violação de direitos contra pessoas em situação de rua nas plataformas on-line do Correio Braziliense (2014 a 2018). 2020. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2020.). Isso lembra o conceito de “quadrado ideológico” de van Dijk (2014VAN DIJK, T. Discourse and knowledge. New York: Palgrave Macmillan , 2014.), dado o reforço de características positivas do endogrupo (a elite brasiliense, neste caso) e da ênfase em características negativas do exogrupo (a população em situação de rua), ao passo que as características contrárias (negativas do endogrupo e positivas do exogrupo) são mitigadas ou mesmo apagadas.

Por outro lado, avaliações como vulneráveis, incapazes economicamente, fracas (13) e também invisibilizadas, ignoradas, abandonadas (9) reforçam a representação da desigualdade que atinge o grupo. Por vezes, o que deveria ser compreendido como papel do Estado é, na realidade, pauta de ações assistencialistas, sobre as quais se formula avaliações como:

Para as 14 pessoas à frente do Brechó de Rua, o vento gelado que corta a paisagem de Brasília, mesmo com aparições diárias do sol, é uma convocação para o trabalho, uma lembrança da situação de vulnerabilidade em que se encontram as pessoas que vivem nas ruas e não têm condições de se proteger do clima gelado.10 10 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2015/06/22/interna_cidadesdf,487427/brecho-pretende-proporcionar-experiencia-de-consumo-para-moradores-de.shtml#:~:text=Para%20as%2014%20pessoas%20%C3%A0,se%20proteger%20do%20clima%20gelado. Acesso em: 11 maio 2021.

Nas escolhas linguísticas articuladas também pelo próprio jornal, aspectos da iniquidade reafirmam-se e são veiculados. No trecho acima, parte de uma notícia publicada em 22 de junho de 2015, que aborda a ação de voluntários com a doação de roupas, a representação da população em situação de rua como vulnerável é seguida de uma narrativa segundo a qual cabe aos voluntários a responsabilidade de criar estratégias para minimizar os problemas enfrentados, nesse caso, o frio. Enfatizar relações pessoais entre um grupo específico de voluntários e um grupo também específico de pessoas em situação de rua (aqui “14 pessoas”), leva a ação pública para o âmbito individual. Assim como às pessoas em situação de rua é frequentemente atribuída responsabilidade individual pela situação de carestia, também a ação pública é representada no nível pessoal. As duas formas de representação esvaziam responsabilidades sociais compartilhadas e públicas.

Algo semelhante ocorre em texto de 25 de dezembro de 2016 focado na atuação de um grupo durante a distribuição de alimentos para pessoas em situação de rua. Nele, prevalece a voz atribuída a uma voluntária que, entre outras coisas, relata o que sente ao executar tais ações:

“O olhar de gratidão, um abraço, uma conversa. As pessoas vivem muito sozinhas. Você conseguir arrancar essas atitudes de uma pessoa que você vê que está drogada, judiada, esquecida pela sociedade, marginalizada, não tem preço. Todo mundo tinha que ajudar. Não tem que ter razão ou motivo”, afirma a mulher.11 11 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/impresso/2016/12/2718429-doacao-alem-do-alimento.html. Acesso em: 11 maio 2021.

Novamente, a situação de rua é tratada como passível de solução por meio de ações assistencialistas, que podem, sim, servir para mitigar situações extremas de sofrimento, mas dificilmente poderão ser consideradas solução propriamente, pois estas demandam políticas intersetoriais, como preconiza a PNSR. Nesse mesmo fragmento acima, estão presentes estereótipos sobre pessoas em situação de rua que contribuem para uma representação coletiva negativa. Chama atenção o fato de que, em uma primeira versão da publicação, esse fragmento tenha sido reproduzido pelo jornal uma única vez, dentro de uma fala maior atribuída à voluntária, mas posteriormente, em uma atualização, essa fala foi replicada mais uma vez, ao final do texto e com destaque em negrito, reforçando discursos com potencial de estigmatizar pessoas em situação de rua através da associação com o campo da drogadição.

A recorrência de qualificadores negativos em textos sobre ações e políticas públicas voltadas à rua pode impactar a consecução de políticas que compreendam a situação de rua como um processo de desfiliação, falta de pertencimento, vulnerabilidade, e não somente ou sempre uma escolha pessoal - que poderia ser não só interpretada, mas também resolvida apenas no nível do indivíduo.

6.2 Modos de representação de pessoas em situação de rua

Para discorrer sobre os modos de representação articulados para caracterizar a população em situação de rua nas notícias, um nó específico foi organizado no software. O embasamento teórico dos subnós dessa categoria remete aos estudos de van Leeuwen (2008VAN LEEUWEN, T. Discourse and practice. New tools for Critical Discourse Analysis. Oxford: Oxford University Press, 2008.), adaptados para a pesquisa e indutivamente mapeados.

