Acessibilidade / Reportar erro

Graffiti na cultura hip-hop: relações entre linguagem, identidade e espaço urbano na perspectiva transperiférica e indisciplinar da Linguística Aplicada

Graffiti in Hip-Hop Culture: Relationships between Language, Identity, and Urban Space from the Transperipheral and Undisciplinary Perspective of Applied Linguistics

RESUMO:

Este artigo aborda a importância do graffiti na cultura hip-hop e sua relação com a linguagem, identidade e o espaço urbano. Embora seja uma forma de expressão artística importante, o graffiti é frequentemente visto como um ato de vandalismo que causa desconforto nos sujeitos que enxergam o mundo pela ótica do capitalismo neoliberal. O texto argumenta que esse estigma é uma forma de perpetuar discursos que promovem a segregação e marginalização de indivíduos com base em raça, gênero e classe social. Essa pesquisa qualitativa adotará uma perspectiva crítica para compreender fenômenos linguísticos, como ressaltado na abordagem do bricoleur ( Denzin; Lincoln, 2006DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. 432p.) do pesquisador a fim de transitar por campos de conhecimento distintos e confluentes. Por meio de entrevistas conduzidas com os participantes dessa pesquisa, é possível perceber que o graffiti é considerado um produto de uma disputa linguística nas paisagens urbanas e também um apontamento nos estudos sobre novos letramentos ( Mattos, 2011MATTOS, A. M. de A. Novos letramentos, ensino de língua estrangeira e o papel da escola pública no século XXI. Revista X, v. 1, n. 1, p. 33-41. 2011. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rvx.v1i1.2011.22474.
http://dx.doi.org/10.5380/rvx.v1i1.2011....
). O artigo discute como o graffiti pode representar uma forma de reexistência ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
; 2011) no paradigma transperiférico ( Windle et al., 2020 WINDLE, J. et al. Towards a transperipheral paradigm: an agenda for socially engaged research. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 59, p. 1563-1576, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvgW4ykxknzdNztp/abstract/?lang=en. Acesso em: 10 de maio de 2023
https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvg...
), encontrando também apoio na perspectiva da linguística aplicada indisciplinar ( Moita Lopes, 2006MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.; Pennycook, 2006PENNYCOOK, A. Uma Linguística Aplicada transgressiva. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 85-105.).

PALAVRAS-CHAVE:
Graffiti ; Hip-Hop ; Letramentos de reexistência; Paradigma Transperiférico; Linguística Aplicada Indisciplinar

ABSTRACT:

This article addresses the importance of graffiti in hip-hop culture and its relationship with language, identity, and urban space. Although it is an important form of artistic expression, graffiti is often perceived as an act of vandalism that discomforts individuals who view the world through the lens of neoliberal capitalism. The text argues that this stigma is a way to perpetuate discourses and marginalization of individuals based on race, gender, and social class. This qualitative research will adopt a critical perspective to understand linguistic phenomena, as highlighted in the researcher’s bricoleur approach ( Denzin; Lincoln, 2006DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. 432p.), in order to navigate through distinct and converging fields of knowledge. Through interviews conducted with the participants in this study, it is possible to perceive that graffiti is considered a product of a linguistic dispute in urban landscapes and also a focal point in studies of new literacies ( Mattos, 2011MATTOS, A. M. de A. Novos letramentos, ensino de língua estrangeira e o papel da escola pública no século XXI. Revista X, v. 1, n. 1, p. 33-41. 2011. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rvx.v1i1.2011.22474.
http://dx.doi.org/10.5380/rvx.v1i1.2011....
). The article discusses how graffiti can represent a form of re-existence ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
; 2011) in the transperipheral paradigm ( Windle et al., 2020 WINDLE, J. et al. Towards a transperipheral paradigm: an agenda for socially engaged research. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 59, p. 1563-1576, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvgW4ykxknzdNztp/abstract/?lang=en. Acesso em: 10 de maio de 2023
https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvg...
), also finding support in the perspective of undisciplinary applied linguistics ( Moita Lopes, 2006MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.; Pennycook, 2006PENNYCOOK, A. Uma Linguística Aplicada transgressiva. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 85-105.).

KEYWORDS
Graffiti; Hip-Hop; Literacies of Re-Existence; Transperipheral Paradigm; Indisciplinary Applied Linguistics

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo 1 1 Este artigo é um desdobramento de uma pesquisa de mestrado orientada pela Professora Dra. Andréa Machado de Almeida Mattos, Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG. tem por objetivo explorar a relação entre o graffiti, a linguagem, a identidade e o espaço urbano. Originário da cultura hip-hop nos anos 70 em Nova Iorque, o graffiti é considerado como um dos principais elementos 2 2 Entre os elementos do hip-hop estão: o break (street) dance, o MC e o DJ, o graffiti e o rap ( Ferrell, 1996; Forman, 2004; Price, 2006; Souza, 2009; Pennycook, 2011). visuais dessa cultura ( Ferrell, 1996FERRELL, J. Crimes of Style: Urban Graffiti and the Politics of Criminality. London: Routledge, 1996.; Forman, 2004FORMAN, M.; NEAL, M. A. That’s the Joint! The Hip-hop Studies Reader. New York: Routledge, 2004. 648p.; Price, 2006PRICE, E. G. Hip-Hop Culture. Santa Barbara: ABC-CLIO, 2006. 376p.; Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
; Pennycook, 2011PENNYCOOK, A. Language as a Local Practice. Abingdon: Routledge, 2010.) e sua natureza conceitual é “subversiva, espontânea, gratuita e efêmera” ( Gitahy, 1999, p. 18GITAHY, C. O que é graffiti. São Paulo: Brasiliense, 1999. 66p.).

Apesar da riqueza expressiva do graffiti como manifestação artística, é comum que seja retratado como atividade de vandalismo, capaz de provocar desconforto em uma parcela mais conservadora da sociedade. Essa perspectiva, contudo, contribui para a perpetuação de discursos que segregam e marginalizam indivíduos com base em características como raça, gênero e classe social. Em suas reflexões, Pennycook (2010)PENNYCOOK, A. Spatial narrations: Graffscapes and city souls. In: JAWORSKI, A. THURLOW, C. (eds.). Semiotic Landscapes: Language, Image, Space, A&C Black, 2010, p. 137-150. explora de maneira mais abrangente as razões pelas quais o graffiti é estigmatizado ao ser denominado como um ato de vandalismo.

Essa ênfase no vandalismo, no graffiti como destruição, deve ser vista a partir de um longo processo de discriminação sobre as questões de raça, gênero e etnia que constrói a mácula do outro. [...] seja em oposição à burguesia, demarcar território, desenvolver um estilo reconhecido – graffiti é sobre estabelecer tipos específicos de identidade e reinterpretar o espaço público.

( Pennycook, 2010, p. 141–142PENNYCOOK, A. Language as a Local Practice. Abingdon: Routledge, 2010.) 3 3 Tradução minha, assim como em todos os demais trechos traduzidos a partir de textos em inglês.

Diante disso, o graffiti está posto como o produto de uma disputa linguística nas paisagens da cidade. Nesse sentido, leitores e escritores dialogam, interagem e produzem sentido ao se movimentar nos caminhos percorridos. Os suportes urbanos servem não só como meros intertextos, mas como produções discursivas nas paisagens ( Pennycook, 2010PENNYCOOK, A. Spatial narrations: Graffscapes and city souls. In: JAWORSKI, A. THURLOW, C. (eds.). Semiotic Landscapes: Language, Image, Space, A&C Black, 2010, p. 137-150.; Orlandi, 2004ORLANDI, E. P. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004.). Além disso, o graffiti somado à prática social surge como um apontamento nos estudos sobre novos letramentos ( Mattos, 2011MATTOS, A. M. de A. Novos letramentos, ensino de língua estrangeira e o papel da escola pública no século XXI. Revista X, v. 1, n. 1, p. 33-41. 2011. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rvx.v1i1.2011.22474.
http://dx.doi.org/10.5380/rvx.v1i1.2011....
) como uma forma de letramento multimodal ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
) por englobar as habilidades de leitura e escrita do espaço que é narrado e sua existência depende da disputa de preferências semióticas da cidade ( Pennycook, 2010PENNYCOOK, A. Language as a Local Practice. Abingdon: Routledge, 2010.).

Uma perspectiva que se harmoniza com os estudos elencados neste artigo é o paradigma transperiférico proposto por Windle et al. (2020)WINDLE, J. et al. Towards a transperipheral paradigm: an agenda for socially engaged research. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 59, p. 1563-1576, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvgW4ykxknzdNztp/abstract/?lang=en. Acesso em: 10 de maio de 2023
https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvg...
, que discute a necessidade de uma mudança paradigmática na pesquisa social de modo a incluir perspectivas e conhecimentos que tradicionalmente têm sido marginalizados, como é o caso do graffiti.

