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Sexuality studies

RESENHAS

Vinicius Kauê Ferreira

Mestrando em Etnologia e Antropologia Social. École des Hautes Études en Sciences Sociales. Paris, França. < vinikaue@gmail.com

SRIVASTAVA, Sanjay (ed.). 2013. Sexuality Studies. 1ª ed. New Delhi: Oxford University Press. 320 p.

Uma viagem no corpo. Um corpo cosmopolita, descentrado, sem espaço, errante, mas localizado, legislado, vigiado, disciplinado, punido. Um corpo nas suas mais diversas realizações: objeto a ser exposto e enunciado, ou abjeto a ser injuriado e apagado. Corpo interdisciplinar e diaspórico, que se move através de limiares e não lugares, entre materialidade e projeção, além das categorias. Um corpo queer, um corpus queer, é o que nos oferece a coletânea Sexuality Studies.

Mas não apenas - e certamente não por acaso - o corpo é errante nesta obra. Sanjay Srivastava, organizador da obra, se junta a outros 11 autores, indianos ou indianistas, para nos oferecer um livro que é ele mesmo aparentemente deslocalizado em sua constituição, escrito por mãos que viajam, mas que se reencontram virtualmente sob a égide dos sexuality studies. Ao construir uma obra local, pois sobre a Índia, e global, porque a Índia não nos fala apenas sobre ela, esses pesquisadores, baseados em diversas universidades do mundo, nos oferecem uma reflexão atualizada de temáticas ligadas diretamente ao corpo, tanto sua produção quanto seu esfacelamento: sexologia, homoafetividades, performance, direitos sexuais, prostituição, consumo, pornografia.

A obra integra a coletânea Oxford India Studies in Contemporary Society, editada pela socióloga indiana Sujata Patel, reconhecida por suas contribuições no campo da sociologia urbana, relações de gênero e teoria sociológica. Se a produção intelectual indiana é vasta e diversa, essa série de publicações parece nos trazer o que há de melhor nos estudos de sexualidade e queer desenvolvidos na Índia e sobre a Índia. Se a produção teórica desse país é ainda pouco conhecida do público latino-americano, tão poucas são as conexões, Sexualities Studies é um convite generoso para descobrir um universo acadêmico no qual é necessário investirmos.

Contudo, seria falho pensar que a abordagem apresentada nesta coletânea é representativa de uma produção "indiana", não apenas porque a produção acadêmica na Índia pode ser muito diversa (indo de diferentes tipos do marxismo, passando por apropriações diretas de autores europeus e estadunidenses, até reapropriações de textos védicos no interior das ciências sociais), mas sobretudo porque conhecer a produção teórica "indiana" significa entender que esse "indiano" precisa ser questionado. Logo se aprende que o "indiano" é sempre um essencialismo, um desconhecer um universo muito controverso no qual se inserem produções bastante díspares. Assim, podemos dizer que este livro apresenta uma das facetas da produção sobre a Índia: uma produção diaspórica que dialoga com teorias europeias na medida em que se posiciona de modo crítico, colocando-a em questão.

Além da apresentação do editor, o livro está dividido em doze capítulos, que vão da análise de textos jurídicos a trabalhos etnográficos, sendo eles: 1. Scripting Pleasures and Perversions: Writings of Sexologists in the Twentieth Century; 2. Wanton Women and Cheap Prints: Farces, Other Genres and the Reading Publics in Colonial Calcutta; 3. Beyond Equivalence: Body and Language in Family Courts; 4. Bodies Gone Awry: The Abjection of Sexuality in Development Discourse in Contemporary India; 5. Queer Formations in (Hindu) Nationalism; 6. Decriminalization as Deregulation? Logics of Sodomoy Law and the State; 7. True Sex and the Law: Prostitution, Sodomy, and the Politics of Sexual Minoritization in India; 8. The Object Attention: Same-Sex Sexualities in Small Town India and the Contemporary Sexual Subject; 9. Queering Subjectivities: On the Praxis of Outgoing Gender, Race, Caste, and Class in Ethnographic Fieldwork; 10. Street, Footpath, Gated Community: On the Cultures of Indian Pornography; 11. Love Attacks: Romance and Media Voyeurism in the Public Domain; 12. But I Can't Carry a Condom! Young Women, Risk, and Sexuality in the Time of Globalization.

