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Apresentação do manifesto pela nova visão

DOSSIER N.2

Apresentação do manifesto pela nova visão

Mauro Brigeiro

Doutorando em Antropologia Social, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. maurobrigeiro@hotmail.com

O Manifesto apresentado a seguir constitui a pedra inaugural da Campanha pela Nova Visão dos Problemas Sexuais das Mulheres, uma iniciativa idealizada por um grupo de orientação feminista dos Estados Unidos e do Canadá, conformado por acadêmicas e profissionais independentes da área clínica e das ciências sociais. Lançado no ano 2000, o Manifesto foi escrito em função de uma preocupação com os empreendimentos científicos e de marketing dos laboratórios farmacêuticos que, à esteira do sucesso clínico e de vendas do Viagra, buscavam outra droga sim∂ilar para tratar a sexualidade das mulheres. O Manifesto e as diferentes ações integrantes da Campanha pela Nova Visão pretendem gerar uma discussão no universo acadêmico e em amplos setores sociais acerca do reducionismo decorrente da classificação dos problemas sexuais das mulheres como "disfunções sexuais" e dos interesses comerciais que estariam na base das pesquisas e dos ensaios clínicos financiados pela indústria de medicamentos. Seguindo a crítica sociológica corrente sobre a medicalização da sociedade, tais feministas buscam evidenciar os inconvenientes de transformar os problemas sexuais em questões médicas e de apresentar as drogas formuladas para lidar com dificuldades sexuais como as soluções "mágicas" para o assunto.

O Manifesto e a Campanha em questão foram formulados em um contexto regional delimitado e são de autoria de um grupo profissional bem específico, porém seus efeitos atingem a escala mundial. Os argumentos e as reivindicações conceituais e políticos elaborados em função da campanha têm sido amplamente socializados em meios de divulgação acadêmicos, como livros e artigos. Números temáticos sobre a Campanha pela Nova Visão e sobre a medicalização da sexualidade foram publicados em revistas periódicas, como Sexualities (em 2005), Feminism and Psychology (em 2008) e Journal of Sex Research (em 2012). Paralelamente à sua produção bibliográfica, esse grupo feminista têm realizado cursos virtuais para profissionais médicos e não médicos, organizado conferências internacionais e apresentado comunicações orais em congressos e seminários em diferentes continentes. O próprio Manifesto foi traduzido para o francês, o alemão e o holandês e publicado em revistas especializadas que circulam nesses idiomas.

Além da disseminação no mundo acadêmico, os argumentos desse grupo de trabalho têm alcançado instâncias e processos de crucial importância para a ação da indústria farmacêutica e de seus representantes. Membros da campanha participaram das audiências do comitê da agência norte-americana FDA (Food and Drugs Administration) durante as avaliações das solicitações de liberação para o consumo dos medicamentos Intrinsa, em 2004, e o Flibanserin, em 2010, ambos elaborados para estimular o desejo sexual nas mulheres. Efetivamente, nos Estados Unidos e em vários outros países que seguem as recomendações dessa agência de regulação de medicamentos e alimentos, essas drogas não foram aprovadas para o consumo e a comercialização.

Nesse mesmo sentido, cabe mencionar a influência da Campanha pela Nova Visão sobre a reformulação do sistema de classificação médico corrente das "disfunções sexuais femininas”. A quinta versão recém-lançada do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais, ou DSM como é mais conhecido, traz, entre outras novidades, algumas transformações nos chamados transtornos relativos ao desejo sexual. O transtorno do desejo sexual hipoativo, que fazia referência à diminuição ou à ausência de fantasias e desejos sexuais e que era reconhecido como uma disfunção cujos critérios e aplicação eram factíveis para homens e mulheres desde o DSM-III (ainda que as pesquisas quantitativas indicassem com frequência que tal transtorno parecia ser um problema mais típico delas do que deles), passa agora a ser uma classificação válida somente para os homens. Na nova versão do DSM, a classificação para as mulheres mais próxima deste item se dá através da categoria mais ampla de "transtorno relativo ao interesse e à excitação sexual femininos", já sem a menção à noção de desejo e interconectando interesse e excitação.

