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Negras guerreiras: o lugar da memória na performance insurgente de uma artista de periferia

Black Warriors: The Place of Memory in the Insurgent Performance of a Peripheral Artist

RESUMO:

Partindo de uma postura transdisciplinar e transperiférica sobre a produção e circulação de conhecimento, esse texto busca, a partir da obra musical de uma artista negra, independente e periférica, refletir sobre o papel da memória como instrumento tático de resistência e ressignificação do povo negro – mais especificamente da mulher negra – na sociedade brasileira. Tendo como perspectivas teóricas e analíticas autoras como Leda Martins (2003)MARTINS, L. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, Santa Maria, SC, n. 26, p. 63-81, jun. 2003. e Lélia Gonzalez (1984)GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Rio de Janeiro, p. 223-244, 1984., procuro mostrar como a música, por meio da interpretação, da letra e do gênero sonoro, possibilita a mobilização dessa memória por meio de performances periféricas insurgentes diante de lógicas de opressão marcadas pelo racismo e o sexismo. Essas performances constroem-se dentro de um cronotopo periférico em contraposição a cronopolítica racista. Por fim, o texto reflete sobre como o resultado dessa dinâmica possibilita a construção de saberes dentro de uma agenda socialmente engajada de pesquisa e de produção de conhecimento.

PALAVRAS-CHAVE:
memória; ancestralidade; mulher negra; performance; cronopolítica

ABSTRACT:

Starting from a transdisciplinary and transperipheral stance on the production and circulation of knowledge, this text seeks to reflect on the role of memory as a tactical instrument of resistance and resignification of black people – more specifically black women – in Brazilian society, based on the musical work of a black, independent and peripheral artist. Taking as theoretical and analytical perspectives authors such as Leda Martins (2003)MARTINS, L. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, Santa Maria, SC, n. 26, p. 63-81, jun. 2003. and Lélia Gonzalez (1984)GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Rio de Janeiro, p. 223-244, 1984., I try to show how music, through interpretation, lyrics and sound genre, makes it possible to mobilise this memory through insurgent peripheral performances in the face of logics of oppression marked by racism and sexism. These performances are constructed within a peripheral chronotope in opposition to racist chronopolitics. Finally, the text reflects on how the result of this dynamic enables the construction of knowledge within a socially engaged agenda of research and knowledge production.

KEYWORDS:
memory; ancestry; black woman; performance; chronopolitics

1 Introdução

Foi em um programa online, durante a fase mais aguda e mortal da pandemia de Covid-19, que conheci Nilze Benedicto. O isolamento naquele momento era fundamental para que mantivéssemos nossa integridade física e moral. Afinal, o simples ato de sair pela porta de casa poderia levar-nos a um exponencial crescimento das taxas de contaminação e de óbito. Nilze, investida de sua vontade de cantar e compartilhar com a audiência sua obra e sua militância de mulher negra e periférica, naqueles tempos de infinitas lives, cantou e conquistou o público. Diz Favret-Saada (2005)FAVRET-SAADA, J. Ser afetado. Tradução: Paula Siqueira. Revisão: Tânia Stolze Lima. Cadernos de Campo, São Paulo, v. 13, n. 13, p. 155-161, 2005. que é preciso deixar-se encantar pelo outro e sua magia quando se propõe a realizar um trabalho etnográfico. Pois, assim se fez comigo, no momento em que esta cantora de voz grave e presença firme, narrou e exaltou, por meio de suas composições e sua performance, suas antepassadas guerreiras que por terras brasilis lutaram, resistiram e criaram táticas para sobreviver e salvar os seus da terrível lógica patriarcal de exploração e opressão no sistema colonial brasileiro. As lives musicais na pandemia pareciam uma nova forma de resistência daquele mesmo povo, outrora escravizado, e naquele momento, submetido a condições de extrema vulnerabilidade econômica e social.

Com base nesse primeiro contato com o trabalho da artista que trouxe para sua audiência o tema das “mulheres negras no samba”, resgatando importância da sua ancestralidade artística, busco nesse texto fazer uma reflexão sobre como a memória pode ser mobilizada como instrumento de resistência e ressignificação do povo negro na sociedade brasileira. Tendo como perspectiva analítica a ideia de Leda Martins (2003)MARTINS, L. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, Santa Maria, SC, n. 26, p. 63-81, jun. 2003. de que a memória se recria por meio da performance, não somente como hábito, mas como conhecimento tecnicamente praticado, utilizo-me metodologicamente da análise das performances narrativas ( Moita Lopes, 2009MOITA LOPES, L. P. A performance narrativa do jogador Ronaldo como fenômeno no esporte e no sexo em um jornal carioca: multimodalidade, posicionamento e iconicidade. Revista da Anpoll, [S. l.], v. 27, p. 129-157, 2009.; Freitas; Moita Lopes, 2019FREITAS, L. F. R. de.; MOITA LOPES, L. P. da. Vivenciando a outridade: escalas, indexicalidade e performances narrativas de universitários migrantes. Revista Brasileira de Linguística Aplicada, Belo Horizonte, v. 19, n. 1, p. 147-172, 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/1984-6398201913696. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbla/a/Mpj6nqv6kcTHQFC9RjdZz8N/abstract/?lang=pt. Acesso em: 12 dez. 2021.
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) de Nilze para entender como ela performatiza histórias e signos do passado escravocrata para insurgir contra o “tempo racial branco, a cronopolítica branca, [que] continua a estruturar nossos entendimentos dominantes e julgamentos normativos sobre o passado e o presente da ordem mundial contemporânea.” ( Mills, 2020, p. 16MILLS, C. W. The Chronopolitics of Racial Time. Time & Society, [S. l.], v. 29, n. 2, p. 297-317, May 2020. DOI: 10.1177/0961463X20903650. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0961463X20903650 . Acesso em: 12 maio 2023.
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). Como ela cria sua performance periférica insurgente na contemporaneidade racista brasileira.

Dito isso, esse texto está ancorado, em parte, nos dados oriundos da pesquisa que desenvolvo desde 2021 sobre as performances narrativas de artistas periféricos em tempos de Covid-19 1 1 Pesquisa de pós-doutorado intitulada “Sons da pandemia: um estudo das narrativas de sobrevivência de artistas populares sobre moradia e trabalho em tempos de COVID-19” e financiada pela FAPERJ/PDR-10. Todos os dados dessa pesquisa são públicos e estão disponíveis em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLhFtChZFuDHTY0vV2P1bc2yYTNh3U2pt8. . Aqui duas perspectivas centrais e norteadoras para a reflexão que busco fazer. A primeira parte de uma visão transdisciplinar que aproxima trabalhos da sociologia urbana – minha área de formação inicial – e da Linguística Aplicada – área que atuo e dialogo atualmente. Partindo de obras que apontam para a necessidade de reflexão crítica sobre os processos de formação e consolidação desigual dos espaços urbanos ( Rolnik, 2015ROLNIK, R. Guerra dos mundos – A colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.; Machado da Silva, 2016MACHADO DA SILVA, L. Urbanização x remoção. In: MACHADO DA SILVA, L. Fazendo a cidade: trabalho, moradia e vida local entre as camadas populares urbanas. Rio de Janeiro: Mórula, 2016. p. 45-60. , 2002MACHADO DA SILVA, L. A. A continuidade do “problema da favela”. In: OLIVIERA, L. L. (org.). Cidade: histórias e desafios. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2002. p. 220-237.; Kowarick, 1979KOWARICK, L. A espoliação urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1979.) e sua hermenêutica elitista e estigmatizante que organiza discursivamente leituras preconceituosas a respeito das populações e seus modos de vida dentro das periferias urbanas, como subúrbios e favelas ( Oliveira, 2018OLIVEIRA, B. C. S. “Não tem essa de separação, aqui é tudo Complexo do Alemão!”: uma etnografia dos espaços urbanos em um conjunto residencial no Rio de Janeiro. 2018. 270 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.; Fernandes, 2011FERNANDES, N. da N. O rapto ideológico da categoria subúrbio: Rio de Janeiro 1858/1945. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011.), procuro desenvolver a crítica sobre a interpretação historicamente negativa de signos que formam esses lugares e sua gente, bem como seus desdobramentos na vida prática dessa população. A consolidação dessa construção semiótica hegemônica, com forte conteúdo racista e sexista, tem levado a elaboração e a implementação de políticas públicas que violentam cotidianamente o direito de existir dessa população, seja por meio de inúmeras ações de remoções de moradias populares nos morros ( Gonçalves, 2013GONÇALVES, R. S. Favelas do Rio de Janeiro – história e direito. Rio de Janeiro: Pallas; Ed. PUC-Rio, 2013.; Valladares, 1978VALLADARES, L. do P. Passa-se uma casa: análise do programa de remoções de favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1978.), seja por meio de projetos culturais que enxergam no outro periférico o sujeito da salvação civilizatória ( Facina, 2019FACINA, A. Cultura em tempo de perigo. In: LOPES, A. C.; FACINA, A.; SILVA, D. N. (org.). Nó em pingo d’água: sobrevivência, cultura e linguagem., Rio de Janeiro: Mórula; Florianópolis, SC: Insular, 2019. p. 99-108.; D’Andrea, 2013D’Andrea, T. P. A formação dos sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. Orientadora: Vera da Silva Telles. 2013. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2013.), e principalmente, por meio de ações policiais e de grupos de extermínio da população negra das favelas e “quebradas” brasileiras ( Hirata; Grillo; Dirk, 2021HIRATA, D.; GRILLO, C.; DIRK, R. Operações Policiais no Rio de Janeiro (2006-2020). Da lacuna estatística ao ativismo de dados. Runa, Buenos Aires, v. 42, n. 1, p. 65-82, 2021. DOI: https://doi.org/10.34096/runa.v42i1.8396. Disponível em: http://revistascientificas.filo.uba.ar/index.php/runa/article/view/8396 . Acesso em: 1 ago. 2023.
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; Manso, 2020MANSO, B. A república das milícias: dos esquadrões da morte a Era Bolsonaro. São Paulo: Editora Todavia, 2020.; Carvalho, 2019CARVALHO, M. B. A prática do extermínio como dispositivo de segurança no Rio de janeiro. [Syn]thesis, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 26-36, jan./jun. 2019.).

