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A reenunciação do discurso jornalístico na produção de jornais escolares brasileiros - estudo de caso de um projeto de larga escala1 1 Pesquisa financiada pelo CNPq (PQ 310241/2018-9).

The re-enunciation of journalistic discourse in the production of Brazilian school newspapers - a case study of a large-scale project

RESUMO

Este trabalho analisa como o discurso jornalístico aparece reenunciado em uma experiência particular de produção de jornais escolares: o projeto Fala Escola da OSC Comunicação e Cultura, localizada no estado do Ceará, Brasil. A partir do arcabouço teórico da análise crítica de gêneros do discurso (BONINI, 2011BONINI, A. Mídia/suporte e hipergênero: os gêneros textuais e suas relações. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 11, n. 3, p. 679-704, 2011.; 2013BONINI, A. Análise crítica de gêneros discursivos no contexto das práticas jornalísticas. In: SEIXAS, L.; PINHEIRO, N. F. (Org.). Gêneros: um diálogo entre Comunicação e Linguística Aplicada. Florianópolis: Insular, 2013. p. 103-120.; 2017BONINI, A. O jornal escolar como mídia contra-hegemônica - jornalismo de escola não modelado pelo jornalismo comercial dominante. Linguagem em (Dis)curso , Tubarão, v. 17, p. 165-182, 2017.), foram analisados os materiais instrucionais do projeto direcionados a docentes e cinco edições de jornais produzidos em diferentes escolas. O discurso jornalístico hegemônico nuclear - o da objetividade, da imparcialidade e da pluralidade - mostra-se predominante tanto nos materiais instrucionais quanto nos jornais escolares examinados, estes também inscritos em outros discursos dominantes do jornalismo - o investigativo e o de entretenimento. Ambos os materiais também fazem funcionar traços incidentais de um discurso jornalístico contra-hegemônico - o jornalismo comunitário.

PALAVRAS-CHAVE:
jornal escolar; discurso; gêneros do discurso; contra-hegemonia

ABSTRACT

This work analyzes how the journalistic discourse is re-enunciated in a particular experience of production of school newspapers: the project “Fala Escola” (School speaks) of the CSO Comunicação e Cultura, based in the state of Ceará, Brazil. Under the aegis of critical genre analysis (BONINI, 2011BONINI, A. Mídia/suporte e hipergênero: os gêneros textuais e suas relações. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 11, n. 3, p. 679-704, 2011.; 2013BONINI, A. Análise crítica de gêneros discursivos no contexto das práticas jornalísticas. In: SEIXAS, L.; PINHEIRO, N. F. (Org.). Gêneros: um diálogo entre Comunicação e Linguística Aplicada. Florianópolis: Insular, 2013. p. 103-120.; 2017BONINI, A. O jornal escolar como mídia contra-hegemônica - jornalismo de escola não modelado pelo jornalismo comercial dominante. Linguagem em (Dis)curso , Tubarão, v. 17, p. 165-182, 2017.), the project’s instructional materials for teachers and five editions of newspapers produced in different schools were analyzed. The nuclear hegemonic journalistic discourse - that of objectivity, impartiality, and plurality - is predominant both in the instructional materials and in the school newspapers examined, the latter also inscribed in other dominant discourses of journalism - the investigative and that of entertainment. Both materials also bring incidental features of a counter-hegemonic journalistic discourse - the community journalism.

KEYWORDS:
school newspaper; discourse; speech genre; counter-hegemony

Fundou ali um jornal; mas, sendo a política local menos abstrata, Camacho aparou as asas e desceu às nomeações de delegados, às obras provinciais, às gratificações, à luta com a folha adversa, e aos nomes próprios e impróprios. A adjetivação exigiu grande apuro. Nefasto, esbanjador, vergonhoso, perverso, foram os termos obrigados, enquanto atacou o governo; mas, logo que, por uma mudança de presidente, passou a defendê-lo, as qualificações mudaram também: enérgico, ilustrado, justiceiro, fiel aos princípios, verdadeira glória da administração, etc., etc. (MACHADO DE ASSIS, 2013MACHADO DE ASSIS, J. M. Quincas Borba. São Paulo: DCL, 2013. E-book.)

- Você viu o imperador, o Pedro II… Não havia jornaleco, pasquim por aí, que o não chamasse de “banana” e outras cousas… Saía no carnaval… Um desrespeito sem nome! Que aconteceu? Foi-se como um intruso. (LIMA BARRETO, 1993LIMA BARRETO, A. H. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ática, 1993., p. 117)

1 Introdução

Na explicação de Gramsci (2014GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: volume 2: os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.), o capitalismo se institui com a criação de classes de intelectuais que lhe dão sustentação: os intelectuais orgânicos do capital em suas diversas formas. Junto com os juristas e os cientistas, os jornalistas ocupam posição privilegiada na constituição da sociedade liberal moderna. O jornalismo, contudo, com o advento de novos suportes de comunicação (transmissão por ondas magnéticas, por fibra ótica etc.) e de novas mídias (radio, cinema, tevê, internet etc.), foi reajustado de modo a ocupar posição mais nuclear ainda, talvez até mais central no sistema do que sua matriz, a ciência positivista. E esse papel central do jornalismo se aprofunda nas últimas três décadas com o domínio da ideologia neoliberal e com a implementação de mecanismos de globalização econômica e cultural. (THOMPSON, 1995THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna. Tradução de Pedrinho Guareschi et al. Petrópolis: Vozes , 1995.)

Dada sua importância, esse objeto também não tem passado despercebido no plano educacional, nas últimas três décadas, embora as abordagens nem sempre alcancem o desvelamento de sua natureza social. De modo geral, as práticas jornalísticas ganharam relevo pedagógico, sendo enfocadas tanto nas atividades de ensino e aprendizagem quanto nas propostas curriculares, nos livros didáticos e nos programas e projetos da educação básica. Neste âmbito, são particularmente importantes, principalmente no ensino e na aprendizagem de Língua Portuguesa, as ações que envolvem a construção de jornais escolares, as quais podem suscitar uma rica reflexão sobre a esfera jornalística e seus atores ou, de modo contrário e muitas vezes naturalizado, apenas reproduzir o discurso dominante que aí se encontra.

A pesquisa aqui relatada se posiciona epistemologicamente em uma perspectiva marxista, orientando-se pelas proposições teóricas da análise crítica de gêneros do discurso (BONINI, 2013BONINI, A. Análise crítica de gêneros discursivos no contexto das práticas jornalísticas. In: SEIXAS, L.; PINHEIRO, N. F. (Org.). Gêneros: um diálogo entre Comunicação e Linguística Aplicada. Florianópolis: Insular, 2013. p. 103-120.), que é uma abordagem dentro do campo das ciências sociais críticas. O conceito de gênero do discurso mobilizado neste artigo compreende aspectos teóricos provenientes de trabalhos de Norman Fairclough (2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.), Mikhail Bakhtin (2006BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 261-306.), Paulo Freire (2009FREIRE, P. Educação como prática de liberdade. 32. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.) e Antonio Gramsci (2014GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: volume 2: os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.), conforme Bonini (2013BONINI, A. Análise crítica de gêneros discursivos no contexto das práticas jornalísticas. In: SEIXAS, L.; PINHEIRO, N. F. (Org.). Gêneros: um diálogo entre Comunicação e Linguística Aplicada. Florianópolis: Insular, 2013. p. 103-120.; 2017BONINI, A. O jornal escolar como mídia contra-hegemônica - jornalismo de escola não modelado pelo jornalismo comercial dominante. Linguagem em (Dis)curso , Tubarão, v. 17, p. 165-182, 2017.) tem discutido, ou seja, o entendimento do gênero como unidade de interação que compreende a realização da prática social, a produção do enunciado, e a materialização da transitividade dialógica (consciência do lugar histórico e social).

Neste artigo, enfocando o projeto Fala Escola da Organização da Sociedade Civil (OSC)2 2 Equivalente ou similar a Organização não Governamental (ONG). Comunicação e Cultura, são analisados jornais escolares e os materiais instrucionais - direcionados a docentes - que orientam essa produção. Com base em um levantamento de discursos e práticas jornalísticas, busca-se depreender de que forma o discurso jornalístico aparece reenunciado a partir de enunciados constitutivos da esfera jornalística (como os manuais de estilo) para esses materiais.

2 Prática social, gênero e discurso na produção de jornais escolares

A análise crítica de gêneros (ACG), como perspectiva atrelada ao campo das ciências sociais críticas, estuda a linguagem a partir de seu papel na manutenção ou mudança de relações sociais desiguais. (BHATIA, 2004BHATIA, V. K. Worlds of written discourse: a genre-based view. London: Continuum, 2004.; BONINI, 2010BONINI, A. Critical genre analysis and professional practice: the case of public contests to select professors for Brazilian public universities. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 10, n. 3, p. 485-510, 2010.; MEURER, 2000MEURER, J. L. O trabalho de leitura crítica: recompondo representações, relações e identidades sociais. Ilha do Desterro, Florianópolis, n. 38, p. 155-171, 2000.; MOTTA-ROTH, 2008MOTTA-ROTH, D. Análise crítica de gêneros: contribuições para o ensino e a pesquisa de linguagem. DELTA, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 341-383, 2008.) O enfoque do gênero na ACG ocorre em grande proximidade com o quadro teórico da análise de discurso crítica faircloughiana, motivo pelo qual se pode dizer que o conceito de discurso é o mesmo, qual seja: “uma forma particular de representar alguma parte (física, social ou psicológica) do mundo”. (FAIRCLOUGH, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: textual analysis for social research. London: Routledge, 2003., p. 17, tradução nossa) O discurso, entendido por Fairclough também como a semiose, é um dos elementos que constituem as práticas sociais, ou seja, as formas habituais como as pessoas agem em conjunto na sociedade. Os outros elementos, além do discurso, são atividade material, participantes, fenômeno mental e relações sociais. (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking critical discourse analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.)

