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Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias "travesti" e "transexual" no discurso científico

RESENHA

Mario Felipe de Lima Carvalho

Psicólogo, Mestre em Saúde Coletiva - Rio de Janeiro, Brasil > mariofelipec@yahoo.com.br

LEITE Jr, Jorge. 2011. Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias "travesti" e "transexual" no discurso científico. São Paulo: Annablume. 240 p.

Ao ler a obra de Leite Jr, foi inevitável lembrar a fala de uma ativista travesti com a qual iniciei meu trabalho sobre a diferenciação entre as categorias "travesti" e "transexual" no âmbito das organizações militantes: "Acho que sou um Pokémon.1 1 Pokémon ou Pocket Monsters são personagens de um videogame que posteriormente foram retratados em histórias em quadrinhos, desenhos animados e filmes. Resumidamente, são criaturas que evoluem e adquirem diferentes formas. Quando era novinha, me chamavam de viado, depois virei uma bichinha pintosa, depois travesti. Agora, para chegar ao topo da evolução tenho que virar transexual". Pois Leite Jr deixa mais que evidente que as disputas, os deslizamentos, as reconfigurações e acima de tudo o forte embate político também marcam profundamente os caminhos da "invenção das categorias 'travesti' e 'transexual' no discurso científico". Nesse sentido, desde já, ressalta-se o valor de seu texto no campo de estudos de gênero, sexualidade e ciência por sua capacidade de mostrar a forte imbricação (bio)política na produção dos saberes científicos, sem negligenciar os pontos de tensão e resistência. Afirma o autor:

... notei que o discurso científico é o pano de fundo com o qual se discutem concepções políticas e mesmo as espetacularizações do mundo do entretenimento. Pretendi então buscar neste campo as orientações e justificativas para tais definições clínicas e político-identitárias, individuais e/ou coletivas (:25).

Ao "contar histórias sobre corpos que mudam de forma" (Ovídio, 2003 apud Leite Jr, 2011), podemos pensar em diferentes planos analíticos em constante interlocução, como bem sugere Leite Jr. O primeiro deles seria o da própria cultura, em que as pessoas assumem diferentes posicionamentos identitários a fim de se localizarem em um sistema mais amplo de classificação de sexo e gênero. Nesse universo de possibilidades, muitas são as denominações utilizadas: "bicha", "viado", "homossexual", "travesti", "travesti operada", "transexual", "mulher transexual", "trans", "mulher trans", "transex", "transgênero", "T-gata", "mulheres que vivenciam a transexualidade", "mulheres que vivenciam aquilo que chamam de transexualidade", "mulheres adequadas", ou simplesmente "mulher". Não podemos afirmar que todas estas denominações descrevam um mesmo fenômeno de "inconformidade entre sexo e gênero".

Os processos de conformação identitária são mais complexos e as escolhas ou imposições de denominações não são aleatórias. Espaços de sociabilidade, origem social e capital cultural são alguns dos condicionantes envolvidos, além, é claro, da própria singularidade de cada sujeito e de sua história de vida. Há também o plano político, que aparece simultaneamente como fomentador e organizador de identidades coletivas, e que junto ao poder público busca concretizar demandas de organizações e grupos políticos que compõem o chamado movimento de travestis e transexuais. E, por fim, aquele sobre o qual Leite Jr se debruça com maestria, que seria o plano dos saberes científicos.

Partindo da Antiguidade, o autor descreve os usos e as influências que a figura do hermafrodita terá na cultura – ainda no modelo descrito por Thomas Laqueur como de sexo único, fortemente relacionado ao imaginário místico-religioso presente nos discursos filosóficos da época. Passa, então, pelas imagens e pelos simbolismos associados ao hermafrodita e ao andrógino ao longo do Idade Média e do Renascimento. É importante lembrar, como Berenice Bento o faz na apresentação do livro, que não se trata de uma busca histórica das essências primordiais da/o travesti e transexual numa espécie de raciocínio evolucionista que julga tais experiências identitárias como naturais e sempre existentes, mas sim de mostrar que as matrizes explicativas dos corpos, gêneros e sexos mudam, e junto com elas a própria concepção do que seria propriamente humano ou quase humano.

Marca-se, então, o ponto no qual, a partir dos ideais iluministas, se rompe com a episteme arcaica e se inventa o dimorfismo sexual sob a égide da ciência moderna. Esta, por sua vez, se consolidará como a principal instituição responsável pela classificação, a normatização, a mensuração e o controle da diversidade de experiências de gênero e sexualidade. É evidente que não se trata de um processo sem disputas, conforme mostra Leite Jr, desde os primeiros postulantes do transexualismo e do travestismo como categorias patológicas até debates bem atuais no campo das ciências psi acerca da prescrição das cirurgias de transgenitalização, que têm como principais opositores aqueles mais alinhados ao lacanismo.

Neste ponto, gostaria de fazer algumas considerações sobre as impressões causadas pela leitura de diferentes partes do livro. Enquanto descreve a episteme arcaica, é forte a sensação de se tratar de algo mítico, fantasioso e irreal; quase como se estivéssemos lendo fábulas ou curiosas lendas dos primitivos povos da antiguidade. Entretanto, ao tratar da episteme moderna, um leitor desavisado pode ter a impressão de que o autor transcreve uma verdade absoluta, alcançada através dos esforços do desenvolvimento científico, nos levando à mais completa compreensão das estranhas vidas das pessoas travestis, transexuais ou transgêneros.