A segunda orienta-se por uma leitura transperiférica sobre a construção de conhecimento. Aqui parto do entendimento de que é preciso romper “com paradigmas que situam, de um lado, a produção de conhecimento sobre desigualdade e, de outro lado, os sujeitos e territórios que se engajam com a contestação dessa desigualdade a partir de posicionalidades marginais.” ( Windle et al., 2020, p. 1564 WINDLE, J et al. Por um paradigma transperiférico: uma agenda para pesquisas socialmente engajadas. Trab. Linguist. Apl. Campinas, SP, v. 59, n. 2, p. 1563-1576, maio/ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/01031813749651220200706. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvgW4ykxknzdNztp/?lang=pt . Acesso em: 14 ago. 2023.
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). As narrativas que serão analisadas nesse texto originam-se das composições – músicas e letras –, das performances artísticas e dos diálogos entre mim e está compositora e intérprete negra, moradora de uma periferia do município de São Gonçalo/RJ. As obras e as performances de Nilze Benedicto resgatam as projeções femininas das “mulheres negras guerreiras” que aturam ao longo das suas trajetórias dentro de uma perspectiva antirracista e feminista. Para Leda Martins (2003)MARTINS, L. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, Santa Maria, SC, n. 26, p. 63-81, jun. 2003. esse movimento seria a mobilização de “reminiscências ativas” que se tornariam força-motriz no presente para reivindicações históricas na vida cotidiana. Desse modo, ao estabelecer essa ponte entre diferentes, mas complementares saberes, busco uma “aproximação entre a produção de saber ‘sobre’ as periferias com a produção de conhecimento ‘das’ periferias” ( Windle et al., 2020, p. 1565 WINDLE, J et al. Por um paradigma transperiférico: uma agenda para pesquisas socialmente engajadas. Trab. Linguist. Apl. Campinas, SP, v. 59, n. 2, p. 1563-1576, maio/ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/01031813749651220200706. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvgW4ykxknzdNztp/?lang=pt . Acesso em: 14 ago. 2023.
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), considerando que esse texto poderá circular entre pares não acadêmicos, fazendo com que tais discussões possibilitem a reflexão sobre a necessidade de espaços de diálogo ‘entre’ periferias, regionais, nacionais e globais.

Diante das perspectivas expostas, cabe ainda uma consideração de suma importância para prosseguirmos no debate que proponho. Antes mesmo de iniciar a escrita desse texto pensei se eu deveria desenvolver uma análise sobre o trabalho de uma mulher negra, reconhecendo de partida o meu lugar privilegiado como autor homem branco e cis. Achei a princípio que não deveria entrar nessa seara acadêmica. No entanto, lendo autoras como Bárbara Carine (2023)CARINE, B. Como ser um educador antirracista: para familiares e professores. São Paulo: Editora Planeta, 2023. tenho pensado que, por um lado, é importante que eu me coloque nesse debate como um intelectual não negro, racializando a branquitude e contribuindo para a desconstrução da premissa colonial do branco como ser universal. Um dever ético e político do meu trabalho intelectual.

Por outro, que a luta antirracista é de todos, mesmo considerando que é a partir dos coletivos e movimentos negros organizados que se manifesta a insurgência física e intelectual capaz de reconfigurar a lógica do racismo estrutural ( Almeida, S., 2020ALMEIDA, S. L. Racismo estrutural. São Paulo: Editora Jandaia, 2020.). Acredito que, refletir sobre o trabalho artístico de uma mulher negra em um contexto de permanência feroz do racismo e de demais preconceitos direcionados a outros grupos minoritarizados ( Cavalcanti, 2011CAVALCANTI, M. C. Multilinguismo, transculturalismo e o (re)conhecimento de contextos minoritários, minoritarizados e invisibilizados. In: MAGALHÃES, M. C. C.; FIDALGO, S. S. (org.). Questões de método e de linguagem na formação docente. Lisboa: Mercado de Letras. p. 171-185.) – tanto na sua dimensão ordinária da vida cotidiana, como por meio de diferentes mecanismos jurídico-institucionais de manutenção da ordem hegemônica branca –, faz com que um intelectual antirracista como eu não se contente em apensas denunciar o racismo, mas agir contra ele. Acredito que trabalhar com a obra de uma artista como Nilze em uma perspectiva transdisciplinar e transperiférica, acima de tudo dialógica, me possibilita atuar ao lado dela no combate ao racismo, evidenciando assim práticas que ressignificam o lugar do negro e da negra na sociedade brasileira, principalmente no que se refere a produção de conhecimento oriunda das periferias e favelas das cidades.

2 Formação do espaço e memória no corpo: a ancestralidade nas performances narrativas periféricas

Quando uma mulher negra fala, ela não fala sozinha. Ela traz consigo todos os seus antepassados, pois sua ação está ancorada na memória coletiva de resistência do povo negro na sociedade brasileira.

(Mulher negra participante do encontro “Vamos desenrolar”)

Antes de iniciarmos o debate em torno da obra e da performance de Nilze Benedicto gostaria de compartilhar com a/o leitor/a uma passagem que considero importante para pensarmos alguns conceitos que nortearão as análises sobre as performances, as memórias e os contextos de artistas como ela no período da pandemia, mais especificamente a partir de espaços periféricos de moradia. Em um encontro com mulheres ocorrido em 2016 no conjunto de favelas do Complexo do Alemão 2 2 O Complexo do Alemão (ou CPX) é um bairro localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, mais precisamente em uma localidade reconhecida como subúrbio da Leopoldina. Sua denominação como bairro ocorreu por meio da Lei Nº 2055 de 9 de dezembro de 1993. Este bairro é formado por um conjunto de favelas que variam em seu quantitativo de acordo com as fontes pesquisadas (entre 12 e 15 favelas). Historicamente, o Complexo do Alemão foi construído discursivamente por meio da mídia corporativa e dos gestores públicos como “o QG do Comando Vermelho” (uma organização criminosa que controla o comércio de drogas ilícitas na região) e “Faixa de Gaza” (referência a área de conflito armado quase que permanente entre judeus e palestinos na área da Cisjordânia/Palestina) ( Oliveira, 2018). , ouvi a frase que coloco na epígrafe acima de uma liderança comunitária feminina. O tema era “Moradia popular nas favelas”. Muitas mulheres presentes ainda encontravam-se em situação de desabrigadas devido aos fortes impactos causados pelas chuvas ocorridas no Rio de Janeiro em 2010. Essa liderança trouxe para aquele debate público o histórico de perdas materiais e mortes das populações faveladas, ora causadas pelos desastres “naturais” anunciados por uma lógica excludente e segregadoras de ocupação dos espaços urbanos ( Cunha et al., 2015 CUNHA, M. et al. O desastre no cotidiano da favela: reflexões a partir de três casos no Rio de Janeiro. O Social em questão, Rio de Janeiro, ano XVIII, n. 33, p. 95-122, 2015.), ora pelas ações violentas de remoção de favelas realizadas pelo poder público ao longo do século XX ( Abreu, M., 1987ABREU, M. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO; Jorge Zahar Editor, 1987.). Mais: ressaltava o papel protagonista das mulheres negras no processo de superação individual e coletiva diante da destruição e da urgência na busca por soluções para recomeçarem suas vidas. Outras mulheres presentes trouxeram para a roda de conversas nomes de antigas moradoras do Complexo do Alemão que tinham como referência na comunidade e entendiam como exemplos a serem seguidos. Ao longo da fala dessa liderança, outras mulheres compartilharam histórias muito parecidas fazendo com que todas demonstrassem um sentimento comum: o de pertencimento a uma mesma trajetória de vida na cidade.

Essa pequena passagem nos ajuda a pensar primeiramente sobre o contexto onde, como e por quem uma determinada performance narrativa é produzida e reproduzida, e quais e por que alguns signos são mobilizados em determinado tempo-espaço vivido. Desde suas origens, as periferias brasileiras foram (e continuam sendo) interpretadas geograficamente como espaços situados às margens das áreas mais desenvolvidas urbanisticamente e dos grandes centros financeiros. Em uma dimensão socioeconômica, são entendidas pelas agências governamentais como lugares de vivência de pessoas estratificadas nas classes sociais mais empobrecidas, tendo como maioria em seu perfil constitutivo grupos sociais historicamente subalternizados (principalmente pessoas que se reconhecem como nortistas, nordestinas/nos e negras/os) 3 3 Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) esses espaços são definidos como “aglomerados subnormais” tendo como principal característica “forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia – públicos ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação. No Brasil, esses assentamentos irregulares são conhecidos por diversos nomes como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, loteamentos irregulares, mocambos e palafitas, entre outros.” ( IBGE, 2019). . Consequentemente, foram construídas narrativamente pelas classes sociais mais abastadas de maneira negativa e estigmatizante como espaços da ausência e da violência endêmicas. No caso das favelas especificamente, Machado da Silva ( 2002, p. 3–4MACHADO DA SILVA, L. A. A continuidade do “problema da favela”. In: OLIVIERA, L. L. (org.). Cidade: histórias e desafios. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2002. p. 220-237.) ressalta que

a inegável criatividade dos favelados (que é, em grande parte, responsável pela própria heterogeneidade das favelas), sua capacidade de organizar-se e expressar-se das mais variadas formas e de conquistar direitos e reconhecimento simbólico, sempre esteve ‘encapsulada’, desde sua gênese como categoria social e por isto tem tido pouco efeito na mudança do padrão de integração urbana, funcionando antes como um imprevisto e indesejado mecanismo de reprodução de um modo fragmentado e fortemente hierarquizado de integração urbana.

Esse “encapsulamento” da favela – e assim poderíamos aproximar da ideia de “periferia”, ambas “categorias sociais” situadas à margem no processo de modernização e urbanização dos grandes centros urbanos pelos discursos hegemônicos –, que busca incessantemente apagar “a inegável criatividade dos favelados”, carrega ao longo da história o peso de seus aspectos materiais e simbólicos que atuam como construtores ideológicos do espaço. Na literatura mais difundida sobre a gênese das favelas e dos subúrbios ( Zaluar; Souza, 2006ZALUAR, A.; SOUZA, M. A. P. de. Introdução. In: ZALUAR, A.; SOUZA, M. A. P. de (org.). Um século de favela. Rio de Janeiro: FGV, 2006. p. 5-20.; Valladares, 2005VALLADARES, L. do P. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.; Gonçalves, 2013GONÇALVES, R. S. Favelas do Rio de Janeiro – história e direito. Rio de Janeiro: Pallas; Ed. PUC-Rio, 2013.; Fernandes, 2011FERNANDES, N. da N. O rapto ideológico da categoria subúrbio: Rio de Janeiro 1858/1945. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011.) três grandes movimentos no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro (então Capital Federal), que ocorreram de maneira sequenciada desde no final do século XIX, teriam fomentado o que ficou conhecido como o “Mito de origem das favelas”: o fim legal da escravidão (Lei Áurea/1888); a Guerra de Canudos (1896-1897); e o “bota-abaixo” das reformas urbanísticas de Pereira Passos (1902-1906).