Vou pressupor, neste artigo, do mesmo modo que venho fazendo em outros artigos (BONINI, 2013BONINI, A. Análise crítica de gêneros discursivos no contexto das práticas jornalísticas. In: SEIXAS, L.; PINHEIRO, N. F. (Org.). Gêneros: um diálogo entre Comunicação e Linguística Aplicada. Florianópolis: Insular, 2013. p. 103-120.; 2017BONINI, A. O jornal escolar como mídia contra-hegemônica - jornalismo de escola não modelado pelo jornalismo comercial dominante. Linguagem em (Dis)curso , Tubarão, v. 17, p. 165-182, 2017.) uma relação entre prática social (CHOULIARAKI; FAIRCLOUGH, 1999CHOULIARAKI, L.; FAIRCLOUGH, N. Discourse in late modernity: rethinking critical discourse analysis. Edinburgh: Edinburgh University Press, 1999.) e enunciado. (BAKHTIN, 2006BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 261-306.) Entendo, nesse sentido, que a ação humana está orientada, primeiramente, para e pela prática social, a qual pode ser recortada, em termos analíticos, de diversas formas (desde um evento, como um leilão de arte, por exemplo, até formas mais gerais da organização social, como o capitalismo de terceira via - e, no caso desta análise, as formas de desenvolvimento da atividade jornalística). A produção dessas ações, por outro lado, também se orienta pelos limites dos enunciados já ditos e pré-figurados na cadeia enunciativa, aos quais responde. Esses enunciados ocorrem em formas relativamente estáveis, de acordo com as esferas da atividade humana nas quais circulam, como propõe Bakhtin (2006BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 261-306.).

Embora haja incorporação de conceitos do círculo de Bakhtin, a ACG aqui defendida não é uma perspectiva que se orienta centralmente pelo dialogismo, haja vista que, mesmo reconhecendo a existência das relações dialógicas, ela privilegia um ponto de vista: o de superar desigualdades sociais em uma perspectiva social marxista, principalmente na vertente culturalista de Gramsci (2014GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere: volume 2: os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.). Em relação ao jornalismo, parte-se do ponto de vista de que a prática jornalística atualmente dominante (a das grandes empresas de comunicação) está ligada aos interesses das elites econômicas, em uma atuação que compreende majoritariamente a (re)produção de relações desiguais. Paulo Freire também é um autor aqui considerado, seja por sua posição de dialogismo crítico, seja por sua teoria da conscientização (transitividade dialógica), seja por sua visão de alfabetização e, por extensão, de letramento. (STREET, 1984STREET, B. Literacy in theory and practice. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.) A incorporação do termo letramento na ACG visa facilitar os debates sobre ensino e aprendizagem de linguagem, por este termo já estar largamente presente nos debates educacionais, por relacionar práticas sociais e conhecimento sobre linguagem e escrita e possibilitar falar dessa relação de forma específica, algo que, por si só, o conceito de prática social não daria conta, por ser mais abrangente. Partindo do conceito de letramento midiático (BUCKINGHAM, 2003BUCKINGHAM, D. Media education: literacy, learning and contemporary culture. Cambridge: Polity Press; Oxford: Blackwell, 2003.), opto também por me referir apenas a um conjunto das práticas de letramento do campo midiático, as relacionadas ao jornalismo, as quais estou denominando letramento jornalístico (não havendo, contudo, espaço nesse artigo para uma maior discussão sobre esse recorte). Importa dizer, também, que na ACG o letramento é uma teoria incidental e não o foco.

Por ser um quadro teórico que, a partir da perspectiva crítica, recorta outros quadros transversalmente, há na ACG a seleção de conceitos de um ou de outro quadro de acordo com o objeto e o enfoque eleitos. Como parte dessas escolhas entre quadros teóricos, optei, nesta análise, por utilizar o conceito de enunciado de Bakhtin (2006BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 261-306.); ou seja, pretendi observar como o discurso jornalístico adentra a escola; como ele é, nestes termos, reenunciado. Há um termo similar na análise de discurso crítica: a recontextualização. (VAN LEEUWEN, 2008VAN LEEUWEN, T. Discourse and practice: new tools for critical discourse analysis. Oxford: Oxford UP, 2008.) A ideia de reenunciar um discurso, contudo, pareceu-me mais potente para pensar aqui a relação entre o discurso de origem - dos jornais e dos cursos de comunicação - e o material em análise - orientações ao trabalho docente com jornais escolares e jornais escolares produzidos sob tais orientações -, uma vez que, ao enfocar o reenunciar, têm-se uma visão desse sujeito que se enuncia e de sua constituição, diferentemente da recontextualização que enfatiza o discurso e sua reorganização formal e semântica à medida que é deslocado de um contexto para outro.

A produção de qualquer ação de linguagem, tendo em vista esta explanação teórica, toma como horizontes tanto a prática social que será realizada quanto a materialização de um enunciado como unidade da cadeia dialógica ininterrupta. As pessoas, ao se enunciarem, agem umas sobre as outras, constituindo relações entre si, identidades e representações de mundo, ou seja, produzem práticas sociais. Quando um professor ou professora organiza sua aula, por exemplo, marca um tipo específico de inserção no mundo a partir das práticas que deslancha, consciente ou inconscientemente. Assim, uma aula pode, por exemplo, seguir uma linha meritocrática/elitista ou coletivista/socialista, pondo em cena práticas bastante distintas e, em alguns sentidos, até mesmo opostas. Ao fazermos escolhas em termos das práticas que realizamos, também o fazemos em termos da configuração do enunciado. Ou seja, se a meta é horizontalizar e politizar criticamente as relações sociais, a aula provavelmente irá se configurar por uma interação participativa e comprometida de todos/as os/as presentes e não por uma pedagogia transmissiva.

Como ação de linguagem, a produção de um jornal escolar é também, simultaneamente, a realização de uma prática social (pelo menos uma) e a construção de um enunciado - nesse caso, um enunciado composto de vários outros. O jornal escolar é, ao mesmo tempo, mídia e gênero, na verdade, um hipergênero, conforme discutido em Bonini (2011BONINI, A. Mídia/suporte e hipergênero: os gêneros textuais e suas relações. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 11, n. 3, p. 679-704, 2011.). Assim, quando se planeja a produção de um jornal escolar, são feitas escolhas tanto em relação ao hipergênero (ordenamento dos gêneros organizadores e de funcionamento em seções e subseções) quanto à mídia - se será em suporte papel, de que tipo e tamanho, se em cores ou preto e branco, quem produzirá e com que tipo de organização em termos de funções e responsabilidades, onde circulará, e que tipo de relação construirá com o leitor. Assim, a proposição de uma linha editorial corresponde a uma prática social da mídia jornal, enquanto a realização dessa linha nas diversas edições ocorrerá em função do tema de cada enunciado (de cada edição do jornal), ou seja, da enunciação do gênero. Na materialização de cada enunciado, de cada edição, a linha editorial proposta pode ser, na prática, efetivada ou negada.

Tanto o hipergênero quanto a mídia jornal escolar são organizados em termos das práticas sociais as quais se pretende realizar. E, nesse sentido, não só práticas novas podem ser propostas, mas as práticas já estabelecidas também se apresentam. O jornal convencional dominante é muito forte como modelo e normatizador das práticas de noticiabilidade e, nesse sentido, muitas vezes, esse modelo pode entrar na sala de aula mais como um reflexo - o resultado do trabalho ideológico das empresas de jornalismo - do que como a reflexão esperada sobre o jornalismo - os debates quanto a suas formas de ocorrência e quanto a sua ação sobre as pessoas e a sociedade. As empresas que controlam esse jornalismo dominante, que compreende, além de jornais em papel e on-line, telejornais e agências de notícias, são muito poderosas econômica e socialmente, dispondo de inúmeros mecanismos de disseminação e sedimentação de sua posição de poder via discurso jornalístico dominante. Esse discurso se impõe pelos manuais de estilo dos jornais, pelos manuais de formação do/a profissional de jornalismo e pela própria propaganda ideológica que aparece em anúncios publicitários dos jornais e dos canais de notícia. De modo geral, esse discurso jornalístico dominante se constitui por duas matrizes discursivas: a clássica e a investigativa.

A matriz clássica, que é o núcleo duro do discurso jornalístico dominante, se assenta na teoria da informação, que tem em Shannon e Weaver (1964SHANNON, C. E.; WEAVER, W. The mathematical theory of communication. Urbana: The University of Illinois Press, 1964.) seu ápice formal, mas que já ganhava corpo desde o iluminismo, ou mesmo antes, em todos os ideários que serviram de base para o estabelecimento do mundo liberal e das relações do capital. Segundo essa perspectiva, comunicar consiste em articular um código com vias a transmitir uma mensagem, havendo, portanto, possibilidade de controlar os fatores intervenientes, de modo a se obter uma mensagem sem ruídos. O jornalista, nesse caso, assume o papel do mediador, aquele que articula o código, aquele que supostamente pode apagar sua presença no discurso e deixar o “fato” falar de modo “imparcial” e “objetivo”.3 3 Por outro lado, os vestígios de que a atividade jornalística, na prática, não é tão neutra e imparcial também já datam de séculos na literatura, e as duas epígrafes desse trabalho são exemplos. É interessante notar, além disso, que a criação de um discurso sobre o “mau jornalismo” (com termos como pasquim e imprensa marrom) ajudou a fortalecer o discurso dominante do jornalismo dito sério. Não obstante, de um ponto de vista discursivo, o pasquim é bem mais plausível, pois não esconde que há sujeito na linguagem e que todo relato é “interessado”; e ser interessado não corresponde sinonimamente a “mal-intencionado”.

