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"Se pudesse ressurgir, viria como o vento". Narrativas da dor: corporalidade e emoções na experiência da travestilidade

"If i could ressurect, i would come as the wind". Narratives of pain: embodiment and emotions in transvesti experience

"Si pudiese resurgir, vendría como el viento". Narrativas del dolor: corporalidades y emociones en la experiencia de la travestilidad

Resumos

O artigo se propõe a avaliar, através da pesquisa empírica feita com um grupo de sete travestis, dos 23 aos 40 anos, residentes na cidade de Recife (PE), como são realizadas e reinventadas as táticas de modificações corporais vividas como elementos centrais de identificação emocional na experiência da travestilidade. Por meio das narrativas da dor, procura-se perceber como são agenciadas duas linguagens nas redes afetivas das travestis, formuladas de acordo com uma dupla qualificação da dor. Segundo o que chamamos de linguagem de satisfação, nota-se que a dor, os riscos e o perigo imbricados nos procedimentos metamórficos de autoconstrução corporais, quando postos em contraponto com a satisfação de seus resultados, são significados como insuficientes diante do desejo de transformação. Em contraste, a linguagem política, em que se utiliza um expediente comum, baseado nas compartilhadas histórias de abjeções sociais, faz uso do conteúdo simbólico de negatividade e desfavor da dor quando se trata de significar emocionalmente seus relacionamentos com a sociedade mais ampla.

travestilidade; corporalidade; emoções; dor; sexualidade


Based on empirical research with a group of seven transvestis, ages 23 to 40, residents of the city of Recife, Pernambuco, Brazil, this article addresses the way tactics of body modification are performed, re-invented, and lived as central elements of emotional identification in the transvesti experience. Narratives of pain illustrate the operation of two languages in transvestis' networks of affection, formulated by a dual qualification of pain. Within what we call a 'language of satisfaction,' the pain, risks and danger involved in metamorphic procedures of body self-construction mean little vis-à-vis the satisfaction brought by their results, in face of the desire for transformation that moves them. In contrast, a 'political language,' based on shared histories of social abjection, makes use of the negative symbolic content of pain as ominous to signify travestis' relation with the larger society.

Transvesti; Embodiment; Emotions; Pain; Sexuality


Este artículo aborda -a partir de una investigación empírica realizada con un grupo de siete travestis, de entre 23 y 40 años de edad, residentes en la ciudad brasileña de Recife, en Pernambuco- cómo se realizan y reinventan tácticas de modificaciones corporales, vividas como elementos centrales de la identificación emocional en la experiencia de la travestilidad. Las narrativas del dolor ilustran cómo, en las redes afectivas de las travestis, dos lenguajes son agenciados formulados por vía de una doble cualificación del dolor. Dentro de lo que llamamos lenguaje de satisfacción, advertimos que el dolor, los riesgos y el peligro imbricados en los procedimientos metamórficos de auto-construcción corporal, cuando son colocados en contrapunto con la satisfacción de sus resultados, significan poco frente al deseo de transformación. En contraste, el lenguaje político, basado en historias compartidas de abyección social, cuando trata de significar emocionalmente sus relaciones con la sociedad más amplia, se vale de un recurso común: el uso del contenido simbólico de negatividad y ominosidad del dolor.

travestilidad; corporalidad; emociones; dolor; sexualidad


ARTIGO

"Se pudesse ressurgir, viria como o vento". Narrativas da dor: corporalidade e emoções na experiência da travestilidade

"Si pudiese resurgir, vendría como el viento". Narrativas del dolor: corporalidades y emociones en la experiencia de la travestilidad

"If i could ressurect, i would come as the wind". Narratives of pain: embodiment and emotions in transvesti experience

Adrianna Figueiredo

Mestre em Antropologia Coordenadora de pesquisa da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) Olinda, Brasil. adriannafigueiredo1@hotmail.com

RESUMO

O artigo se propõe a avaliar, através da pesquisa empírica feita com um grupo de sete travestis, dos 23 aos 40 anos, residentes na cidade de Recife (PE), como são realizadas e reinventadas as táticas de modificações corporais vividas como elementos centrais de identificação emocional na experiência da travestilidade. Por meio das narrativas da dor, procura-se perceber como são agenciadas duas linguagens nas redes afetivas das travestis, formuladas de acordo com uma dupla qualificação da dor. Segundo o que chamamos de linguagem de satisfação, nota-se que a dor, os riscos e o perigo imbricados nos procedimentos metamórficos de autoconstrução corporais, quando postos em contraponto com a satisfação de seus resultados, são significados como insuficientes diante do desejo de transformação. Em contraste, a linguagem política, em que se utiliza um expediente comum, baseado nas compartilhadas histórias de abjeções sociais, faz uso do conteúdo simbólico de negatividade e desfavor da dor quando se trata de significar emocionalmente seus relacionamentos com a sociedade mais ampla.

Palavras-chave: travestilidade; corporalidade; emoções; dor; sexualidade

RESUMEN

Este artículo aborda –a partir de una investigación empírica realizada con un grupo de siete travestis, de entre 23 y 40 años de edad, residentes en la ciudad brasileña de Recife, en Pernambuco– cómo se realizan y reinventan tácticas de modificaciones corporales, vividas como elementos centrales de la identificación emocional en la experiencia de la travestilidad. Las narrativas del dolor ilustran cómo, en las redes afectivas de las travestis, dos lenguajes son agenciados formulados por vía de una doble cualificación del dolor. Dentro de lo que llamamos lenguaje de satisfacción, advertimos que el dolor, los riesgos y el peligro imbricados en los procedimientos metamórficos de auto-construcción corporal, cuando son colocados en contrapunto con la satisfacción de sus resultados, significan poco frente al deseo de transformación. En contraste, el lenguaje político, basado en historias compartidas de abyección social, cuando trata de significar emocionalmente sus relaciones con la sociedad más amplia, se vale de un recurso común: el uso del contenido simbólico de negatividad y ominosidad del dolor.

Palabras-clave: travestilidad; corporalidad; emociones; dolor; sexualidad

ABSTRACT

Based on empirical research with a group of seven transvestis, ages 23 to 40, residents of the city of Recife, Pernambuco, Brazil, this article addresses the way tactics of body modification are performed, re-invented, and lived as central elements of emotional identification in the transvesti experience. Narratives of pain illustrate the operation of two languages in transvestis' networks of affection, formulated by a dual qualification of pain. Within what we call a 'language of satisfaction,' the pain, risks and danger involved in metamorphic procedures of body self-construction mean little vis-à-vis the satisfaction brought by their results, in face of the desire for transformation that moves them. In contrast, a 'political language,' based on shared histories of social abjection, makes use of the negative symbolic content of pain as ominous to signify travestis' relation with the larger society.