No contexto educacional brasileiro atual, é fundamental que professores, gestores e a comunidade escolar adotem uma postura crítica para desafiar o sistema de ensino tradicional que negligencia a subjetividade dos indivíduos, perpetua o status quo e controla os sujeitos. O artigo sugere estratégias para promover a autonomia, liberdade e resistência desses atores na luta contra o silenciamento e a docilização 4 4 Conforme Foucault (2010), “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que poder ser transformado e aperfeiçoado. [...] Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de tão novo? Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (Foucault, 2010 apud Brighente; Mesquida, 2011, p. 3). dos corpos dos sujeitos.

2. STREET LITERACY/ TRANSLETRAMENTOS /REEXISTÊNCIA E SOBREVIVÊNCIA

O graffiti, assim como a pixação 5 5 Utilizarei os termos “pixação”, “pixadores” e “pixo” com x por ser a grafia utilizada nas ruas e entre os atores sociais do objeto de estudo deste trabalho. no contexto do Brasil, é concebido no imaginário social como algo sujo, feio e decadente e que, em contrapartida, trata-se de escrita, ainda que de forma marginalizada ( Gitahy, 1999GITAHY, C. O que é graffiti. São Paulo: Brasiliense, 1999. 66p.; Pennycook, 2010PENNYCOOK, A. Spatial narrations: Graffscapes and city souls. In: JAWORSKI, A. THURLOW, C. (eds.). Semiotic Landscapes: Language, Image, Space, A&C Black, 2010, p. 137-150.; Conquergood, 2004CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004.; Orlandi, 2011ORLANDI, E. P. A Casa e a Rua: uma relação política e social. Educação & Realidade, v. 36, n. 3, p. 693-703, 2011. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3172/317227058008.pdf. Acesso em: 01 de jan. 2023.
https://www.redalyc.org/pdf/3172/3172270...
). Nas palavras de Conquergood (2004)CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004., “de acordo com definições oficiais de letramento, a ‘escrita do graffiti6 6 Nessa perspectiva, “escrita do graffiti” refere-se à tag e ao pixo (no contexto do Brasil). é o oximoro e o vandalista que ‘comete graffiti’ é a anátema da pessoa letrada” (p. 354).

Diante disso, Conquergood (2004)CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004. defende o graffiti como uma prática de letramento legítima e pautada em pressupostos ideológicos de luta contra um sistema que oprime e marginaliza seus praticantes. Nesse sentido, parafraseando o autor, o graffiti atua como um counter-literacy ( contra-letramento), (ver Pennycook, 2006PENNYCOOK, A. Uma Linguística Aplicada transgressiva. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 85-105., 2011PENNYCOOK, A. Language as a Local Practice. Abingdon: Routledge, 2010.; Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
; Jaworski; Thurlow, 2010JAWORSKI, A.; THURLOW, C. (eds.). Semiotic Landscapes: Language, Image, Space. London: A&C Black, 2010. 305p.) no sentido de que provoca, desafia as noções de propriedade privada e controle do espaço público ( Conquergood, 2004, p. 354–355CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004.).

Conforme afirma Conquergood (2004)CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004.,

O que distingue a escrita do graffiti de letramentos subalternizados é a sua criminalização: mais do que um letramento ilegítimo, é ilegal. Para melhor compreender os significados complexos desse counter-literacy, é preciso situar-se no discurso e nas práticas visuais de poder e controle contra as quais o graffiti luta

( Conquergood, 2004, p. 355CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004.).

Nesse sentido, podemos dizer que o graffiti – considerando também a pixação – é uma forma de letramento multimodal ou de contra-letramento ( counter-literacy) ( Conquergood, 2004CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004.) na perspectiva da linguística aplicada transgressiva e indisciplinar ( Pennycook, 2006PENNYCOOK, A. Uma Linguística Aplicada transgressiva. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 85-105.; Moita Lopes, 2006MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.).

O graffiti, nesse contexto, surge como uma potência de como a linguagem é ressignificada e contestada. Os atores sociais que produzem o graffiti criam, então, seu próprio modo de produzir sentido por meio da escrita e da leitura sustentadas, essencialmente, pela prática social. Além disso, trata-se de uma nova forma de significar a linguagem por meio de reivindicações e de reexistências ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
) e em oposição aos fatores que contribuem para a construção de uma narrativa que marginaliza esses sujeitos.

Pennycook (2010)PENNYCOOK, A. Spatial narrations: Graffscapes and city souls. In: JAWORSKI, A. THURLOW, C. (eds.). Semiotic Landscapes: Language, Image, Space, A&C Black, 2010, p. 137-150. argumenta que:

Há um ótimo negócio que pode ser dito sobre o graffiti como texto, não apenas em termos de política e mensagens sociais que eles podem transmitir, mas também em termos de diversão e uso transgressivo da linguagem ( Pennycook, 2007PENNYCOOK, A. Language, localization, and the real: Hip-hop and the global spread of authenticity. Journal of Language, Identity, and Education, v. 6, n. 2, p. 101-115, 2007. DOI: https://doi.org/10.1080/15348450701341246.
https://doi.org/10.1080/1534845070134124...
). [...] e como parte de um movimento em direção à transmodalidade, em vez dos limites mais estreitos do que é normalmente considerado “linguagem” ( Pennycook, 2007PENNYCOOK, A. Language, localization, and the real: Hip-hop and the global spread of authenticity. Journal of Language, Identity, and Education, v. 6, n. 2, p. 101-115, 2007. DOI: https://doi.org/10.1080/15348450701341246.
https://doi.org/10.1080/1534845070134124...
) [...] Ao fazer graffiti, a prática da escrita do graffiti, então, pode ser entendida como parte de uma atividade subcultural que trata da participação em uma crew de hip-hop / graffiti: o que importa pode ser o processo de escrever / desenhar ilicitamente, tanto quanto os traços subsequentes dessa escrita

( Pennycook, 2010, p. 90PENNYCOOK, A. Spatial narrations: Graffscapes and city souls. In: JAWORSKI, A. THURLOW, C. (eds.). Semiotic Landscapes: Language, Image, Space, A&C Black, 2010, p. 137-150.).

Diante disso, e ao defender o graffiti como street literacy, Conquergood (2004)CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004. argumenta que essa modalidade de letramento “acolhe três modos de significação: a alfabética, iconográfica e corpórea” (p. 358) e afirma que:

Enquanto letramentos oficiais estão associados a uma indiferença, distanciamento, revelação e uma cena de produção e recepção solo – leitura e escrita são tipicamente consideradas atividades privadas e contemplativas – a escrita do graffiti é caracterizada por contato, codificação, colaboração e conluio

( Conquergood, 2004, p. 358CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004.).

Considerando o processo de subjetivação dos pixadores ( Orlandi, 2011ORLANDI, E. P. A Casa e a Rua: uma relação política e social. Educação & Realidade, v. 36, n. 3, p. 693-703, 2011. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3172/317227058008.pdf. Acesso em: 01 de jan. 2023.
https://www.redalyc.org/pdf/3172/3172270...
), traço um paralelo entre as perspectivas de graffiti (e pixação) como letramento ( Conquergood, 2004CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004.) e a análise de discurso ( Orlandi, 2011ORLANDI, E. P. A Casa e a Rua: uma relação política e social. Educação & Realidade, v. 36, n. 3, p. 693-703, 2011. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3172/317227058008.pdf. Acesso em: 01 de jan. 2023.
https://www.redalyc.org/pdf/3172/3172270...
) a partir dos apontamentos da autora:

Pensando a pichação na atualidade, eu diria que não é algum conteúdo transmitido por uma mensagem que contém a reivindicação. É a sua própria forma de estabelecer-se, como letra diferente, outra (metáfora da letra). O pichador se esmera em inventar (são as palavras que eles usam) sua letra, sua escrita. O pichador significa e se significa na criação de sua letra, em seu grafismo. Não reconhece/não se reconhece no regime da alfabetização, das letras distribuídas pela escola, na ortografia do certo/errado [...]. Ele elabora seu sistema gráfico e não se submete ao certo/errado de quem foi segregado. Ele resiste com sua letra dita indecifrável (para alguns), fazendo deslizar a escritura, produzindo um efeito metafórico da letra, um sistema de escrita urbano, onde se diz: eu sou, eu existo, eu estou aqui, onde ele se socializa apesar de tudo, apesar do Estado (p. 701).