O jornalismo dominante da matriz clássica mostra-se como o dispositivo apurador de uma suposta verdade dos eventos sociais, colocando-se como a voz da sociedade e como arena de debates dos diversos pontos de vista sociais (pluralismo). Esse discurso se materializa, por exemplo, neste verbete do manual de estilo da Folha de S.Paulo:

Ética - O jornalista deve assumir compromisso apenas com a isenção na cobertura dos fatos, a liberdade de expressão, o direito de informar e o acesso do leitor a toda informação ou opinião importante. Deve procurar conhecer todas as versões de um fato e registrá-las com fidelidade. Ele tem responsabilidade moral pelas informações que coleta e transmite, as quais devem ser sempre exatas e comprovadas. O jornalista deve recusar toda vantagem pessoal que possa comprometer seu desempenho profissional. Veja convite; anonimato (no cap. Produção); jabaculê; “pool” (no cap. Produção).” (FOLHA DE S.PAULO, 1998FOLHA DE S.PAULO. Novo manual da redação. São Paulo: Folha de S.Paulo, 1998., p. 17, grifo nosso)

A voz que se propõe a falar em nome de todos precisa convencer de que não tem nenhum interesse particular e, daí, ela se colocar discursivamente como “isenta”. Ao mesmo tempo, ela tem de ser maleável o suficiente para não parecer impositiva, e então se dizer defensora da “liberdade de expressão”. É interessante notar como esse papel mediador, de voz que fala em nome das outras, se destaca no trecho: “acesso do leitor a toda informação ou opinião importante”. O jornalismo dominante se outorga o direito de determinar quais são as opiniões e informações que as pessoas precisam saber, e recorre a um discurso de autoridade científica (“exatas e comprovadas”) para determinar não apenas uma, mas “toda opinião e informação importante”. Esse dispositivo que emula um discurso científico é o que ecoa novamente no trecho: “conhecer todas as versões de um fato e registrá-las com fidelidade”. Aí estão as certezas expressas pelo quantificador “todas” e pela expressão categórica, não modalizada, “com fidelidade” - são as promessas de uma ciência positivista já decantada pela virada discursiva das ciências humanas ocorrida na década de 1960; ciência positivista que, contudo, se mantém forte como representação de mundo, pelo uso que dela fazem o jornalismo, o judiciário, a medicina e, mais recentemente, até mesmo a religião. Chama atenção aqui, além do mais, como a prática jornalística é atribuída não à empresa, mas ao jornalista que “tem responsabilidade moral pelas informações que coleta e transmite” e o dever de “recusar toda vantagem pessoal”, quando as vantagens, em seu sentido mais literal, estão relacionadas ao lucro e aos retornos do círculo de poder dos empresários da comunicação em sua relação com empresários de outros setores. De mais a mais, esse discurso de ética e moralidade apresentado pela empresa Folha de S.Paulo - igual ao de todas as demais empresas de jornalismo dominante - é uma forma de construir uma imagem convincente (moral, ética, ilibada), sem, contudo, se responsabilizar, ao não invocar o justo e as penas da mentira, itens apagados desse discurso.

Se a primeira matriz do discurso dominante do jornalismo se assenta na teoria da comunicação, a segunda se baseia no movimento do jornalismo investigativo, que se constituiu nos Estados Unidos do pós-guerra e ganhou reconhecimento com a premiação no Pulitzer de 1964. (cf. SEQUEIRA, 2005SEQUEIRA, C. Jornalismo investigativo: o fato por trás da notícia. São Paulo: Summus, 2005., p. 28) Essa representação da prática jornalística como aquela que revela as verdades inconvenientes dos poderosos, que busca a justiça pela informação, com uma pesquisa que envolve um risco e um mistério a ser deslindado, acabou ganhando um papel central na definição da identidade jornalística, sendo a mais recorrente quando jornalistas são representados/as em filmes, telenovelas, séries etc. São clássicos dessa representação os filmes Todos os homens do presidente (All the president’s men, Alan J. Pakula, 1976) e Spotlight - segredos revelados (Tom McCarthy, 2015). Em função desse discurso, os jornalistas são treinados para fazer perguntas que supostamente “arranquem a verdade”, mesmo que muitas vezes a pergunta já contenha implícita uma resposta supostamente verdadeira - uma prática que se desmascara e ganha ares de humor, por exemplo, no popular vídeo em que a inquisição do jornalista a Rodrigo Amarante, integrante da banda Los Hermanos, é respondida com comentários ácidos.4 4 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iypM6LKhB8o. Acesso em: 14 jun. 2020.

Um terceiro elemento presente na prática jornalística dominante, embora nunca explicitado como constituindo o caráter do jornalismo, é o entretenimento. Não se pode afirmar que se trata de uma matriz, mas existe um discurso jornalístico de entretenimento. Trata-se da face mais comercial do jornalismo. As duas matrizes anteriores sempre são abordadas, em alguma medida, no jornalismo das grandes empresas de comunicação, principalmente nos canais de notícia, por um caráter recreativo e espetacular, no que Arbex Junior (2001ARBEX JR, J. Showrnalismo. São Paulo: Casa Amarela, 2001.) chama de showrnalismo. Esse tipo de jornalismo leva o interlocutor, através de inúmeras técnicas, a ver a narrativa dos eventos como se estive presenciando a própria história do mundo em estado natural. Para o autor, o “maior problema, para o pensamento crítico, é tornar visível não apenas o oculto, censurado ou ausente como texto ou imagem, mas o que as tecnologias da informação tornam aparentemente visível por um processo de exposição extrema que, fingindo tudo mostrar, de fato nada revela”. (ARBEX JR., 2001ARBEX JR, J. Showrnalismo. São Paulo: Casa Amarela, 2001., p. 205)

Se o discurso jornalístico apresenta uma versão hegemônica, ele também se manifesta com posições discordantes, ou, neste caso, o que chamei anteriormente (BONINI, 2019BONINI, A. Políticas de enseñanza de prácticas periodísticas en escuelas de Argentina y Brasil. Signo y Seña, Buenos Aires, n. 35, p. 107-126, 2019.) de as versões não dominantes da prática jornalística, às quais corresponderiam outros discursos. Quando Sequeira e Bicudo (2007SEQUEIRA, C.; BICUDO, F. Jornalismo comunitário - conceitos, importância e desafios contemporâneos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 30., 2007, Santos. Anais […]. Santos: Intercom, 2007. Disponível em: Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R0507-1.pdf . Acesso em: 17 out. 2017.
http://www.intercom.org.br/papers/nacion...
) dizem que “o jornalismo comunitário acaba sendo confundido com o popular, o de serviços, o ligado a movimentos sociais, o alternativo, o de bairro” (p. 8), nota-se, na enumeração exposta, todo um espectro de discursos em relativa oposição entre si e em oposição ao discurso dominante. Dois designativos, na atualidade, parecem expressar mais diretamente as fissuras do discurso jornalístico dominante, se colocando como os principais projetos transformadores da prática e contra-hegemônicos, ainda que essa explicação baseada em apenas dois termos corra o risco de simplificar um panorama que é demasiado complexo.

O jornalismo comunitário parece ser justamente um desses projetos transformadores que vou chamar de versão não dominante 1, já tendo uma história bem antiga, considerando-se, por exemplo, que o livro Como se faz um jornal comunitário foi editado há quase quatro décadas. (CALLADO; ESTRADA, 1985CALLADO, A. A.; ESTRADA, M. I. D. Como se faz um jornal comunitário. Petrópolis: Vozes, 1985.) Além de enfocar temas e eventos comunitários, fugindo ao controle industrial do jornalismo hegemônico, essa vertente confere à comunidade um lugar de participante ativa da prática jornalística, que passa, assim, a ser um bem social e não empresarial. Sequeira e Bicudo (2007SEQUEIRA, C.; BICUDO, F. Jornalismo comunitário - conceitos, importância e desafios contemporâneos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 30., 2007, Santos. Anais […]. Santos: Intercom, 2007. Disponível em: Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R0507-1.pdf . Acesso em: 17 out. 2017.
http://www.intercom.org.br/papers/nacion...
), com base em levantamento bibliográfico, chegam a cinco caraterísticas que definiriam o jornalismo comunitário: “a) valorização da realidade local; b) participação da comunidade durante todo o processo de produção; c) consagração das ideias da mobilização e da transformação; d) resgate de um viés pedagógico e educativo; e) articulação com a produção independente e de resistência” (p. 9).

A explanação sobre o jornalismo comunitário põe em cena itens lexicais como “resistência”, “mobilização”, “luta coletiva”, “transformação”, “sujeito crítico”, “contra-hegemonia”, “socialização do conhecimento”, o que denota outro discurso jornalístico. O papel do jornalista também passa de produtor de informação para mediador dos processos de comunicação da comunidade, garantindo ao público um papel de protagonista, entendendo que o cidadão tem “o direito de ampliar seu repertório intelectual e de participar com consistência dos debates que se estabelecem na arena pública”. (SEQUEIRA; BICUDO, 2007SEQUEIRA, C.; BICUDO, F. Jornalismo comunitário - conceitos, importância e desafios contemporâneos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 30., 2007, Santos. Anais […]. Santos: Intercom, 2007. Disponível em: Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R0507-1.pdf . Acesso em: 17 out. 2017.
http://www.intercom.org.br/papers/nacion...
, p. 11) Verifica-se, assim, o/a jornalista encampando o papel de intelectual orgânico de outro tipo de organização social, o que bem mostra Peruzzo (1989PERUZZO, C. M. K. Participação popular: dos “fiscais de Sarney” aos movimentos sociais. In: MELO, J. M. (Org.). Comunicação na América Latina - desenvolvimento e crise. Campinas: Papirus, 1989.), na síntese que de seu trabalho fazem Sequeira e Bicudo (2007SEQUEIRA, C.; BICUDO, F. Jornalismo comunitário - conceitos, importância e desafios contemporâneos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 30., 2007, Santos. Anais […]. Santos: Intercom, 2007. Disponível em: Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R0507-1.pdf . Acesso em: 17 out. 2017.
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), ao elencarem os desafios sociais a serem enfrentados pela comunicação popular:

primeiro, o desafio de disseminar por todos os movimentos sociais a prática participativa da comunicação, que possibilita um processo educativo, que poderá desembocar na gestão dos grandes meios de comunicação, cuja socialização já é defendida no conjunto da sociedade; o segundo desafio é o transcender da comunicação popular de exclusiva organização tópica para outros movimentos sociais e o conjunto da sociedade, construindo assim a articulação e nova hegemonia. E, terceiro, que a prática participativa em nível do micro, ou seja, nas organizações populares, transcenda para o macro, para que haja a participação na gestão em nível municipal, estadual e nacional de todas as coisas que afetam a sociedade, da fábrica ao sistema escolar e à sociedade como um todo. (p. 13)