Os argumentos sobre os problemas sexuais das mulheres, defendidos por várias acadêmicas integrantes da campanha através de sua produção bibliográfica, parecem guardar analogia com a formulação dessa nova categoria classificatória na versão atual do manual. A defesa de que o ciclo da resposta sexual das mulheres obedece a um funcionamento mais complexo do que o previsto nas teorizações correntes, de que os parâmetros para entender a forma de as mulheres sentirem desejo não podem ser os mesmos adotados para avaliar a experiência dos homens, de que o contexto relacional é fundamental para sua experiência sexual, e de que as mulheres não experimentam de um modo único a excitação, o orgasmo, a dor ou as expectativas sexuais fundamentam sua assertiva de que o conceito de desejo sexual seria uma noção limitada e insuficiente para abordar os problemas sexuais das mulheres. Assim, na medida em que seus problemas sexuais seriam irredutíveis a um tipo homogêneo de experiência sexual e a aspectos exclusivamente individuais e orgânicos, não haveria nenhum medicamento capaz de solucioná-los.

Como se pode observar a partir destes feitos, tanto o Manifesto como a Campanha exemplificam o caráter inextrincavelmente político e acadêmico do debate atual sobre medicalização da sexualidade, ao mesmo tempo em que têm marcado a sua pauta, ou seja, firmam uma posição no debate acadêmico. Trata-se de uma estratégia de ativismo fortemente apoiada em procedimentos próprios do universo científico-especializado. As reformulações teóricas e conceituais se integram a uma proposta de petição política e logram seus resultados através da busca de hegemonia na produção de saber. Além disso, os argumentos formulados por essas feministas problematizam a participação da indústria farmacêutica nas pesquisas sobre o sexo, colocando no cerne do debate questões epistemológicas, empíricas, éticas. De um lado, as feministas e, de outro, os laboratórios, e entre eles noções científicas e tecnologias em disputa.

"Conflito de interesses" e "disease mongering" (promoção de doenças) são alguns dos termos usados na acusação ou na defesa do fundamento científico em jogo nas pesquisas sobre sexo. A questão do lucro real ou potencial com a venda de drogas como o Viagra surge nesse debate como uma mácula que subtrai dos ensaios e das pesquisas vinculadas aos laboratórios farmacêuticos validade científica. Evoca-se nessa controvérsia uma série de contraposições, como prazer e lucro, lógica científica e lógica mercadológica, sexualidade mecânica e holista, problemas sexuais dos homens e das mulheres. Debate-se também a legitimidade e a validade dos fármacos para intervir sobre a sexualidade, o que resulta em um duelo interessante sobre o emprego dessas tecnologias.

A intenção de traduzir o Manifesto pela Nova Visão dos Problemas Sexuais Femininos e de publicá-lo neste dossier sobre medicalização da sexualidade não está orientada propriamente para enaltecer ou julgar os princípios e as intenções que o caracterizam. Facilitar sua divulgação entre leitores latino-americanos nos parece pertinente, sobretudo porque o referido manifesto está na base de processos político-científicos que têm implicações globais. A leitura do Manifesto abre uma porta extremamente interessante para adentrar em um universo que envolve a busca por hegemonia no campo de produção de conhecimento sobre sexualidade, dissensos conceituais, a criação de novas categorias nosológicas e disputas em torno das tecnologias de intervenção sobre os problemas sexuais.

O Manifesto pela Nova Visão Uma Nova Visão dos Problemas Sexuais Femininos1 1 Tradução do original em inglês: Michele Markowitz. Revisão técnica: Mauro Brigeiro.

Grupo de Trabalho da Nova Visão dos Problemas Sexuais Femininos2 2 Afiliadas ao Grupo de Trabalho em 2000, quando o Manifesto foi escrito. Os títulos e os créditos mencionados são referentes ao período de lançamento do Manifesto.

Linda Alperstein. Mestre em Serviço Social. Psicoterapeuta. Professora. Departamento de Psiquiatria, University of California, San Francisco.

Carol Ellison. Ph.D. Autora. Psicoterapeuta. Oakland, Califórnia.

Jennifer R. Fishman. Bacharel. Doutoranda do Departamento de Ciências Sociais e Comportamentais, University of California, San Francisco, Califórnia.

Marny Hall. Ph.D. Autora. Psicoterapeuta. São Francisco, Califórnia.

Lisa Handwerker. Ph.D. Mestre em Saúde Pública, Institute for the Study of Social Change, University of California, Berkeley, Califórnia.

Heather Hartley. Ph.D. Professora. Departamento de Sociologia, Portland State University, Oregon.

Ellyn Kaschak. Ph.D. Professora. Departamento de Psicologia, San Jose State University, Califórnia.