Keywords: Transvesti; Embodiment; Emotions; Pain; Sexuality

Introdução

Minha senhora é tanto sofrimento. A dor é uma angústia. É um desespero. Você ainda olha pra cima e pergunta: Meu Deus, por que eu sofro tanto? Porque é como disse a minha mãe, se um dia eu morrer, e eu sei que vou morrer, mas se for pra ressurgir, eu não quero vir num corpo de travesti de jeito nenhum. Ou uma coisa ou outra. Eu não quero passar de novo pelo que já passei nessa vida. Se pudesse ressurgir, eu viria como o vento. Venho que nem ele, que não aparece, não dá sinal, mas a gente sabe que ele está sempre presente (Flávia Desirré, 36 anos).1 1 A pedido de algumas colaboradoras, alguns nomes foram modificados, inclusive como medida adotada para resguardar suas privacidades, dado o fato de o trabalho se centralizar em histórias de vida muito pessoais.

A preferência pela narrativa acima para iniciar o artigo foi proposital. Além de ter levado à escolha do título "Se pudesse ressurgir, eu viria como o vento", minha intenção foi possibilitar a ampliação do leque reflexivo que este ato enunciativo abarca. O teor é revelador e traz inúmeras questões que incitam e desnudam poeticamente as maneiras pelas quais as travestis são empurradas para as zonas de abjeção. 2 2 O conceito de abjeção é trazido por Butler (2001:155) através da evidência de que os corpos que não se encontram segundo o aspecto de inteligibilidade social destinada aos gêneros e aos corpos normativos encontram-se fora do "domínio dos sujeitos", sendo empurrados para as "zonas 'inóspitas' e 'inabitáveis' da vida social". Sugere também como é ordenada uma linguagem que, através da dor e do sofrimento, forma contornos de contestação política. Acentua, através de narrativas sofredoras, uma posição marginalizada que deve ser, enfim, fruto de preocupação político-social.

É de enorme beleza, além de poética, a reflexão de Flávia, a quem foi delegada a posição de coautora deste título que abarca o vento. Ela nos aponta de que maneira a categoria sofrimento é invocada pelas travestis como algo intrínseco aos seus esquemas de identificação, não apenas no que tange às práticas corporais, mas que está inerentemente presente nos esquemas afetivos de reflexividade desta experiência.

Flávia sente angústia, dor e desespero por sua posição de sujeito no contexto da travestilidade. Se analisarmos mais atentamente, perceberemos que ela naturaliza o fato de ser travesti quando afirma: "não quero vir no corpo de uma travesti", pois sabe da dificuldade enfrentada socialmente ao se embaralharem categorias normativas de sexo, sexualidade e gênero. Naturaliza-as, não como uma opção, orientação ou escolha, mas como algo que é intrínseco à sua existência, inerente à sua moral.

E é justamente o que faz, não obstante querer vir "que nem o vento", como algo que é igualmente abstrato, mas que tem o seu lugar, que pode estar em todos os lugares, girar por todos os cantos, passar pelas pessoas e pelos ambientes como próprio da natureza, aquilo que é sentido como "normal" e corriqueiro.

É um querer se tornar invisível para ser, assim como o sujeito comum, visível politicamente. Apesar de possuir invisibilidade política, este sujeito descontextualizado possui incrível visibilidade na sua circulação social que, contudo, ocorre segundo os esquemas de abjeção e hierarquização social, sendo assim aquele que não deve ser visto, que é interpretado como alguém a ser ignorado ou punido, seja pelo discurso médico, seja pelo social ou o jurídico.

Esta metáfora do vento nos traz a ideia central de que as características e as ações de magnetismo que o caracterizam, como a livre circulação e a aparência de invisibilidade, tornam-se bastante complexas em face do todo social, no que diz respeito à circulação cotidiana das travestis através dos esquemas de marginalização.

Neste sentido, fundamentalmente, o que deseja Flávia – se puder "ressurgir", vir como o vento – revela a maneira pela qual são as travestis confinadas em determinados espaços. Se ao falarmos de travestilidade o que primeiro imaginamos são as questões do corpo – sendo característica primordial do vento não possuir corpo nem formas predeterminadas, não podendo assim ser julgado por sua fisiologia ou, aqui em específico, por sua "traição" a uma pseudo-ontologia fisiológica – as emoções que a metáfora do vento abarca parecem abrir uma ótima perspectiva para se pensarem as redes afetivas da travestilidade que, assim como o vento, tangenciam rígidas estruturas e promovem astuciosamente sua passagem, em contraponto à comum exotização de que são vítimas as suas componentes.

Este tipo de reflexão torna saliente a questão central que será aqui esboçada e que descansa sobre as reflexões geridas através dos agenciamentos entre duas linguagens que fazem da dor o seu registro em comum nas narrativas da travestilidade. Por meio dessas narrativas da dor, será percebido como são agenciadas tais linguagens nas redes afetivas das travestis, formuladas segundo a dupla qualificação da dor.

De acordo com o que chamamos de linguagem de satisfação, notaremos que a dor, os riscos e o perigo imbricados nos procedimentos metamórficos de autoconstrução corporal, quando postos em contraponto com a satisfação de sua execução, são significados como insuficientes diante do desejo de transformação. A dor foi aqui alocada pelas travestis num ethos dignificado na travestilidade, moldado na coragem, sendo o desejo apresentado como principal motivação para a sua execução. Em contraste, a linguagem política, em que se utiliza um expediente comum, baseado nas compartilhadas histórias de abjeções sociais, faz uso do conteúdo simbólico de negatividade e desfavor da dor quando se trata de significar emocionalmente seus relacionamentos com a sociedade mais ampla. Procurar-se-á perceber, através deste discurso, bem como em suas representações da experiência vivida, alguns dos questionamentos que envolvem quebras de representações de teor essencial que levam tanto a vivências e a estados de abjeção quanto à elaboração de táticas de subversão cotidiana. As narrativas da dor serão assim o veículo para aprofundar a análise desses agenciamentos, buscando evidenciar uma dupla qualificação da dor, em que ora se alia a prazer e satisfação, ora a sentimentos de teor nefasto.

Linguagens de "vitimização": As dores falam de abjeção através da formação de uma "linguagem política" em comum

Através da imersão no campo passei a perceber como, na atualidade, os corpos são conformados por atitudes de violência e de cerceamento social, de acordo com os "estilos de carne" (Butler, 2003), que refletem os imaginários de impureza que se firmam em torno das travestis, já que, ao expelirem os signos masculinos que as desqualificam subjetivamente, mas que as qualificariam socialmente, são diretamente empurradas para os campos da abjeção.

O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas "inóspitas" e "inabitáveis" da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito, mas cujo habitar sob o signo do "inabitável" é necessário para que o domínio [do que é considerado normativamente] do sujeito seja circunscrito. [...] Neste sentido, pois, o sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção (Butler, 2001:155).

Neste rastro de exclusão, quando questionadas sobre suas vivências e circulações cotidianas, as travestis refletem preponderantemente sobre as dolorosas vivências que estamos aqui chamando de narrativas da dor. Observamos como elas utilizam, de maneira salutar, em suas linguagens de vitimização, as categorias dor e sofrimento como instrumentos mnemônicos, que tornam possíveis os esquemas de reflexividade em que a "noção de sofrimento faz direta alusão à ideia de trajetória" (Rodrigues, 1998).