Se o jornalismo comunitário aparece como projeto contra-hegemônico nos debates acadêmicos, na prática, contudo, ainda não é tão fácil identificar esse perfil. Em um levantamento de jornais comunitários em Florianópolis, Rempel (2020REMPEL, G. A produção do jornal escolar e o jornalismo independente: ensino e aprendizagem de língua portuguesa em uma perspectiva crítica. 2020. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020.) analisa oito jornais de bairro, chegando à conclusão de que apenas dois deles têm uma relação mais clara com questões da comunidade, e que todos, em graus variados, reproduzem o discurso jornalístico dominante da neutralidade e da objetividade, não assumindo um posicionamento mais explícito de engajamento social e nem oportunizando à comunidade a experiência de gestão e protagonismo nas práticas de noticiabilidade. Garantir uma ampliação do número de projetos mais afeitos a esse perfil é uma reivindicação bastante plausível para as comunidades e para os movimentos de participação social.

A outra versão não dominante da prática jornalística é o jornalismo independente. Embora esse seja um termo corrente dentro do discurso jornalístico hegemônico (como independência da fonte), ele tem sido ressignificado em anos recentes como um projeto contra-hegemônico de prática jornalística. É uma perspectiva que ganhou corpo a partir do novo milênio, com a consolidação da internet e, no Brasil, especialmente a partir da experiência de cobertura das manifestações de 2013, levada a cabo pelo grupo de jornalismo independente Mídia Ninja. (LACERDA, 2016LACERDA, D. M. O jornalismo digital independente no Brasil e a busca da credibilidade perdida. 2016. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.; PATRÍCIO, BATISTA 2017PATRÍCIO, E.; BATISTA, R. Elementos de identidade jornalística em autonarrativas de grupos de produção de jornalismo independente em plataformas digitais. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 15., 2017, São Paulo. Anais […]. São Paulo: ECA-USP, 2017.)

Se o jornalismo independente se apresenta como um projeto transformador da prática jornalística dominante, não parece haver, contudo, uma definição comum de independência, a ponto de se poder afirmar que todos os grupos de jornalismo independente realizam a mesma prática dentro do mesmo discurso de prática profissional. A esse respeito, Patrício e Batista (2017PATRÍCIO, E.; BATISTA, R. Elementos de identidade jornalística em autonarrativas de grupos de produção de jornalismo independente em plataformas digitais. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 15., 2017, São Paulo. Anais […]. São Paulo: ECA-USP, 2017.), em um levantamento sobre o perfil identitário de “onze grupos de jornalistas que se autodeclaram como independentes e disseminam suas produções em plataformas digitais” (p. 7), concluíram que há uma grande dispersão no conceito de independência, que compreende definições tais como: não se guiar pelo modelo de jornalismo empresarial, ter financiamento comunitário, privilegiar temas da periferia, encampar novas formas de fazer jornalismo. Em trabalho mais recente, Batista e Patrício (2019BATISTA, R.; PATRÍCIO, E. Credibilidade no jornalismo independente em plataformas digitais: uma análise a partir da Agência Pública. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 28., 2019, Porto Alegre. Anais […]. Porto Alegre: Compós, 2019. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/49065/1/2019_eve_rcblima.pdf . Acesso em: 14 fev. 2022.
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) definem o jornalismo independente como:

[…] empreendimento jornalístico que não quer se ver atrelado ao modelo da empresa de jornalismo convencional, que atua com mais autonomia, mas não necessariamente sem obedecer a controles (códigos de ética, normas de associações específicas etc.), cujo trabalho se assenta na participação efetiva de profissionais jornalistas e que pauta a produção do jornalismo pelo viés do interesse público. (p. 6)

Essa definição contempla, aparentemente, um traço unânime de caracterização desse jornalismo: sua discordância com o modo de fazer jornalismo das grandes empresas de comunicação. Os demais traços apontados, contudo, já não são consensuais. Em suas duas análises, Patrício e Batista (2017PATRÍCIO, E.; BATISTA, R. Elementos de identidade jornalística em autonarrativas de grupos de produção de jornalismo independente em plataformas digitais. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 15., 2017, São Paulo. Anais […]. São Paulo: ECA-USP, 2017.) e Batista e Patricio (2019BATISTA, R.; PATRÍCIO, E. Credibilidade no jornalismo independente em plataformas digitais: uma análise a partir da Agência Pública. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 28., 2019, Porto Alegre. Anais […]. Porto Alegre: Compós, 2019. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/49065/1/2019_eve_rcblima.pdf . Acesso em: 14 fev. 2022.
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) se guiam pelo próprio discurso jornalístico dominante, de modo que não chegam a atingir propriamente o caráter da modificação ocorrida na prática jornalística independente. Na análise de 2017, eles ressaltam, por exemplo, quando os textos dos perfis caracterizam o jornalismo feito como de “interesse público” (expressão do discurso jornalístico dominante), mas perdem de vista itens lexicais como “transformação”, “democratização da mídia”, “contra-hegemonia”, empregados na definição do Maruim, na qual este afirma que seu trabalho envolve: a “luta pela democratização da mídia, produção de conteúdo jornalístico que dispute a narrativa da Grande Florianópolis e formação de uma rede com outras iniciativas de mídia contra-hegemônica” (p. 11). Interpretam Patrício e Batista (2017PATRÍCIO, E.; BATISTA, R. Elementos de identidade jornalística em autonarrativas de grupos de produção de jornalismo independente em plataformas digitais. In: ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JORNALISMO, 15., 2017, São Paulo. Anais […]. São Paulo: ECA-USP, 2017.) que o Maruim “sustenta sua independência no contraponto com a mídia ‘tradicional’” (p. 11), o que é verdade, mas é pouco para explicar todo o discurso que está posto na autodefinição do grupo. A segunda análise (de 2019) também se guia por uma categoria do discurso jornalístico dominante, ao tentar levantar a “credibilidade” do jornalismo independente. Supõe-se que tal jornalismo é diferente do jornalismo dominante, mas a análise procura ver o que ele tem de igual, perdendo de vista o aspecto transformador da prática.

Se os jornalistas independentes ou os pesquisadores do tema ainda não chegaram a uma caracterização consensual da prática em termos de seu caráter transformador da face tradicional do jornalismo, o fato é que ela tem toda potência para fazê-lo, seja pela grande adesão que angaria, seja pelo impacto social que esse trabalho tem produzido. Ressalte-se que os jornalismos independente e comunitário não representam práticas estanques, mas que se sobrepõem e se complementam, na medida em que o comunitário é também independente e o independente é sempre um pouco comunitário.

Em termos do ensino nas escolas, cabe considerar que os jornais e portais de jornalismo abertamente ligados a grupos sociais específicos já não simulam imparcialidade de forma evidente e não requerem o papel de mediadores universais, mas o de mediadores de um grupo. Então, esses jornais comunitários (e independentes) podem favorecer aos/às estudantes com outras formas de engajamento e reflexão social sobre práticas de noticiabilidade. Neste sentido é que defendi, em trabalho anterior (BONINI, 2017BONINI, A. O jornal escolar como mídia contra-hegemônica - jornalismo de escola não modelado pelo jornalismo comercial dominante. Linguagem em (Dis)curso , Tubarão, v. 17, p. 165-182, 2017.), que o jornal escolar fosse produzido com base em experiências de leitura de jornais comunitários e pela aproximação com os jornais de bairro; mas pode-se acrescentar também a possibilidade do trabalho com os portais de jornalismo independente. (REMPEL, 2020REMPEL, G. A produção do jornal escolar e o jornalismo independente: ensino e aprendizagem de língua portuguesa em uma perspectiva crítica. 2020. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020.)

Em dois trabalhos anteriores, procurei levantar o modo como o discurso jornalístico chega à escola. Em Bonini (2018BONINI, A. A construção da autoria nas atividades de leitura, escrita e oralidade no livro didático para o Ensino Médio. In: BORGES DA SILVA, S. B.; PEREIRA, J. N. (Org.). Língua portuguesa e literatura no livro didático: desafios e perspectivas. Campinas: Pontes, 2018. p. 85-109.), verifiquei, em uma análise de livros didáticos, que as definições do jornalismo, de seus gêneros e práticas, são feitas essencialmente a partir de manuais teórico-práticos e de exemplos do jornalismo dominante. Em Bonini (2019BONINI, A. Políticas de enseñanza de prácticas periodísticas en escuelas de Argentina y Brasil. Signo y Seña, Buenos Aires, n. 35, p. 107-126, 2019.), levantei políticas de ensino - espelhadas em currículos e programas da educação básica - e novamente verifiquei a predominância absoluta do discurso e da prática do jornalismo dominante. Ou seja, há nesses materiais um silenciamento das versões não dominantes da prática jornalística e, sendo assim, os/as estudantes não têm um panorama rico o suficiente para compreender a prática jornalística em seus embates e definições, nem possibilidades de optar por tal ou tal tipo de jornalismo.

É importante, nesse sentido, que também os/as docentes tenham elementos suficientes para entender esse prisma e se posicionar como cidadãos e cidadãs em meio a essas visões e não apenas replicar as decisões tomadas na esfera jornalística. O jornalismo é um objeto que precisa ter debate público, pois os rumos dessa prática incidem sobre os caminhos de todas as pessoas vivendo na sociedade e que, portanto, são afetadas por ela.