Peggy J. Kleinplatz, Ph.D. School of Psychology, University of Ottawa, Ontario, Canadá.

Meika Loe. M.A., Doutoranda em Sociologia, com ênfase em Estudos de Mulheres, Departamento de Sociologia, University of California, Santa Barbara, Califórnia.

Laura Mamo. Bacharel. Doutoranda do Departamento de Sociologia e Ciências Comportamentais, University of California, San Francisco, Califórnia.

Carol Tavris. Ph.D. Psicóloga social, pesquisadora independente. Los Angeles, Califórnia.

Leonore Tiefer. Ph.D. Terapeuta. Professora. Departamento de Psiquiatria, New York University School of Medicine e Albert Einstein College of Medicine, Nova York.

Introdução: Para além do modelo médico de sexualidade

Nos últimos anos, em função da publicidade dos tratamentos para os problemas masculinos de ereção, a atenção tem sido dirigida para a sexualidade das mulheres, o que provocou uma competição comercial para encontrar o "Viagra feminino”. Mas os problemas sexuais das mulheres diferem de modo fundamental daqueles identificados nos homens, e essa diferença merece atenção para entender e tratar bem esses problemas. Acreditamos que um obstáculo fundamental para compreender a sexualidade das mulheres é o esquema classificatório atualmente em uso do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (conhecido como DSM) e desenvolvido pela American Psychiatric Association (APA) em 1980, e revisado em 1987 e em 1994.3 3 American Psychiatric Association (1980, 1987, 1994). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 3rd, 3rd-revised, and 4th editions. Washington, DC: APA. [Nota do revisor técnico: Trata-se da quarta versão do DSM, vigente no momento de lançamento do Manifesto pela Nova Visão. Em maio de 2013, foi definitivamente publicada uma nova versão do manual, o DSM-V, no qual se inclui um novo esquema classificatório para os transtornos sexuais das mulheres.] Essa versão do Manual divide os problemas sexuais das mulheres (e dos homens) em quatro categorias de "disfunção" sexual: Transtornos do Desejo Sexual, Transtornos da Excitação Sexual, Transtornos do Orgasmo e Transtornos da Dor Sexual.

Essas "disfunções" indicam os distúrbios relativos ao padrão de uma resposta sexual fisiológica presumida como universal ("função normal") e originalmente descrita por Masters e Johnson nos anos 60.4 4 Masters, W. H. & Johnson, V. E. 1966. Human Sexual Response. Boston: Little, Brown, and Co.; Masters, W.H. & Johnson, V. E. 1970. Human Sexual Inadeqacy. Boston: Little, Brown, and Co. Esse padrão universal começa, em teoria, com o impulso sexual e procede sequencialmente através das fases de desejo, excitação e orgasmo.

Nas últimas décadas, as falhas de aplicação desse enquadramento teórico às mulheres têm sido amplamente documentadas.5 5 Ver, por exemplo, Tiefer, L. 1991. “Historical, scientific, clinical and feminist criticisms of 'the Human Sexual Response Cycle' model”. Annual Review of Sex Research. Nº 2, p. 1-23; Basson, R. 2000. “The female sexual response revisited”. J. Society Obstetrics and Gynaecology of Canada. Nº 22, p. 383-387. As três distorções mais graves produzidas por um marco teórico que reduz os problemas sexuais a transtornos da função fisiológica, comparáveis aos transtornos respiratórios ou digestivos, são:

1. A falsa noção de equivalência sexual entre homens e mulheres.

Os primeiros pesquisadores enfatizaram as semelhanças entre as respostas fisiológicas de homens e mulheres durante suas atividades sexuais e concluíram que os transtornos sexuais de ambos devem ser também parecidos. Poucos investigadores pediram para as mulheres descreverem suas experiências a partir de seus próprios pontos de vista. Quando os estudos foram terminados, observou-se que as mulheres diferiam dos homens em muitas e de cruciais maneiras. Os relatos das mulheres não se encaixam perfeitamente no modelo de Masters e Johnson; por exemplo, as mulheres geralmente não separam o "desejo" da "excitação", elas se importam menos com a excitação física [do que a subjetivam] e suas queixas no âmbito sexual frequentemente se centram em "dificuldades" que estão ausentes do DSM-IV.6 6 Frank, E.; Anderson, C. & Rubinstein, D. 1978. “Frequency of Sexual dysfunction in 'Normal' couples”. New England Journal of Medicine. Nº 299, p. 111-115; Hite, S. 1976. The Hite Report: A nationwide study on female sexuality. NY: Macmillan; Ellison, C. 2000. Women's Sexualities: Generations of women share intimate secrets of sexual self-acceptance. Oakland, CA: New Harbinger.