Todos esses eventos, em grande medida, atuaram como demarcadores raciais do espaço, pois quando consideramos o processo de “libertação” dos escravizados, este não foi acompanhado de uma política de amparo e inserção social, fazendo com que a maioria de negros e negras recém-libertos procurassem abrigo e proteção nas encostas dos morros, à margem da cidade formal. Com relação a campanha do Exército brasileiro contra os Sertanejos de Canudos liderados por Antônio Conselheiro, aos soldados que retornaram da guerra (a maioria negros libertos), o governo federal concedeu terras no alto dos morros cariocas como forma de recompensa pelos “serviços prestados à república”. Algumas histórias remontam que o nome “favela” seria oriundo de uma planta comum naquela região do sertão da Bahia, e que foi encontrada nas primeiras ocupações em um local que ficou conhecido como “Morro da Favella”, atualmente Morro da Providência. No caso das reformas do prefeito Pereira Passos que visavam modernizar e sanear o centro da cidade, fazendo do Rio de Janeiro a “nova Paris”, esse movimento demoliu casebres, cortiços e todas as moradias consideradas insalubres pelo poder público que abrigavam em sua grande maioria famílias de negros e negras pobres, empurrando-os para os morros e subúrbios da cidade. O processo de ocupação e de formação urbana dessas periferias cariocas ainda seria impulsionada pela instalação de indústrias e pelos incentivos públicos a moradias populares às novas classes trabalhadoras brasileiras.

No entanto, é importante ressaltar que a formação inicial desses lugares de ocupação, moradia e sociabilidade de negras e negros na cidade – que não se restringem a necessária observação crítica sobre as precariedades materiais que assolam milhares de pessoas, mas deve ser impulsionado também pelo reconhecimento das suas potências criativas em diversas dimensões da vida cotidiana, como na culinária e na música –, é oriunda de movimentos de resistência a escravidão que ocorriam desde o século XVIII. Rafael Gonçalves de Almeida ( 2019, p. 48ALMEIDA, R. G. de. A ressignificação do mito de origem da favela pela arte de Maurício Hora. Espaço e Cultura, Rio de Janeiro n. 46, p. 45-60, jul./dez. 2019.) nos conta que

desde o século XVIII e especialmente durante todo o século XIX, as florestas das montanhas do Rio de Janeiro já abrigavam inumeras aglomerações de mocambos, casas de taipa, casas de pau-a-pique, enfim, casebres de todo tipo. […] Seus moradores sobreviviam do cultivo da mandioca, milho, feijão e outros alimentos básicos; do comércio do excedente que produziam; ou então do trabalho na cidade. Aliás, exatamente como os moradores das favelas faziam no início do século XX. Os habitantes desses assentamentos também eram majoritariamente negros, mas havia gente de todas as cores, de diversas origens étnico-raciais. Esses agrupamentos de casebres eram perseguidos pelas forças de segurança do Estado e considerados assentamentos ilegais. No entanto, na época, não chamavam esses agrupamentos de ‘favela’, seu nome era outro: era ‘quilombo’.

Todo esse processo de constituição dos espaços urbanos periféricos, bem como das práticas cotidianas para organizar a vida social passa primordialmente pelo papel político e social que as mulheres negras desempenharam (e ainda desempenham) em suas comunidades. Como nos contam Pereira, Allegreti e Magalhães (2022)PEREIRA, A. S.; ALLEGRETTI, M.; MAGALHÃES, L. “Nós, mulheres quilombolas, sabemos a dor uma da outra”: uma investigação sobre sororidade e ocupação. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 30, p. 1-20, 2022. DOI: https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO254033181. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadbto/a/cMFLyJTKkyTrYRgyVCsTdKD/?lang=pt . Acesso em: 2 ago. 2023.
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as mulheres quilombolas foram (e ainda são) fundamentais para que os quilombos continuem de pé e sobrevivam às tentativas de desestruturação e deslegitimação de suas existências. Para as autoras, as mulheres são as responsáveis por “transmitir as tradições, preservar os recursos naturais e cuidar do lar e da terra. Assim, os marcadores históricos de organização social e familiar orientam a produção e reprodução de seus papéis ocupacionais nesse contexto.” ( Pereira; Allegretti; Magalhães, 2022, p. 1PEREIRA, A. S.; ALLEGRETTI, M.; MAGALHÃES, L. “Nós, mulheres quilombolas, sabemos a dor uma da outra”: uma investigação sobre sororidade e ocupação. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, São Carlos, v. 30, p. 1-20, 2022. DOI: https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO254033181. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadbto/a/cMFLyJTKkyTrYRgyVCsTdKD/?lang=pt . Acesso em: 2 ago. 2023.
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). Quando observamos o papel das mulheres em favelas e periferias urbanas brasileiras, estas atuam como sujeitas estruturantes na defesa (física e moral) e na organização de suas comunidades familiares e estendidas 4 4 Um bom exemplo dessa capacidade de organização está na favela do Coroadinho, 4ª maior favela do Brasil, localizada em São Luís do Maranhão. O Coletivo Mulheres Negras da Periferia, criado em 2018, tem como objetivo desenvolver “ações feitas na favela para a favela”. O coletivo é formado por 12 mulheres responsáveis pelo projeto, tendo ainda a participação ativa de outras 32 voluntárias, todas negras e faveladas. Para mais informações sobre o coletivo, Cf. DICIONÁRIO DE FAVELAS MARIELLE FRANCO ( 2023). . Nunes e Veillette ( 2022, p. 1NUNES N. R. de A; VEILLETTE A-M. Mulheres de favelas e o (outro) feminismo popular. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 30, n. 1, p. 1-15, jan. / abr. 2022. DOI: https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n175556. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/3bYdp8tnKKy6D7FXbY8PCpm/?lang=pt . Acesso em: 1 ago. 2023
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) reforçam essa perspectiva trabalhando com “epistemologias feministas e decoloniais que nos permitem perceber as resistências geralmente invisibilizadas pela colonialidade do gênero e muitas vezes ignoradas pelo feminismo hegemônico” e trazem a ideia de “feminismo popular” para evidenciar casos de mulheres de favelas que são reconhecidas pelo seu ativismo social e político.

As falas daquelas mulheres – e as composições de Nilze Benedicto que veremos mais à frente – mobilizam signos que trazem à tona a memória dos antepassados, das referências geracionais, cujo efeito é a construção de identidades forjadas na resistência à opressão social, política e econômica ( Bamberg; Andrews, 2004BAMBERG, M.; ANDREWS, M. (org.) Considering Counter-Narratives. Narrating, Resisting, Making Sense. Philadelphia: John Benjamins, 2004.) e colonial ( Bispo, 2023BISPO, A. A terra que dá, a terra quer. São Paulo: Ubu Editora, 2023.). Essas identidades não são como uma essência fixa, mas os efeitos das próprias performances narrativas ( Borba, 2014BORBA, R. A linguagem importa? Sobre performance, performatividade e peregrinações conceituais. Cadernos Pagu, Campinas, n. 43, p. 443-473, 2014.) de sujeitos/as e seus espaços de vivência historicamente estigmatizados e subalternizados. Ao performativizarem a reconstrução de histórias de suas antepassadas, podemos afirmar que, inspirado em Leda Martins ( 2003, p. 66MARTINS, L. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, Santa Maria, SC, n. 26, p. 63-81, jun. 2003.), a memória dessas mulheres se recria, não somente como hábito, mas como conhecimento tecnicamente praticado pelos “repertórios orais e corporais, gestos, hábitos, cujas as técnicas e procedimentos de transmissão são meios de criação, passagem, reprodução e de preservação dos saberes”. Para a autora, ao trazer à tona a memória dos antigos para fundamentar as lutas atuais, estariam as agentes mobilizando “reminiscências ativas”, signos resgatados de um passado quase esquecido e que, ao serem operacionalizados nas interações sociais e políticas, tornar-se-iam força-motriz no presente para reivindicações de demandas da vida cotidiana, bem como meio – ou esforço – para a ressignificação de sentidos sobre os próprios sujeitos demandantes e suas culturas. Há nesse sentido um conjunto de saberes compartilhados pelas gerações que ganha materialidade e força simbólica no tempo presente, no cotidiano da vida nas periferias brasileiras.

De forma mais ampla, quando privilegiamos na análise as perspectivas negra e feminina na construção de posicionamentos públicos e novas narrativas sobre elas mesmas e seus cotidianos, reconhecendo a legitimidade de suas histórias sobre seus espaços periféricos e seu povo, opomo-nos (em alguma medida) aos mecanismos instituídos pelo poder público – que muitas vezes atua em consonância com os interesses privados sobre o passado como mercadoria – de selecionar a memória que deve ser lembrada ou deve ser esquecida ( Fabrício; Borba, 2019FABRÍCIO, B.; BORBA, R. Remembering in Order to Forget: Scaled Memories of Slavery in the Linguistic Landscape of Rio de Janeiro. In: BLACKWOOD, R.; MACALISTER, J. (ed.) Multilingual Memories: Monuments, Museums and the Linguistic Landscape. London: Bloomsbury Publishing, 2019. p. 187-212.). Dessa maneira, a memória surge como “potência criativa, já que ao contrário de ser uma reprodução do passado, apresenta-se como uma elaboração do passado, dinamizada numa relação entre o eu e o outro” ( Abreu, R., 2016, p. 42ABREU, R. Memória social: itinerários poéticos-conceituais. Morpheus: Revista de Estudos Interdisciplinares em Memória Social, Rio de Janeiro, v. 9, n. 15, p. 41-66, 2016.). Quando grupos minoritarizados contam suas próprias histórias, no caso aqui as mulheres negras moradoras de favelas e demais periferias, tal movimento faz com que esse compartilhamento do passado no presente constitua-se como elemento central para a mobilização de uma memória coletiva muitas vezes fragmentada e dispersa entre elas. Criam a possibilidade de desconstrução de narrativas desfavoráveis e preconceituosas sobre populações e seus espaços historicamente subalternizados.