A dor é, no contexto específico de suas histórias de sociabilidades cotidianas – que são permeadas por uma atmosfera de aspereza, luta, confrontos rotineiros com a sociedade mais ampla, assim como suas relações interpessoais – utilizada como linguagem política. Nela se alinham discursos sobre as dores do enfrentamento social e da consequente abjeção, usando a vitimização "corriqueira" de sua "transcondição" como artifício para requerer visibilidade, direitos e deveres, promovendo assim a passagem da tragédia particular para uma questão pública (Leite, 2006) nesta complexa rede de sofrimento que se tece em torno das trans (Bento, 2006).

Este é incisivamente um expediente que reflete as suas condições de humanidade, já que nas falas em que preponderam os significantes e as faculdades que envolvem a ideia sobre a pretensa natureza humana, suas reflexões são sempre permeadas pela imagem de dignidade, de respeito e de solidariedade.

Conseguir adotar tais substantivos que significam humanidade não é uma escolha aleatória. Afinal, justamente estes aspectos são, para elas, específicos das relações humanas e dificilmente encontrados em suas experiências prosaicas, por isso, apontados como características de humanidade. Através destes mesmos aspectos elas são cotidianamente desumanizadas, assinalando as maneiras com que formulam e organizam cognitivamente uma linguagem compartilhada de "vitimização", fruto da abjeção e da exclusão experienciadas na travestilidade, como vemos na fala abaixo:

O negócio é acabar com o preconceito, olhar a gente com outro olhar. Porque as pessoas não olham a gente que nem gente. Olham que nem bicho. Querem jogar pedra, assim como se espanta um cachorro. E isso é que é sentir dor. É quando me sinto no fundo do poço, é o momento mais doloroso da minha vida. É quando me sinto assim, a sensação de perder tudo, família, de estar só, de estar na rua [...] É disso que eu tenho medo na vida, de ficar velha, a pior coisa é ficar velha, sei que vou estar sozinha. Já tive muita depressão, já tomei remédio e tudo (Sheila Magda, 37 anos).

A ideia de Márcia Pereira Leite (2006) sobre narrativas de violência pode ser aqui utilizada como artifício para se entender o que estou chamando de "narrativas da dor". Segundo a autora, é justamente recontando as experiências de violência – e aqui se investe na perspectiva da dor – que podemos perceber as maneiras pelas quais os atores reorganizam e dão novo significado não apenas às experiências subjetivas, mas também ao contexto social em que ocorrem, firmando-se como um "esforço para reorganizar subjetiva e objetivamente sua própria experiência, dotando-a novamente de significado" (Leite, 2006:179). Como analisa Berenice Bento (2006:223), "[...] as histórias dos sofrimentos, dos preconceitos e das intolerâncias que cada um relata possibilitam a criação de laços de cumplicidade e de solidariedade [notando-se] uma comunidade de emoções em funcionamento".

Ao buscar informações na literatura científica e filosófica sobre a dor como um sentimento capaz de permear as ações de interação social, e não apenas como anseio individual abstrato, foi possível perceber que há alguma dificuldade em encontrá-la como tema de problematizações e questionamentos, afora sua perspectiva medicalizada. Aqui nos "[...] cabe reconquistar a ideia da dor: na visibilidade do seu papel social" (Guerci & Consigliere, 1999:62), já que o uso desta categoria se torna latente na linguagem das travestis, diferentemente do que se refere às suas práticas corporais, em que ela será vista de maneira positiva. A dor, na experiência da travestilidade, tem um caráter nefasto justamente no que diz respeito aos seus enfrentamentos sociais, na medida em que a alocução do sofrimento ganha força na construção da pessoa travesti.

Se pudesse, mudava o preconceito do mundo. É muito difícil ser travesti no mundo, temos que ignorar muita coisa, fingir que não é conosco [...] A coisa mais dolorosa foi estar jogada por aí, sem ter aonde ir porque minha família não me aceitava [...] Então, dei muito a cara por aí, sofri muita violência na rua (Ana Clara, 36 anos).

A dor é, assim, uma construção social (Koury, 1999; Guerci & Consigliere, 1999; Helman, 2003), com variações expressivas de significado e valoração, de sociedade para sociedade, ou mesmo dentro de uma mesma organização social, como observamos na experiência da travestilidade, em que o modelo cartesiano de dor da sociedade ocidental – de uma dor que só pode ser física ou espiritual, ambas ligadas à esfera da subjetividade – é justamente observada por elas como uma dor incisivamente engendrada nas relações sociais cerceadoras, uma dor de contato e no contato com este outro, que sua própria existência questiona.

Assim, ao falar da dor, as travestis fazem uso de um conjunto compartilhado de vivências de violência e abjeção, derivadas de seus tratos sociais específicos fincados como navalhas na carne na evocação de suas trajetórias de vida. A dor nos traz então a ideia de que "[...] as sensações do corpo [são] uma realidade mutável de uma cultura a outra, cuja fisiologia não se explica exclusivamente como ilha biológica virgem, mas também num contexto histórico e cultural muito preciso" (Guerci, 1998 apud Guerci & Consigliere, 1999), o que faz das sensações de dor uma realidade bastante variável, situacional e preponderantemente localizada na significação das práticas de cada organização.

Temos, neste sentido, que carregar, como parte bastante salutar desta reflexão, que as fusões significantes da dor no interior valorativo de cada sociedade e de cada grupo social específico dentro de uma mesma organização – além da crença de que ela age como uma das categorias universais de sensações humanas – nos revelam que as ideias de sofrimento são fomentadas para além de esquemas argumentativos de conteúdo fisiológico, e nos são apresentadas através de reações peculiarmente sociais, culturais, morais e linguísticas, localizadas no compartilhamento das experiências emocionais dos sujeitos.

A dor não é assim um fenômeno universal, e a "[...] entidade e a modalidade da dor dependem do momento e da situação em que ela sobrevém" (Guerci & Consigliere, 1999:66). Isto não se dá nem mesmo numa mesma experiência, como a da travestilidade, na qual ela ora é invocada como instância de sofrimento de teor calamitoso, ora como satisfação, como veremos mais adiante.

Desta forma, é possível falar de campos e interações sociais, fugindo de uma perspectiva rígida de medicalização da dor adotada no Ocidente, nos quais,

[...] a dor seja o elemento interativo das relações sociais [em que, por exemplo], as exposições de populações a situações de risco determinadas [como no caso aqui estudado, no qual] as relações sociais que emergem dos atores são produtos ou produzidas pelo movimento social ou institucional gerador da crise ou tragédia, onde a dor poderá ser medida teórico-metologicamente através do artifício do sofrimento social vivenciado pela população exposta, [seja] possível indicá-las como pertencentes ao objeto de uma ciência social da dor (Koury, 1999:75).