Além disso, uma ênfase nas semelhanças genitais e fisiológicas entre homens e mulheres ignora as implicações das desigualdades relacionadas a gênero, classe social, etnicidade, orientação sexual etc. Condições sociais, políticas e econômicas, incluindo violência sexual generalizada, limitam em muitas partes do mundo o acesso das mulheres à saúde, ao prazer e à satisfação sexual. Assim, os ambientes sociais das mulheres podem impedir a expressão das suas capacidades biológicas, uma realidade inteiramente ignorada pelo enquadramento estritamente fisiológico das disfunções sexuais.

2. O apagamento do contexto relacional de sexualidade.

A abordagem da Associação Americana de Psiquiatria adotada em seu DSM-IV passa por cima dos aspectos relacionais da sexualidade feminina, aspectos que muitas vezes estão na raiz das satisfações e dos problemas sexuais (por exemplo, desejo de intimidade, vontade de agradar ou, em alguns casos, desejo de evitar ofensas, chateações ou a perda do parceiro). O DSM-IV aborda o sexo de uma forma exclusivamente individual e presume que se os componentes físicos sexuais estão funcionando, não há problema; se esses componentes não funcionam, há aí um problema. Mas muitas mulheres não definem suas dificuldades sexuais dessa maneira. Esse manual, ao reduzir a «função sexual normal» a critérios fisiológicos, presume, incorretamente, que as dificuldades genitais e físicas podem ser medidas e tratadas sem levar em consideração a relação na qual ocorre o ato sexual.

3. Nivelar as diferenças entre as mulheres.

Nem todas as mulheres são iguais e nem suas necessidades sexuais, satisfações e problemas se encaixam perfeitamente nas categorias de desejo, excitação, orgasmo ou dor. As mulheres diferem com respeito a seus valores, formas de abordar a sexualidade, origens socioculturais e condições atuais de vida, e essas diferenças não podem ser niveladas de modo a caberem em determinada noção de "disfunção", tampouco em um tratamento comum, do tipo "tamanho único”.

Como não há soluções mágicas para as bases socioculturais, políticas, psicológicas, sociais ou relacionais dos problemas sexuais femininos, as companhias farmacêuticas estão apoiando pesquisas e programas de relações públicas orientados para enquadrar o corpo, especialmente os genitais. A injeção de financiamento da indústria nas pesquisas sobre sexo e a publicidade incessante da mídia sobre os "grandes avanços" nos tratamentos apenas colocam os problemas físicos em destaque e os isolam dos contextos mais amplos. Os fatores que são mais frequentemente a fonte de reclamações sexuais das mulheres – conflitos relacionais e culturais, por exemplo, ou desconhecimento ou medo sexual – são minimizados e dispensados. Englobados na categoria genérica de "causas psicogênicas», tais fatores não são estudados e resolvidos. As mulheres com esses problemas estão sendo excluídas dos ensaios clínicos sobre novas drogas. Porém, se os padrões atuais de marketing dirigidos aos homens servirem como indicadores, tais drogas serão agressivamente promovidas para todas as insatisfações sexuais das mulheres.

Diante de tal panorama, é extremamente necessário tomar medidas corretivas. Nossa proposta é uma classificação nova e mais útil dos problemas sexuais das mulheres que priorize de forma adequada o sofrimento individual e a inibição que surge dentro de um quadro maior de fatores culturais e relacionais. Desafiamos os pressupostos culturais embutidos no DSM-IV, bem como as pesquisas e o programa de marketing reducionistas da indústria farmacêutica. Apelamos para a realização de pesquisa e serviços que não sejam orientados por interesses comerciais, mas sim pelas necessidades e as realidades sexuais próprias das mulheres.