Desse modo, a reflexão que aqui elaboramos dialoga diretamente com a visão transperiférica que Joel Wildle e outros pesquisadores ( Windle et al., 2020 WINDLE, J et al. Por um paradigma transperiférico: uma agenda para pesquisas socialmente engajadas. Trab. Linguist. Apl. Campinas, SP, v. 59, n. 2, p. 1563-1576, maio/ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/01031813749651220200706. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvgW4ykxknzdNztp/?lang=pt . Acesso em: 14 ago. 2023.
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) defendem sobre os processos de ruptura com conhecimentos hegemônicos sobre os espaços e os saberes periféricos na cidade. Para eles, trazer tais performances narrativas para o debate acadêmico contribui para “a construção de uma agenda socialmente engajada de pesquisa e de agência” ( Windle et al., 2020, p. 1565 WINDLE, J et al. Por um paradigma transperiférico: uma agenda para pesquisas socialmente engajadas. Trab. Linguist. Apl. Campinas, SP, v. 59, n. 2, p. 1563-1576, maio/ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/01031813749651220200706. Disponível em: https://www.scielo.br/j/tla/a/DDWjJ7PTvgW4ykxknzdNztp/?lang=pt . Acesso em: 14 ago. 2023.
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). A periferia assim pode ser entendida para além da sua dimensão física fronteiriça no tecido social urbano.

Assim, nossa perspectiva encontra-se em confluência com o que Baumann e Briggs ( 2006, p. 190BAUMANN, R.; BRIGGS, C. Poética e Performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Tradução: Vânia Z. Cardoso. Revisão: Luciana Hartmann. ILHA – Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 8. n. 1/2, p. 185-229, 2006.) dizem ao afirmarem a importância de

uma maior atenção à dialética entre a performance e seu contexto sociocultural, político e econômico mais amplo, [onde] enfatizamos o modo como a padronização poética extrai discursos de certos eventos de fala em particular, e explora sua relação com uma diversidade de contextos sociais.

Nesse sentido, mesmo entendendo que um determinado local está inserido em um sistema mundo multisituado por meio de uma permanente “circulação de significados, objetos e identidades culturais em um espaço-tempo difuso” ( Marcus, 2001, p. 111MARCUS, G. E. Etnografía en/del sistema mundo. El surgimiento de la etnografía multilocal. Alteridades, Ciudad de México, v. 11, n. 22, p. 111-127, julio-diciembre 2001.), podemos considerar que as periferias urbanas produzem linguagens e performances próprias, resultados de seus processos históricos e práticas cotidianas de formação socioespacial.

3 Cronotopo periférico contra a cronopolítica racista: a performance insurgente

Ao aproximarmos periferias urbanas – as favelas e os quilombos – na reflexão sobre as memórias performativizadas de mulheres negras e periféricas, objetivamos mostrar que estes espaços foram historicamente submetidos a uma lógica de subalternidade circunscrito nos processos de formação das cidades do sul global, cujo princípio norteador foi, e continua sendo, a colonialidade. A perspectiva decolonial da crítica sobre esses processos de dominação objetiva – para um tipo de consumo para atender os fins do mercado global – e subjetiva – para a manutenção do controle ideológico sobre a produção de conhecimento na contemporaneidade – tem contribuído para a desnaturalização desse sistema de pensamento que organiza hierarquicamente as estruturas sociais e classifica grupos sociais, cuja a projeção do homem branco e eurocentrado se dá como o topo da escalada evolucionista a ser alcançado pela humanidade ( Mignolo, 2000MIGNOLO, W. Local Histories/Global Designs: Essays on the Coloniality of Power, Subaltern Knowledges and Border Thinking. Princeton: Princeton University Press, 2000. , 2003MIGNOLO, W. Historias locales /diseños globales: colonialidad, conocimientos subalternos y pensamiento fronterizo. Madrid: Akal, 2003.; Quijano, 1992QUIJANO, A. Colonialidad y modernidad-racionalidad. In: BONILLA, H. (ed.). Los conquistados. 1492 y la población indígena de las Américas. Quito: Tercer Mundo Editores; Flacso; Ediciones LibriMundi, 1992. p. 437-447. , 2000QUIJANO, A. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of World-Systems Research, San Francisco, CA, v. XI, n. 2, p. 342-386, 2000.; Rivera Cusicanqui, 2010RIVERA CUSICANQUI, S. Ch’ixinakax utxiwa: una reflexión sobre prácticas y discursos descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010.).

Partindo desse pressuposto teórico e político decolonial, consideramos que o tempo e o espaço se colocam como dimensões que atuam em conjunto para a construção social desses grupos sociais periféricos, situando-os simbólica e materialmente no mundo. Mikhail Bakhtin (1981)BAKHTIN, M. The Dialogic Imagination. Michel Holquist (ed.). Austin: Universidade do Texas Press, 1981. nos ajuda a pensar essa questão quando afirma que tempo e espaço são duas categorias interdependentes. Em sua obra “The dialogic imagination” há uma explicação categórica dessa inseparabilidade definida como “cronotopo”:

Literalmente, tempo-espaço. Unidade de análise para estudar os textos segundo a relação e a natureza das categorias temporais e espaciais representadas. O carácter distintivo deste conceito em relação à maior parte das outras utilizações do tempo e do espaço na análise literária reside no facto de nenhuma das categorias ser privilegiada; são totalmente interdependentes. O cronótopo é uma ótica que permite ler os textos como raios X das forças em ação no sistema cultural de onde provêm.

( Bakhtin, 1981, p. 425–426, tradução nossaBAKHTIN, M. The Dialogic Imagination. Michel Holquist (ed.). Austin: Universidade do Texas Press, 1981.) 5 5 “Literally, ‘time-space.’ A unit of analysis for studying texts according to the ratio and nature of the temporal and spatial categories represented. The distinctiveness of this concept as opposed to most other uses of time and space in tirerary analysis lies in the fact that neither category is privileged; they are utterly interdependent. The chronotope is an optic for reading texts as x-rays of the forces at work in the culture system from which they spring.”

Segundo Blommaert e De Fina (2017)BLOMMAERT, J.; DE FINA, A. Chronotopic Identities: On the Timespace Organization of Who We Are. In: DE FINA, A.; IKIZOGLU, D.; WEGNER, J. (org.) Diversity and Super-diversity: Sociocultural Linguistic Perspectives. Washington, DC: Georgetown University Press, 2017. p. 1-15. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/311318286 . Acesso em: 22 dez. 2022
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, Bakhtin cunhou o termo cronotopo para apontar que a inseparabilidade do tempo e do espaço na ação humana, bem como os efeitos dessa inseparabilidade sobre ela que resultam em formas específicas de agência e identidade – ou seja, de performance. Esse é um ponto crucial para entendermos como os espaços são formados por uma série de acontecimentos resultantes das relações assimétricas de poder entre sujeitos políticos que, em uma determinada escala temporal, encontram-se em posições e condições de existência distintas na conformação da vida social. Sob a perspectiva temporal, os espaços são atravessados por diferentes temporalidades que se sobrepõem por meio das performances dos sujeitos inseridos em determinados locais com suas histórias e narrativas sobre os processos de formação desses mesmos espaços. As periferias de um modo geral resultam, exatamente, deste imbricamento cronotópico.

Nesse sentido, quando ouvimos as narrativas sobre o cotidiano dentro de determinados espaços periféricos – como nas favelas do Complexo do Alemão – buscamos contextualizar seu processo de formação dentro da lógica espaço-temporal da consolidação dos grandes centros urbanos contemporâneos. Simmel (1973)SIMMEL, G. A metrópole e a vida mental. Tradução: Sérgio Marques dos Reis. In. VELHO, O. G. (org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973. nos mostrou há tempos que a cidade moderna está imbuída de um espírito individualista, racionalizado e monetarizado, fazendo com que seu cronotopo atue na lógica da maximização de ganhos simbólicos e materiais a um nível atomizado do sujeito. As favelas, por exemplo, estão situadas cronotopicamente nesse “espírito da metrópole”.

No entanto, quando identificamos nas performances narrativas desses sujeitos subalternizados signos que constroem sentimentos de pertencimento coletivo a uma mesma trajetória de vida na cidade, percebemos que os cronotopos se cruzam e se sobrepõem naquele espaço vivido, pois, ao mesmo tempo em que mobilizam símbolos da opressão e da resistência ao processo colonial “de fora”, também compartilham valores que remetem a uma vida baseada no “espírito comunitário” que a ancestralidade carrega consigo. Ao mesmo tempo que realizam as denúncias contra ações governamentais que não consideram o tempo e o espaço das moradias no alto dos morros, inserem-se nas lógicas cronotópicas da produção e reprodução da vida cotidiana na cidade. Mesmo situados como moradores originários das periferias, esses sujeitos também circulam por outros espaços fora dos círculos periféricos fazendo com que signos periféricos sejam compartilhados para além dos recortes ideológicos que segregam geográfica e simbolicamente periferias da dita cidade formal e legal. Em contrapartida, valores e símbolos da “cidade mercado” também são incorporados aos processos interacionais e de negociações no âmbito da vida nas periferias.

Assim, podemos afirmar, com base no que Blommaert (2015)BLOMMAERT, J. Chronotopes, Scales, and Complexity in the Study of Language in Society. Rev. Anthropol., [S. l.], v. 44, p. 105-16, 2005. DOI: https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102214-014035. Disponível em: https://www.annualreviews.org/doi/full/10.1146/annurev-anthro-102214-014035 . Acesso em: 11 jan. 2023
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define como “contextualização”, que as performances narrativas podem ser entendidas como um processo de construção de sentidos praticados sobre os contextos observados. Em outras palavras, é a contextualização que possibilita a interpretação mais ampla da vida social sobre as interações que “constantemente evocam a cultura (e seus desdobramentos ou realização nelas) e a reinvestem com sua historicidade”. ( Blommaert, 2015, p. 108BLOMMAERT, J. Chronotopes, Scales, and Complexity in the Study of Language in Society. Rev. Anthropol., [S. l.], v. 44, p. 105-16, 2005. DOI: https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102214-014035. Disponível em: https://www.annualreviews.org/doi/full/10.1146/annurev-anthro-102214-014035 . Acesso em: 11 jan. 2023
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). Se utilizarmos como referência a maneira como Bakhtin constrói seus personagens, poderíamos dizer que tais sujeitos periféricos formariam assim padrões específicos de comportamento social que estão contidos em configurações espaço-temporais particulares ( Blommaert; De Fina, 2017BLOMMAERT, J.; DE FINA, A. Chronotopic Identities: On the Timespace Organization of Who We Are. In: DE FINA, A.; IKIZOGLU, D.; WEGNER, J. (org.) Diversity and Super-diversity: Sociocultural Linguistic Perspectives. Washington, DC: Georgetown University Press, 2017. p. 1-15. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/311318286 . Acesso em: 22 dez. 2022
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), mas em permanente diálogo com uma “gama de inferências contextuais-conversacionais [que] transcende o escopo do que é puramente produzido no contexto conversacional local e precisa incluir estruturas socioculturais mais amplas de conhecimento contextual” ( Blommaert, 2015, p. 107BLOMMAERT, J. Chronotopes, Scales, and Complexity in the Study of Language in Society. Rev. Anthropol., [S. l.], v. 44, p. 105-16, 2005. DOI: https://doi.org/10.1146/annurev-anthro-102214-014035. Disponível em: https://www.annualreviews.org/doi/full/10.1146/annurev-anthro-102214-014035 . Acesso em: 11 jan. 2023
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). Assim, no caso dos sujeitos periféricos, essas práticas cotidianas estariam amparadas por um cronotopo circunscrito numa sociedade desigual e marcada estruturalmente pelo racismo como o Brasil. Se estabelece, desse modo, um cronotopo periférico.