Cabe então essencialmente perceber como o modelo ocidental de dor –aquele que nos fala mais comumente de uma dor física – torna-se inadequado na apreciação de linguagens de padecimento peculiares à experiência da travestilidade, demonstrando o "[...] seu conjunto complexo de termos próprios por meio dos quais os indivíduos [...] infelizes fazem com que as outras pessoas se tornem cientes de seu sofrimento" (Helman, 2003:174).

E é justamente aqui que este vocábulo – sofrimento – ganha maior destaque e força, na medida em que passa a ser instância veemente de exclusivo controle daquele grupo que o vivencia (Rodrigues, 1998).

Sair de dia e de noite, pra travesti, é correr risco: de levar uma "corra"3 3 "Corra" é uma gíria própria do universo travesti que quer dizer sofrer alguma violência, chacota, alguma ação em que se tenha literalmente que sair "correndo" ara se proteger. de dia, mangação, e de noite a violência, o medo de ser morta. É fogo, porque você se arruma todo, você não está melado, você não está fedendo, pensa que vai ser elogiado e é o contrário, você vai ser criticado. É uma dor danada, mulher, dor é isso. Me sinto assim humilhado, rejeitado, né? (Paulinho,4 4 O nome fictício escolhido foi masculino, pois ela continua usando seu nome masculino, segundo ela, em respeito à mãe, mesmo tendo seu corpo totalmente transformado e sendo inclusive "bombadeira". Esta é maneira como são êmicamente chamadas as travestis que executam a prática de "bombar" os corpos, ou seja, de aplicar o silicone industrial. E, por isso, encontram-se num alto patamar na hierarquia deste grupo, pois através desta prática é que podem alcançar as tão dignificadas transformações corporais. Possuem conhecimento muito particular sobre cada parte do corpo, bem como sobre seus inúmeros e particulares modos de manutenção. Dependendo da parte do corpo a ser reelaborada, explicitam o funcionamento desta rede paralela aos esquemas biomédicos de intervenção cirúrgica. Inúmeras, extensas e dolorosas sessões são executadas, nas quais a racionalidade da consulta médica é substituída pelos esquemas afetivo-emocionais revelados através do desejo de adequação. 40 anos).

Sofri violência aqui no bairro, acho que era a vontade de ele ter alguma coisa comigo, e eu nunca dei confiança. Então, eu fui passando, e ele jogou umas pedras em mim, depois veio pedir perdão. Mas só porque eu dei queixa. Só pra eu alisar a parte dele. Porque ficamos muito expostas, né? Trabalhamos na rua, expostas a levar um tiro, pegar uma doença, temos uma vida difícil, sofrida, cada dia é uma cena. Eu mudaria essa violência do mundo, está assustador, gente morrendo por besteira, gente que agride só por não gostar da sua cara (Joelma, 23 anos).

Seguindo o discurso de Paulinho e Joelma sobre como se tornam perigosas suas circulações cotidianas, em que sentem a proximidade da morte de maneira bastante latente, observamos como a dor se torna uma forte representação evocada em suas falas, no momento em que se reflete sobre exclusão, marginalização e enfrentamento social. Ela atua justamente como espaço de reflexividade, formulando um expediente comum, entre as travestis, moldado na dolorosa vivência da abjeção.

Ao evocar o sentimento da dor, elas também nos trazem a ideia de que é através dele que se aprende a viver em sociedade; ele parece ser uma das matrizes de apreciação própria desta experiência, formulando as maneiras com que se darão as atuações cotidianas compartilhadas por este grupo. "Esses olhares em volta, as freadas, os policiais que revistam... Há uma tensão permanente e há uma convivência com tal tensão. Há um saber conviver ali com toda essa ameaça, esses imprevistos" (Silva, 1993:86). Percebe-se, assim, como a vida cotidiana na experiência da travestilidade é sempre engendrada em linhas morais e de discriminação (Goffman, 1978) vivenciadas através da categoria dor.

Por vezes, acreditamos que, por ser um sentimento bastante abstrato, descrever a dor seja um exercício que requer muita complexidade. Mas o que vemos em suas narrativas de trajetória de vida é uma tentativa de afirmação constante da dor, principalmente quando entram em confronto com os tratos sociais cerceadores, em que ela é facilmente descrita e explicada nos termos de maleficência.

As falas se tornam, neste espectro, recheadas de histórias de maus-tratos e sofrimento, principalmente no que tange aos relacionamentos familiares, na medida em que a utilização dos vocábulos referentes à dor leva-as a experimentar a visibilidade que, nestes termos, advém da própria situação de exclusão, procurando encaixar-se nos esquemas de sensações que consideram mecanismos representativos de humanidade. Agem incisivamente como consciência individual de seu descrédito cotidiano, no qual se procuram acentuar as experiências de preconceito, demonstrando as maneiras maléficas de atuação que levam à vivência da dor.

O que define um ser humano pra mim é o jeito; o ser humano é aquela coisa, é o tratamento, é o comportamento, a maneira como olham pra você, tem uns que já lhe abraça e tem outros que jogam pedra em você. É essa maneira, e a gente se sente inferior, mesmo que a gente sabe que a gente tem capacidade de ter um bom emprego, que a gente tem a capacidade de tratar as pessoas bem, mas a gente sempre encontra essa dificuldade de ser criticada, de você passar às vezes, como passo no bairro da minha mãe, e sempre ouvir uma piadinha quando eu passo; aí eu não falo com ninguém (Flávia Desirré, 36 anos).

Respeitar diferenças e não humilhar ninguém, principalmente alguém que luta tanto para se fazer bonita (Paulinho, 40 anos).

Um ser humano? É o respeito pelo outro, tem muitas pessoas boas, mas pensam que só porque é travesti não presta (Sheila Magda, 37 anos).

O ser humano é assim: a personalidade da pessoa, o caráter, né? Ser sincero, respeitar as pessoas (Ana Clara, 36 anos).

Percebemos a dupla respeito/desrespeito como agentes que irão demarcar a ideia de comportamento humano, apontando para uma maneira muito específica nesta distinta experiência de plasmar humanidade. De uma forma geral, o que caracterizaria humanidade no senso comum seria nossa capacidade de possuir ambição e conhecimento, criatividade e criação, de transformação da "natureza" em "cultura", de sistematização cognitiva, estabelecendo uma marcação normativa cerrada, visando o que distingue a humanidade da animalidade.

Ser humano, portanto, nos sistemas de símbolos da experiência da travestilidade, está intrinsecamente relacionado com o comportamento (des)humano dirigido a elas, e não com essas outras faculdades que o sujeito comum pode sacar para revelar sua humanidade, já que este mesmo sujeito não se encontra nos espaços de abjeção observados ao longo das falas, revelando que as características de humanidade são situacionais e dependem de onde fala o sujeito.