Saúde sexual e direitos sexuais: visões internacionais

Com o propósito de nos distanciarmos do esquema mecânico e centrado nos genitais usado para se referir aos problemas sexuais das mulheres e presente no DSM-IV, procuramos orientação em documentos internacionais. Em 1974, a Organização Mundial de Saúde organizou uma conferência única sobre as necessidades de treinamento de trabalhadores da área de saúde sexual. O relatório indicou: "Um corpo de conhecimento cada vez maior indica que os problemas sexuais são mais decisivos e mais importantes para o bem-estar e a saúde dos indivíduos de culturas variadas do que previamente reconhecido». O relatório enfatizou a importância de uma abordagem positiva da sexualidade humana e o enriquecimento dos relacionamentos. Ele ofereceu um sentido abrangente de "saúde sexual», definindo-a como «a integração dos aspectos somáticos, emocionais, intelectuais e sociais do ser sexual”.7 7 WHO Technical Report, series Nr. 572, 1975. Texto completo disponível em: Magnus Hirschfeld Archive for Sexology, www2.hu-berlin.de/sexology/GESUND/ARCHIV/WHOR.HTM

Em 1999, a Associação Mundial de Sexologia (WAS), no congresso realizado em Hong Kong, adotou uma Declaração de Direitos Sexuais.8 8 Texto completo disponível na URL indicada na nota 6 e também na página web da Associação Mundial de Sexologia (WAS), http://www.tc.umn.edu/~colem001/was/wdeclara.htm. Foi publicado em: E.M.L. Ng, J.J. Borras-Valls, M. Perez-Conchillo & E. Coleman (eds.). 2000. Sexuality in the New Millenium. Bologna: Editrice Compositori. "Para assegurar que os seres humanos e as sociedades desenvolvam uma sexualidade saudável", a Declaração assinalou que «os seguintes direitos sexuais devem ser reconhecidos, promovidos, respeitados e defendidos»:

• O direito à liberdade sexual, excluindo todas as formas de coerção, exploração e abuso sexual;

• O direito à autonomia e à segurança sexual e à segurança do corpo sexual;

• O direito ao prazer sexual, que é uma fonte de bem-estar físico, psicológico, intelectual e espiritual;

• O direito à informação sobre sexualidade produzida através de investigação científica, uma informação que possa ser ao mesmo tempo ética e imparcial;

• O direito a uma educação abrangente sobre sexualidade;

• O direito aos cuidados de saúde sexual, que devem estar disponíveis para prevenir e tratar de todas as preocupações, problemas e transtornos sexuais.

Problemas sexuais das mulheres: uma nova classificação

De acordo com o Grupo de Trabalho responsável por este Manifesto, os problemas sexuais se definem como um descontentamento ou uma insatisfação com qualquer aspecto emocional, físico ou relacional da experiência sexual e podem surgir em função de um (ou mais) fatores descritos a seguir:

I. Problemas sexuais derivados de fatores socioculturais, políticos ou econômicos

A. Desconhecimento e ansiedade devido à educação sexual inadequada, falta de acesso a serviços de saúde ou outros constrangimentos sociais:

• Falta de vocabulário para descrever experiências subjetivas ou físicas;

• Falta de informação sobre a biologia sexual humana e sobre mudanças que ocorrem de acordo com as fases da vida humana;

• Falta de informação sobre como os papéis de gênero influenciam as expectativas, as crenças e os comportamentos sexuais de homens e mulheres;

• Acesso inadequado a informações e serviços relacionados com contracepção e aborto, prevenção e tratamento de DSTs, atenção a situações de abuso sexual e de violência doméstica.

B. Evitação sexual ou sofrimento devido à percepção de incapacidade de seguir normas culturais a respeito da sexualidade correta ou ideal, o que inclui:

• Ansiedade ou vergonha relacionada com o corpo, a atratividade sexual ou as respostas sexuais;

• Confusão ou vergonha relacionada com a orientação ou a identidade sexual ou referente às fantasias e aos desejos sexuais.

C. Inibições devido a um conflito entre as normas sexuais da subcultura ou cultura de origem e aquelas da cultura dominante;

D. Falta de interesse, fadiga ou falta de tempo devido a obrigações familiares e trabalho.

II. Problemas sexuais relacionados ao parceiro e ao relacionamento

A. Inibição, evitação ou sofrimento que surge de traição, desgosto ou medo do parceiro, de abuso por parte do parceiro ou da desigualdade de poder entre o casal ou que surge de padrões negativos de comunicação com o parceiro;

B. Discrepâncias quanto ao desejo para a atividade sexual ou quanto a preferências para atividades sexuais variadas;

C. Desconhecimento ou inibição em relação a como comunicar as preferências ou como iniciar um encontro sexual, estabelecer o ritmo das atividades sexuais ou defini-las como quer;

D. Perda do interesse sexual e da reciprocidade resultantes de conflitos sobre problemas cotidianos, tais como dinheiro, agenda, parentes ou como resultado de experiências traumáticas, p. ex., infertilidade ou morte de uma criança;

E. Inibições da excitação ou espontaneidade devido à saúde do parceiro ou a problemas sexuais.

III. Problemas sexuais derivados de fatores psicológicos

A. Aversão sexual, falta de confiança ou inibição do prazer sexual devido a:

• Experiências passadas de abuso físico, sexual ou emocional;

• Problemas gerais de personalidade relacionados com o apego, a rejeição, a cooperação ou com o sentido de direito;

• Depressão ou ansiedade.