Esse cronotopo periférico constrói um tipo de performance periférica que está em permanente embate com as leituras vigentes sobre os modos de vida e os valores que formam as performances hegemônicas, estas que remetem a um padrão de comportamento associado às projeções do próprio indivíduo moderno – branco, altamente escolarizado, disciplinado, autocontrolado e imbuído de todo cálculo prospectivo sobre sua vida na constituição de seu self ( Mattos, 2006MATTOS, P. Sociologia política do reconhecimento: as contribuições de Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. São Paulo: AnnaBlume, 2006.; Souza, 2003SOUZA, J. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Editora da UFMG; Iuperj, 2003. , 2000SOUZA, J. Uma teoria crítica do reconhecimento. Lua Nova, São Paulo, n. 50, p. 133-158, 2000.). No entanto são incorporados às estruturas de produção e acumulação das cidades contemporâneas, só que de maneira hierarquizada, fragmentada e estigmatizada/precarizada. Aqueles que detém as performances hegemônicas e ocupam as posições de poder e de controle da distribuição da riqueza produzida nas cidades atuam como gestores de uma metrópole em plena expansão em relação às periferias, tratando-as como meras neocolônias de exploração. Algumas dimensões dessa relação se exemplificam de maneira evidente, como no processo de hiper espoliação da juventude negra de periferia que atua profissionalmente na informalidade por meio de uma série de serviços por aplicativos digitais (de entrega de mercadorias, de transporte entre outros) e que foi denominado como “uberização do trabalho” ( Antunes, 2020ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.). Assim, “quando se ‘encaixam’, respondem a quadros existentes de identidade reconhecível, enquanto que quando não encaixam e estão ‘fora do lugar’, ‘fora da ordem’ ou são transgressivos” ( Blommaert; De Fina, 2017, p. 3BLOMMAERT, J.; DE FINA, A. Chronotopic Identities: On the Timespace Organization of Who We Are. In: DE FINA, A.; IKIZOGLU, D.; WEGNER, J. (org.) Diversity and Super-diversity: Sociocultural Linguistic Perspectives. Washington, DC: Georgetown University Press, 2017. p. 1-15. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/311318286 . Acesso em: 22 dez. 2022
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) 6 6 “[…] when they ‘fit’, they respond to existing frames of recognizable identity, while when they don’t they are ‘out of place’, ‘out of order’ or transgressive”. atuam como resistência ao modelo neocolonial.

Desse modo, diante dessa heteroglossia de linguagens dissonantes e “práticas cronotopicamente organizadas, de forma por vezes desequilibrada e anacrônica, que nos pode conduzir ao grão mais fino da ordem social e do conflito” ( Blommaert; De Fina, 2017, p. 12BLOMMAERT, J.; DE FINA, A. Chronotopic Identities: On the Timespace Organization of Who We Are. In: DE FINA, A.; IKIZOGLU, D.; WEGNER, J. (org.) Diversity and Super-diversity: Sociocultural Linguistic Perspectives. Washington, DC: Georgetown University Press, 2017. p. 1-15. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/311318286 . Acesso em: 22 dez. 2022
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), podemos pensar que as periferias – e aqui podemos incluir as favelas, os quilombos e mesmo as aldeias indígenas, mesmo com todas as suas idiossincrasias – constroem cronotopos periféricos que se propiciam a formação de performances periféricas insurgentes. Estas performances configuram-se como um conjunto de táticas utilizadas por grupos e sujeitos em condições de desvantagem na arena pública 7 7 Aqui utilizo-me do conceito de “arena pública” sob uma perspectiva pragmática baseado na interpretação de Daniel Cefaï ( 2012). Referenciado pela obra do filósofo norte-americano John Dewey (1859-1952), Daniel Cefaï concebe uma arena pública como um espaço onde o “público” não é mais monopólio do Estado. Isso quer dizer que, além de não partir de um pressuposto moral normativo sobre as formas ideais de funcionamento de um regime democrático ou republicano – presentes nas obras referenciais de Hanna Arendt e Jurgen Habermas – a dinâmica que forma tal arena está imbuída de um processo permanente de disputas, divergências e controvérsias entre diferentes atores individuais e coletivos em torno daquilo que se entende como “assuntos públicos”. Sob a perspectiva pragmática, Cefaï recupera as arenas públicas em suas dinâmicas de emergência, focalizando antes de tudo as atividades práticas sob as situações em que se apresentam. Cefaï não desconsidera as relações de poder e as assimetrias dos atores que constituem as arenas, no entanto, privilegia em sua construção conceitual a perspectiva da análise sobre como os “actores individuales y colectivos, en el cual la identidad no está totalmente establecida de antemano, pero se modula durante sus intervenciones y sus interacciones, y una dinámica de elaboración de culturas públicas, bajo la forma, por ejemplo, de repertorios de argumentos o de vocabularios de motivos” ( Cefai, 2012, p. 54). quando contrapostos às lógicas de opressão/dominação e/ou em situações de precariedade e vulnerabilidade social – como foi a condição imposta aos moradores de periferias no período de isolamento social na pandemia de Covid-19. Nos casos que aqui utilizamos para analisar que são as performances narrativas de mulheres negras periféricas, essas táticas são performativizadas por meio de procedimentos instrumentalizados que constroem linguagens e materializam signos nos quais os atores sociais buscam ressignificar e disseminar entre si e para sua audiência. Objetivam elaborar, individual e coletivamente, outros entendimentos sobre suas identidades e seus lugares de vivência. As memórias da ancestralidade formam o dispositivo utilizado para a mobilização desses signos da população negra e podem ocorrer de diferentes maneiras. Nilze Benedicto, como veremos em seguida, age taticamente performativizando a memória da sua ancestralidade por meio da sua obra artística que se conforma em sua imagem de mulher negra, nas letras que escreve, na música predominante (samba) e nos seus adereços (roupas). Nesse sentido, esses agentes buscam de maneira disruptiva se contrapor ao entendimento hegemônico sobre o tempo-espaço ligados a manutenção de uma ordem social e urbana que privilegia conhecimentos cuja referência é a cosmologia do cartesianismo branco europeizado. No fundo, se opõem ao que Charles W. Mills (2020)MILLS, C. W. The Chronopolitics of Racial Time. Time & Society, [S. l.], v. 29, n. 2, p. 297-317, May 2020. DOI: 10.1177/0961463X20903650. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0961463X20903650 . Acesso em: 12 maio 2023.
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denominou como “cronopolítica racista”.

Mills (2020)MILLS, C. W. The Chronopolitics of Racial Time. Time & Society, [S. l.], v. 29, n. 2, p. 297-317, May 2020. DOI: 10.1177/0961463X20903650. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0961463X20903650 . Acesso em: 12 maio 2023.
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defende a necessidade de politizar a temporalidade, pois, para ele, o tempo vivido na modernidade é “branco e colonial”. Em seu texto “The Chronopolitics of Racial Time” – “A cronopolítica do tempo racial” (tradução nossa) –, Mills afirma que o tempo da modernidade encontra-se manifestado tanto na política quanto na pessoa, na teoria intelectual e na cultura popular como o tempo universal. Tal perspectiva a ser criticada atesta uma linearidade sobre o tempo onde diferentes povos e suas tradições, ao não se submeterem ou se acomodarem ao tempo da modernidade – ou seja, eurocentrado – seriam lidas como atrasadas, frágeis e míticas. Logo, como alternativa teríamos:

[…] a presunção é que nessas representações concorrentes (que envolverão questões de causalidade, avaliação normativa, reivindicações narrativas, padrões de significado e afeto, entre outros) e nessas relações divergentes, geralmente encontraremos uma luta para promover os interesses do grupo – às vezes moralmente defensáveis, às vezes não – e uma correspondente perpetuação ou enfraquecimento das estruturas hegemônicas de dominação do grupo

( Mills, 2020, p. 3, tradução nossaMILLS, C. W. The Chronopolitics of Racial Time. Time & Society, [S. l.], v. 29, n. 2, p. 297-317, May 2020. DOI: 10.1177/0961463X20903650. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0961463X20903650 . Acesso em: 12 maio 2023.
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) 8 8 “So the presumption is that in these competing representations (which will involve issues of causality, normative evaluation, narrative claims, patterns of meaning and affect, and the like) and in these divergent relations, we will generally find a struggle to advance group interests —sometimes morally defensible, sometimes not — and a corresponding perpetuation or undermining of hegemonic structures of group domination.” .