Tendo em vista que as contribuições são numerosas e que, portanto, seria impossível analisar cada capítulo, optei nesta resenha por identificar os eixos que considero constituírem a obra na sua estrutura e no seu argumento, para então comentar alguns capítulos que julgo centrais. Sem dúvida, essa abordagem só é possível pela relativa unicidade da obra, que não se resume a um compêndio de artigos em torno de um tema (sexualidades, neste caso), mas que apresenta um argumento e uma efetiva coerência epistemológica que a caracterizam enquanto projeto de conhecimento.

Segundo Srivastava, em sua apresentação do livro, há dois pontos que atravessam os diferentes capítulos. Primeiramente, um movimento de pensar as sexualidades no contexto indiano além de uma concepção nativista, exótica ou elitista da sua realização. Dito de outro modo, indo além de uma literatura milenar (como o Kama Sutra) que, no seu uso feito pelo Orientalismo, passou a ser "representativa" e limitadora da discussão sobre sexualidades na Índia. Nesse sentido, os autores mostram como movimentos contemporâneos dos últimos 150 anos nuançam essas supostas tradições, estritamente brâmanes e desenvolvidas especialmente no período colonial.

Assim, um distanciamento epistemológico se faz necessário, pois teorias contemporâneas de matriz europeia não seriam suficientes para pensar contextos diversos. Especialmente criticado, sem ser abandonado, é Foucault. Sua dominância nos estudos sobre sexualidades é questionada e denuncia-se a ausência de certos debates em sua obra, como o colonialismo, além de pressupostos orientalistas que a caracterizariam, como a diferenciação entre a sexualidade científica "ocidental" e a ars erotica "oriental" (Foucault, 1979).

Além disso, Srivastava enfatiza que as pesquisas reunidas neste livro vão contra uma concepção hermética dos estudos sobre sexualidades como um campo autorreferente. Notória é a presença da expressão "culturas sexuais" ao longo do livro que, segundo o autor, serve para disseminar o debate entre diferentes campos do saber (jurídico, epistemológico, antropológico, histórico, saúde etc.) e para cruzar o campo das sexualidades com outros objetos, como modernidade, colonialismo, nacionalismo, globalização e ciência. A leitura atenta do livro realmente nos conduz a uma série de interseções num sentido bastante forte do termo, ou seja, indo além de meras relações entre esses diferentes objetos, evidenciam-se os processos relacionais de constituição recíproca de tais esferas.

Para avançar, eu gostaria de propor uma divisão do livro que considero produtiva para compreender como se realizam essas interseções no plano da análise. Chamarei a primeira parte do livro, referente aos dois primeiros capítulos, de "Literatura do corpo". Lidando diretamente com o período colonial ou da transição pós-independência, as duas contribuições abarcam dois distintos tipos de literatura do período que se estende do fim do século 19 até a década de 1950. O primeiro aborda o debate promovido pelo International Journal of Sexology (IJS), que manteve uma discussão de alcance global entre 1947 e 1955. O segundo explora os chamados "impressos baratos" (cheap print) da virada do século 20 em Calcutá, uma literatura em bengali destinada a ironizar a nova educação "britânica" endereçada às mulheres de castas abastadas.

Ambos partem da ausência de análise sobre estes dois tipos de produção: no que tange à sexologia, haveria uma leitura etnocêntrica do debate sobre sexualidade por parte da literatura europeia, que apaga argumentações científicas importantes levadas a cabo por uma das principais publicações em sexologia no século XX - refletido no binarismo foucaultiano mencionado acima; de outro lado, a escassez de análises sobre essa literatura de sátira, motivada por movimentos conservadores opostos à "new woman" saída de castas abastadas, que emerge naquele momento e provoca uma onda de pânico moral entre grupos reformistas. Em ambos os casos o corpo se precipita na sua forma biológica, na vontade de conhecimento fisiológico do prazer, mas também no campo da performance como novos modelos de feminilidade que mobilizam essa reação ao mesmo tempo conservadora e marginal.