No caso dos jornais aqui analisados, há proximidade com os dispositivos discursivos e as práticas dos jornais convencionais hegemônicos. Analisar exatamente de que tipo é essa aproximação e como esse discurso é reenunciado ajuda a pensar o encaminhamento futuro de experiências com jornais escolares.

A análise crítica de gêneros do discurso (BONINI, 2013BONINI, A. Análise crítica de gêneros discursivos no contexto das práticas jornalísticas. In: SEIXAS, L.; PINHEIRO, N. F. (Org.). Gêneros: um diálogo entre Comunicação e Linguística Aplicada. Florianópolis: Insular, 2013. p. 103-120.; 2010BONINI, A. Critical genre analysis and professional practice: the case of public contests to select professors for Brazilian public universities. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 10, n. 3, p. 485-510, 2010.), aqui empregada como perspectiva teórica central, é uma proposta de estudo dos gêneros do discurso como elementos estruturantes na produção de práticas sociais opressoras ou emancipadoras. O jornalismo hegemônico, por seu atrelamento aos interesses geopolíticos de multinacionais que mantêm relações sociais desiguais em todo sul global, compreende um conjunto de práticas opressivas. Os jornalismos comunitário e independente5 5 Ver análise de blog jornalístico em Rechetnicou, Lima e Bonini (2016). abrem outras possibilidades - por desmistificarem a neutralidade jornalística e se alinharem a movimentos de democratização de vozes. Particularmente, o jornalismo comunitário (SEQUEIRA; BICUDO, 2007SEQUEIRA, C.; BICUDO, F. Jornalismo comunitário - conceitos, importância e desafios contemporâneos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 30., 2007, Santos. Anais […]. Santos: Intercom, 2007. Disponível em: Disponível em: http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2007/resumos/R0507-1.pdf . Acesso em: 17 out. 2017.
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), por sua proposta de produção coletiva, comunitária, das práticas de noticiabilidade, abre oportunidades de práticas bastante significativas e autoemancipadoras nas escolas. Isso não supõe, por outro lado, tomar os jornais comunitários como emancipadores por si só. Dependendo das relações de poder na comunidade, os jornais que se descrevem como comunitários podem ser bastante opressores, além de reproduzirem a mídia hegemônica, e este último item fica bastante evidente no levantamento de Rempel (2020REMPEL, G. A produção do jornal escolar e o jornalismo independente: ensino e aprendizagem de língua portuguesa em uma perspectiva crítica. 2020. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020.). Como norte para o trabalho na escola talvez se devesse ter em mente que, no mundo de flagrante dominação simbólica em que vivemos, mais importante que aprender a fazer jornalismo é aprender a lê-lo.

3 O caso em análise: a OSC Comunicação e Cultura e o projeto Fala Escola

A OSC Comunicação e Cultura (Comcult) dedica-se essencialmente ao assessoramento de profissionais da escola no processo de implantação e desenvolvimento de jornais escolares, atividade desenvolvida pela OSC desde 1988. É o trabalho de maior prestígio e envergadura na área de letramento jornalístico e de comunicação escolar no Brasil. Durante a década de 2000, o projeto alcançava nove estados, e chegou ao plano nacional, com sua incorporação ao programa Mais Educação. (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Guia de tecnologias educacionais 2011/2012. Brasília, DF: MEC/SEB, 2011.)

Os dados aqui considerados foram gerados a partir do site da OSC, em 2011, para uma análise que foi apresentada no Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada daquele ano. Não houve tempo hábil para a escrita do relato à época, mas as ideias contidas na análise foram ganhando corpo posteriormente nas pesquisas de meus orientandos (ANTONIASSI, 2014ANTONIASSI, P. I. C. O jornal escolar e a formação de alunos produtores de textos: análise de uma prática de letramento midiático em uma escola municipal de Florianópolis - SC. 2014. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.; BERGAMO, 2018BERGAMO, M. L. A prática de leitura de textos jornalísticos: uma experiência com o jornal escolar. 2018. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.; COUTO, 2016COUTO, J. C. A revisão de textos no desenvolvimento da escrita: experiência a partir da produção de um jornal escolar. 2016. Dissertação (Mestrado em Letras) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.; LIMA, 2014LIMA, V. W. A prática social no gênero jornal escolar: estudo do ponto de vista da análise crítica de gênero. 2014. Tese (Doutorado em Ciências da Linguagem) - Universidade do Sul de Santa Catarina, Florianópolis, 2014.; REMPEL, 2020REMPEL, G. A produção do jornal escolar e o jornalismo independente: ensino e aprendizagem de língua portuguesa em uma perspectiva crítica. 2020. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020.; YANO, 2020YANO, D. C. O jornal escolar on-line produzido no Ensino Médio: uma análise crítica de gêneros. 2020. Tese (Doutorado em Linguística) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2020.) e em artigos meus mais recentes. (BONINI, 2017BONINI, A. O jornal escolar como mídia contra-hegemônica - jornalismo de escola não modelado pelo jornalismo comercial dominante. Linguagem em (Dis)curso , Tubarão, v. 17, p. 165-182, 2017.; 2018BONINI, A. A construção da autoria nas atividades de leitura, escrita e oralidade no livro didático para o Ensino Médio. In: BORGES DA SILVA, S. B.; PEREIRA, J. N. (Org.). Língua portuguesa e literatura no livro didático: desafios e perspectivas. Campinas: Pontes, 2018. p. 85-109.; 2019BONINI, A. Políticas de enseñanza de prácticas periodísticas en escuelas de Argentina y Brasil. Signo y Seña, Buenos Aires, n. 35, p. 107-126, 2019.) A justificativa para essa retomada da análise é tanto recompor um pouco o fluxo do debate dentro do projeto que realizo quanto trazer a público ideias que possam, de alguma forma, ser mobilizadas no debate sobre letramento jornalístico e mídia escolar.

Este relato, portanto, contempla as conclusões da primeira análise, mas também já alguma maturidade desse debate produzido posteriormente. A primeira tentativa de retomar esse trabalho foi em 2017, quando voltei ao site da Comunicação e Cultura e gerei outros dados, relativos ao momento, o que volto a fazer agora em 2020. Na medida do possível, são aqui consideradas informações mais recentes, mas como a intenção não é fazer um histórico do trabalho da OSC, e nem haveria possibilidade neste artigo, os dados em consideração são centralmente aqueles da análise original de 2011. Na época a Comunicação e Cultura executava quatro projetos de assessoramento:

Primeiras Letras: jornais escolares publicados nos anos iniciais do ensino fundamental;

Fala Escola: jornais escolares publicados nos anos finais do ensino fundamental;

Clube do Jornal: jornais estudantis publicados no ensino médio;

Jornais Juvenis Associados: promove a formação de grupos juvenis dispostos a produzir jornais comunitários como instrumentos de expressão jovem e mobilização comunitária.6 6 Na visita de 2017 ao site, a Comcult contava com dois programas principais (Jornal na Escola e Empatia e cooperação na escola) e dois complementares (Voluntariado para a escola e Impressão e diagramação). As mesmas informações aparecem em 2020. Não aparece mais essa especificação de projetos por etapas da educação básica.

O foco da geração de dados que realizei nessa época compreendia mais o projeto Fala Escola, embora muitos dos materiais de orientação sejam transversais aos quatro projetos. O Fala Escola era o mais desenvolvido na época e o que foi incorporado no programa Mais Educação. (BRASIL, 2011BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Guia de tecnologias educacionais 2011/2012. Brasília, DF: MEC/SEB, 2011.) Para assessorar os trabalhos de produção dos jornais, a OSC disponibilizava quatro linhas de materiais:

  • (1) Procedimentos de diagramação - exercícios de diagramação7 7 Em geral, o que se anuncia fora do colchete é o título do documento como constava no site e, dentro do colchete, minha explicação. [sete arquivos para exemplificar texto e ilustração, um com três textos de alunos e outros seis com imagens possíveis para esses textos]; modelos de diagramação [vários arquivos com modelos de diagramação em BrOffice, CorelDraw, PageMaker e Publisher, contemplando os projetos da OSC: Primeiras Letras, Fala Escola, Clube do Jornal, Jornais Juvenis e Projovem, Jornais da Turma]; erros mais comuns de diagramação [sobre tratamento de imagens, retirada de imagem da internet etc., 8 p.]; planos de diagramação [com possibilidades de ações, 3 p.]; pré-diagramação [sobre seleção de textos e como esboçar a diagramação, 3 p.];

  • (2) Embasamento teórico sobre o jornal escolar - Manual de ética do jornal escolar [livreto com 20 páginas, de autoria de Lira e Raviolo (1998LIRA, J.; RAVIOLO, D. A ética no jornalismo escolar. Fortaleza: Comunicação e Cultura , 1998.)]; O jornal escolar uma ferramenta para aprender e participar [PDF com 4 páginas, discorrendo sobre o uso do jornal escolar em sala e um plano de implementação]; Apresentando Célestin Freinet [sobre o método de escrita livre e o jornal escolar]; Guia do jornal escolar [livreto que incorpora boa parte dos materiais anteriores (COMCULT, 2010COMCULT - Comunicação e Cultura. Guia do jornal escolar. Elaboración, texto e edición de Daniel Raviolo. Fortaleza: Comunicação e Cultura, 2010.)];

  • (3) Metodologia de ensino - Ensinando e aprendendo com o jornal escolar [livreto escrito por Raviolo, Lira e Mota (2006RAVIOLO, D.; LIRA, J.; MOTA, K. Ensinando e aprendendo com o jornal escolar. Fortaleza: Comunicação e Cultura , 2006.), com instruções sobre o trabalho pedagógico com jornal escolar nos anos iniciais]; Sequências didáticas para o Primeiras Letras [bilhete, história de vida, artigo de opinião, texto publicitário, poesia, carta do leitor, história em quadrinhos], Sequências didáticas para o Fala Escola [artigo de opinião, notícia, história de vida, reportagem, este último em elaboração na época];8 8 É interessante notar como o projeto foi, aos poucos, incorporando os conceitos que surgiam no debate sobre ensino e aprendizagem. Em 2007, quando consultei o site do jornal escolar pela primeira vez, as sequências não apareciam; em 2011, já aparecem algumas; em 2020, são inúmeras, contemplando, em um agrupamento, os anos iniciais e, em outro, os anos finais e o ensino médio. Não aparecem mais por projetos da OSC, como antes, e são apresentadas atualmente como planos de aula.