Segundo Guerci e Consigliere, "É unidade elementar, na base de qualquer forma de dor, o grau zero da comunicação linguística a respeito da dor" (1999:57). As travestis estão aqui justamente para desestabilizar ou mesmo para desqualificar tal afirmação, pois utilizam a dor como forma de linguagem essencial, como instrumento e ferramenta de expressão de suas afetividades e vivências, em que dor e sofrimento são amplamente destacados em suas formulações existenciais:

A coisa mais dolorosa da minha vida foi o jeito que minha mãe percebeu minhas mudanças, ela não queria andar comigo, que tinha vergonha de mim, terrível, visse? Foi uma dor muito grande. Queria puder mudar esse preconceito. Quando sinto o preconceito, eu acho muito pobre, tenho abuso desse povo, tenho pena. Às vezes acontece coisa que me faz nem acreditar que Deus existe, mas tento ter sempre ele no meu coração (Larissa, 18 anos).

A dor é o preconceito, é a exclusão da família, quer queira quer não, a família é importante, e não posso contar com eles, isso me dói muito (Carol, 37 anos).

Um dia minha mãe disse que preferia o diabo pintado de ouro na frente a me ter do lado dela, do que eu daquele jeito. Você escutar isso da sua mãe? Imagina a dor, né? Tive depressão por conta da rejeição da família. Porque passei seis anos fora e, quando voltei, minha mãe me deu cem reais e disse pra eu dar meia volta. Me enfiei na cachaça, arrumei confusão, passei... Joguei os remédios tudo fora, aí tive uma queda, fui parar no hospital e quase morri (Flávia, 36 anos).

O que fica então mais do que explícito é que as travestis se formam, bem como se coligam, através da força do discurso, numa narrativa que remete à dor, pois precisam compor formulações de vida, visando a algo que se distinga da ontologia, seja científica ou social, que elas não acatam, transgredindo e acentuando sua existência arbitrária, mesmo que isto venha calcado na ideia do trágico, posto que a formação do discurso se estabelece na articulação entre individuação e objetivação, entre um mundo próprio e as rígidas estruturas objetivas que regem as práticas sociais.

É incisivamente através desta tensão que as travestis constroem para si uma realidade de vida, reformulando um conceito sobre sua Humanidade, bem como sobre A Humanidade. É preciso ter em mente as multiplicidades que formam a ideia de humano, em que suas realidades específicas revelam a força contingente deste conceito, já que

O drama de uma vida humana individual, ou da história da humanidade como um todo, não é um drama em que uma meta preexistente seja triunfalmente atingida ou tragicamente não alcançada. Nem uma realidade externa constante nem tampouco uma infalível fonte interna de inspiração compõe o pano de fundo desses dramas. Ao contrário, ver a própria vida ou a vida da comunidade como uma narrativa dramática é vê-la como um processo de autossuperação [...] (Rorty, 2007:67).

Quando a dor é positivada: o que fala a dor da beleza através da linguagem de satisfação

Se no acionamento de uma linguagem política, na qual a dor é significada de maneira negativista e evocada através das compartilhadas histórias de sofrimento – por meio da qual é formulada uma rede afetiva, atravessada por uma narrativa comum entre aquelas que se identificam com a travestilidade, que as auxilia no âmbito da contestação política para acentuar sua invisibilidade e marginalidade – o simbolismo e o aparato sensorial da dor, quando trazidos para o contexto de suas transformações corporais, parecem adquirir uma nova significância que nos ajuda a revelar a maneira pela qual é posta em prática uma identificação pautada nos termos específicos da travestilidade.

Aqui, nesta sugerida segunda qualificação da dor, podemos observar como são elaboradas as ressignificações simbólicas deste sentimento, que pode ser traduzido por uma expressão muito difundida entre as travestis, presente na força do conteúdo simbólico da "dor da beleza".

Como já discutido, se a dor no momento do enfrentamento social é vivenciada em conteúdos simbólicos negativistas, a dor da beleza que tange os procedimentos de corporificação do feminino, dos dolorosos e meticulosos cuidados, torna-se um aspecto central e dignificado para a formação desta identificação. É justamente neste ato de execução das práticas travestidas, nas quais estão envolvidos os procedimentos metamórficos, que a dor, os riscos, os perigos e a ilegalidade são reelaborados como capital simbólico próprio e bastante dignificado nesta experiência.

Quando tô bombando, tem bicha que passa mal. E aí eu digo, toda a cirurgia dói, não tem quem fique bonito sem sofrer, você não quis? Agora aguente! Pra gente se formar como deseja, dói mesmo, mas representa a vitória. É como sempre digo: "é a dor da beleza" (Paulinho, 40 anos).

A dor de que nos fala a "bombadeira"é aqui sempre sentida de maneira dignificante e positivada através de uma categoria que elas expõem como motivo maior de suas ações de transformação, o desejo:

Eu mesmo tenho uma tonalidade diferente. Eu vivo a vida prazerosa, vivo a vida como ela vai me levando. Tudo o que você faz com gosto vale a pena. Quando desejo alguma coisa, nada me emperra. [...] Porque é você que se arrisca nessa transformação, mas o desejo é maior, o jeito, já pensou você de biquíni jogar aquele corpo belíssimo na praia, os homens tudo olhando? (Flávia Desirré, 36 anos).

Percebemos aqui que este sujeito-desejante está mais qualificado que qualquer especialista para julgar e classificar que corpo, dor e risco lhe convém no empreendimento de suas decisões fundamentadas no desejo e que ajudam a conformar seus sentimentos de identificação, já que as travestis possuem "[...] do toureiro a coragem viril e intimorata, associada a delicadas e femininas preocupações com aparência e vestuário" (Silva, 1993:37).

Campbell (2001), propondo-se a refletir sobre a natureza do consumo moderno, nos traz a conexão entre metafísica e consumo, que revelam a força dessas dimensões simbólicas do desejo. Para o autor, o ato de consumir possui dimensões mais profundas que apenas satisfação, questão que envolve a possibilidade do ser humano em fazer a si próprio: "relacionadas com a natureza da realidade e o propósito da existência". Buscando este movimento, ressalta dois aspectos do consumo moderno, o qual seria, primeiro, o "lugar central das emoções e do desejo, juntamente com certo grau de imaginação", o que nos leva para além da ideia de necessidade, ou mesmo de relativização, de que aquilo que é necessário para alguns pode não ser para outros. O segundo aspecto ressaltado é o do desenfreado individualismo moderno, que traria uma ênfase na decisão pessoal dos indivíduos, vontades estas apreciadas no self. Vemos assim que o consumismo, atualmente, é movido muito mais por sentimentos e emoções revelados pela categoria desejo do que pela ideia de necessidade (Campbell, 2001).