É evidente que Leite Jr não corrobora com o pensamento dos médicos, endocrinologistas, sexólogos, psicólogos e psicanalistas que analisa. Mas, em certa medida, a fidelidade e a riqueza de detalhes com que descreve tais pensamentos me fizeram pensar o quanto já damos um valor de verdade a priori para o discurso científico moderno, possivelmente com a mesma credulidade com que os antigos gregos ouviam os conselhos das pítias do Oráculo de Delfos, ou as descrições fantásticas de Ovídio.

Tal valor de verdade tem raízes, inclusive, na inteligibilidade produzida pela gramática científica, ou seja, não só a autoridade científica, mas também a escrita parecer produzir tais efeitos. Neste ponto devemos pensar que não se trata de uma relação unilateral, pois demandamos e esperamos que a ciência nos mostre a verdade escondida em nossos corpos e em nossas mentes e sacie nossas angústias. Assim, podemos vislumbrar melhor as razões pelas quais algumas pessoas que se identificam como transexuais fazem uso de tais descrições medicalizadas para explicar suas existências. O que pretendo marcar aqui é que os processos de medicalização (não apenas do gênero e da sexualidade) não são uma violência normativa pura e simples, mas um processo também desejado por aqueles que são alvos de tal medicalização.

Outro ponto que merece ser ressaltado na obra de Leite Jr é sua contribuição para o debate atual em torno das polêmicas e dos paradoxos do Processo Transexualizador do SUS. Como podemos perceber na leitura de seu livro, não há consenso entre as autoridades científicas sobre os critérios para o diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero ou Transexualismo, que daria acesso às tecnologias médicas de alteração corporal disponíveis no sistema público de saúde. Somado a isso, a investigação médico-psiquiátrica é revestida de valores morais dos profissionais envolvidos no serviço, o que frequentemente postula a categoria "travesti" como um tipo de diagnóstico diferencial que impede o acesso ao serviço. Entretanto, "travesti", conforme descrito na literatura médica, não corresponderia totalmente à categoria identitária presente na cultura brasileira, nem à categoria preconizada pela militância LGBT. Nesse sentido, o imaginário que associa prostituição-criminalidade-travesti está altamente imbricado na anamnese médica, a ponto de hoje pessoas que trabalham como profissionais do sexo serem excluídas do processo transexualizador, assim como aquelas que se afastam da "feminilidade burguesa".

Ainda sobre esse debate a respeito dos diferentes discursos médicos, a multiplicidade de experiências de gênero e os critérios de acesso ao processo transexualizador, Leite Jr (:181) conclui:

Da mesma forma, se as linhas nas medicinas, psicanálises e mídias que tratam do tema da transexualidade são várias, por que as pessoas transexuais têm que ser uma? Vemos, então, como a nomeação de comportamentos, identidades, desejos ou corpos como "portadores" de complexas doenças ou simples transtornos é menos uma descrição de variações humanas do que uma hierarquização política de graus de humanidade.

Assim, a função política das ciências médicas e psi ficam evidentes. Posto isso, não é de se estranhar que certas movimentações sejam feitas a fim de manter o status e o poder científico. Ao longo da história moderna da patologização das experiências de gênero dissidentes, há uma constante reformulação dos termos. O que poderia se pensar como avanço ou refinamentos das teorias acaba por se aproximar de uma estratégia de manutenção da autoridade sobre o assunto, pois à medida que os termos são reapropriados por novos atores sociais, a ciência muda seu vocabulário, como bem coloca Leite Jr (:194, grifo no original) em outra passagem:

Neste sentido, percebe-se que após uma batalha conceitual, onde os movimentos militantes por direitos LGBT, após investirem na troca terminológica de "transexualismo" por "transexualidade" em seus discursos, ressignificando uma categoria científica através de sua desvinculação do caráter patológico encontrado no histórico do sufixo "ismo", o discurso médico gradativamente abandona estas categorias substituindo-as por termos mais genéricos como a disforia ou transtorno de identidade de gênero. O debate linguístico revela um exercício de violência simbólica visando à consagração de novas expressões científicas, ao mesmo tempo em que desqualifica seus antigos termos, agora apropriados por outros agentes sociais.

É justamente a isso que assistimos hoje, às vésperas do lançamento pela American Psychiatric Association da quinta edição de seu manual diagnóstico, o DSM-V. Nas propostas de revisão do manual, já encontramos uma reformulação do transtorno de identidade de gênero em uma nova patologia, a "incongruência de gênero". Paralelo a este debate, acontece mundialmente uma movimentação pela retirada da "transexualidade" do manual, campanha esta conhecida como "STP2012" (Stop Trans Patologization 2012). Tudo se passa como se as principais autoridades psiquiátricas no Ocidente reconfigurassem a categoria patológica a fim de simultaneamente expandir suas fronteiras de forma assustadora para uma multiplicidade de variâncias de performance de gênero e romper com a associação única da patologia com o que a militância LGBT chama de "transexualidade". Este capítulo da disputa política entre os movimentos sociais e as autoridades científicas ainda está em curso e, por ser posterior à pesquisa de Leite Jr, não faz parte de suas análises. Mas, ainda assim, é um demonstrativo da validade das discussões feitas pelo autor para debates atuais e futuros.

Por fim, creio que acima de tudo temos um livro sobre ciência e política, no qual gênero, sexo, sexualidade, travestis e transexuais são o caso que possibilita contextualizar não apenas a falta de neutralidade da ciência, mas a afirmação de que, na modernidade, a ciência se configura como uma instituição política das mais fortes e influentes na vida cotidiana das pessoas.

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    Pokémon ou Pocket Monsters são personagens de um videogame que posteriormente foram retratados em histórias em quadrinhos, desenhos animados e filmes. Resumidamente, são criaturas que evoluem e adquirem diferentes formas.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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