  • (4) Sugestões de temas a serem trabalhados nos jornais escolares - Combate à desertificação [5 PDF sobre manejo da água e do solo]; Formação para a Educação Política [com vários PDF sobre diversidade, mídia, globalização].

A Figura 1 estampa um dos templates de diagramação da Comunicação e Cultura e dois jornais diagramados de acordo com ele. Trata-se de um padrão bastante reconhecível nas experiências de jornal escolar desenvolvidas por professores e professoras que participaram das oficinas do programa Mais Educação, via Ministério da Educação (MEC), nessa época.

Figura 1
Esquema de diagramação do jornal escolar

A partir do conteúdo apresentado no site da Comcult em 2011, foram selecionados para análise, primeiramente, dois materiais instrucionais sobre jornal escolar, nos quais a orientação quanto ao discurso jornalístico se faz mais evidente: o Guia do jornal escolar (COMCULT, 2010COMCULT - Comunicação e Cultura. Guia do jornal escolar. Elaboración, texto e edición de Daniel Raviolo. Fortaleza: Comunicação e Cultura, 2010.) e Ética no jornalismo escolar. (LIRA; RAVIOLO, 1998LIRA, J.; RAVIOLO, D. A ética no jornalismo escolar. Fortaleza: Comunicação e Cultura , 1998.) Esse segundo, por ser um material já mais antigo, talvez não espelhasse em tudo o trabalho da OSC em 2011, mas, por estar disponível no site na época, foi considerado na análise. Atualmente, nenhum dos dois materiais está disponível no site Jornal Escolar ou no site da OSC.

Para verificar um segundo nível de reenunciação do discurso jornalístico, foram consideradas para análise cinco edições de jornais escolares participantes do projeto Fala Escola que estavam disponíveis no site Jornal Escolar na época, a saber: Criação Jovem; Diário Escolar; J. A. News; Jornal Alerta Jovens em Ação; Jornal Caminho do Saber.

Os materiais instrucionais foram analisados em termos da materialização lexical dos aspectos que compõem as várias matrizes do discurso jornalístico, enquanto os jornais escolares foram analisados em termos de como esses discursos se apresentam na seleção de temas e no lugar de fala de quem se enuncia nesses textos.

4 Reenunciação 1: os materiais orientadores do projeto

Os materiais direcionados a docentes apresentam um discurso jornalístico inscrito essencialmente na matriz clássica do discurso jornalístico dominante.

Não remetem em momento algum à matriz do jornalismo investigativo ou do jornalismo independente. Neles emergem traços do discurso do jornalismo comunitário, mas muito pouco marcados, se se pensa em um posicionamento propriamente.

A objetividade como categoria do jornalismo dominante aparece reenunciada na necessidade de os/as estudantes em seus textos comprovarem as afirmações feitas. Assim, ao afirmar que “o jornal escolar não pode fazer acusações sem ter provas” (LIRA; RAVIOLO, 1998LIRA, J.; RAVIOLO, D. A ética no jornalismo escolar. Fortaleza: Comunicação e Cultura , 1998., p. 12, grifo nosso) ou que “o jornalista não é esse deus que pode escrever tudo, fazer tudo que lhe vem à cabeça” (LIRA; RAVIOLO, 1998LIRA, J.; RAVIOLO, D. A ética no jornalismo escolar. Fortaleza: Comunicação e Cultura , 1998., p. 4, grifo nosso), a negação traz de fundo e naturalizada uma representação do jornalismo “correto”.9 9 Ressalta-se que a crítica sobre a objetividade e a imparcialidade jornalística não implica aceitação das ditas fake news. Ter um posicionamento marcado não é o mesmo que inventar matérias; acrescentando-se que, para além do aspecto ético, a mentira contada com intenção de obter vantagem é crime previsto no Código Penal. Remete-se à transparência do relato em relação ao real, mas sem considerar que essa transparência é efeito do próprio discurso jornalístico, já que, no dia a dia das redações, os jornais estampam relatos supostamente comprovados, mas permeados por uma costura que sugere conclusões atreladas a sua linha de ação política e ideológica, muitas vezes adversas à realidade. Calúnia, difamação, injúria (LIRA; RAVIOLO, 1998LIRA, J.; RAVIOLO, D. A ética no jornalismo escolar. Fortaleza: Comunicação e Cultura , 1998.) são ações criminosas, mas não são passíveis de pena se elas estiverem materializadas apenas no nível da sugestão, como acontece muitas vezes nos grandes jornais.

Aliada diretamente à comprovação, aparece a imparcialidade, na figura do jornalismo que não evidencia interesse pessoal ao produzir seus relatos. Assim, através do efeito discursivo da imparcialidade, o jornal “não deixa de publicar uma matéria de alguém que pensa diferente” (LIRA; RAVIOLO, 1998LIRA, J.; RAVIOLO, D. A ética no jornalismo escolar. Fortaleza: Comunicação e Cultura , 1998., p. 10, grifo nosso), ou seja, contemplaria de modo equânime todas a visões sobre o fato. E o direito à resposta é realçado a ponto de ser dado antes de ser solicitado e com letra maiúscula: “os textos que contenham críticas são publicados junto com a versão da parte criticada, para que ela possa se defender (Direito de Resposta na mesma edição)”. (COMCULT, 2010COMCULT - Comunicação e Cultura. Guia do jornal escolar. Elaboración, texto e edición de Daniel Raviolo. Fortaleza: Comunicação e Cultura, 2010., p.7, grifo nosso)

Se o jornalismo se materializa em relatos comprovados e desinteressados da realidade, apresentam-se aí as condições necessárias para atingir o que seria um terceiro nível de excelência jornalística: contemplar o maior número possível de perspectivas sociais. Assim, o discurso da pluralidade se faz funcionar na necessária “capacidade de trabalhar com diferentes grupos, pessoas e ideias”. (LIRA; RAVIOLO, 1998LIRA, J.; RAVIOLO, D. A ética no jornalismo escolar. Fortaleza: Comunicação e Cultura , 1998., p. 10, grifo nosso) A afirmação de que “o jornal escolar é pluralista; ele não pratica censura nem oculta informações” (COMCULT, 2010COMCULT - Comunicação e Cultura. Guia do jornal escolar. Elaboración, texto e edición de Daniel Raviolo. Fortaleza: Comunicação e Cultura, 2010., p. 7, grifo nosso) faz supor que o jornalismo dominante pode estar acima das ideologias e dos posicionamentos discursivos, quando, na prática, o silenciamento nos jornais hegemônicos é não só uma constante, mas uma categoria fundante.

Nestes termos, o relato que se guia por objetividade, imparcialidade e pluralidade parece fadado apenas a alguns fracassos pontuais (de alguém que anunciou um crime sem ter comprovação, de alguém que não ouviu todas as opiniões ou eliminou algumas na descrição). Para esses casos pontuais, a ética (como vimos no exemplo do manual da Folha de S.Paulo) pode ser evocada como uma solução estratégica, ou seja:

O jornalismo, incluindo-se aí o jornalismo escolar, ao refletir as contradições do ser humano também está sujeito a atropelar a Justiça. O que fazer? Há séculos tem-se recorrido à ética, como um instrumento capaz de limitar os erros e os desrespeitos que nascem em meio aos conflitos. […]. Talvez seja moleza - para quem tem alma de estudante - sentir que a origem de tudo isso está no bom senso. (LIRA; RAVIOLO, 1998LIRA, J.; RAVIOLO, D. A ética no jornalismo escolar. Fortaleza: Comunicação e Cultura , 1998., p. 3, grifo nosso)

A ética aparece como uma forma de resolver o problema, apelando-se para uma lógica universal da convivência que, exatamente por sua inquestionável universalidade, silencia que os conflitos são bem mais localizados e que a exploração é fenômeno social e histórico que se resolve unicamente pela luta social. A ética elimina a necessidade de se reconhecer os conflitos, as possíveis negociações e pactos sociais de lugares específicos.

Para garantir os preceitos éticos, pode-se recorrer a um/a Ouvidor(a) que “tem como missão alertar sobre possíveis erros que violem o acordo de parceria que fundamenta o projeto” (LIRA; RAVIOLO, 1998LIRA, J.; RAVIOLO, D. A ética no jornalismo escolar. Fortaleza: Comunicação e Cultura , 1998., p. 8) e que tem como principal tarefa “verificar que os jornais respeitam o Código de Ética, que é, lembremos novamente, nossa identidade”. (LIRA; RAVIOLO, 1998LIRA, J.; RAVIOLO, D. A ética no jornalismo escolar. Fortaleza: Comunicação e Cultura , 1998., p. 9)

Respeitadas a objetividade e a imparcialidade como princípios, a pluralidade como função e a ética como solução, o jornalismo, conforme o discurso dominante, irá produzir cidadania e respeito aos valores democráticos. Em sintonia com esses postulados, firma-se na educação básica um discurso de cidadania técnica (que se alcança automaticamente via ensino e aprendizagem dos meios). A cidadania, nessa perspectiva, é uma palavra que evoca o social sem considerar que o alcance de patamares de dignidade para muitos grupos sociais envolve luta social. É um discurso bastante mobilizado no campo educacional para se falar de letramento midiático (BONINI, 2019BONINI, A. Políticas de enseñanza de prácticas periodísticas en escuelas de Argentina y Brasil. Signo y Seña, Buenos Aires, n. 35, p. 107-126, 2019.), e no presente material instrucional ele também é posto a funcionar, quando se diz que:

O jornal escolar promove os direitos humanos e democráticos em toda sua extensão; ele veicula uma visão de respeito às diferenças culturais, de gênero, sexuais, étnicas, religiosas e outras.

