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La intemperie y lo intempestivo: experiencias de aborto voluntario en el relato de mujeres y varones

RESENHAS

Maria Luiza Heilborn

Doutora em Antropologia Social - Instituto de Medicina Social - IMS/UERJ Rio de Janeiro, Brasil > heilborn@ims.uerj.br

CHANETON, July & VACAREZZA, Nayla. 2011. La intemperie y lo intempestivo: experiencias de aborto voluntario en el relato de mujeres y varones. Buenos Aires: Marea Editorial. 188 p.

A literatura sobre aborto provocado é abundante na área da saúde, mas não tão frequente entre os estudos das ciências sociais, como o tema requer. Um novo livro, escrito a quatro mãos, por July Chaneton y Nayla Vacarezza, ambas vinculadas à Universidade de Buenos Aires, traz novos elementos para o debate. Os estudos sobre o tema na América Latina e Caribe usualmente se centram em mulheres, tidas como as principais protagonistas da decisão de interromper a gestação. Entretanto este novo livro soma-se ao recente perfil de trabalhos que consideram que a temática do aborto como prática social só pode ser bem compreendida com a visão masculina e a análise do papel que desempenham na interrupção da gravidez.

O recurso ao aborto é difundido no mundo e, mesmo em países nos quais o uso de contraceptivos é alto e de fácil acesso, o número de gravidezes imprevistas é realidade constante. A interrupção da gravidez aparece como a solução para esse "descompasso entre a situação do corpo e da vontade", segundo as autoras. Estima-se, por exemplo, que na França, país com amplo acesso a métodos contraceptivos, a cada 10 gestações, quatro não são programadas e a decisão pelo aborto é de 3 em 10 nascimentos (Shivo et al., 2003:601).

A situação difere muito nos contextos em que a clandestinidade se impõe, como cenário para a interrupção voluntária da gravidez. Este é o caso da Argentina, retratado no livro La intempérie y lo intempestivo. Naquele país, como no Brasil, a legislação não contempla a interrupção voluntária da gravidez somente pela decisão da mulher. Dois casos permitem tal escolha: a gestação com risco de vida para a mãe ou como resultado de estupro. Em 2005 teve início a campanha nacional argentina em prol do direito ao aborto, que se constitui em uma aliança supra partidária recomendando o aborto legal, seguro e grátis. A tônica da campanha é a de que a interdição do abortamento representa uma dívida da democracia para com as mulheres. Os marcos são referidos nas palavras de ordem: a mulher decide, a sociedade respeita e o Estado garante. A autonomia feminina, portanto, reside no poder de decidir, a partir das avaliações que as grávidas fazem sobre a existência ou não de condições de cuidar de um filho. Assim, quando consideram que recursos materiais, simbólicos e/ou emocionais são insuficientes para deixar nascer um filho, essa decisão deve ser respeitada. Este argumento salienta a importância de qualificar a maternidade como escolha que garante não apenas a vida, mas vida digna para a futura criança e para a mulher.

O livro, composto por sete capítulos, está comprometido com essa visão de mundo e tal argumentação é retomada em diferentes momentos de análise das falas dos entrevistados. Os capítulos são organizados a partir da eleição de trechos ilustrativos de partes dos discursos d@s informantes. Um conjunto de 26 entrevistas com sujeitos de ambos os sexos é tratado como um corpus narrativo. A inserção social e a trajetória de vida são, assim, menos relevantes para a análise empreendida (:80) do que a preeminência concedida "à poética e ao político das narrativas, que constituem uma enunciação coletiva feita de multiplicidade" (:5). O projeto de pesquisa, concebido a partir da tradição dos estudos de comunicação, subjetividade e linguagem, apóia-se na perspectiva da teoria dos micro-poderes de Foucault - para buscar elucidação acerca do porquê e partir de quais meios mulheres rompem com a regra legal. Quais são os recursos mobilizados?

O estilo resulta um tanto impressionista. A estratégia de fazer emergir de parcelas do discurso linhas de significado que expliquem a determinação das mulheres é, de um lado, coerente com as escolhas teóricas das autoras, mas por outro lado deixam uma sensação de incompletude ou inconsistência de visões múltiplas sobre a decisão e o ato de abortar. Encontram-se relatos tranquilos de defesa da autonomia da decisão feminina (cap. 3), mas há outras vozes, mais fragilizadas diante do caminho a ser tomado. Há lágrimas, desespero, medo de morrer durante o procedimento. Salienta-se que a narrativa do aborto tem sempre presente uma "estrutura dramática", a mulher se representa "lutando contra o vento e a maré", aludindo ao esforço de reunir forças e esperanças, frente à realização de uma prática clandestina, que gera insegurança e ansiedade.