Observamos através da travestilidade "uma tendência cada vez maior de rejeitar tanto a autoridade tradicional quanto a dos especialistas em favor da autoridade dos indivíduos em fazer valerem seus desejos, vontades e preferências" (Silva, 1993:54-55). O desejo é assim invocado como sentimento que as autoriza a vivenciar as dores das longas sessões de aplicação do silicone industrial,5 5 De maneira mais comum no universo da travestilidade, devido à sua situação social marginalizada, o silicone que é aqui utilizado nesta intervenção é o silicone líquido e industrial, cujo sentido de produção seria para limpar e lustrar as peças de avião, sendo também empregado pela indústria automobilística para limpar painéis, pneus e outras partes de carros. Este elemento é que servirá para preencher as partes desejadas de maneira a perseguir cada vez mais os contornos arredondados – significados como formas anatômicas propriamente femininas – de rostos, seios, nádegas, quadris, pernas e braços, que serão, através deste procedimento, reelaborados, adequando-se aos projetos de transformações corporais. Torna-se parte da própria carne das travestis, pois quando "ele entra, ele entra rasgando, preenchendo aquela pele morta" (Flávia). É um método caseiro, aplicado por uma "bombadeira", sendo apontado por elas como um procedimento extremamente doloroso. Os instrumentos utilizados para sua aplicação são inúmeras seringas e agulhas próprias para uso veterinário, 40/16, que, sendo maiores e mais grossas, podem absorver e como injetar uma maior quantidade do líquido em seus corpos. Após escolher a quantidade apropriada, ou mesmo as que cabem em seus bolsos, aplica-se o anestésico, prática que não é executada por todas, já que muitas me revelaram já terem feito através do que elas chamam de ponto cru, ou seja, sem qualquer produto, seja intra ou extraderme, que prepare o local, amenizando a dor da aplicação. bem como a aceitar os riscos nele implícitos; os inúmeros procedimentos de práticas de cuidado; e os enjoos advindos da ingestão dos hormônios femininos.

O desejo e a dor fundem-se como veículo de adequação, que acaba por formar um ethos baseado na coragem de passar rotineiramente – para que seja possível fazer deste corpo um corpo travestido – por esquemas de dor física, tido muito mais como percurso necessário do que sentido em sua atmosfera de sofrimento:

A cabeça fica a mil, né? Penso nos riscos, já vi muita coisa que deu errado por conta do silicone, e você sente realmente na pele o risco. Porque é uma coisa que você coloca que sabe que pode dar tudo errado, mas o desejo, a vontade é tão grande de colocar que você faz. E faria de novo (Carol, 37 anos).

A dor neste momento de suas trajetórias é então pouco sentida no que diz respeito ao seu conteúdo nefasto e negativo, já que aqui incisivamente alia-se ao prazer – o prazer no exato momento de vislumbrar, logo após longas e dolorosas sessões, suas ansiosas e desejadas transformações:

Depois do silicone, me mudou tudo, tanto que hoje eu nem me sinto travesti. Quem me chamar de travesti vai ficar de graça, porque não vou olhar. As sessões são barra, dói, mas tem que doer, porque é a dor da beleza. Mas depois, e isso logo depois que ela acaba de botar, viu? Que você se ver assim belíssima, com aqueles seios belos, aquela bunda arredondada nem se lembra daquela dor. Parece que nem existiu (Sheila Magda, 37 anos).

O povo dizia que eu era feia, por isso eu queria fazer, mas morria de medo. Fomos pro quarto dela [da "bombadeira"] assistir televisão, aí ela olhou assim pro meu peito, que tava já com muita pele flácida por causa do hormônio. Aí ela olhou de um lado, de outro, pegou do lado, balançou assim e já enfiou a agulha, a cru, sem anestesia sem nada, eu nem vi de onde a diaba tirou aquela agulha, nem esperava aquilo, achei que ela estava só olhando não tava sentindo nada, eu não sinto dor, pra certas coisas não, tem gente que qualquer coisa, ai, ai, ai, eu não! Quando olhei, a agulha já tava pendurada, ela colocava o óleo, e ia preenchendo a seringa e ele vai se deformando, moldando, vai procurando o espaço pra se aglutinar, ela só segurou, não moldou nada com as mãos. Aí, quando pensei que não, surge aquela coisa, um peito só, aquela prótese linda; quando olhei pro outro, aquela coisa murcha. Aí ela disse: agora vamos pro outro! Quando ela terminou, eu estava com um seio lindo, e com aquele sorriso no rosto (Flávia Desirré, 36 anos).

Assim, experimentar a dor sem queixas e lamentações ou ainda utilizá-la como linguagem de satisfação leva as travestis a vivenciarem a dor como forma de expiação, um sentimento que envolve o cumprimento do sofrimento, que é por si só compensatório. "A dor pode permanecer privada; pode não haver sinal ou indício externo de que a pessoa está experimentando dor, mesmo que a dor seja muito intensa. Esse tipo de comportamento é comum em sociedades que valorizam o estoicismo e a força" (Helman, 2003). E no caso da sociabilidade travesti, ela vem ressignificada pela coragem de se "assumir", na qual, ao enfrentar a dor da beleza, formula idiossincrasias que preenchem de sentidos as suas escolhas.

Em suas autorreflexões sobre o que é ser travesti,6 6 "Ser travesti é quando você está toda transformada, cabelo grande, seio, bunda. Se não tiver um corpo feminino, não é travesti, tem que ser feminina, que engane ao menos de longe. Não pode ser desleixada" (Paulinho, 40 anos). "As pessoas dizem que ser travesti é só colocar uma saia. Mas pra mim não é só isso, tem que ter o corpo definido, tem que ser feminina e delicada. Tem que se cuidar mesmo. Porque se fosse assim, todo homem que coloca roupa de mulher no carnaval seria travesti" (Joelma, 23 anos). elas trazem à tona um discurso que revela o cuidado e as mudanças corporais como características centrais desta identificação, sendo estas características empreendidas necessariamente através da dor. Sentem assim, na inevitabilidade, resignação e, na ressignificação da dor, instâncias que auxiliam na sua maior suportabilidade, aumentando o limiar individual para o sofrimento. Esta simbologia positiva dirigida aqui à dor, no que tange aos ideais de suas práticas corporais, pode também ser observada como maneiras de parafrasear os sinais das representações sociais de "feminilidade", pois é elemento central desta identificação perseguir não apenas as marcas corporais que simbolizam o feminino, mas também os tipos e as modalidades de sentimentos historicamente delegados como próprios desta representação social do feminino.

As crenças, tanto do senso comum quanto dos estudos modernos da anatomia humana, referem-se, rotineira e cientificamente, à maior suportabilidade da fisiologia feminina à dor (Laqueur, 2001). O vivenciar da dor parece ser significado, assim, como um dos papéis próprios dos esquemas de feminilidade, e isto não só do que fala a fisiologia específica feminina – das dores das cólicas menstruais; dos quadris se alargando para o parto quando do período de gestação; das angústias da menopausa; do sofrido processo da amamentação: marcadores específicos da anatomia e do organismo feminino – como também parece dirigir-se a outras instâncias que abarcam as configurações simbólicas culturais da tão promovida expressão "dor da beleza".

No conteúdo simbólico desta "dor da beleza", encontramos as dolorosas práticas estéticas que "criam" e "mantêm" a "beleza" feminina e que ajudam culturalmente a moldar o seu ethos: orelhas furadas ao nascer, marcas culturais do Ocidente para cravar, nos quase não distintivos corpos infantis, o dito feminino; lipoaspiração; uma ampla gama de intervenções cirúrgicas estéticas; pelos arrancados um a um à pinça; depilação; secadores que puxam o couro cabeludo com força e calor, entre outros.