Tabela 1
Subnós do nó Modos de representação de pessoas em situação de rua

No resultado dos cruzamentos do nó Modos de representação de pessoas em situação de rua, os subnós de agregação, coletivização e individualização mostram-se relevantes. O subnó agregação pode ser compreendido como um termo que “quantifica grupos de participantes, tratando-os como dados estatísticos”. (VAN LEEUWEN, 1997VAN LEEUWEN, T. A representação dos atores sociais. In: PEDRO, Emília Ribeiro. (Org.) Análise Crítica do Discurso: uma perspectiva sociopolítica e functional. Lisboa: Caminho, 1997. p. 169-222., p. 195) Verifica-se essa conduta nos trechos a seguir: (1) “Desde o início do ano, pelo menos 20 sem-teto morreram na região parisiense”; (2) “Há dois meses, o Centro Pop de Taguatinga Norte, que atende a cerca de 130 pessoas em situação de rua, arrecadou 60 bicicletas quebradas”. Esses casos se aproximam do que van Dijk (2008VAN DIJK, T. Discourse and power. New York: Palgrave Macmillan, 2008., p. 208) define como number game, quando dados numéricos são utilizados como argumentos, com efeito retórico de “supor objetividade e precisão, e então credibilidade”.

A coletivização de pessoas em situação de rua foi a categoria mais frequente nesta pasta, que presume um afastamento discursivo do jornal ao incutir o apagamento identitário, como no exemplo a seguir: “Foi feito pensando apenas no centro, onde ficam os moradores de rua, mas eles vão se mudar para outros pontos”.12 12 Excerto coletado na pesquisa de composição do corpus, mas atualmente indisponível nas plataformas on-line do Correio Braziliense. A articulação de um discurso que coletiviza o grupo oprimido potencializa a imagem genérica, impessoal, e assim distancia as pessoas em situação de rua de sua história e de seu protagonismo. A escolha massiva da coletivização sugere um mecanismo linguístico que produz efeitos de silenciamento, na medida em que a coletivização presume que a população em situação de rua seja um grupo homogêneo e oculta o cunho multifacetado dessa população, caráter heterogêneo instituído inclusive pela PNSR. (BRASIL, 2009BRASIL. Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 16, 24 dez. 2009.)

Apesar dessa escolha pela coletivização, o recurso de individualização se insere, paradoxalmente, como a segunda opção preferida nos textos do corpus. O subnó individualização singulariza os atores sociais envolvidos ao apresentar sua identidade, de modo que a presença de nomes próprios para a composição da pauta é um indicativo da construção de um discurso mais pessoal e próximo à realidade vivencial. No corpus em análise, a representação por individualização está frequentemente construída com outras informações, como o tipo de trabalho exercido e a idade. (RAMALHO, 2020RAMALHO, I. S. Representação discursiva da violência e da violação de direitos contra pessoas em situação de rua nas plataformas on-line do Correio Braziliense (2014 a 2018). 2020. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2020.) Isso ocorre em excertos como: (1) “Leonardo, 42 anos, está em situação de rua há um mês e ficou sabendo da ação nesta semana.”;13 13 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2017/12/24/interna_cidadesdf,649772/voluntarios-fazem-ceia-de-natal-para-pessoas-em-situacao-de-rua.shtml. Acesso em: 10 maio 2021. (2) “Um dos alunos é Marcus Alves Ferreira, 35, morador de rua há 23 anos”.14 14 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2018/09/24/interna_cidadesdf,707780/escola-meninos-e-meninas-do-parque.shtml. Acesso em: 10 maio 2021.

Outra possibilidade de individualização foi mapeada, na subcategoria intitulada “individualização inespecífica” (RAMALHO, 2020RAMALHO, I. S. Representação discursiva da violência e da violação de direitos contra pessoas em situação de rua nas plataformas on-line do Correio Braziliense (2014 a 2018). 2020. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2020.), que abarca as codificações em que os atores sociais não são referenciados por um nome próprio, mas são singularizados dentro do grupo; por exemplo: “O morador de rua de 26 anos vai trabalhar de segunda a sexta-feira, em horário integral, no escritório do advogado João Tancredo, como auxiliar de serviços gerais”.15 15 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2014/10/09/interna-brasil,451651/justica-autoriza-trabalho-externo-a-morador-de-rua-preso-em-manifestacao.shtml. Acesso em: 10 maio 2021.