4 A performance insurgente de uma artista negra e periférica

Como já mencionado ao longo do texto, Nilze Benedicto, como outras mulheres moradoras de periferias brasileiras, traz consigo os traços que formam as identidades afrodiaspóricas no presente. Moradora de um bairro periférico do município de São Gonçalo (RJ), Nilze tem uma vida artística ativa. Cantora e compositora, cujo o samba como gênero se faz presente, tem como marca nas suas letras a valorização dos signos que remontam a ancestralidade da cultura negra, mas especificamente exemplos de mulheres negras atuantes nas lutas de resistência ao regime escravocrata, bem como na música. Durante a pandemia, Nilze participou de programas de entrevistas, canais de transmissão na internet e realizou muitas lives pelos seus perfis nas redes sociais. Em um desses programas, no qual participei como mediador 9 9 Sons de dentro foi um programa online desenvolvido por mim e por um coletivo cultural independente do município de Niterói (RJ). Oito edições ocorreram entre maio e dezembro de 2020 e teve a participação de 22 artistas entre eles músicos compositores, instrumentistas e intérpretes, artistas plásticos, dançarinos e produtores musicais. O total de horas de transmissão foi de 16 horas entre conversas e apresentações artísticas. Nilze participou da quinta edição que tinha como tema “Não deixe o samba morrer na pandemia” ao lado de mais dois artistas. Para mais informações sobre o programa acesse a playlist com as edições realizadas, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fmIq0fvOI6U&list=PLhFtChZFuDHTY0vV2P1bc2yYTNh3U2pt8 . Acesso em 19 set. 2022. , a artista, cantou ao lado do seu parceiro músico – um homem negro –, que a acompanhou com seu violão e seu pandeiro.

No programa, que teve duração de quase duas horas, Nilze usava cabelo black descolorido, um vestido amarelo com estampas que remetiam a símbolos de culturas africanas e brincos de flores pendurados até os ombros. Carismática, cantou músicas autorais e de outros compositores do samba. Em frente à tela, em pé, com seu microfone preso em um pedestal, Nilze cantou e compartilhou com a audiência parte da sua trajetória como cantora e compositora, e um pouco da sua experiência na pandemia de Covid-19. Vivíamos um momento de grave crise sanitária no país e o isolamento social era a medida necessária para impedir novos casos de contágio e óbitos causados pelo vírus. Naquele momento seu telefone celular foi o seu principal instrumento para atuar por meio das redes sociais como artista.

Durante o programa, Nilze compartilhou com todos como ela entendia e realizava as suas lives naquele momento:

Desde o início da pandemia eu estou também fazendo lives, né? Como também muita gente. Já tem uns quatro meses, mais ou menos, mais um pouquinho, mais de quatro meses. Eu faço toda quinta-feira live de casa, porque a live de casa é para os amigos […] é também uma outra maneira de ver esse período de pandemia é… e contribuir para que não fique pior do que já está, né? Então, essas lives tem trazido assim, pra mim, pelo menos, muita gente já fez essa leitura, já veio falar, venho trazer não só lazer, né, mas também uma contribuição, porque geralmente nas minhas lives eu coloco, né, uma contribuição para alguma entidade ou alguma pessoa especificamente com algum problema, né, e… é… então a gente tá caminhando pra isso, né, fazendo esse tipo de trabalho… é uma maneira de estar ativo… esse novo formato é… até mesmo me assustou com a quantidade de pessoas que deram essa resposta, que foi assim, pra mim que nunca tinha feito, nunca trabalhei com essas coisas e esse público me assiste aí, que tá junto de mim, é… foram 1700 visualizações! Eu fiquei assim muito feliz, espero que continue, né? Eu fico feliz também porque é… essas lives, apesar de dentro de casa, eu pude levar o meu trabalho até para mais longe do que do âmbito que eu estou acostumada.

( Sons [...], 2020SONS de dentro – 5° edição. Niterói, RJ: BacamArte, 11 set. 2020. Publicado pelo canal Bacamarte Produções Artísticas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4_zHuHvKtL8&list=PLhFtChZFuDHTY0vV2P1bc2yYTNh3U2pt8&index=5 . Acesso em: 19 set. 2022.
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)

Durante o período de isolamento, grande parte da classe artística, bem como toda a cadeia de profissionais que atuam na logística e no suporte operacional de shows e eventos – como técnicos de som, de imagem, de luz e operários do showbusiness em geral – viu-se impossibilitada de trabalhar 10 10 Segundo o estudo da Associação dos Promotores de Evento (ABRAPE) se considerado todo o setor cultural, cerca de 580 mil pessoas podem ter ficado desempregadas, pois 51,9% dos eventos programados para o ano de 2020 foram cancelados ( Balbi, 2020). . Foi nesse período que observamos a explosão de lives de artistas do mainstream e independentes como alternativa laboral e de entretenimento para o período de isolamento social. As lives foram construídas como um formato de apresentação de conteúdos de toda ordem – como musicais, cênicos, pedagógicos, políticos etc. – via plataformas digitais, sendo as mais usadas o YouTube e o Instagram, cada uma com suas características de produção e recepção. Esse modo de apresentação artística para uma audiência “presente” digitalmente fez com que artistas como Nilze atuassem para o público antes inalcançável de forma presencial – devido aos próprios limites materiais para uma apresentação in loco (condições de deslocamento do público, local da apresentação, valores de entrada e consumo, palco e espaços internos para permanência e circulação).

Lima (2021)LIMA, T. R. Lives musicais: performances em rede de corpos em isolamento. Logos, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 208-223, 2021. nos conta que nesse momento houve uma espécie de “dessacralização” dos limites entre o espaço público e o espaço privado, do espaço de trabalho e do espaço de lazer. Consequentemente, constituiu-se naquele momento “a existência de espaços que possibilitaram a sobreposição de atividades e de temporalidades” ( Lima, 2021, p. 211LIMA, T. R. Lives musicais: performances em rede de corpos em isolamento. Logos, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 208-223, 2021.). A casa pôde ser lar e palco ao mesmo tempo em que as temporalidades que as nutre confundiram-se na realização das performances. No caso de Nilze, ela projetava sua imagem de mulher negra, sambista e periférica de dentro de sua sala transformada em estúdio musical / palco para uma grande audiência, até então inesperada – 1700 visualizações. Reentextualizando suas performances narrativas do mundo “real” para contexto das performances online ( Baumann; Briggs, 1990BAUMANN, R.; BRIGGS, C. Poética e Performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Tradução: Vânia Z. Cardoso. Revisão: Luciana Hartmann. ILHA – Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 8. n. 1/2, p. 185-229, 2006.; Blommaert; May, 2019BLOMMAERT, J.; MAY, I. Invisible Lines in the Online-Offline Linguistic Landscape. Tilburg Papers in Culture Studies, Tilburg, n. 223, p. 1-9, 2019.), podemos considerar que Nilze investiu-se de sua projeção de mulher negra periférica para atuar taticamente dentro do cronotopo das redes durante período pandêmico. O samba foi o gênero que ela “escolheu” para performativizar sua identidade artística.

Mesmo afirmando ser uma compositora e intérprete de diferentes gêneros musicais, utilizou-se do samba como gênero principal para sua performance artística. Em um determinado momento do programa, a artista disse que não teve o “berço da música” em sua formação artística, que somente se lembrava da sua mãe “solfejando la, la, la”, mas nada que, segundo Nilze, caracterizasse um perfil musical para a sua família. Disse: “Nilze Benedicto é assim, uma ‘ovelhinha desgarrada’ que em algum momento da história alguém puxou e falou assim: ‘olha, você é daqui!’ Então, os pés aqui: é samba!” ( Sons [...], 2020SONS de dentro – 5° edição. Niterói, RJ: BacamArte, 11 set. 2020. Publicado pelo canal Bacamarte Produções Artísticas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4_zHuHvKtL8&list=PLhFtChZFuDHTY0vV2P1bc2yYTNh3U2pt8&index=5 . Acesso em: 19 set. 2022.
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). Sua narrativa mostra que é a partir dessa interação com este “alguém” que a identificava com o universo do samba que sua trajetória musical pelo gênero começa a se consolidar como um meio possível para atuar como artista. Essa experiência na qual Nilze vivenciou nos revela como determinados signos são aproximados num processo de construção de determinadas identidades e como estão culturalmente inseridas em processos de significação mais amplos, como o caso do próprio samba.

Diferentes estudos ao longo das últimas décadas mostraram como o samba no Brasil – e demais variações do gênero como o choro, o partido alto, o samba de breque, o pagode, entre outros –, originaram-se da confluência de diferentes ritmos, danças, instrumentos e demais manifestações culturais africanas (como práticas rituais de culto aos Orixás e a capoeira) ( Caldeira, 2007CALDEIRA, J. A construção do samba. São Paulo: Editora Mameluco, 2007.; Vianna, 2007VIANNA, H. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.; Tinhorão, 1997TINHORÃO, J. R. História social da música popular brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1997.; Sodré, 1998SODRÉ, M. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.). No entanto, Miguel Jost (2015)JOST, M. A construção/invenção do samba: mediações e interações estratégicas. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 62, p. 112-125, dez. 2015. DOI: 10.11606/issn.2316-901X.v0i62. p. 112-125. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/107219 . Acesso em: 1 ago. 2023.
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revela que, até sua redenção cultural, o samba passou por um complexo processo de negações e incorporações à cultura brasileira: criminalizações governamentais, mediações transculturais e resistências estratégicas fizeram (e ainda fazem) deste gênero o resultado de um “projeto articulado” por sujeitos subalternizados conscientes de seu lugar marginalizado no contexto socioeconômico brasileiro. Foi por meio do samba que enxergaram a possibilidade de fazer emergir suas vozes por meio da música popular. Jost (2015)JOST, M. A construção/invenção do samba: mediações e interações estratégicas. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 62, p. 112-125, dez. 2015. DOI: 10.11606/issn.2316-901X.v0i62. p. 112-125. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/107219 . Acesso em: 1 ago. 2023.
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defende que foi necessária uma “inteligência estratégica” por parte do sambista, (que ele denomina como “intelectual popular”) para que se consolidasse o gênero samba como “canção urbana brasileira por excelência e como traço distintivo e determinante da nossa modernidade no campo cultural.” 11 11 No dia 9 de outubro de 2023 o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) registrou oficialmente as matrizes do samba do Rio de Janeiro – samba de terreiro, partido-alto e samba-enredo – no Livro de Registro das Formas de Expressão e o reconheceu como Patrimônio Cultural do Brasil. Cf. SAMBA ( 2007). ( Jost, 2015, p. 113JOST, M. A construção/invenção do samba: mediações e interações estratégicas. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 62, p. 112-125, dez. 2015. DOI: 10.11606/issn.2316-901X.v0i62. p. 112-125. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/107219 . Acesso em: 1 ago. 2023.
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).