O vivenciar desta dor cerca-se destas crenças de teor anódino na sociedade como um todo, e também é envolvido por crenças próprias, criadas e elaboradas dentro deste grupo específico, como comenta Pelúcio (2005) sobre o imaginário simbólico das travestis que tomam o silicone como "purificador" do sangue impuro masculino e instaurador de um "sangue" feminino. O artificial, ficcionalmente, "limpa" o natural, que é negado, e este, por sua vez, é ressignificado e sentido emocionalmente como excesso. O "artificial" é, assim, percebido como parte da própria carne.

Nesta elaboração de uma linguagem de satisfação, as travestis, articulando dores e prazeres, identificação e exclusão, relacionam as dores de suas práticas de modificações corporais sempre a um fator positivo de realização, empreendimento, distinção e adequação, usando a "dor da beleza" implícita nesses cuidados como algo a ser dignificado em suas articulações simbólicas.

Fundamentalmente, procura-se refletir, entre os processos de aceitabilidade da dor como projeto positivo de automodelação, sobre o lugar em que o sofrimento é substituído pelo prazer de se contemplar o corpo projetado:

Nos seios eu coloquei um litro, é só duas furadas, uma em cada lado. Agora na bunda, eu senti dor. Levei 60 furadas, eu gritava de dor, pedia socorro! Mas nem pensei na dor, só pensei em ficar bonita. Só pensei nos riscos depois, na hora só quer ficar bonita. E ficou belíssimo (Sheila Magda, 37 anos).

Através dessa linguagem acredita-se na dor como um projeto positivo, encontra-se "[...] algum sentido superior nela, eleva-a à categoria de criação de si, enxergando um motivo de orgulho, pois é da dor que surge a obra" (Dorneles, 2004:191). Esta criação de uma obra, pautada na construção de um corpo belíssimo, intenso, glorioso e adequado, faz com que as travestis, mais uma vez, ressignifiquem os pares cartesianos da modernidade. Deslizam por essas estruturas de assujeitamento, formulando táticas de subjetivação e distinção por entre estes interstícios de autoconstrução, e trazem na significância da dor positivada – que mesmo sendo dor produz pura alegria e criação – a necessidade de fazer este corpo vibrar, transformando o seu corpo em espaço produtor e elaborador de sua imagem, para que ele próprio se torne discurso.

Neste movimento de "[...] criação de corpos vibráteis, pega-se a dor não para esgotá-la em si, mas para que ela produza em mim um outro tipo de experiência que não é a dor/sofrimento" (Dornelles, 2004:194), mas de forma intensa uma dor/coragem, uma dor/adequação, uma dor/satisfação mexendo nas dicotomias pré-discursivas que moldam os sentimentos do homem moderno, demonstrando seu aspecto manufaturado, bem como sua contingência. Não é um rompimento apenas, é acima de tudo construir para si um caminho tangencial, formulando e decodificando uma nova linguagem (de satisfação) via experimentação de si, pois é preciso "[...] incorporar esta outra língua, que passa pela destruição da prisão (o corpo organizado [heteronormativo e dimórfico]), no caminho de construção do corpo glorioso". (2004:204).

Este corpo, que sendo capaz de criar para si seus próprios referenciais discursivos e emocionais, nos torna capazes de perceber, através da análise dos códigos da travestilidade e da perspectiva queer, as maneiras como os sujeitos-corpos – ou seja, daqueles que fazem do seu corpo ontológico um complexo mais profundo de adequação emocional por meio de seus eu-desejantes – resistem à normatização generificada em corpos e afetividades "viáveis", fazendo uma citação descontextualizada ou ainda um uso impróprio dessas tecnologias de "normalizações" (Preciado apud Carrillo, 2007). Neste sentido, as travestis, que historicamente são percebidas como objetos de um saber médico, psiquiátrico, jurídico e antropológico – "o anormal", "o monstruoso", "o risível", o "marginal", "o subalterno" – passam a reclamar de maneira cada vez mais constante um saber local, um conhecimento sobre si mesmas, e uma matriz emocional tangencial que põe em questão as matrizes hegemônicas de apreciação (ídem.).

Considerações finais

Faz-se necessário, antes de tudo, afirmar o caráter sempre temporário das pesquisas sociais, nas quais as buscas de "verdades" estáveis frequentemente demonstraram ter aspectos profundamente criticáveis, devido não só à diversidade dos atores sociais que compõem e conformam esta realidade, como também à multiplicidade de experiências de vida que pode um mesmo grupo sociocultural abarcar. Levam-se em conta, neste sentido, a mobilidade e a mudança, fenômenos sempre destacados como características intrínsecas da realidade social contemporânea que, sendo formada por sujeitos – ressaltando o que durante toda esta pesquisa se procurou estabelecer – de acentuadas características, nos remete à fluidez presente na multiplicidade de papéis desempenhados pelos indivíduos atuais. Aqui, o deslocamento de um conceito mais estático de identidade para o de identificação (Hall, 2000) ajudou-nos a revelar esta realidade situacional dos atores sociais.

A ideia de desejo como motivação central de suas articulações entre assujeitamento e subjetivação surge, dessa maneira, como ponto primordial de suas narrativas para determinar as movimentações feitas na experiência da travestilidade. O ato de desejar tão fortemente, de experimentar em seus corpos e em suas performances cotidianas os elementos que revelam as linhas divergentes entre gênero, sexualidade e corpo revela que este movimento da travestilidade precisa de práticas corporais específicas.

Neste sentido, o corpo na travestilidade, além de carregar discursos como parte de seu próprio sangue, como quer Butler (2001; 2003), mostra que este discurso precisa ser corporificado. Nele, as performatividades discursivas revelam força e efeito, mas precisam, contudo, efetivamente na carne, parodiar símbolos afetivos e corporais próprios da gramática social feminina para preencherem estes aspectos desejantes de identificação, sendo assim o discurso corporificado nas práticas corporais de cuidado próprias desta experiência.

Aqui a centralidade metodológica, no que tange à significação das práticas mais cotidianas dos autores sociais e aos discursos, mostrou-se como a maneira mais apropriada de perceber as formas pelas quais os sujeitos se movimentam pelos esquemas hegemônicos através da demonstração de como, na experiência da travestilidade, são reinventados os arsenais tanto tecnológicos quanto discursivos para, por meio deles, performatizarem seus desejos de identificação, formando um saber alternativo ao discurso oficial.

Ao se perceber, portanto, a pertinência de situar o corpo como nó de múltiplos investimentos e inquietações sociais (Vaz, 1999), tomaram-se as emoções e as afetividades como importantes chaves para se pensarem os processos de interação social presentes no desenvolvimento da corporificação, demonstrando-se, assim, seu evidente valor socioantropológico. Visamos contribuir para a discussão acadêmica e a da prática social através de concepções da inexistência ontológica dos corpos e de uma abordagem díspar centrada nas experiências afetivo-emocionais. A emergência deste tipo de abordagem pareceu residir na lógica linearmente desenvolvida na literatura especializada, de cunho mais estruturalista, que tende a relegar "[...] a segundo plano a ação social individual e, por conseguinte, os atores sociais e sua vida emocional [...] [percebendo as emoções], no máximo, como variável interveniente na análise social" (Koury, 2005:239-240). Esquece-se do questionamento de como, para além da existência de estruturas mentais simbólicas, pragmaticamente estas são colocadas, alocadas e deslocadas de seus sentidos primeiros na vida cotidiana.