A multiplicidade de posições subjetivas agrega mulheres que ignoram a opinião dos parceiros, que se mantêm nos limites de respeitar o que se passa no "corpo dela" (:84) e, ao mesmo tempo, surgem relatos nos quais a demora da decisão feminina relaciona-se à ausência de sinalização do parceiro em torno de desejo do filho. Defendem Chaneton e Vacarezza que, pelo fato "de estarem à beira do abismo", aparecem formas absolutas de autodeterminação. Considero que as autoras dão voz à diversidade de pontos de vista, mas sobre enfatizam os casos em que as mulheres declaram não ter tido dúvida em interromper a gestação. Na reiterada afirmação de que há um hiato entre o corpo grávido e a vontade feminina ocorre um resolução, que não chega a ser uma reflexão, mas trata-se de uma recusa total. Boltanski (2004), em seu livro sobre a condição fetal, já assinalara que a gravidez não prevista pode produzir um entendimento da gestação como análogo à aparição de um tumor. Apenas o reconhecimento simbólico da gravidez torna o corpo estranho um filho potencial.

No cap. 6 as autoras se dedicam a demonstrar o grande abismo social entre mulheres de camadas médias e de origem popular, quando se trata da mobilização dos meios práticos de conseguir realizar o aborto. O capitulo descreve os itinerários para se obter um abortamento, que são nomeados como intervenções. "Os testemunhos correspondentes a segmentos sociais de baixo rendimento dão conta de um processo comparativamente mais longo para completar a prática, em muitos aspectos mais difícil e mais inseguro" (:111). São estes casos que contrastam procedimentos efetuados em clínicas nas quais cuidados seguros são providos aos casos de atuação de uma curiosa, como se diria no Brasil, que insere pílulas na área genital, provocando hemorragia e internação hospitalar. Trata-se da cruel dureza das inequidades sociais, que tornam a decisão do aborto mais penosa para as mulheres mais vulneráveis.

Embora o material não esteja sistematizado, nota-se que o aborto é referido em diferentes etapas da vida, seja no que se poderia definir como etapa inicial da vida sexual com parceiro - moças bem jovens (15 anos de idade), deparando-se com o dilema reprodutivo, bem como mulheres conjugalizadas que já possuem dois filhos, e que a chegada de um terceiro é avaliada como desestruturante da vida familiar e pessoal. As autoras mencionam que, muitas vezes, para além da própria experiência, as entrevistadas relatam como viram outras mulheres em situação semelhante não conseguirem abortar e de que maneira a sobrevinda de mais um filho provocou desespero e impotência.

Desde o primeiro momento, o titulo do livro se destaca: intempérie e intempestivo, dois termos, para assinalar a ideia de um acontecimento que acomete a vida das mulheres sem previsibilidade e a intempérie social (:91) que os sujeitos do corpo grávido - experiência inefável - com poucos recursos têm de enfrentar para aceder ao aborto. Segundo as autoras, essas mesmas mulheres são as que mais exemplificam a tomada de decisão solitária.

O capítulo 7, incorporando a nova tendência de investigação da experiência masculina no que concerne à sexualidade heterossexual e a reprodução, dedica-se a esboçar a vivência de estar ao lado da parceira ou de completo alheamento. Para além do interesse de conhecimento de uma dimensão subestimada e reducionista do fenômeno, a inclusão dos homens nas pesquisas sobre o tema também revela a necessidade de considerá-los no âmbito de intervenções de políticas públicas (Lerner & Guillaume, 2008). Os homens são analisados a partir da ótica de outro significativo e, de fato, grande parte dos relatos, apesar de as autoras sublinharem que o aborto é objeto de uma decisão compartilhada na qual atuam outros personagens além do parceiro - como mãe, amigas, vizinhas, comadres - eles contam e muito.

La intemperie y lo intempestivo recolhe testemunhos pungentes. Com o recurso à fala dos entrevistados, as autoras buscam significados atribuídos às experiências e se alinham, com a convicção de que a premissa argumentativa dos sujeitos é de conceder superioridade axiológica à vida vivida.

  • BOLTANSKI, Luc. 2004. La condition fŒtale: une sociologie de l'engendrement e de l'avortement. Paris: Gallimard. 420 p.
  • LERNER, Susana & GUILLAUME, Agnès. 2008. "La participación de los varones en la práctica del aborto. La construcción del conocimiento en América Latina". Revista Latinoamericana de Población, Año 1, No. 2. Enero / Junio.
  • SHIVO, S. et al. 2003 "Women's life cycle and abortion decision in unintended pregnancies". J. Epidemiological Community Health 2003.57 601-605

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2011
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