Ainda que Conquergood (2004)CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004. parta de pressupostos distintos de Orlandi (2011)ORLANDI, E. P. A Casa e a Rua: uma relação política e social. Educação & Realidade, v. 36, n. 3, p. 693-703, 2011. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3172/317227058008.pdf. Acesso em: 01 de jan. 2023.
https://www.redalyc.org/pdf/3172/3172270...
e que, contudo, complementam-se, o autor argumenta,

Graffiti como conter-literacy perturba “o texto burguês sem corpo” (MARVIN, 1994, p. 141), reconecta letras com corpos, e reencarna a escrita. Embora textos grafitados comuniquem mensagens complexas e codificadas a outros membros de gangues [...] a maioria dos não pertencentes não é versada da mesma forma que leem textos convencionais. Seu impacto perturbador sobre os cidadãos de classe média deriva de sua força indexical, não de seu significado referencial. Os proprietários reagem à escrita do graffiti com repulsa porque a experimentam visceralmente como um sinal descaradamente sensível da presença de uma gangue, como o toque contaminante de corpos grotescos fora do lugar (p. 357).

Nessa lógica, Lopes (2017)LOPES, A. C. et al. Desregulamentando dicotomias: transletramentos, sobrevivências, nascimentos. Trab. linguist. apl., Campinas, v. 56, n. 3, p. 753-780, dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132017000300753&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 Feb. 2023.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
propõe a noção de transletramentos como uma possibilidade de aplicação dos letramentos de sobrevivência, termo que coaduna com a perspectiva de Souza (2009)SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
sobre letramentos de reexistências. Para Lopes (2017)LOPES, A. C. et al. Desregulamentando dicotomias: transletramentos, sobrevivências, nascimentos. Trab. linguist. apl., Campinas, v. 56, n. 3, p. 753-780, dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132017000300753&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 Feb. 2023.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, a perspectiva de transletramentos atua como uma metáfora para os letramentos de sobrevivência e nos permite investigar as práticas de uso social da língua na escrita, esta que também tem o papel de agenciar pessoas não somente nos processos de letramento, mas principalmente fora da escola, seja em suas comunidades, família, igreja etc. Conforme a definição da autora:

Os letramentos de sobrevivência são rastros que resistem – rastros indiciadores de que aqueles que foram subalternizados pela modernidade não se entregam pacificamente à escrita, mas dela se apropriam, transformando seus significados e reinventando formas de sobreviver culturalmente

( Lopes, 2017, p. 755LOPES, A. C. et al. Desregulamentando dicotomias: transletramentos, sobrevivências, nascimentos. Trab. linguist. apl., Campinas, v. 56, n. 3, p. 753-780, dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132017000300753&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 Feb. 2023.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
).

Souza (2009)SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
desenvolve em sua pesquisa a perspectiva de letramentos multimodais pautados nas relações sociais de jovens negros pelo viés de letramentos de reexistências. Ao fazer um levantamento sobre a população de jovens negros letrados no Brasil, a autora estabelece um paralelo desde o período escravocrata até os dias de hoje e como ocorre essa desproporção de pessoas que tiveram o acesso à educação negado ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
).

A autora também discorre sobre quais seriam as outras possibilidades de letramento nesse contexto e defende pedagogias que apontam novos caminhos na educação de jovens negros. A autora argumenta que o hip-hop atua diretamente nesse processo como uma possibilidade de buscar apontamentos pedagógicos de letramento e agenciamento dessas pessoas:

[...] Por isso afirmo que o hip-hop mostra-se como um reinventor de tradições, por recriar, de maneira singular, as práticas culturais e educacionais que marcam o movimento social negro nas diferentes épocas, desde a chegada dos negros africanos ao Brasil. Abordando os letramentos como práticas sociais que, para além das habilidades individuais de uso da linguagem, se realizam em determinados contextos: social, político e cultural; os jovens envolvidos nessa pesquisa, ao mesmo tempo em que dizem de si e da cultura hip-hop, dizem também da cultura negra e da identidade negras

( Souza, 2009, p. 41SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
).

O paralelo que pretendemos criar a partir dessas leituras para esta pesquisa não se baseia em estabelecer novos horizontes nas possibilidades pedagógicas que o movimento do hip-hop pode oferecer. É importante notar que este movimento é majoritariamente composto por pessoas negras que, devido à marginalização social, ocupavam as ruas do centro de São Paulo. No entanto, devido ao processo de urbanização e higienização da capital paulista, as práticas do hip-hop foram cerceadas, uma vez que “destoavam do projeto de sociedade moderna e dos anseios de progresso que se pretendia para o Brasil” ( Souza, 2009, p. 74SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
).

Diante disso, o movimento que em seus primórdios já era marginal, passou então a ser periférico 7 7 O termo “marginal” refere-se ao estigma do movimento do hip-hop por se tratar de um movimento majoritariamente negro e marginalizado. Passa então a ser periférico, no contexto de São Paulo, pois o movimento migrou para a periferia da capital paulista. devido a um processo de descentralização dessas atividades ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
). Ainda que a ocupação das ruas fosse negada à comunidade do hip-hop, o movimento no contexto de São Paulo atua como uma possibilidade de contestação, ocupação, reexistências e pertencimento ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
).

Contudo, como o objeto deste estudo é o graffiti, que por vezes atua como o quarto elemento desse movimento e que pode não o ser também, como é o caso da pixação, é importante esclarecer a trajetória desse objeto enquanto prática social e seus atravessamentos pedagógicos ( Alim, 2007ALIM, S. H. Critical Hip-Hop Language Pedagogies: Combat, Consciousness, and the Cultural Politics of Communication. Journal of Language, Identity, and Education, v. 6, n. 2, p. 161-176, 2007. DOI: https://doi.org/10.1080/15348450701341378.
https://doi.org/10.1080/1534845070134137...
; Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
; Pennycook, 2007PENNYCOOK, A. Language, localization, and the real: Hip-hop and the global spread of authenticity. Journal of Language, Identity, and Education, v. 6, n. 2, p. 101-115, 2007. DOI: https://doi.org/10.1080/15348450701341246.
https://doi.org/10.1080/1534845070134124...
, 2008)PENNYCOOK, A. Uma Linguística Aplicada transgressiva. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 85-105. por meio das falas dos participantes dessa pesquisa que serão elencados mais adiante.

3. A PESQUISA QUALITATIVA

Denzin e Lincoln (2006)DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. 432p. destacam em seus estudos o desenvolvimento da pesquisa qualitativa ao longo do tempo, e como essa abordagem tem se expandido para diferentes perspectivas atravessadas por momentos históricos. O sétimo momento, ou futuro da pesquisa qualitativa, segundo os autores, requer que as ciências sociais e humanas se tornem campos críticos de discussão em relação a temas como democracia, raça, gênero, classe, globalização, liberdade e comunidade. Nesse sentido, é importante enfatizar que o presente artigo adotará uma perspectiva crítica para investigar e compreender os fenômenos linguísticos abordados neste trabalho.

Os autores afirmam que dentro do paradigma qualitativo o pesquisador atua como um bricoleur, o que significa que navegamos por diferentes campos do conhecimento a fim de discutir questões relacionadas à nossa própria pesquisa, como Denzin e Lincoln ( 2006, p. 17DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. 432p.) apontam,

Assim como os textos de performance, os trabalhos que utilizam a montagem 8 8 Metáfora da montagem/colcha de retalhos que explica o conceito de bricolagem ( Denzin e Lincoln, 2006). conseguem ao mesmo tempo criar e representar o significado moral. Deslocam-se do pessoal para o político, do local para o histórico e para o cultural. São textos dialógicos. Presumem uma audiência ativa. Criam espaços para a troca de ideias entre o leitor e o escritor.

Portanto, para melhor embasar esta pesquisa é importante utilizar não apenas a abordagem interpretativa a partir do paradigma qualitativo ( Denzin; Lincoln, 2006DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. 432p.), como também ressaltar a importância de permear campos de pesquisa distintos a fim de compreender a diversidade cultural que esse tópico engloba.

3.1 Contexto e participantes

A partir de conversas 9 9 Por se tratar de pesquisa em que parte da fonte primária de informação é o ser humano, o projeto de pesquisa foi previamente enviado para aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (COEP), por meio de sua vinculação ao projeto principal intitulado “Letramentos, Cidadania e Justiça Social: novos caminhos para a Educação Crítica no Brasil”, que tem como investigadora principal a Professora Dra. Andréa Machado de Almeida Mattos, e obteve aprovação em 16/01/2020, sob o número CAAE 23101119.1.0000.5149. com dois artistas, podemos compreender melhor as nuances da prática do graffiti, além de perspectivas e posicionamentos distintos dentro do movimento na mesma cidade. As conversas aconteceram por vídeo, foram gravadas e posteriormente transcritas para os fins dessa pesquisa.