Podemos ainda identificar uma segunda parte do livro, que chamarei de "Estado do corpo", constituída pelos cinco artigos seguintes. Sexualidades aparecem como objeto de regulação ou apagamento no discurso oficial do Estado e do direito. Mais especificamente, os artigos abordam: a tradução entre inglês e línguas regionais nas Varas de Família; sexualidades e projetos desenvolvimentistas; sujeitos queer no discurso nacionalista hindu; e (des)criminalização da homossexualidade pelo Estado indiano. É importante frisar aqui que, mais do que afirmar que o exercício dos corpos é regulado e mesmo criminalizado, essas contribuições nos propõem uma leitura dialética da constituição tanto da sexualidade quanto do próprio discurso jurídico e estatal. Muito mais que objeto externo aos campos jurídico e político, regulados e disciplinados, a sexualidade é intimamente constituinte destes.

Destaco aqui o capítulo de Paola Bacchetta, "Queer Formations in (Hindu) Nationalism", que analisa a centralidade do discurso sobre a sexualidade na formação de ideologias nacionalistas. Se pode parecer evidente que o campo da sexualidade se faz presente nos discursos nacionais/nacionalistas através da construção de um modelo de cidadão próprio à nação, Bacchetta complexifica essas relações, propondo a existência de três diferentes níveis de análise. Primeiramente, uma queerfobia xenofóbica, fundamentada na noção de que o sujeito queer (que ela considera ser qualquer sujeito que transgrida normas de gênero e sexualidade associadas ao sexo biológico, apesar de o termo ser problemático para o caso indiano) provém de fora da nação, isto é, está alheio a uma suposta tradição hindu. Em seguida, ela nos fala de uma xenofobia queerfóbica, que num movimento complementar ao primeiro transforma em abjeto todo sujeito visto como um Outro da nação, neste caso, sobretudo os muçulmanos. Por fim, como complementar a esse par, uma idealização queerfílica, que glorifica líderes políticos através de uma imagem que incorpora os dois "hetero-gêneros" na mesma figura, como é o caso de algumas divindades do panteão hindu.

Nesses discursos que Bacchetta nos apresenta, a nação é claramente sexualizada e corpórea. A castidade dos que lutam por essa causa, por exemplo, resulta na saúde da nação e da própria luta. Uma virilidade casta, uma potência assexuada, é o que se espera dos guerreiros engajados, os quais a autora chama de citizen-body. Trata-se de um modelo de masculinidade diferente do considerado "ocidental" por esses sujeitos, que seria "hispersexualizado" e que teria sido trazido pelos colonizadores. Segundo esse movimento, o conhecimento colonial britânico, orientalista, feminilizou o brâmane, poeta, em prol do kshatriya, casta guerreira e de governantes; cabe, portanto, à nação hindu negar esse estrangeirismo em prol de uma figura que é ao mesmo tempo materna e viril, artística e racional. Em suma, um só corpo bigênero (portanto, queer, segundo Bacchetta).

Sugiro ainda a existência de uma terceira seção, que vou nomear de "Corpos mediados e midiatizados", que explora as interseções entre corpo, afetividades, mídia, consumo, modernidade e globalização. Ao ler os últimos capítulos da obra coletiva, a impressão que temos é a de que o corpo finalmente ganha vida. Passamos a vê-lo não mais apenas jurídica ou metaforicamente, mas através da descrição etnográfica de casos concretos e mesmo de inúmeras imagens apresentadas em dois dos capítulos. Indivíduos entram em cena, reconstruindo-se cotidianamente. Enxergamos existências mediadas por espaços, objetos e pessoas - o próprio pesquisador, no caso de Diepiriye Kuku, que discute a subjetividade do pesquisador em campo - e midiatizadas por revistas pornográficas e pelo consumo na construção do self.

Gostaria de comentar dois dos artigos finais, que se cruzam, que se complementam no diálogo entre a trajetória de masculinidades subalternas, associadas às homossexualidades, e a pornografia barata impressa. Refiro-me aos artigos de Diepiriye Kuku, "Queering Subjectivities: On the Praxis of Outgoing Gender, Race, Caste, and Class in Ethnographic Fieldwork", e de Sanjay Srivastava, "Street, Footpath, Gated Community: On the Cultures of Indian Pornography".