A análise dos Modos de representação também destacou os subnós de identificação física e de identificação relacional, que particularizam os atores sociais e se aproximam do recurso de individualização. Compreende-se a identificação física como uma estratégia associada à individualização pois, mesmo sem nomear, singulariza os atores sociais com base nas suas características físicas, como em: “Para esse homem grisalho que vive nas ruas, junto com outras 140 mil pessoas sem moradia na França”.16 16 Coletado na pesquisa de composição do corpus, mas atualmente indisponível nas plataformas on-line do Correio Braziliense. Já a representação por individualização a partir da identificação relacional explana as relações de pessoas em situação de rua com seus vínculos afetivos e familiares; por exemplo: “[…] “Minha mãe foi embora dizendo que ia comprar cigarros quando eu tinha quatro anos e meu pai morreu quando eu tinha sete’, relatou Didier, de 52 anos, um homem de olhar sombrio, que vive nas ruas há oito anos”.17 17 Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/mundo/2016/11/11/interna_mundo,556937/papa-da-tratamento-vip-a-sem-teto-e-pede-que-nao-percam-a-dignidade.shtml. Acesso em: 10 maio 2021.

Esses dois modos de representação, coletivização e individualização, aparentemente paradoxais, são os mais expressivos dentro da mesma pasta. Com a releitura do corpus, o que fica visível é a segmentação da pasta em duas subtemáticas: políticas públicas, por um lado, e ações assistencialistas ou voluntárias, por outro. Essa segmentação aponta que a coletivização é mais recorrente em textos com o foco governamental ou político, enquanto a presença da individualização é característica de notícias com foco em ações sociais assistencialistas. Ou seja, a veiculação de matérias que discorrem sobre políticas públicas abarca o assunto de maneira geral e direciona um olhar para a situação de rua como um todo. Paralelamente, o recurso de individualização sobressai em pautas que frisam ações sociais voluntárias ou assistencialistas, pois nesses casos também se colhe depoimentos de pessoas em situação de rua para creditar a atuação como efetiva e humanitária. É importante ressaltar que ações isoladas para atender a essa população não resolvem a problemática, mas sim mantêm a desigualdade e mascaram o cerne da situação de rua, ainda que sejam benéficas para amenizar sofrimentos que são, sim, absolutamente urgentes.

7 Considerações finais

O papel da linguagem não só na representação do mundo, mas também em sua própria configuração, alavanca o discurso do seu plano abstrato para seu funcionamento como artifício de materialização da vida social. O trabalho de análise da representação discursiva da população em situação de rua inflama uma discussão contínua sobre como vemos e falamos do outro. Por meio de notícias e reportagens publicadas em um jornal de grande alcance virtual como o Correio Braziliense, analisar a abordagem a da situação de rua reafirmou a recorrência de estereótipos, modos de compreensão que embora sejam baseados em preconceitos, são tomados como conhecimento objetivo, de modo que ensejam repetições que ressaltam características positivas de um grupo (endogrupo) ao reforçar características negativas de outro (exogrupo). Isso manifesta-se, por exemplo, no tratamento do grupo enquanto um problema e não enquanto uma população desassistida de políticas públicas efetivas, bem como na representação do outro como a solução, sempre parcial, sempre individualizada. Assim se baliza e se repete a crença de impossibilidade de solução efetiva, definitiva, pública e coletiva.

Os estudos críticos do discurso potencializam o debate sobre esse processo social e contribuem para explanar relações entre representação e manutenção de desigualdades. A análise dos textos sobre políticas públicas e situação de rua permitiu compreender articulações discursivas que cristalizam uma imagem negativa da população em situação de rua, com efeito de expurgá-la e estigmatizá-la. Por exemplo, o reduzido espaço discursivo desses atores sociais para falar sobre ações e políticas públicas sugere a tutela na fala, que afasta avaliações de quem utiliza as políticas públicas. O desafio de analisar o funcionamento do discurso no contexto da situação de rua se manifesta devido à necessidade de refletir sobre a eficácia das políticas públicas implementadas, pois o trabalho de análise busca não necessariamente encontrar respostas, mas sim continuar indagando, escavando mais e propor melhores perguntas.

Agradecimentos

Agradecemos a colaboração de nosso grupo de pesquisa do Laboratório de Estudos Críticos do Discurso (LabEC) da UnB/CNPq, aqui nomeadamente das colegas que participam dos projetos de pesquisa vinculados a este estudo: Carolina Araújo, Daniele Mendonça, Mariana Moura e Dara Abreu. Também agradecemos os apoios do CNPq: “Representação midiática da violação de direitos e da violência contra pessoas em situação de rua no jornalismo on-line” (CNPq 304075/2014-0); “Representação discursiva no Correio Braziliense e na Folha de S. Paulo: políticas públicas para população em situação de rua e gestão do espaço urbano” (CNPQ 301809/2017-8); “Representação discursiva no Correio Braziliense e na Folha de S. Paulo: políticas públicas para população em situação de rua e gestão do espaço urbano (2016-2018)” (408220/2018-0), e “Situação de rua nos tempos da covid-19: representação cruzada entre políticas públicas e pandemia” (CNPq 303966/2020-3).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2020
  • Aceito
    30 Maio 2021
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