Entre os participantes – que não terão seus nomes reais nem artísticos expostos – foi entrevistada uma arte educadora, b.girl (breakdancer), palestrante e pesquisadora do movimento do hip-hop em Belo Horizonte, a quem chamaremos de Brena. O segundo entrevistado é artista, grafiteiro, tatuador e estudante do programa de pós-graduação em Literatura. Em sua pesquisa de mestrado, o participante traça paralelos entre a corrente literária Escrita Fora de Si e a pixação, a quem chamaremos de Pedro Augusto.

A partir dessas conversas surgiram vários temas: as diferenças entre graffiti e pixação; a motivação dos pixadores/grafiteiros ao realizarem suas práticas; o movimento hip-hop; as disputas dentro do movimento hip-hop e da pixação; questões relacionadas às identificações de gênero e raça; racismo; relações de poder na sociedade; performance; transgressão; resistência; reexistência ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
); linguagem e educação. Esses temas serão abordados nas páginas que se seguem 10 10 Os dados serão apresentados em forma de excertos. Tais excertos não sofreram nenhum tipo de correção ou intervenção por parte da pesquisadora e serão apresentados exatamente do modo como foram produzidos. Pequenas explicações foram introduzidas entre parênteses ( ) quando se julgou necessário esclarecer algo para o leitor. .

No contexto do Brasil, grupos de jovens negros, de bairros periféricos se reuniam nas praças do centro de São Paulo a fim de articular o movimento do hip-hop por meio de passos de break dance, batalhas de rap, e batalhas de bomb (no caso do graffiti). Devido a uma política higienista da cidade de São Paulo na época – perceptível até hoje – houve uma descentralização dessas práticas que, antes, ocupavam o centro da cidade. Nesse deslocamento, os integrantes do movimento do hip-hop voltaram, então, a se reunir em seus próprios bairros, na periferia de São Paulo, reexistindo ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
).

Quando falamos em narrativa urbana, podemos nos referir à pixação ou ao graffiti como a materialização do discurso da cidade, o discurso urbano ( Orlandi, 2004ORLANDI, E. P. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004.). No entanto, quando analisamos esse fenômeno a partir da esfera subjetiva dos pixadores, entendemos a pixação como a concretização da existência desses sujeitos. Por se tratar de uma prática insubordinada, incontrolável, e uma presença “fantasmática” que narra e se apropria do espaço urbano por vias que a legitimidade e a ilegitimidade não alcançam.

Na conversa com Brena, perguntamos à participante se essa tentativa de manutenção do status quo em relação ao graffiti e à pixação não estaria atrelada à questão dos sentidos. Pois, por serem práticas que envolvem uma estética distinta e muitas vezes encriptada das letras, esse acaba sendo um fator que corrobora a dificuldade de apreensão dos sentidos dos transeuntes que estão fora do movimento dos pixadores/grafiteiros. Segue o Excerto 8, contendo a resposta de Brena:

[Excerto 8, Brena]

Pra mim entra num conceito de cultura, então não é feito para dificultar a vida de ninguém. Na verdade, é uma maneira de se expressar que a gente criou. Pra quem tá dentro (do movimento) é igual falar português e não falar inglês, quem criou o inglês não para dificultar a minha vida… eu que não sei falar inglês, entendeu? Então eu vejo nesse sentido.11 11 Em excertos, realces nossos. Dentro do hip-hop tem a nossa maneira de falar, tem a nossa maneira de vestir… eu consigo identificar quem faz parte da cultura, só com um acessório que ela tá usando ou só com uma palavra que ela fala. Então mesmo que essa pessoa esteja em outro país, se ela falar uma determinada palavra eu vou identificar “ó, essa pessoa é da cultura que eu faço parte” por mais que a gente não consiga comunicar. Então, é uma maneira própria nossa, sem essa intenção de dificultar o lado de ninguém, mas também a cultura do hip-hop foi criada porque era a juventude ali morrendo o tempo todo e o sistema não atendia, não dava o que era de direito e estava negando tudo para eles. Então eles estavam criando maneiras de se comunicar, maneiras de serem notados. Às vezes eu vejo muita gente falando “deram voz para eles através do graffiti”, não! Eles sempre tiveram voz, estavam ali o tempo todo e ninguém dava atenção. A partir do momento em que eles pararam de se matarem e fazer todo aquele e fazer todo aquele trabalho que o sistema queria mesmo, que estavam se quebrando, se prejudicando… e começam a voltar isso para uma cultura, para arte, né?

E aí, o mais mágico do hip-hop que eu percebo é que é uma cultura que conseguiu atingir várias esferas da arte, e agregar várias culturas, e não excluir, sabe? Então, hoje eu percebo algumas ações de pessoas que fazem parte do graffiti – da cultura do hip-hop em si – que ficam excluindo as outras pessoas e às vezes eu penso “meu, mas aí a gente tá indo contra o rolê lá que começou, sabe?” e eu também já escutei “ah, Brena, mas aí você também vai ficar vivendo do passado?”, “não, mas se eu me apropriei de uma cultura eu preciso entender e respeitar de onde ela veio”. Então eu percebo isso, essa estética foi criada para poder se comunicar, sabe? Para falar com o sistema que não nos ouvia porque não queria. Isso lá nos Estados Unidos e aqui no Brasil a mesma coisa. A cultura do hip-hop quando vem para cá, o público alvo que vai se comunicar com ela é a galera da periferia, que por muitas vezes – e por uma questão histórica – eram pessoas que construíam as metrópoles e na hora que elas poderiam desfrutar disso tudo, foram jogadas para o escanteio, né? para a margem da sociedade, virando favelas e por aí vai… e é aí onde o hip-hop se instala… porque eram pessoas que também não conseguiam se comunicar. E aí entra uma característica brasileira que é a criatividade – que é muito grande – porque uma lata de spray é muito cara. Naquela época era cara e hoje é cara ainda… e aí eles tinham que criar maneiras de fazer aquilo que tinha vontade, mas com o material que tinha. E o que eles tinham para fazer eram os rolinhos (de pintar) e isso ajudou essa estética a acontecer, né. Essa questão da precariedade do pouco material e do material que estava ali disponível. Foi mais um fato para essa estética surgir, porque se você for ver as letras de pixo, são letras mais retas, você percebe algumas características que são do rolinho. E uma das coisas que a galera gringa quando vem para o Brasil e percebe é que não tem muito essa estética lá fora. Então você percebe que é simplesmente uma maneira de se comunicar. Não foi feito para bater de frente com alguém. Simplesmente para serem ouvidas, né… e aí para ser ouvido eu não tenho que desenhar pra você, né… eu vou criar a minha técnica ali, que é uma das coisas que o hip-hop mostra muito, que é você ter uma identidade e aí criando essa identidade e entendendo que a Brena precisa ter um alfabeto, que você precisa ter um alfabeto e ir seguindo, foi onde estava surgindo uma oferta diferente, uma característica… se você for ver, o pixo de Belo Horizonte é diferente de São Paulo, do Rio de Janeiro, e por aí vai… Então é só por isso, né… a gente bate contra o sistema, mas o foco ali era simplesmente conversar, se comunicar, ser notado, se divertir, sabe? Só isso.

[Excerto 14, Brena]

O hip-hop foi criado por uma pluralidade muito grande, né… foi criado sim, nos guetos, mas não ficou só ali. Então majoritariamente eram pessoas negras e latinas, mas existiam outras pessoas ali. Existiam outras culturas. Existem passos de dança que a gente usa, que são da dança russa. Então como a gente faz o passo de dança russa dentro do break? Então com certeza quando foi criado o break, existia alguém da Rússia ali na comunidade que criou aquele passo ou existiu alguém que assistiu televisão e tinha essa influência, do que aquelas crianças e adolescentes viam na televisão ou liam nos gibis que eles tinham acesso, né… porque televisão pra eles também tinha um acesso precário, então eles liam gibis e outras coisa ali que eles começaram a trazer. Então você vai ver influência de um monte de coisa. Se você trouxer isso pro graffiti, tem influência de pessoas que faziam ali quadrinhos… então os primeiros desenhos que foram feitos juntos com as letras, eram influências dos quadrinhos, dos desenhos animados. Então a cultura do hip-hop foi criada com influências de outras culturas que já existiam, então eu não consigo ver de forma limitada ali, para pessoas ricas e pobres. O que eu consigo ver é que essa apropriação que aconteceu no começo e acontece até hoje, é do capitalismo. E aí não é de um país que é rico não, é realmente do capitalismo que está em todas as partes… quando a cultura do hip-hop começou a ter muita visibilidade – e isso foi bom porque chegou até a gente, porque talvez não chegaria – aconteceram algumas divisões dentro da cultura e quem estava mais imerso na cultura conseguia perceber que eram ações do capitalismo. Se você for ver os raps de antes e hoje, você percebe elementos que o capitalismo usa, que são mulheres com uma roupa mais apertada. Não que isso não possa ser usado, mas a gente sabe que o capitalismo usa dessas manobras e aí passa a esquecer um pouco da essência, passa a ficar muito superficial e esquecer de onde vem.