Ambos parecem ter a capacidade de sintetizar, juntos, não apenas este terceiro eixo, mas de conter uma coerência relativa às questões abordadas ao longo de toda a obra. Ao ler estes capítulos, vivemos etnograficamente o que Srivastava chama da "relação entre espaço e subjetividade sexual na Índia contemporânea" (:228), na medida em que acompanhamos os autores numa caminhada pelos espaços ligados ao desejo, nas suas diferentes realizações e deslocamentos. Viajamos pela literatura pornográfica barata vendida em não lugares, como pontos de ônibus, vamos aos encontros em hotéis arranjados virtualmente e acessamos o ambiente familiar de indivíduos.

O erótico é um sem-lugar no discurso oficial sobre a cidade, o cidadão e a modernidade; mas o queer se torna um diaspórico por princípio, pois ele não tem lugar definido para se realizar, seja esse lugar concreto ou simbólico, senão apenas como limiar. É pelo consumo da pornografia barata, de medicamentos associados à metrossexualidade que o sujeito apresentado por Kuku se inscreve num modelo subalterno de masculinidade, que lhe informa a necessidade de medicamentos para clarear sua pele "chocolate", podendo assim se encontrar como sujeito de desejo nos interstícios do prazer criados pela modernidade. O corpo, sua reconstrução, é ao mesmo tempo expressão e acesso à modernidade.

Mas qual modernidade? Há sem dúvida um questionamento do que seja este termo, que atravessa as contribuições. O seu emprego nos textos que compõem a obra não serve para simplesmente "localizar" casos etnográficos e jurídicos indianos num contexto global de debate. Um primeiro argumento a ser apreendido do conjunto de escritos é o de que não apenas o domínio da sexualidade é parte íntima (se é que podemos usar este termo aqui) de discursos oficiais sobre a modernidade e o seu sujeito, mas também expõe os interstícios e as contradições desse mesmo discurso. Trata-se de uma modernidade erótica, seja através da literatura barata, seja do nacionalismo, do consumo ou da pornografia.

Entretanto, mais que isso, o argumento que persiste é o de que os casos abordados desde a Índia, tendo em vista seu contexto pós-colonial e subalterno, desconstroem as barreiras entre modernidade e tradição que ainda estão presentes mesmo no campo dos estudos queer. Nas diferentes contribuições o passado colonial se faz presente, não só como uma denúncia, mas como elemento reorganizador das categorias, do caminho percorrido pelos pesquisadores e que leva a uma crítica necessária de paradigmas teóricos, como o pós-estruturalismo, conforme já mencionado.

Quando analisamos detidamente algumas das principais publicações na área de ciências humanas na Índia, torna-se notório que a recepção crítica de teorias e paradigmas, bem como certo pioneirismo em diversos campos caracterizam profundamente a produção intelectual indiana. Assim, para encerrar esta resenha, eu gostaria de sugerir que essa postura epistemológica crítica pode ensinar muito à reflexão teórica sobre gênero e sexualidades no Brasil, no que tange, por exemplo, à perspectiva pós-colonial em nossa produção. Se é verdade que na academia brasileira as interseções de gênero, classe e raça se tornaram há muito tempo centrais, é verdade também que as implicações de um passado colonial são ainda pouco exploradas. No limite, reconhecer que aquilo que nomeamos "modernidade" no Brasil é antecedido por um longo período de situação colonial significa uma profunda revisão epistemológica em nossa produção, como a revisão que é avançada no livro Sexuality Studies e no campo acadêmico indiano - porque, como mostra a obra, colonização não está associada apenas à raça, como geralmente vemos na produção brasileira.

Assim, a obra coordenada por Srivastava deixa sua marca nos estudos de gênero e sexualidade e queer, pois ao mesmo tempo em que aí se inscreve, questiona-os e proporciona novas perspectivas e debates para seus leitores. Por fim, trata-se de uma obra extremamente interessante, sobretudo para o público brasileiro, na medida em que possibilita um exercício comparativo fundamental tanto no que se refere à própria pesquisa quanto no que tange às suas explorações epistemológicas.

  • FOUCAULT, Michel. 1979. The History of Sexuality Vol. I: "An introduction". London: Allen Lane.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Abr 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 2013
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