[…]

O jornal escolar tem finalidade social; ele não faz promoção pessoal ou partidária.

[…]

O jornal escolar não publica textos que atinjam a dignidade das pessoas. (COMCULT, 2010COMCULT - Comunicação e Cultura. Guia do jornal escolar. Elaboración, texto e edición de Daniel Raviolo. Fortaleza: Comunicação e Cultura, 2010., p.7, grifo nosso)

Se o discurso jornalístico dominante aparece nesse material de forma bem marcada, não é verdade também que não haja alguns efeitos adversos. Um desses aspectos é a indicação de que “os textos devem ser assinados com nome, idade e série do autor” (COMCULT, 2010COMCULT - Comunicação e Cultura. Guia do jornal escolar. Elaboración, texto e edición de Daniel Raviolo. Fortaleza: Comunicação e Cultura, 2010., p. 24, grifo nosso) para favorecer que o/a estudante se reconheça no processo de autoria. No discurso jornalístico dominante, em geral, há uma tentativa de se apagar a autoria para que o texto pareça mais objetivo e imparcial. A explicitação da voz parece ser um caminho alternativo e bem produtivo para o jornal escolar.

Outro elemento que emerge no discurso do material instrucional é a participação coletiva, quando se afirma que: “no momento da seleção das produções, esta aprendizagem acontece por meio dos debates e mesmo de votações entre os alunos, para a escolha das produções a serem divulgadas”. (COMCULT, 2010COMCULT - Comunicação e Cultura. Guia do jornal escolar. Elaboración, texto e edición de Daniel Raviolo. Fortaleza: Comunicação e Cultura, 2010., p. 22, grifo nosso) Essa partição coletiva na produção e gestão das práticas de noticiabilidade é um traço do discurso do jornalismo comunitário, uma versão da prática jornalística que pode ser bem aproveitada na escola, mais do que tem tradicionalmente ocorrido.

Se, em alguns momentos, o protagonismo do/a estudante e sua subjetividade se materializam como discurso nesse material instrucional, a definição de jornal escolar, por outro lado ainda não contempla esse aspecto: “os jornais escolares têm sua diretriz no projeto político-pedagógico da escola, sendo um instrumento dessa proposta. Consequentemente, [as produções] estão focadas na aprendizagem do aluno e precisam da mediação de um educador”. (COMCULT, 2010COMCULT - Comunicação e Cultura. Guia do jornal escolar. Elaboración, texto e edición de Daniel Raviolo. Fortaleza: Comunicação e Cultura, 2010., p. 10, grifo nosso) Outro elemento que significa nesse discurso é o fato de a especificidade do jornal escolar ser marcada não como uma proposta diferente de jornalismo, mas como uma prática menos acabada de um modelo ideal: “a pauta (os assuntos escolhidos) nunca será tão diversificada, os textos nunca estarão tão bem escritos nem terão a mesma abordagem, a diagramação jamais será tão profissional, a impressão não terá a mesma qualidade”. (COMCULT, 2010COMCULT - Comunicação e Cultura. Guia do jornal escolar. Elaboración, texto e edición de Daniel Raviolo. Fortaleza: Comunicação e Cultura, 2010., p. 10, grifo nosso)

Um aspecto que se vê pouco evidente no material é o tratamento da mediação do/a docente, talvez em função da inscrição no discurso dominante do jornalismo. Assim, o envolvimento do/a estudante com a prática jornalística é dado como condição quase que suficiente para ampliar seu conhecimento e participação social na esfera jornalística. É um processo mostrado como “automático” ou “imediato”: “escrever para o jornal proporciona à criança uma percepção automática de participação no espaço público” (COMCULT, 2010COMCULT - Comunicação e Cultura. Guia do jornal escolar. Elaboración, texto e edición de Daniel Raviolo. Fortaleza: Comunicação e Cultura, 2010., p. 12, grifo nosso); “ao escrever no jornal escolar, a criança percebe de imediato que se tornou uma emissora de mensagens”. (COMCULT, 2010COMCULT - Comunicação e Cultura. Guia do jornal escolar. Elaboración, texto e edición de Daniel Raviolo. Fortaleza: Comunicação e Cultura, 2010., p. 12, grifo nosso) Além disso, o “emissor” (também evocado do discurso jornalístico dominante) é um termo que recobra o discurso da linguagem como código e silencia o da linguagem como interação (como lugar da interação). A condição de cidadão, de cidadã, dos/as estudantes nesse discurso também parece resultar de um processo espontâneo e da exposição a exemplos do “bem participar”: “a criança que escreve no jornal está se manifestando como cidadã, e uma escola habilidosa saberá aproveitar o momento para trabalhar o surgimento de um imaginário positivo sobre a participação social”. (COMCULT, 2010COMCULT - Comunicação e Cultura. Guia do jornal escolar. Elaboración, texto e edición de Daniel Raviolo. Fortaleza: Comunicação e Cultura, 2010., p.12, grifo nosso) E a oportunidade de problematizar o conceito de comunicação na sociedade atual e as desigualdades a que esse conceito está ligado fica comprometida por um modelo ideal de participação social, em que o conflito e a negociação não estão considerados.

Cabe lembrar que, grosso modo, a Comcult não fazia algo muito distante do que a ampla maioria de nós se propunha como letramento jornalístico no ano de 2011. O papel do jornalismo dominante na condução de muitos eventos sociais nos últimos anos (inclusive no retorno do fascismo) nos cobra outra mirada para o jornalismo e para o letramento jornalístico. Nesse sentido é que ganha relevância pensar que tipo jornalismo se encarna (e temos encampado) em nossas práticas educacionais e como oportunizar um projeto de jornalismo que seja transformador e emancipador.

5 Reenunciação 2: os jornais produzidos

Do mesmo modo que o material instrucional analisado, os jornais escolares produzidos também fazem funcionar um discurso que vai da reprodução estrita do discurso jornalístico hegemônico à presença de traços de jornalismo comunitário, sutis, mas um pouco mais evidentes do que se verifica no material instrucional. Esses jornais mobilizam também os discursos dos jornalismos investigativo e de entretenimento, ainda que estes não apareçam no material instrucional.

Em relação aos temas abordados (primeiro aspecto observado), os jornais se configuram com ênfases distintas:

  • (1) Dois deles têm o foco no colégio (Criação Jovem, J.A. News);

  • (2) Um tem o foco no bairro (Diário Escolar);

  • (3) Dois têm o foco em questões de cidadania - preconceito, violência, ecologia etc. (Caminhos do Saber, Alerta Jovens em Ação).

Os temas abordados, tanto os problemas discutidos quanto os eventos selecionados para acompanhar e cobrir, respondem, em geral, a um elenco já posto pela mídia dominante:

Você já parou para pensar como poderíamos salvar o nosso planeta desses sérios riscos? Pare e pense. O ar que respiramos precisa ser essencial para o ser humano, na minha opinião daqui a alguns séculos o nosso ar pode ser rarefeito. (Caminhos do Saber)

É muitoimportante falar sobre isso para evitar uma gravidez, DST, ou outras coisas. Tivemos uma aula onde nós aprendemos que não se deve praticar o sexo com qualquer pessoa, temos que ter responsabilidade, teremos que ter mais conhecimentos sobre os métodos para não engravidar e nem pegar doenças. (Criação Jovem)

Nós, Cleiza e Sinderlândia fizemos uma entrevista e uma enquete sobrea violência no réveillon, entrevistamos dois guardas municipais o SI J. Vicente e o GD Alcântara da RPE (Ronda Preventiva Escolar) que é um projeto criado para reduzir e evitar a violência nas escolas. (J.A. News)

A ecologia, a educação sexual e a violência são temas que compõem a pauta da escola e da participação política atual, e são salutares. Se forem abordados de forma programática, contudo, não evidenciam a singularidade desses sujeitos em particular, suas posições e a construção crítica dessas posições.

Há também temas locais que poderiam crescer em importância social e educativa se a escola trabalhasse por uma perspectiva de jornalismo comunitário ou independente. É o caso da horta da escola, que poderia render uma boa discussão sobre o direito à terra, reforma urbana, agroecologia etc., mas que acaba se restringindo a uma explicação burocrática: “perguntado se a escola tinha vontade de expandir a horta para o lado onde fica10 10 Neste artigo os textos são transcritos como aparecem nos jornais escolares e nos demais materiais, não havendo nenhuma menção ou discussão quanto à norma escrita empregada. as salas do jardim os monitores disseram que sim, mas que infelizmente faltam verbas para isso”. (Criação Jovem)

O lugar de fala aparece configurado por duas características: (1) os textos, em sua maioria, são escritos pelos alunos que se colocam com algum nível de autoria; (2) reproduzem, contudo, a prática jornalística hegemônica, a partir de vários papéis que remetem às matrizes do discurso jornalístico.

Um desses papéis, e o mais ocorrente, é o de jornalista mirim que evoca o discurso jornalístico dominante clássico (objetivo/imparcial). Contempla o modo de escrita (o dixi) do jornalismo dominante (cobriu, entrevistamos, perguntamos) e os/as estudantes se assumem como equipe de jornalismo, como em: “No ultimo dia 12 de outubro aconteceu os festejos de Nossa Senhora Aparecida, a equipe do Diário Escolar esteve presente e cobriu a festa, entrevistamos ‘Jairo Santos’ Vocacionado da Arquidiocese de Fortaleza. E perguntamos o que ocorreu durante […]”. (Diário Escolar)

Outro papel desempenhado diz respeito à matriz do jornalismo investigativo (não apresentada no material instrucional), através do qual o produtor do jornal assume certo perfil de justiceiro que visa não só explanar um tema, mas também combater o mal, como se verifica nesse trecho:

O que fazer com esses professores?