Dessa forma, o graffiti atua como um agente de resistência quanto à subordinação dos corpos dos atores em questão. Para embasar melhor esse pensamento, Brena comenta como surgiu a tag Nunca Fui Barbie, a fim de ilustrar como esses conceitos convergem para a análise proposta:

[Excerto 15, Brena]

Hoje eu faço parte de duas crews, né? Crew dentro do hip-hop a gente chama de coletivos. A gente entende uma crew como amigos que gostam, tem o mesmo objetivo, ideologia próximas ali, e resolve juntar para poder trabalhar junto, ter uma estrutura melhor tanto na questão da arte, mas também no apoio. Porque a nossa arte precisa disso o tempo todo. O hip-hop tem muito disso, da união, de estar próximo. Sozinho nem sempre é a melhor opção para o hip-hop. E aí a nunca fui barbie foi uma tag, uma assinatura de rua, que eu criei através de uma fala minha com uma amiga.

E aí a gente vive fazendo algumas atividades, mais voltada para a pesquisa na atuação da mulher no hip-hop, potencializar mesmo essas mulheres aqui de Belo Horizonte, região metropolitana. Eu não sou de BH, né? Eu hoje moro em BH, mas sou de Ribeirão das Neves. Então, eu sempre que eu tenho oportunidade de falar sobre isso, o coletivo me dá essa base também de apoio pra gente poder continuar os nossos rolês na rua, né?

E aí também tem um outro coletivo chamado Ladies Letters, que são mulheres de todo o Brasil que escrevem letras nas ruas, né? Então, é… a letra sempre foi muito associada à questão masculina.

Brena encontrou, por meio do graffiti e do hip-hop, formas de ressignificar a subordinação de seu corpo-sujeito. Além disso, o conceito contido por trás da tag Nunca Fui Barbie fez com que outras mulheres também se posicionassem a fim de combater ou diminuir os efeitos de padronização e subordinação dos corpos. Mais ainda, esses corpos sobre os quais Brena comenta dizem muito sobre a sociedade sexista – lê-se, machista – de uma herança histórica de opressão aos corpos femininos. Assim, Brena narra sobre a questão de gênero dentro do movimento conforme o excerto a seguir:

[Excerto 16, Brena]

Sempre quando você via alguma mulher pintando, logo quando eu comecei, se via a mulher pintando flores, mensagens e poucas letras. Tinham mulheres que pintavam letras também, mas a letra sempre foi mais associada a essa questão masculina, mesmo que quando começou o graffiti , uma das primeiras representatividades femininas era uma mulher pintando letra… mas também em outro contexto, foi lá no início que “geral” pintava a letra, era o foco da época pintar letra. Eu sempre tive essa paixão por letras e então comecei a desenvolver isso até que fui convidada por essa crew 12 12 Ladies Letters para fazer parte também. As meninas entenderam um pouco da minha história e tal, acharam bacana e me convidaram. Então, a gente tem aí mulheres do Amazonas, São Paulo, aqui de Minas Gerais e eu não vou lembrar se tem de outros estados, porque é um coletivo nacional, que tem a intenção de falar que mulher pinta letra também, de qualidade.… Que o graffiti não tem um gênero e sim pessoas que são apaixonadas por isso e produzem aquilo que acham massa.

O conceito de coletividade imbricado no hip-hop fez com que essa crew, a Ladies Letters, entre outras, como a Minas de Minas 13 13 Crew de mulheres de Minas Gerais , formassem um coletivo de mulheres para não só garantir um espaço feminino dentro do movimento do hip-hop em Minas Gerais, como também empoderar outras mulheres por meio de seus trabalhos, além de aperfeiçoar técnicas de graffiti.

Além disso, a questão levantada no Excerto 16 acima pode ser analisada por outros fatores. Conforme a participante, o fortalecimento de mulheres por conta do graffiti não tem a ver apenas com a questão de gênero, como também com a questão da marginalização dessas mulheres – lê-se marginalização no sentido de estarem às margens –, pois foi uma forma de reunir mulheres da periferia da região metropolitana de Belo Horizonte, conforme também mostra o Excerto 14.

Para ilustrar melhor esse pensamento, o excerto que se segue – desta vez um pouco mais longo – apresenta a questão do feminismo dentro do movimento e como o graffiti foi um fator importante no processo de autonomia das mulheres no hip-hop advindas de regiões periféricas.

[Pergunta feita por mim]

Você identifica alguma mudança da cena do graffiti em Belo Horizonte em relação à questão de gênero? Você percebe que ainda tem muito machismo ou que isso tem mudado de alguma forma? Qual é a sua percepção?

[Excerto 15, Brena]

Então, aí eu passo por algumas fases do hip-hop. Tanto de Belo Horizonte, quanto nacional e mundial, que é o que me fez gostar dessa história e querer pesquisar ela. Então, a gente identifica o machismo desde o início do hip-hop, mas dentro do pouco que eu estudo e que eu entendo, é trazendo realmente a minha percepção, o machismo está na sociedade, né? E é a sociedade que faz a cultura. Então, automaticamente a gente vai ter algumas heranças, alguns respingos sociais de diversas formas quando se cria uma cultura, né? Que é o caso do hip-hop, que tem quarenta e sete anos. Então, é uma cultura muito nova para uma sociedade em que já existe o machismo e já aplica isso na sociedade desde que o mundo é mundo. Então, a gente vai ter esses respingos e quando começou a lógica, a gente não tinha esses diálogos. A mulher que se envolvia com graffiti era uma mulher muito ousada. Os comentários que eu fiz e os comentários que eu escuto dessas pessoas que começaram era que realmente a sociedade não se dava bem, a sociedade muitas vezes julgava, e por isso muitas delas não continuaram no graffiti, fizeram outras coisas na vida por conta dessas repressões. Mas ainda existem várias outras mulheres que acabaram indo por esse caminho. E contam essa história pra gente, né? E também em questão do apagamento, que é um apagamento histórico. Então é muito difícil encontrar essas mulheres hoje para conversar, tanto onde começou (EUA) quanto no Brasil também. Quem começou a difundir a cultura do hip-hop, as mulheres que começaram, geralmente, não deram muito espaço para essas pessoas. Então, é algo muito complexo.

Se você for ver, eu comecei em 2007, em Ribeirão das Neves e as pessoas que me influenciaram, que eu vi pintando, foi o meu irmão e colegas de escola . Meu irmão começou a aparecer em casa com revistas de graffiti e os meus colegas de escola foram as pessoas que conseguiram ir para fora daquela bolha, porque minha mãe não me deixava sair de casa, eu tive uma criação um pouco mais fechada [...] Enquanto isso, quem trazia (as revistas) pra mim eram os meninos de escola, homens que tinham acesso a outros lugares, que eram de Belo Horizonte e conseguiam viajar e tal, pra vim pra dentro da minha escola algo novo ali que eu tinha curiosidade e eles tinham atenção de me ensinar, de contribuir ali comigo, compartilhar comigo.

Nessa época era só eu da minha região ali que estava começando e que tinha esse interesse. Mas aí tem dois fatores. Primeiro, como eu estava numa bolha, eu não sabia se existiam outras mulheres na região que já faziam isso. Na minha experiência ali nos bairros que eu frequentava, que era o meu limite, era só eu que estava próxima desses meninos, né?

Tem também a questão que, nessa época, ainda era um pouco mais fechada a maneira de se criar as meninas adolescentes, crianças e tal. Em 2007 a 2011, começa a ter um pouco mais de flexibilidade na criação dessas adolescentes. Então elas conseguem romper algumas barreiras, sabe? E aí, nisso, que é o meu caso, eu começo a frequentar Belo Horizonte e aí, eu percebo que também existiam outras mulheres que pintavam. Que no caso, eu não sei quando começaram exatamente, mas foi próximo de quando eu comecei, só que cada uma numa região. O Minas de Minas é uma referência pra mim porque foi a minha primeira crew e teve outras mulheres que já pintavam, mas era difícil da gente ter acesso. Aí tem a Pereira também, uma menina que vem de antes do Minas de Minas. Mas aí você conseguia ver uma menina em cada região. Mas era um rolê muito complicado, porque vir de Ribeirão das Neves para Belo Horizonte é complicado, é longe ou de Betim, de Contagem… e aí tem uma mina só, em uma cidade gigante, como Ribeirão das Neves. Uma menina só em uma região, uma menina na outra região, sabe? Eu faço parte ali da região de Justinópolis, então ali na minha região era eu que fazia. Creio que dentro de (Ribeirão das) Neves tinham outras mulheres que poderiam estar se envolvendo com isso, mas eu não tinha acesso, porque nessa época, a internet era para quem tinha dinheiro. Não era o nosso caso. Então teve esse período em que eu consegui identificar mais mulheres.