Dentro desse processo de constituição do samba como patrimônio cultural, um grupo que merece destaque quando trabalhamos sob a perspectiva da memória como instrumento tático de resistência e ressignificação da cultura popular oriunda dos povos afrodescendentes, e tem forte influência sobre as performances narrativas de Nilze, está projetado na figura das “tias” do samba. Gomes (2013)GOMES, R. C. S. “Pelo telefone mandaram avisar que se questione essa tal história onde mulher não tá”: a atuação de mulheres musicistas na constituição do samba da Pequena África do Rio de Janeiro no início do século XX. Per Musi, Belo Horizonte, n. 28, p. 176-191, 2013. DOI: https://doi.org/10.1590/S1517-75992013000200014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pm/a/vsY3ZYzpLhXzyhbQNBBrgWk/abstract/?lang=pt . Acesso em: 20 jun. 2023.
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explica que essas mulheres negras atuaram como guardiãs das tradições africanas ao promoverem encontros de músicos negros em rodas de samba em suas próprias casas no que ficou conhecido como a “pequena África do Rio de Janeiro” nas primeiras décadas do século XX, ou seja, o berço do samba, localizada na parte central da cidade:

[…] as Tias Baianas da Pequena África foram mulheres atuantes e influentes no meio musical de sua época, compositoras, instrumentistas, cantoras, agentes transformadoras em um território tido como essencialmente masculino, como é o caso de Ciata, Perciliana, Carmem do Ximbuca, Maria Adamastor, Amélia Aragão, Mariquita, entre outras. Trata-se de um mundo musical feminino desvalorizado, obscurecido por uma construção histórica criada pelas classes superiores, focada nos grandes personagens, nos grandes eventos supostamente mais importantes, no domínio da vida pública, na tradição escrita, com escassos ou mesmo nenhum interesse na face doméstica, na tradição oral, no conhecimento das mulheres

( Gomes, 2013, p. 1GOMES, R. C. S. “Pelo telefone mandaram avisar que se questione essa tal história onde mulher não tá”: a atuação de mulheres musicistas na constituição do samba da Pequena África do Rio de Janeiro no início do século XX. Per Musi, Belo Horizonte, n. 28, p. 176-191, 2013. DOI: https://doi.org/10.1590/S1517-75992013000200014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pm/a/vsY3ZYzpLhXzyhbQNBBrgWk/abstract/?lang=pt . Acesso em: 20 jun. 2023.
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).

Nesse sentido, a performance periférica insurgente de Nilze se incorpora ao processo histórico de táticas que buscam delimitar e marcar o lugar das mulheres negras como protagonistas na sociedade brasileira. Duas músicas da artista que compuseram sua performance no programa intituladas “Pra matar preconceitos” e “Negras guerreiras” exemplificam tal movimento, a seguir:

Pra matar preconceito

Na rua me chamam de gostosa

O gringo acha que eu nasci pra dar

O postal mais vendido em qualquer loja

Sou eu lá de costas pro meu mar

Falam que o meu cabelo é ruim

É Bombril, toinoinoin, é pixaim

Um olhar tipo porta de serviço

É um míssel invisível contra mim

Eu sou criola, neguinha, mulata e muito mais, camará

Minha história suave igual dança o ilê | Refrão

Ninguém vai dizer o meu lugar |

Sou Zezé, sou Leci, Mercedes Batista, Edinanci

Aída, Ciata, que ela é mãe beata, Araci

Pele preta, nessa terra, é bandeira de guerra porque eu vi

Se é Conceição ou Dandara, pra matar preconceito eu renasci

Nilze Benedicto, Ivone, Maria, Joana, Iara, Deda, Nizia, Jurema,

e todas as mulheres pretas cacheadas, black, todas nós nascemos pra matar

preconceito (falado)

Nessa composição, Nilze inicia contextualizando a maneira como as mulheres negras são entendidas pela cronopolítica racista, sexista e mercantil na cultura brasileira. Materializa a representação do homem branco na imagem do “gringo” que objetifica o feminino por meio do sexo (“acha que eu nasci pra dar”) e da sua mercantilização (“o postal mais vendido em qualquer loja/sou eu lá de costas pro meu mar”). Em seguida, como o outro lado da mesma moeda, mobiliza termos para denunciar o processo de estigmatização do cabelo da mulher negra que o associa a objetos duros e ásperos (“Bombril”, “toinoinoin”, “pixaim”) e o racismo que evidencia a maneira subalternizante que as classes médias posicionam a mulher negra de forma segregada e no lugar da servidão nas relações sociais do cotidiano (“um olhar tipo porta de serviço / um míssil invisível contra mim”).

Neste ponto, Lélia Gonzalez (1984)GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Rio de Janeiro, p. 223-244, 1984. nos ajuda a pensar os processos discriminatórios dirigidos às mulheres quando chama a atenção para o duplo fenômeno que as acomete: o racismo e o sexismo. Gonzalez diz que a articulação entre esses dois fenômenos produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular, colocando-as em posições sociais demarcadas para a manutenção da ordem subalternizante: a mulata, a doméstica e a mãe preta. Nesse sentido, o que atuaria como contraponto na ressignificação da mulher negra para a autora seria a mobilização da memória como tática “astuta”, pois é a memória “o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção.” ( Gonzalez, 1984, p. 226GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Rio de Janeiro, p. 223-244, 1984.).

Em seguida, na direção apontada por Lélia Gonzalez, como contrapondo insurgente, Nilze performatiza o orgulho de ser “criola, neguinha, mulata e muito mais”, impõe os limites que buscam demarcar o lugar da mulher negra na sociedade (“ninguém vai dizer o meu lugar”) e invoca nomes de mulheres negras históricas que ocuparam frentes de resistência nas artes da guerra e da música. A memória aqui torna-se uma arma que busca “matar preconceitos”.

Ao performativizar seu samba intitulado “Negras guerreiras”, Nilze rememora o passado de opressões contra os povos negros escravizados para também, em seguida, bradar nomes de mulheres negras que se opuseram ao regime escravocrata. Cabe ressaltar que o ato de rememorar imagens de mulheres como forma de insurgir contra o regime de preconceitos raciais marca a obra artística dessa artista do samba.

Negras guerreiras

Negro que foi açoitado e foi no quilombo

Teve seu erro quitado, sua vida é um assombro

Querem calar nosso grito em busca da esperança

Sempre há mais um conflito, nosso povo não se cansa

Negro ô, ô, ô, ô (refrão)

São as guerreiras retintas em busca da liberdade

Dandara, Anastácia, Zacimba lutaram pela verdade

Mulheres que são resistência, suas vidas têm bravura

Acolhem seu povo oprimido, amordaça a estrutura

Na primeira estrofe, Nilze mobiliza os signos da violência (“açoite”/ “quilombo” / “assombro”) como forma de denúncia, seguidos de outros signos que apontam para a ruptura com o sistema vigente (“grito”/ “esperança” / “conflito”). O refrão “Negro ô, ô, ô” age como um elo de chamamento das agentes da ação, ou seja, as mulheres “negras guerreiras” que atuam ao longo das suas trajetórias dentro de uma perspectiva antirracista e feminista em busca da “liberdade”, da “verdade” e da “resistência. Trazendo novamente Leda Martis (2003)MARTINS, L. Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, Santa Maria, SC, n. 26, p. 63-81, jun. 2003. esse movimento proposto na música seria a mobilização de”reminiscências ativas” que se tornariam força-motriz no presente para reivindicações históricas na vida cotidiana.

Em outra música “Cabelo de mola”, Nilze aproxima e sobrepõe diferentes cronotopos como tática para se contrapor a processos históricos de subordinação e dominação colonial dos povos negros brasileiros, tendo como título um dos signos mais importantes do processo de autorreconhecimento do orgulho negro – o cabelo:

Cabelo de mola

Você diz veio do gheto

Eu digo veio de angola

Vem de longe a minha herança

Sou neta de quilombola

Eu cruzei os sete mares

Trouxe o samba na sacola

Se a tristeza passa perto

Um irmão vem e consola

Já soltei minha corrente

Eu quebrei a minha argola

Meu cabelo de mola

Aqui “gheto”, “angola” e a origem “neta de quilombola”, por exemplo, dialogam entre si sobre lugares de pertencimento, enquanto a alusão a viagem em navios negreiros (“cruzei os sete mares” / “trouxe o samba na sacola”) e a força da ruptura de objetos da escravidão (correntes / argolas) contextualizam trajetórias e objetos do passado no presente (“vem de longe a minha herança”) que evidenciam o movimento de insurgência do povo negro na sociedade brasileira racista. Sobre o cabelo, cabe uma exposição referenciada em bell hooks ( 2005HOOKS, B. Alisando o nosso cabelo. Tradução: Lia Maria dos Santos. In: COLETIVO Feminista Marias. Camaçari, 9 maio 2008. Disponível em: https://coletivomarias.blogspot.com/search?q=alisando+nosso+cabelo . Acesso em: 1 ago. 2023.
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) quando esta analisa como este elemento que constitui a identidade negra foi ressignificada entre os negros na medida em que as lutas antirracistas dos anos 1960 ganhavam força e organicidade na sociedade estadunidense.

Durante os anos 1960, os negros que trabalhavam ativamente para criticar, desafiar e alterar o racismo branco, sinalavam a obsessão dos negros com o cabelo liso como um reflexo da mentalidade colonizada. Foi nesse momento em que os penteados afros, principalmente o black, entraram na moda como um símbolo de resistência cultural à opressão racista e fora considerado uma celebração da condição de negro(a). Os penteados naturais eram associados à militância política. Muitos(as) jovens negros(as), quando pararam de alisar o cabelo, perceberam o valor político atribuído ao cabelo alisado como sinal de reverência e conformidade frente às expectativas da sociedade

( hooks, 2005, p. 3HOOKS, B. Alisando o nosso cabelo. Tradução: Lia Maria dos Santos. In: COLETIVO Feminista Marias. Camaçari, 9 maio 2008. Disponível em: https://coletivomarias.blogspot.com/search?q=alisando+nosso+cabelo . Acesso em: 1 ago. 2023.
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).

Todo o trabalho de Nilze Benedicto apresentado aqui evidencia a maneira como essa artista alia sua arte, sua música a sua vida como um todo. A força com que mobiliza a ideia de ancestralidade, não só a sua, mas a que insere sua performance, sua identidade de mulher negra aos seus antepassados de forma coletiva, torna a memória uma poderosa ferramenta de luta dos negros, não só no Brasil, mas em toda parte em que a lógica de dominação eurocentrada se faz presente. Ao final da sua performance naquele programa online, no auge da gravidade pandêmica, ela fez um apelo para a audiência conectada: “a arte não pode parar! A arte precisa ser revista em vários aspectos. Valorize os artistas independentes, não importa qual é a arte, valorizem!”. Que assim se faça sua palavra entre todos.