Muitos são punidos outros não. Esses que não são punidos e continuam exercendo sua profissão como professor com possibilidade de cometer o mesmo ato. (J.A. News)

Saio da escola e o que vejo ? Mais destruição, mais desrespeito, garrafas no chão, lixos abertos e pessoas jogando lixo no chão como se fosse a lixeira de sua casa. (Alerta Jovens em Ação)

Por vezes, para além de um posicionamento de cobrança de comportamento modelar, também se explicita um procedimento inquisitório, no qual a equipe vai exigir algo diretamente ao suposto envolvido, como nesse caso em uma reportagem sobre falta de professores na escola:

Já faz mais de um mês que nós, alunos, estamos sem aulas de ciências e isso só nos prejudica porque as provas estão chegando e precisamos do conteúdo necessário para estudarmos para as provas. […] Procurada pela reportagem a diretora Cristina nos deu o seguinte depoimento […] ( Criação Jovem)11 11 Além desse perfil justiceirista emulado do jornalismo dominante, principalmente o dos telejornais, parecem ecoar aqui também as representações negativas das escolas, conforme têm sido construídas pelo jornalismo dominante cotidianamente, como discutido em Figueiredo e Bonini (2017).

Um terceiro papel desempenhado pelos/as estudantes diz respeito a um/a animador/a de uma atração cultural. É interessante notar que esse perfil provém do jornalismo de entretenimento, uma prática que não é abordada no material instrucional, mas que provavelmente é o modelo mais comum de jornalismo a que estudantes e professores estão expostos via televisão. Ressalta-se o léxico coloquial, o tom animado, e a simulação de intimidade que costuram os textos, principalmente os de apresentação dos jornais:

Oi galera! Para quem não nós conhece nós somos do J.A News, o jornal […] (J.A. News)

Olá galerinha do NH! Estamos aqui para mostrar mais uma edição. (Alerta Jovens em Ação)

OLÁ GALERA! Nessa edição teremos muitas novidades com assuntos muito interessantes. Vocês vão aprender uma receita… HUM!!!chega dá água na boca. Nos convidem para saborear quando vocês forem fazer em casa. (Criação Jovem)

Um último papel, resguardando algo do jornalismo comunitário, é o de cidadão ou cidadã que, embora ainda desenvolvido com certo artificialismo, representa um caminho alternativo no letramento jornalístico. Nesse papel, é interessante notar que os/as estudantes se colocam como participantes e agentes em relação aos eventos. É um caminho que pode avançar em direção a um jornalismo baseado em reflexão e posicionamento dos/as estudantes, à medida que se possa ir além do foco em tarefa cívica ou em atividade recreativa, como se verifica nos três exemplos, no primeiro deles inclusive com a ratificação do discurso das autoridades (o de território da paz):

No dia 01 desse mês nós do J.A News e mais alguns alunos do 7º, 8º e 9º ano da manhã participamos de um evento muito importante. Foi a 5ª edição da campanha do desarmamento infantil e o aniversario de um ano do PRONASCE - programa nacional de segurança publica com cidadania

[…] Foram entregues as chaves novas viaturas que ceram utilizadas no território de paz pela policia. (J.A. News)

No dia 1° de dezembro, eu junto com os alunos do 7° ano A e alguns alunos da tarde que participam do jornal, fomos a uma passeata onde o objetivo era combater a AIDS. Entrevistei a dona […]. (Alerta Jovens em Ação)

A venda de ingressos para o passeio do Beach Park foi um sucesso. Conseguimos lotar dois ônibus antes de um mês para o evento. Para quem não conseguiu ir um aviso: em 2011 estaremos indo novamente. (Criação Jovem)

Esse último papel é o que soa mais produtivo para o engajamento e reflexão dos/as estudantes, considerando-se a adoção de uma perspectiva pedagógica de interação pela linguagem. É interessante notar também que ele aparece de forma quase espontânea na prática docente e nos jornais produzidos, já que não é abordado efetivamente no material instrucional.

6 Considerações finais

Em relação aos materiais analisados neste artigo (instruções a docentes sobre a produção de jornais escolares e os jornais escolares produzidos sob a égide dessas orientações), observa-se que há a dominância do discurso jornalístico hegemônico. A presença de outras versões da prática jornalística é incidental, havendo alguns traços do jornalismo comunitário. No material instrucional, é forte a presença da matriz clássica do jornalismo (objetividade, imparcialidade e pluralidade). O jornalismo comunitário aparece nas sugestões: (1) de os textos serem sempre assinados e seus produtores identificados como estudantes; e (2) de que as decisões quanto aos textos a serem publicados ocorram via debates e votações dos/as envolvidos. Nos jornais escolares produzidos, a matriz hegemônica aparece na seleção de temas, na presença de discurso típico dos grandes jornais e na marcação do papel enunciativo como jornalista mirim, como denunciador/a de abusos sociais e como animador/a. Um traço de um jornalismo comunitário se evidencia quando os/as estudantes se colocam como participantes ativos/as e implicados/as em determinadas ações sociais.

Na escola, é importante o desenvolvimento de um letramento jornalístico crítico - aquele que envolve o debate sobre a natureza social do jornalismo e sobre sua relação com a manutenção ou a mudança de estruturas de opressão ou dominação. Uma forma de se chegar a esse tipo de letramento é pela comparação e o debate das diversas matrizes da prática jornalística. Outra forma é pelo aprofundamento da prática do jornalismo comunitário, a qual implica o/a estudante na ação de escolher de forma engajada os temas de escrita e as formas de dar tratamento a esses temas.

Ressalta-se que, embora o material da análise aqui realizada date de 2011, ele representa o modo ainda corriqueiro de tratar esse tema na educação escolar. A redução da abordagem ao foco exclusivo do discurso jornalístico dominante não oportuniza aos/às estudantes a necessária vivência crítica sobre o jornalismo. Pelo contrário, a escola ganha assim o estatuto de formadora de consumidores/as para o jornalismo comercial dominante e se desvirtua de sua natureza de formadora para a participação social politizada.

Cabe lembrar, finalmente, a importância do debate escolar das várias orientações da prática jornalística também para que os/as docentes desenvolvam uma experiência mais concreta em termos das formas possíveis para o processo de mediação com vias ao letramento jornalístico dos/as estudantes, principalmente quanto à leitura crítica da produção jornalística que circula na mídia dominante e nos portais de jornalismo independente e comunitário.

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  • 1
    Pesquisa financiada pelo CNPq (PQ 310241/2018-9).
  • 2
    Equivalente ou similar a Organização não Governamental (ONG).
  • 3
    Por outro lado, os vestígios de que a atividade jornalística, na prática, não é tão neutra e imparcial também já datam de séculos na literatura, e as duas epígrafes desse trabalho são exemplos. É interessante notar, além disso, que a criação de um discurso sobre o “mau jornalismo” (com termos como pasquim e imprensa marrom) ajudou a fortalecer o discurso dominante do jornalismo dito sério. Não obstante, de um ponto de vista discursivo, o pasquim é bem mais plausível, pois não esconde que há sujeito na linguagem e que todo relato é “interessado”; e ser interessado não corresponde sinonimamente a “mal-intencionado”.
  • 4
    Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iypM6LKhB8o. Acesso em: 14 jun. 2020.
  • 5
    Ver análise de blog jornalístico em Rechetnicou, Lima e Bonini (2016RECHETNICOU, A.; LIMA, S.; BONINI, A. Blog jornalístico e a produção do discurso de resistência nas práticas de leitura e escrita. Revelli, Inhumas, v. 8, p. 145-165, 2016.).
  • 6
    Na visita de 2017 ao site, a Comcult contava com dois programas principais (Jornal na Escola e Empatia e cooperação na escola) e dois complementares (Voluntariado para a escola e Impressão e diagramação). As mesmas informações aparecem em 2020. Não aparece mais essa especificação de projetos por etapas da educação básica.
  • 7
    Em geral, o que se anuncia fora do colchete é o título do documento como constava no site e, dentro do colchete, minha explicação.
  • 8
    É interessante notar como o projeto foi, aos poucos, incorporando os conceitos que surgiam no debate sobre ensino e aprendizagem. Em 2007, quando consultei o site do jornal escolar pela primeira vez, as sequências não apareciam; em 2011, já aparecem algumas; em 2020, são inúmeras, contemplando, em um agrupamento, os anos iniciais e, em outro, os anos finais e o ensino médio. Não aparecem mais por projetos da OSC, como antes, e são apresentadas atualmente como planos de aula.
  • 9
    Ressalta-se que a crítica sobre a objetividade e a imparcialidade jornalística não implica aceitação das ditas fake news. Ter um posicionamento marcado não é o mesmo que inventar matérias; acrescentando-se que, para além do aspecto ético, a mentira contada com intenção de obter vantagem é crime previsto no Código Penal.
  • 10
    Neste artigo os textos são transcritos como aparecem nos jornais escolares e nos demais materiais, não havendo nenhuma menção ou discussão quanto à norma escrita empregada.
  • 11
    Além desse perfil justiceirista emulado do jornalismo dominante, principalmente o dos telejornais, parecem ecoar aqui também as representações negativas das escolas, conforme têm sido construídas pelo jornalismo dominante cotidianamente, como discutido em Figueiredo e Bonini (2017FIGUEIREDO, D. C.; BONINI, A. Recontextualização e sedimentação do discurso e da prática social: como a mídia constrói uma representação negativa para o professor e para a escola pública. DELTA, São Paulo, v. 33, n. 3, p. 759-786, 2017.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2020
  • Aceito
    10 Jan 2022
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