O primeiro levantamento que Brena traz ao responder à questão sobre o machismo presente no movimento do hip-hop, tem a ver com o apagamento histórico de mulheres na sociedade. Ainda que existam mulheres que atuam e militam pela garantia de espaços femininos na arte e em outras esferas da sociedade, há de se reconhecer que o protagonismo acaba sendo masculino. Além disso, ao fazer uma análise – desta vez generalista neste ponto – quando há um protagonismo feminino, é pelo viés da objetificação do corpo das mulheres e que pode ser constatado também pela fala de Brena no Excerto 13.

Em segundo lugar, a questão da distância e de gênero estão atreladas à sua trajetória no graffiti. A dificuldade de acesso à Belo Horizonte – ainda que existam linhas de ônibus diretas – deve ser levada em conta também por outros fatores, como o perigo de voltar para casa de madrugada, o fato de andar sozinha de madrugada sendo mulher e também por Brena ter tido uma criação mais estrita, sendo considerada, desta forma, como a “cinderela do rolê”, como veremos ao final do Excerto 16, a seguir. Esses são fatores de desigualdade de gênero, que contribuem para o apagamento histórico de mulheres no movimento, ainda que esse cenário tenha mudado com o passar dos anos.

A disputa faz parte do graffiti. Parafraseando Pennycook (2010), a existência do graffiti depende da disputa entre os pixadores/grafiteiros e gestores urbanos sobre as preferências semióticas das paisagens linguísticas. No entanto, essa disputa também está atrelada entre os pares no graffiti e pixação, conforme os relatos de Brena.

Ademais, também é importante, para esta análise, demonstrar por meio das falas dos participantes, a partir dos excertos a seguir, como o graffiti, a pixação e o hip-hop atuam como estratégias de sobrevivências ( Lopes, 2017LOPES, A. C. et al. Desregulamentando dicotomias: transletramentos, sobrevivências, nascimentos. Trab. linguist. apl., Campinas, v. 56, n. 3, p. 753-780, dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132017000300753&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 Feb. 2023.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
) e de reexistências ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
) na sociedade.

[Excerto 18, Brena]

Essa questão de quantos elementos o hip-hop tem, é bem polêmica. E aí eu estou te falando isso do ponto de vista de quem está dentro. Eu, pelo menos, tenho a atitude que é a seguinte: eu brigo, discuto, quebro o pau com o meu irmão, mas se alguém falar mal dele, eu vou ficar muito brava e vou brigar com essa pessoa. Então eu levo a cultura do hip-hop da mesma forma. Tem algumas questões de dentro que a gente vai tentar discutir, vai ter um diálogo mais intenso, e que é produtivo. Instiga a gente a pesquisar mais. Eu entendo o seguinte: existem os elementos simbólicos, que aí é o que todo mundo sabe, né… o break , o graffiti , o DJ e o MC e que são simbólicos, são ações. Mas a gente considera realmente “o estar junto”, tudo é essa ponte para estar junto e assim compartilhar o hip-hop , que é o conceito. Então eu acredito que existam muito mais elementos, não são 5, não são 9 – como algumas pessoas falam – eu considero 4, considero 5 e considero 9, mas eu não me limito a isso, eu acho que vai muito além. Porque se você for colocar na prática, tem a pessoa que está limpando o ambiente, se você fizer uma festa de hip-hop tem a pessoa que está cozinhando para vender nessa festa, tem a pessoa que está fotografando, tem a pessoa que vai ficar na bilheteria… isso tudo contribui para que aconteça uma ação. Então se a gente for delimitar um número de elementos, tem muita coisa acontecendo. Tem muita gente que apoia, só por gostar e não vai fazer nenhum dos quatro elementos. Tem muita gente que fala “ah, se não é grafiteiro e não faz nenhum dos quatro elementos então faz parte do hip-hop” pra mim faz! Porque eu conheço muitas pessoas que não fazem nenhum dos 4 elementos e que entendem mais do conceito e da cultura do hip-hop do que quem faz. Pais, familiares ou amigos que estão presentes na correria, que me apoiam com o dinheiro da passagem de ônibus para eu ir pro centro, entendeu? Que param para escutar as minhas histórias, dos rolês, para mim isso é da cultura do hip-hop total. E dentro da escola eu pratico isso, na minha metodologia de ensino, a proposta que eu trago para dentro das escolas… hoje eu curso pedagogia, mas a pedagogia entrou muito tarde na minha vida e a academia veio muito tarde na minha vida por uma questão social. Vim de periferia, ninguém me apresentou a escola, descobri que eu tinha dislexia aos 21 anos de idade, até então eu era uma menina burra, eu não sabia ler em voz alta e por aí vai… aí eu achava que não dava conta, porque na minha cabeça eu pensava “como eu vou ser professora se eu não consigo ler um texto simples da chapeuzinho vermelho, com os meninos em voz alta?!”. Então eram vários bloqueios que eu tinha ali. Quem tirou esses bloqueios foi o hip-hop através da pedagogia que a gente cria no nosso contexto, na valorização do nosso contexto e que eu acho muito próximo da linha de raciocínio do Paulo Freire. Um dos motivos de eu fazer pedagogia, foi entender isso. Eu pensava “eu estou há um tempão na educação e todos os lugares que eu ia – e não falo da minha formação hoje, porque eu não faço questão… valorizo muito a academia que eu faço, mas não faço questão – então são 13/14 anos na área da educação, trabalhando como educadora social, comecei dentro da escola que eu estudei e fui desenvolvendo. Passei de mãe social de duas crianças, asilo, CERSAM, cadeia de todas as denominações: criança, adolescente, adulto, mulher, homem e por aí vai… trabalhando isso… levando o hip-hop como ponte para transformação social. Então, eu não estou ali pensando em formar b.boys/b.girls ou grafiteiros/grafiteiras, eu estou ali como uma ponte, como uma ferramenta que eu consiga fazer alguma diferença na vida das pessoas, poder mostrar outros caminhos, outras oportunidades dentro do conflito que ela está vivendo. E aí a gente vai desenvolvendo esse diálogo, e vai vendo. Eu percebi que isso eu aprendi só com o hip-hop . A academia hoje é muito bacana, mas você vê … eu vou pegar um texto de um fulano que eu não sei das quanta e não desmerecendo o corre do cara, mas o cara está tão longe de mim, tão longe da minha realidade e falar pra uma criança lá da quebrada, não faz sentido algum. Mas se eu levar ali um artista local que faz poesia e falar sobre aquilo que ele vê, faz toda a diferença. E isso o hip-hop trouxe para mim. Foi o que o hip-hop me ensinou e não foi nem uma, nem duas vezes de eu chegar nos lugares e às vezes a galera me olhar feio pela minha estética e quando eu começo a falar e trago o meu conteúdo, me perguntarem”ei, você fez um mestrado? Aonde?” e aí eu olhava para a pessoa e falava “então, eu tenho ensino médio” e continuavam “como assim? Eu pensei que você fosse de faculdade…” e aí quando eu percebia, era a mesma pessoa que me olhou feio quando eu dei “boa tarde” quando eu entrei, foi a mesma pessoa que estava no banheiro e me mandou para o banheiro masculino porque não entendia a minha estética, como se eu tivesse que explicar para ela que se eu quisesse usar aquele banheiro e fosse qualquer outra coisa, eu podia mesmo assim. Então eu percebo que esses bloqueios sociais afetam muito a periferia nas academias. Isso acontece desde sempre e tem os seus motivos, os seus porquês, né. É muito mais fácil você abrir cadeias do que ensinar as pessoas a abrir a visão para o que está acontecendo. Então nada do que eu fiz até hoje – e a academia veio aí há dois anos – tem a ver com a faculdade. Tem a ver realmente com a vivência, com aquilo que eu acredito, e um pouco com o coração. Hoje eu trabalho com o coração, apesar de já ter sofrido um bocado nesses projetos aí e ter umas histórias complicadas.