A questão é que pouco se tem falado sobre afetividades, instâncias afetivoemocionais que guiam e permeiam tais relações. A ideia de falar ou de centrar este trabalho nas narrativas da dor deveu-se não apenas à experiência subjetiva da dor, mas também às condições socioculturais em que ela se forma, dando contorno à sua dimensão histórica e social de reflexão socioantropológica. Partiu-se justamente desta necessidade de se ouvir, sentir e perceber as emoções, que demonstram as maneiras mais aproximadas de apreender como a vida cotidiana está enredada em linhas morais reveladas nos esquemas de hierarquização social.

Se em alguns trabalhos antropológicos sobre a dor esta tem se revelado como tema apropriado para tratar das configurações simbólicas e dos sentimentos sociais sobre a temática da morte (Consigliere & Guerci, 1999), trazemos, de maneira controversa, para este campo de reflexão a experiência da travestilidade, na qual a dor significa justamente elemento de passagem para a vida à qual, de maneira desejante, se aspirou. Aqui a dor não é sentimento próprio para vivenciar apenas os esquemas do simbolismo da perda e da morte, mas a porta de acesso, positiva e não maléfica, para a vida, mas uma vida muito específica, a vida travesti.

As duas linguagens de que tratamos aqui, a Política e a de Satisfação, afiguram-se importantes elementos de um jogo difuso não apenas pelas possíveis particularidades de histórias de vida das travestis, mas sobretudo porque, ao refletirem sobre suas práticas de remodelações corporais, a dor física dessas experiências pareceu menor em face das dores da exclusão por conta do comportamento dos outros em relação a esse corpo de difícil inteligibilidade. A ideia da dor apareceu nestas narrativas como reflexividade e espaço de intervenção, em que se afirmaram a dignidade e a condição humana, tomando-a como capital simbólico específico, seja através da visibilidade trazida por histórias de sofrimento compartilhadas, seja pela satisfação, a coragem e a distinção com que significam seus procedimentos metamórficos.

Objetivou-se, portanto, não apontar meramente para a fluidez e a pluralidade de emoções, corpos, gêneros e sexualidades, ou simplesmente abraçar ou refutar alguma proposta pós-moderna de diluição da supremacia cientifica ou moral, mas, preponderantemente, perceber a atualidade desses embates, somando-os segundo a perspectiva do mundo, assim como são vividos nas experiências ordinárias da vida cotidiana (Overing, 1999), através das considerações e das motivações práticas intersubjetivas e emocionais. Acredito serem estas questões caras ao pensamento não só antropológico, mas da sociedade civil organizada em seu sentido mais amplo.

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Recebido: 25/10/2010

Aceito para publicação: 11/05/2011

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  • 1
    A pedido de algumas colaboradoras, alguns nomes foram modificados, inclusive como medida adotada para resguardar suas privacidades, dado o fato de o trabalho se centralizar em histórias de vida muito pessoais.
  • 2
    O conceito de abjeção é trazido por Butler (2001:155) através da evidência de que os corpos que não se encontram segundo o aspecto de inteligibilidade social destinada aos gêneros e aos corpos normativos encontram-se fora do "domínio dos sujeitos", sendo empurrados para as "zonas 'inóspitas' e 'inabitáveis' da vida social".
  • 3
    "Corra" é uma gíria própria do universo travesti que quer dizer sofrer alguma violência, chacota, alguma ação em que se tenha literalmente que sair "correndo" ara se proteger.
  • 4
    O nome fictício escolhido foi masculino, pois ela continua usando seu nome masculino, segundo ela, em respeito à mãe, mesmo tendo seu corpo totalmente transformado e sendo inclusive "bombadeira". Esta é maneira como são êmicamente chamadas as travestis que executam a prática de "bombar" os corpos, ou seja, de aplicar o silicone industrial. E, por isso, encontram-se num alto patamar na hierarquia deste grupo, pois através desta prática é que podem alcançar as tão dignificadas transformações corporais. Possuem conhecimento muito particular sobre cada parte do corpo, bem como sobre seus inúmeros e particulares modos de manutenção. Dependendo da parte do corpo a ser reelaborada, explicitam o funcionamento desta rede paralela aos esquemas biomédicos de intervenção cirúrgica. Inúmeras, extensas e dolorosas sessões são executadas, nas quais a racionalidade da consulta médica é substituída pelos esquemas afetivo-emocionais revelados através do desejo de adequação.
  • 5
    De maneira mais comum no universo da travestilidade, devido à sua situação social marginalizada, o silicone que é aqui utilizado nesta intervenção é o silicone líquido e industrial, cujo sentido de produção seria para limpar e lustrar as peças de avião, sendo também empregado pela indústria automobilística para limpar painéis, pneus e outras partes de carros. Este elemento é que servirá para preencher as partes desejadas de maneira a perseguir cada vez mais os contornos arredondados – significados como formas anatômicas propriamente femininas – de rostos, seios, nádegas, quadris, pernas e braços, que serão, através deste procedimento, reelaborados, adequando-se aos projetos de transformações corporais. Torna-se parte da própria carne das travestis, pois quando "ele entra, ele entra rasgando, preenchendo aquela pele morta" (Flávia). É um método caseiro, aplicado por uma "bombadeira", sendo apontado por elas como um procedimento extremamente doloroso. Os instrumentos utilizados para sua aplicação são inúmeras seringas e agulhas próprias para uso veterinário, 40/16, que, sendo maiores e mais grossas, podem absorver e como injetar uma maior quantidade do líquido em seus corpos. Após escolher a quantidade apropriada, ou mesmo as que cabem em seus bolsos, aplica-se o anestésico, prática que não é executada por todas, já que muitas me revelaram já terem feito através do que elas chamam de ponto cru, ou seja, sem qualquer produto, seja intra ou extraderme, que prepare o local, amenizando a dor da aplicação.
  • 6
    "Ser travesti é quando você está toda transformada, cabelo grande, seio, bunda. Se não tiver um corpo feminino, não é travesti, tem que ser feminina, que engane ao menos de longe. Não pode ser desleixada" (Paulinho, 40 anos). "As pessoas dizem que ser travesti é só colocar uma saia. Mas pra mim não é só isso, tem que ter o corpo definido, tem que ser feminina e delicada. Tem que se cuidar mesmo. Porque se fosse assim, todo homem que coloca roupa de mulher no carnaval seria travesti" (Joelma, 23 anos).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Ago 2011
    • Data do Fascículo
      Ago 2011

    Histórico

    • Aceito
      11 Maio 2011
    • Recebido
      25 Out 2010
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