5 Conclusão

Ao me arriscar nessa seara de reflexões sobre as performances e os signos que nos remetem a história e a ancestralidade do povo negro, mais especificamente das mulheres negras, na sociedade brasileira, busquei enfrentar duas questões: a do lugar de legitimidade da fala sobre o tema e a da necessidade de se compartilhar a produção de uma obra artística periférica como produção de saber. Ambas se relacionam na produção desse texto. A primeira questão me desafia no sentido do lugar que ocupo numa sociedade como a brasileira: altamente estratificada material e simbolicamente, e profundamente recortada pelo viés racial e de gênero. Ciente da minha performance como homem branco e cis, não me furto a pensar criticamente esse ser histórico diante das atrocidades cometidas contra homens, mulheres e crianças negros e negras em nome da razão, da ciência, do progresso e da acumulação do capital. No entanto, ao me apresentar como alguém que atua como um intelectual acadêmico no curso das necessárias reparações históricas que devemos fazer como sociedade, me vi desafiado a escrever e a refletir sobre uma mulher negra que tem na sua sensibilidade intelectual e artística a capacidade de tornar, por meio da sua música, a opressão e as mazelas contra seu povo um instrumento de luta e de significação da beleza cultural periférica e negra. Por meio da obra e das performances narrativas de Nilze, me vi moralmente instigado a contribuir com a luta antirracista, uma luta que considero de todos e todas.

Nesse sentido, a segunda questão desemboca como o curso de um rio de longa trajetória de ressignificações e reposicionamentos sobre o que somos, e o que deveríamos ser no mundo. Contribuir para que músicas e letras populares também sejam entendidas como ferramentas de construção e compartilhamento de saberes faz com que os limites do que se considera como conhecimento e verdade fiquem borrados. Essa arte traz consigo a possibilidade de organizar oralidades e rememorar sentimentos que nos identificam com grupos, tempos e espaços diferentes do nosso, mas que agem cronotopicamente sobre o que podemos realizar no tempo presente. Com a mesma intensidade, possibilita que saberes populares e conhecimentos científicos se misturem e se provoquem no processo de elaboração de novos entendimentos sobre o outro, e principalmente, sobre nós mesmos. Sobre quem de fato ensina, e quem de fato aprende.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pelo apoio e financiamento da pesquisa que resultou neste artigo.

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  • 1
    Pesquisa de pós-doutorado intitulada “Sons da pandemia: um estudo das narrativas de sobrevivência de artistas populares sobre moradia e trabalho em tempos de COVID-19” e financiada pela FAPERJ/PDR-10. Todos os dados dessa pesquisa são públicos e estão disponíveis em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLhFtChZFuDHTY0vV2P1bc2yYTNh3U2pt8.
  • 2
    O Complexo do Alemão (ou CPX) é um bairro localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro, mais precisamente em uma localidade reconhecida como subúrbio da Leopoldina. Sua denominação como bairro ocorreu por meio da Lei Nº 2055 de 9 de dezembro de 1993. Este bairro é formado por um conjunto de favelas que variam em seu quantitativo de acordo com as fontes pesquisadas (entre 12 e 15 favelas). Historicamente, o Complexo do Alemão foi construído discursivamente por meio da mídia corporativa e dos gestores públicos como “o QG do Comando Vermelho” (uma organização criminosa que controla o comércio de drogas ilícitas na região) e “Faixa de Gaza” (referência a área de conflito armado quase que permanente entre judeus e palestinos na área da Cisjordânia/Palestina) ( Oliveira, 2018OLIVEIRA, B. C. S. “Não tem essa de separação, aqui é tudo Complexo do Alemão!”: uma etnografia dos espaços urbanos em um conjunto residencial no Rio de Janeiro. 2018. 270 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.).
  • 3
    Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) esses espaços são definidos como “aglomerados subnormais” tendo como principal característica “forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia – públicos ou privados – para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação. No Brasil, esses assentamentos irregulares são conhecidos por diversos nomes como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, loteamentos irregulares, mocambos e palafitas, entre outros.” ( IBGE, 2019IBGE. O que é. In: IBGE. Alomerados subnormais. [S. l.: s. n.], 2019. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao-do-territorio/tipologias-do-territorio/15788-aglomerados-subnormais.html?edicao=15949&t=o-que-e . Acesso em: 21 ago. 2023.
    https://www.ibge.gov.br/geociencias/orga...
    ).
  • 4
    Um bom exemplo dessa capacidade de organização está na favela do Coroadinho, 4ª maior favela do Brasil, localizada em São Luís do Maranhão. O Coletivo Mulheres Negras da Periferia, criado em 2018, tem como objetivo desenvolver “ações feitas na favela para a favela”. O coletivo é formado por 12 mulheres responsáveis pelo projeto, tendo ainda a participação ativa de outras 32 voluntárias, todas negras e faveladas. Para mais informações sobre o coletivo, Cf. DICIONÁRIO DE FAVELAS MARIELLE FRANCO ( 2023DICIONÁRIO DE FAVELAS MARIELLE FRANCO. Coletivo Mulheres Negras da Periferia. [S. l.], 19 jul. 2023. Disponível em: https://wikifavelas.com.br/index.php/Coletivo_Mulheres_Negras_da_Periferia . Acesso em: 17 ago. 2023.
    https://wikifavelas.com.br/index.php/Col...
    ).
  • 5
    “Literally, ‘time-space.’ A unit of analysis for studying texts according to the ratio and nature of the temporal and spatial categories represented. The distinctiveness of this concept as opposed to most other uses of time and space in tirerary analysis lies in the fact that neither category is privileged; they are utterly interdependent. The chronotope is an optic for reading texts as x-rays of the forces at work in the culture system from which they spring.”
  • 6
    “[…] when they ‘fit’, they respond to existing frames of recognizable identity, while when they don’t they are ‘out of place’, ‘out of order’ or transgressive”.
  • 7
    Aqui utilizo-me do conceito de “arena pública” sob uma perspectiva pragmática baseado na interpretação de Daniel Cefaï ( 2012CEFAI, Daniel. ¿Qué es una arena pública? Algunas pautas para un acercamiento pragmático. Trad. corr. ampl. Mariela Hemilse Acevedo. In: CEFAÏ, D.; JOSEPH, I. (org.). La herancia del pragmatismo: conflictos de urbanidad y pruebas de civismo. La Tour d’Aigues: Éditions de l’Aube, 2012. p. 51-81.). Referenciado pela obra do filósofo norte-americano John Dewey (1859-1952), Daniel Cefaï concebe uma arena pública como um espaço onde o “público” não é mais monopólio do Estado. Isso quer dizer que, além de não partir de um pressuposto moral normativo sobre as formas ideais de funcionamento de um regime democrático ou republicano – presentes nas obras referenciais de Hanna Arendt e Jurgen Habermas – a dinâmica que forma tal arena está imbuída de um processo permanente de disputas, divergências e controvérsias entre diferentes atores individuais e coletivos em torno daquilo que se entende como “assuntos públicos”. Sob a perspectiva pragmática, Cefaï recupera as arenas públicas em suas dinâmicas de emergência, focalizando antes de tudo as atividades práticas sob as situações em que se apresentam. Cefaï não desconsidera as relações de poder e as assimetrias dos atores que constituem as arenas, no entanto, privilegia em sua construção conceitual a perspectiva da análise sobre como os “actores individuales y colectivos, en el cual la identidad no está totalmente establecida de antemano, pero se modula durante sus intervenciones y sus interacciones, y una dinámica de elaboración de culturas públicas, bajo la forma, por ejemplo, de repertorios de argumentos o de vocabularios de motivos” ( Cefai, 2012, p. 54CEFAI, Daniel. ¿Qué es una arena pública? Algunas pautas para un acercamiento pragmático. Trad. corr. ampl. Mariela Hemilse Acevedo. In: CEFAÏ, D.; JOSEPH, I. (org.). La herancia del pragmatismo: conflictos de urbanidad y pruebas de civismo. La Tour d’Aigues: Éditions de l’Aube, 2012. p. 51-81.).
  • 8
    “So the presumption is that in these competing representations (which will involve issues of causality, normative evaluation, narrative claims, patterns of meaning and affect, and the like) and in these divergent relations, we will generally find a struggle to advance group interests —sometimes morally defensible, sometimes not — and a corresponding perpetuation or undermining of hegemonic structures of group domination.”
  • 9
    Sons de dentro foi um programa online desenvolvido por mim e por um coletivo cultural independente do município de Niterói (RJ). Oito edições ocorreram entre maio e dezembro de 2020 e teve a participação de 22 artistas entre eles músicos compositores, instrumentistas e intérpretes, artistas plásticos, dançarinos e produtores musicais. O total de horas de transmissão foi de 16 horas entre conversas e apresentações artísticas. Nilze participou da quinta edição que tinha como tema “Não deixe o samba morrer na pandemia” ao lado de mais dois artistas. Para mais informações sobre o programa acesse a playlist com as edições realizadas, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fmIq0fvOI6U&list=PLhFtChZFuDHTY0vV2P1bc2yYTNh3U2pt8 . Acesso em 19 set. 2022.
  • 10
    Segundo o estudo da Associação dos Promotores de Evento (ABRAPE) se considerado todo o setor cultural, cerca de 580 mil pessoas podem ter ficado desempregadas, pois 51,9% dos eventos programados para o ano de 2020 foram cancelados ( Balbi, 2020BALBI, Clara. Impacto do coronavírus na cultura será de mais de R$ 100 bilhões, diz especialista. Folha de São Paulo, São Paulo, 3 abr. 2020. Seção Ilustrada. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/04/impacto-do-coronavirus-na-cultura-sera-de-mais-de-r-100-bilhoes-diz-especialista.shtml . Acesso em: 30 jul. 2020.
    https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/...
    ).
  • 11
    No dia 9 de outubro de 2023 o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) registrou oficialmente as matrizes do samba do Rio de Janeiro samba de terreiro, partido-alto e samba-enredo no Livro de Registro das Formas de Expressão e o reconheceu como Patrimônio Cultural do Brasil. Cf. SAMBA ( 2007SAMBA do Rio de Janeiro é Patrimônio Cultural do Brasil. In: IPHAN: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Brasília, DF: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 10 out. 2007. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/1941/samba-do-rio-de-janeiro-e-patrimonio-cultural-do-brasil . Acesso em: 22 ago. 2023.
    http://portal.iphan.gov.br/noticias/deta...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Nov 2022
  • Aceito
    29 Ago 2023
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