No relato de Brena, fica evidente como o hip-hop contribui como um agente de transformação em sua própria trajetória de vida e que, consequentemente, a fez se questionar sobre o seu papel como educadora e contribuir na transformação da realidade dos seus alunos.

Além disso, é possível perceber em seu relato no Excerto 18, como é notório o distanciamento da academia com a escola pública. Dessa forma, o hip-hop opera como protagonista dessa lacuna entre universidade-escola, no sentido de que abarca, de forma lúdica e pedagógica, temas que fazem parte da realidade dos alunos que vivem na periferia das cidades a fim de promover, por meio do conceito que o movimento do hip-hop abarca, a união entre os pares. É desse modo que o hip-hop e seus inúmeros elementos executam uma estratégia de sobrevivência, de ressignificação das realidades e, sobretudo, de reexistências ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
).

Similarmente, ao ser questionado se há um viés pedagógico e de transformação social na pixação, Pedro Augusto replica da seguinte maneira:

[Pergunta feita por mim]

Você percebe a pixação atrelada a um viés pedagógico ou de transformação social que possa ser usado como agente de transformação na vida de jovens, tanto na escola quanto fora da escola?

[Excerto 19, Pedro Augusto]

Bom, eu acho que primeiramente, tem que haver uma mudança de postura em relação à pixação. Muitas vezes ela acontece primeiramente na vida da pessoa, dentro da escola. E aí você sai da escola e às vezes até dentro da escola, há a pixação, há esse tipo de linguagem. E aí eu acho que, tipo assim, o sistema não abarcar isso, não abarcar a realidade, é um sistema que não educa de verdade. Ele vai manter o status quo , ele vai tornar as pessoas não transformadoras da realidade para poder serem livres. Elas vão manter o status quo, elas estão se formando para poder trabalhar, para poder entrar no sistema mesmo e não poder ser livre. E eu acho que assim, ao meu ver esse é o primeiro erro da escola, em não abarcar essa linguagem, porque ela é real e ela simplesmente ignora ou reprime a pixação. Eu acho que por exemplo, em questão de essência da pixação, não há essa questão de ter uma preocupação política, politizada de transformar a vida de alguém, realmente não existe isso. Mas você vê um reflexo em relação à autoestima das pessoas que pixam porque elas têm a curto prazo um reconhecimento social entre os pares, que não necessariamente é o que as pessoas buscam ao praticar a pixação, mas elas acabam tendo esse reconhecimento social. Eu acho que isso na vida de um jovem e na vida de qualquer pessoa, isso é um valor, isso deveria ser primordial, ter auto estima, trabalhar a autoestima. E ao meu ver, a educação poderia ser nesse sentido. Primeiro de não negar ou reprimir aquilo e segundamente de valorizar a autoestima das pessoas.

Embora a pixação não possua um conceito, assim como o graffiti o é para hip-hop, é notável que, por se tratar de uma prática transgressora, de apropriação do espaço urbano e que está dentro e fora dos muros da escola, também transforma a realidade – em uma esfera subjetiva – dos pixadores. É por meio da escolha semiótica e da narrativa urbana que essas pessoas aspiram que a pixação agrega valor ao reconhecimento da existência desses corpos-sujeitos entre os pares e entre o cidadão comum.

Ao adentrar a esfera da performance da prática dos pixadores foi elaborada a seguinte pergunta:

[Pergunta feita por mim]:

Como você percebe o fato dos pixadores se colocarem em risco – no sentido de ser uma prática transgressiva, de resistência, de pessoas que são majoritariamente marginalizadas, que já estão à mercê do Estado, já estão em desvantagem social na narrativa capitalista – que ainda assim colocam seus corpos em risco ao escalarem um prédio alto ou serem pegos pela polícia, denunciados, etc. Muitos pixadores já morreram em algumas ações por conta desses fatores… Qual é a sua percepção em relação ao que está por trás disso?

[Excerto 7, Pedro Augusto]

Eu vejo isso como a arte pura, natural que poucos dedicam a ela justamente por conta da nossa vida corrida. Eu acho que o cara morrer pela arte, é uma coisa que só se expressa pela pixação. Eu não conheço nenhum artista que deu a vida ou morreu por conta do seu trabalho especificamente. Eu vejo isso como um grito de existência, é uma maneira principalmente de resistência. Enquanto as autoridades, a sociedade de uma maneira geral, se voltam para a manutenção do status quo, quando alguém escreve no muro, quando alguém sai pelado na rua, muitas vezes a sociedade se volta para controlar aquilo, ou então, quando tem uma pessoa que eles dizem estar com insanidade mental então vão pegar e dar remédio para essa pessoa, vão trancafiar ela… então assim, tem sempre essa busca pela manutenção do status quo. Eu acho que a pixação é essa apropriação, principalmente, do espaço público e uma ocupação muito interessante da presença dos corpos, sabe? Como eu disse, a gente pode ver isso de diversas maneiras. Eu acho que o movimento por si só, assim como graffiti ligado ao hip-hop, são questões muito ricas que não cansam de ter significados.

Quando falamos em narrativa urbana, podemos nos referir à pixação ou ao graffiti como a materialização do discurso da cidade, o discurso urbano ( Orlandi, 2004ORLANDI, E. P. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004.). No entanto, quando analisamos esse fenômeno a partir da esfera subjetiva dos pixadores, entendemos a pixação como a concretização da existência desses sujeitos. Ao considerar a pixação um “grito de existência”, quando um pixador morre por conta da sua arte, é justamente nesse momento que se constata tanto a falha quanto a manutenção do status quo. Primeiro, porque um pixador precisa pixar para que sua existência seja notada – ainda que essa não seja a única motivação dos pixadores. Segundo, porque a causa dessa morte geralmente acontece por uma manutenção do status quo – seja por uma ação da polícia violenta, por uma denúncia, por agressão de alguém disposto a fazer justiça com as próprias mãos ou por uma queda de um lugar alto. Quando um pixador morre por meio da sua arte, é quando a negação da sua existência, por vias institucionais, é materializada.

É dessa forma que a pixação e o graffiti podem ser compreendidas como letramentos de reexistência ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
; 2011) e pautadas no paradigma transperiférico ( Windle et al., 2020WINDLE, J. et al. Towards a transperipheral paradigm: an agenda for socially engaged research. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 59, p. 1563-1576, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvgW4ykxknzdNztp/abstract/?lang=en. Acesso em: 10 de maio de 2023
https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvg...
). Por se tratar de uma prática insubordinada, incontrolável, e uma presença “fantasmática” que narra e se apropria do espaço urbano por vias que a legitimidade e a ilegitimidade não alcançam.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um contexto em que a educação formal no Brasil figura como uma das últimas prioridades e, ademais, contribui para a manutenção do status quo, buscando adestrar os corpos-sujeitos e formar uma mão de obra adepta, a inserção de temas como o hip-hop e a pixação no currículo escolar confronta os interesses políticos dos gestores urbanos.

Portanto, defender essas práticas – o graffiti e a pixação – como letramentos legítimos de sobrevivências ( Lopes, 2017LOPES, A. C. et al. Desregulamentando dicotomias: transletramentos, sobrevivências, nascimentos. Trab. linguist. apl., Campinas, v. 56, n. 3, p. 753-780, dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132017000300753&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 Feb. 2023.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
), reexistências ( Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
), conter-literacies ( Conquergood, 2004CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004.; Pennycook, 2010PENNYCOOK, A. Spatial narrations: Graffscapes and city souls. In: JAWORSKI, A. THURLOW, C. (eds.). Semiotic Landscapes: Language, Image, Space, A&C Black, 2010, p. 137-150.) em consonância com o paradigma transperiférico ( Windle et al, 2020 WINDLE, J. et al. Towards a transperipheral paradigm: an agenda for socially engaged research. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 59, p. 1563-1576, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvgW4ykxknzdNztp/abstract/?lang=en. Acesso em: 10 de maio de 2023
https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvg...
), é um papel primordial da Linguística Aplicada Crítica, a fim de uma educação que busque a ascensão e a autonomia dos corpos-sujeitos.

Além disso, pelo contexto educacional em que o Brasil se encontra atualmente, é necessário que professores, gestores e a comunidade escolar adotem uma postura mais crítica a fim de transgredir um sistema de ensino tradicional que ignora a subjetividade dos sujeitos, que corrobora na manutenção do status quo e que dociliza os corpos-sujeitos. A língua, quando tratada como prática social, é uma ferramenta de poder e de combate ao silenciamento de professores, alunos, escola, universidade e comunidade.