B. Inibição sexual devido ao medo dos atos sexuais ou de suas possíveis consequências, por exemplo, dor durante a relação, gravidez, doenças sexualmente transmissíveis, medo de perder o parceiro, medo de perder a reputação.

IV. Problemas sexuais derivados de fatores médicos

Dor ou ausência de resposta física durante a atividade sexual, mesmo estando em uma situação interpessoal que brinde apoio e segurança, e mesmo possuindo conhecimento sexual adequado e atitudes sexuais positivas. Tais problemas podem surgir a partir de:

A. Numerosas condições médicas sistêmicas ou locais que afetam o sistema neurológico, neurovascular, circulatório, endócrino ou outro sistema fisiológico;

B. Gravidez, doenças sexualmente transmissíveis ou outras condições relacionadas ao ato sexual;

C. Efeitos colaterais de muitas drogas, muitos medicamentos ou de tratamentos médicos;

D. Condições iatrogênicas.

Conclusão

Este documento é destinado a investigadores que desejam pesquisar os problemas sexuais das mulheres, para educadores que dão aulas a respeito das mulheres e sobre sexualidade, para clínicos da área médica e não médica que pretendam ajudar as mulheres com suas vidas sexuais e para um público que precise de um marco referencial para compreender uma área da vida de importância central e em rápida mudança.

  • 1
    Tradução do original em inglês: Michele Markowitz. Revisão técnica: Mauro Brigeiro.
  • 2
    Afiliadas ao Grupo de Trabalho em 2000, quando o Manifesto foi escrito. Os títulos e os créditos mencionados são referentes ao período de lançamento do Manifesto.
  • 3
    American Psychiatric Association (1980, 1987, 1994). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, 3rd, 3rd-revised, and 4th editions. Washington, DC: APA. [Nota do revisor técnico: Trata-se da quarta versão do DSM, vigente no momento de lançamento do Manifesto pela Nova Visão. Em maio de 2013, foi definitivamente publicada uma nova versão do manual, o DSM-V, no qual se inclui um novo esquema classificatório para os transtornos sexuais das mulheres.]
  • 4
    Masters, W. H. & Johnson, V. E. 1966.
    Human Sexual Response. Boston: Little, Brown, and Co.; Masters, W.H. & Johnson, V. E. 1970.
    Human Sexual Inadeqacy. Boston: Little, Brown, and Co.
  • 5
    Ver, por exemplo, Tiefer, L. 1991. “Historical, scientific, clinical and feminist criticisms of 'the Human Sexual Response Cycle' model”.
    Annual Review of Sex Research. Nº 2, p. 1-23; Basson, R. 2000. “The female sexual response revisited”.
    J. Society Obstetrics and Gynaecology of Canada. Nº 22, p. 383-387.
  • 6
    Frank, E.; Anderson, C. & Rubinstein, D. 1978. “Frequency of Sexual dysfunction in 'Normal' couples”.
    New England Journal of Medicine. Nº 299, p. 111-115; Hite, S. 1976.
    The Hite Report: A nationwide study on female sexuality. NY: Macmillan; Ellison, C. 2000.
    Women's Sexualities: Generations of women share intimate secrets of sexual self-acceptance. Oakland, CA: New Harbinger.
  • 7
    WHO Technical Report, series Nr. 572, 1975. Texto completo disponível em: Magnus Hirschfeld Archive for Sexology,
  • 8
    Texto completo disponível na URL indicada na nota 6 e também na página web da Associação Mundial de Sexologia (WAS),
    http://www.tc.umn.edu/~colem001/was/wdeclara.htm. Foi publicado em: E.M.L. Ng, J.J. Borras-Valls, M. Perez-Conchillo & E. Coleman (eds.). 2000.
    Sexuality in the New Millenium. Bologna: Editrice Compositori.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Set 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2013
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