Por fim, consiste em demonstrar que as mensagens presentes no graffiti e na pixação, ainda que inscritas de forma codificada, ou que sejam uma expressão de afeto, manifestação política, possuem em sua essência a apropriação de territórios existenciais e perceber a cidade como um espaço interativo por meio da linguagem. Refere-se também à maneira pela qual a nossa memória é narrada nessas paisagens e como queremos que as nossas existências sejam notadas e, sobretudo, ressignificadas.

REFERÊNCIAS

  • ALIM, S. H. Critical Hip-Hop Language Pedagogies: Combat, Consciousness, and the Cultural Politics of Communication. Journal of Language, Identity, and Education, v. 6, n. 2, p. 161-176, 2007. DOI: https://doi.org/10.1080/15348450701341378
    » https://doi.org/10.1080/15348450701341378
  • BRIGHENTE, M. F.; MESQUIDA, P. Michel Foucault: corpos dóceis e disciplinados nas instituições escolares. In: PROCCEEDINGS of I Seminário Internacional de Representações Sociais, Subjetividade e Educação. Curitiba, PUC-PR, 2011. Disponível em: https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2011/4342_2638.pdf Acesso em: 20 de março de 23.
    » https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2011/4342_2638.pdf
  • CONQUERGOOD, D. et al. Street Literacy. Handbook of Research on Teaching Literacy Through the Communicative and Visual Arts: Sponsored by the International Reading Association, v. 1, p. 354, 2004.
  • DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. 432p.
  • FERRELL, J. Crimes of Style: Urban Graffiti and the Politics of Criminality. London: Routledge, 1996.
  • FORMAN, M.; NEAL, M. A. That’s the Joint! The Hip-hop Studies Reader. New York: Routledge, 2004. 648p.
  • GITAHY, C. O que é graffiti. São Paulo: Brasiliense, 1999. 66p.
  • JAWORSKI, A.; THURLOW, C. (eds.). Semiotic Landscapes: Language, Image, Space. London: A&C Black, 2010. 305p.
  • LOPES, A. C. et al. Desregulamentando dicotomias: transletramentos, sobrevivências, nascimentos. Trab. linguist. apl., Campinas, v. 56, n. 3, p. 753-780, dez. 2017. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132017000300753&lng=en&nrm=iso Acesso em: 10 Feb. 2023.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-18132017000300753&lng=en&nrm=iso
  • MATTOS, A. M. de A. Novos letramentos, ensino de língua estrangeira e o papel da escola pública no século XXI. Revista X, v. 1, n. 1, p. 33-41. 2011. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/rvx.v1i1.2011.22474
    » https://doi.org/10.5380/rvx.v1i1.2011.22474
  • MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
  • ORLANDI, E. P. A Casa e a Rua: uma relação política e social. Educação & Realidade, v. 36, n. 3, p. 693-703, 2011. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/3172/317227058008.pdf Acesso em: 01 de jan. 2023.
    » https://www.redalyc.org/pdf/3172/317227058008.pdf
  • ORLANDI, E. P. Cidade dos sentidos. Campinas: Pontes, 2004.
  • PENNYCOOK, A. Critical applied linguistics. In: DAVIES, A.; ELDER, C. (eds.). The Handbook of Applied Linguistics. Hoboken: Blackwell Publishing, p. 784-807, 2004.
  • PENNYCOOK, A. Uma Linguística Aplicada transgressiva. In: MOITA LOPES, L. P. da (org.). Por uma Lingüística Aplicada Indisciplinar. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. p. 85-105.
  • PENNYCOOK, A. Language, localization, and the real: Hip-hop and the global spread of authenticity. Journal of Language, Identity, and Education, v. 6, n. 2, p. 101-115, 2007. DOI: https://doi.org/10.1080/15348450701341246
    » https://doi.org/10.1080/15348450701341246
  • PENNYCOOK, A. Spatial narrations: Graffscapes and city souls. In: JAWORSKI, A. THURLOW, C. (eds.). Semiotic Landscapes: Language, Image, Space, A&C Black, 2010, p. 137-150.
  • PENNYCOOK, A. Language as a Local Practice. Abingdon: Routledge, 2010.
  • PRICE, E. G. Hip-Hop Culture. Santa Barbara: ABC-CLIO, 2006. 376p.
  • SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
    » http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf
  • WINDLE, J. et al. Towards a transperipheral paradigm: an agenda for socially engaged research. Trabalhos em Linguística Aplicada, v. 59, p. 1563-1576, 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvgW4ykxknzdNztp/abstract/?lang=en Acesso em: 10 de maio de 2023
    » https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvgW4ykxknzdNztp/abstract/?lang=en
  • 1
    Este artigo é um desdobramento de uma pesquisa de mestrado orientada pela Professora Dra. Andréa Machado de Almeida Mattos, Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG.
  • 2
    Entre os elementos do hip-hop estão: o break (street) dance, o MC e o DJ, o graffiti e o rap ( Ferrell, 1996FERRELL, J. Crimes of Style: Urban Graffiti and the Politics of Criminality. London: Routledge, 1996.; Forman, 2004FORMAN, M.; NEAL, M. A. That’s the Joint! The Hip-hop Studies Reader. New York: Routledge, 2004. 648p.; Price, 2006PRICE, E. G. Hip-Hop Culture. Santa Barbara: ABC-CLIO, 2006. 376p.; Souza, 2009SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência: culturas e identidades no movimento do hip-hop. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada) – Instituto de Estudos da Linguagem, Unicamp, Campinas, 2009. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/269280/1/Souza_AnaLuciaSilva_D.pdf. Acesso em: 09 de dezembro de 2022.
    http://repositorio.unicamp.br/bitstream/...
    ; Pennycook, 2011PENNYCOOK, A. Language as a Local Practice. Abingdon: Routledge, 2010.).
  • 3
    Tradução minha, assim como em todos os demais trechos traduzidos a partir de textos em inglês.
  • 4
    Conforme Foucault (2010), “É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que poder ser transformado e aperfeiçoado. [...] Nesses esquemas de docilidade, em que o século XVIII teve tanto interesse, o que há de tão novo? Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (Foucault, 2010 apud Brighente; Mesquida, 2011, p. 3BRIGHENTE, M. F.; MESQUIDA, P. Michel Foucault: corpos dóceis e disciplinados nas instituições escolares. In: PROCCEEDINGS of I Seminário Internacional de Representações Sociais, Subjetividade e Educação. Curitiba, PUC-PR, 2011. Disponível em: https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2011/4342_2638.pdf. Acesso em: 20 de março de 23.
    https://educere.bruc.com.br/arquivo/pdf2...
    ).
  • 5
    Utilizarei os termos “pixação”, “pixadores” e “pixo” com x por ser a grafia utilizada nas ruas e entre os atores sociais do objeto de estudo deste trabalho.
  • 6
    Nessa perspectiva, “escrita do graffiti” refere-se à tag e ao pixo (no contexto do Brasil).
  • 7
    O termo “marginal” refere-se ao estigma do movimento do hip-hop por se tratar de um movimento majoritariamente negro e marginalizado. Passa então a ser periférico, no contexto de São Paulo, pois o movimento migrou para a periferia da capital paulista.
  • 8
    Metáfora da montagem/colcha de retalhos que explica o conceito de bricolagem ( Denzin e Lincoln, 2006DENZIN, N. K.; LINCOLN, Y. S. O planejamento da pesquisa qualitativa: teorias e abordagens. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006. 432p.).
  • 9
    Por se tratar de pesquisa em que parte da fonte primária de informação é o ser humano, o projeto de pesquisa foi previamente enviado para aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (COEP), por meio de sua vinculação ao projeto principal intitulado “Letramentos, Cidadania e Justiça Social: novos caminhos para a Educação Crítica no Brasil”, que tem como investigadora principal a Professora Dra. Andréa Machado de Almeida Mattos, e obteve aprovação em 16/01/2020, sob o número CAAE 23101119.1.0000.5149.
  • 10
    Os dados serão apresentados em forma de excertos. Tais excertos não sofreram nenhum tipo de correção ou intervenção por parte da pesquisadora e serão apresentados exatamente do modo como foram produzidos. Pequenas explicações foram introduzidas entre parênteses ( ) quando se julgou necessário esclarecer algo para o leitor.
  • 11
    Em excertos, realces nossos.
  • 12
    Ladies Letters
  • 13
    Crew de mulheres de Minas Gerais

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2023
  • Aceito
    05 Set 2023
Faculdade de Letras - Universidade Federal de Minas Gerais Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Letras, Av. Antônio Carlos, 6627 4º. Andar/4036, 31270-901 Belo Horizonte/ MG/ Brasil, Tel.: (55 31) 3409-6044, Fax: (55 31) 3409-5120 - Belo Horizonte - MG - Brazil
E-mail: rblasecretaria@gmail.com