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OCHOA, Marcia. 2014. Queen for a day. Transformistas, Beauty Queens, and the Performance of Femininity in Venezuela. Durham: Duke University Press. 296 pp.

OCHOA. Marcia. . .2014. .Queen for a day. Transformistas, Beauty Queens, and the Performance of Femininity in Venezuela. .Durham: :. Duke University Press, .296. pp.

O livro Queen for a day. Transformistas Beauty Queens, and the Performance of Femininity in Venezuelaé fruto da tese de doutorado de Marcia Ochoa, professora assistente da cadeira de Estudos Feministas da Universidade de Santa Cruz - Califórnia/EUA, defendida em 2005 (copyright 2006) na Universidade de Stanford. Versões de dois capítulos deste livro já haviam sido publicadas em português e espanhol: "A moda nasce em Paris e morre em Caracas" (In: Miskolci & Pelúcio, 2012OCHOA, Marcia. 2012. "A moda nasce em Paris e morre em Caracas". In: MISKOLCI, Richard & PELÚCIO, Larissa. Discursos fora da ordem: sexualidades, saberes e direitos. São Paulo: Annablume/ Fapesp.) e Pasarelas y "perolones": Mediaciones transformistas en la Avenida Libertador de Caracas (2011).

Em Queen for a day, Ochoa busca responder às seguintes questões: "Como a feminilidade é conquistada? Através de quais práticas, tecnologias e ideologias um sujeito feminino se torna inteligível? Como feminilidades transgêneras e cisgêneras são produzidas no mesmo quadro discursivo?" (:05). Para isso, elege como campos etnográficos algumas cenas transformistas e os mundialmente conhecidos concursos de misses na Venezuela, em especial os castings, série de seleções regionais feita pela Organización Miss Venezuela (OMV) com o objetivo de eleger aquelas que serão preparadas para competir no concurso nacional e, posteriormente, no Miss Universo.

Cabe ressaltar aqui a definição do termo transformista no contexto deste trabalho. Diferentemente de seu significado no Brasil e em outros países latino-americanos, nos quais designa pessoas cujas construções de gênero são mais efêmeras e exibidas em shows e/ou espetáculos, transformista aqui diz respeito a pessoas que, assignadas como masculinas no nascimento, constroem-se cotidianamente de acordo com uma concepção feminina de si. Desse modo, a transformista venezuelana estaria bem próxima da travesti brasileira, principalmente por não se inserir plenamente nas concepções e nos protocolos biomédicos socialmente reconhecidos como legítimos para definir a transexualidade.

Marcia Ochoa abre seu livro com a descrição de uma cena de sua vida pessoal, ocorrida em 1998, em um voo entre San Antonio Del Táchira, Colômbia, e Isla Margarita, Venezuela, onde encontraria alguns familiares. Nesta viagem, anterior ao início de sua pesquisa de doutorado, o glamour incorporado na aparência e nos modos de uma atendente de voo chamou a sua atenção para o quanto uma feminilidade espetacular - ideia que desenvolve neste livro - poderia ser produzida no dia a dia de pessoas comuns. E mais fortemente em um país obcecado pelos concursos de misses, que ali se profissionalizaram a ponto de se tornarem uma espécie de "produto nacional de exportação", garantindo para a Venezuela um lugar de destaque no cenário mundial de beleza.

Ochoa divide seu trabalho em três partes, que destacam importantes âmbitos de sua discussão sobre performances de feminilidades na Venezuela. A primeira intitula-se "On the (Trans)National" e discute a história da produção deste imaginário sobre concursos de beleza no país, relacionando-o ao contexto colonial e ao contexto contemporâneo, em que se situam os ideais de modernidade. Em seguida, "On the Runway, on the Street" destaca de modo etnográfico o desenvolvimento do formato e da lógica dos concursos de beleza e seus castings, além de se deter na dinâmica social da Avenida Libertador de Caracas com suas passarelas e na apropriação transformista desse espaço. A terceira parte, "On the Body", está centrada nos relatos e nas discussões sobre a produção do corpo venezuelano de misses e transformistas, abarcando seus ideais, significados e manipulações.

O primeiro capítulo, "Belleza Venezolana: Media, Race, Modernity, and Nation in the Twentieth-Century Venezuelan Beauty Contest", resgata diversos tipos de concursos de beleza para mulheres na Venezuela desde 1905, ano em que a produtora de tabaco La Hidalguía elegeu a "Señorita Venezuela", inserindo suas fotos em maços de cigarros. Em fins da década de 1920, outros concursos foram promovidos por revistas e periódicos, como os da revista Élite e os do jornal El Universal.Porém, foi só a partir dos anos 1950 que o formato específico para concursos nacionais de beleza se estabeleceu, misturando discursos sobre raça, gênero, nação, mercado e mídia na produção de determinada candidata e do espetáculo que a elegeria. Emergia então a noção de uma belleza venezolana,que tanto correspondia a padrões eurocêntricos como apresentava certos traços secundários de um possível exotismo local.

A autora explora a imagem da mulher popularizada na década de 1960 nas embalagens da Harina PAN, farinha de milho pré-cozida para a produção das tradicionais arepas, emblemática da ideia de uma criolla beauty queen (:49): uma mulher venezuelana moderna, que lança mão das facilidades de um produto pré-cozido e cuja identificação racial é a da clássica negrita, porém embranquecida em seus traços fisionômicos e na cor de pele, e desenhada segundo o padrão de beleza longilíneo que começava a ser estabelecido para as misses. De acordo com Ochoa, este padrão seria questionado apenas na década de 2000, com o resgate por parte do regime de Hugo Chávez das figuras de La Negra Hipólita, ama de leite do revolucionário Simón Bolívar, e de La Negra Matea, inicialmente uma escrava da família Bolívar. Porém, diferentemente das misses e seus concursos, que remeteriam simbolicamente à modernidade e a uma indústria nacional, tais figuras estariam mais relacionadas ao folclore venezuelano.

No capítulo 2, "La Moda Nace en Paris y Muere en Caracas: Fashion, Beauty, and Consumption on the (Trans)National", Ochoa aborda tanto a festa Caracas Mortal, realizada por grupos de homens gays nos anos 1980, como o discurso da transformista La Contessa, por ela entrevistada. A tensão que a dicotomia entre vida e morte põe em cena forma a realidade - ou o modo como a autora concebe o seu mundo de pesquisa teoricamente - e perpassa outros temas do trabalho, como a discussão acerca da tensão entre modernidade e tradição no projeto venezuelano de nação. Ochoa trata como espécie de canibalismo cosmopolita a paradoxal coexistência de espaços de morte e violência - como a que acomete gays, lésbicas, bissexuais, travestis ou transexuais - e espaços de produção e incorporação da beleza e do glamour por estes mesmos sujeitos. Como bem frisou La Contessa acerca do tempo em que passou se prostituindo em Milão, "lá, embora possa passar fome, você está sempre na beleza" (:77).

A autora também relaciona esta coexistência paradoxal à violência do processo colonial e ao desejo da nação de pertencer ao mundo moderno, exemplificado na trajetória de Susana Duijm, venezuelana comum que se sagrou vencedora do Miss Venezuela de 1955, após ser chamada pela elite presente na plateia do concurso de india, negra, fea (ugly), y pata en suelo (barefoot) (:84). O considerado exotismo de Duijm - obviamente enquadrado nos moldes exigidos pelo concurso - deu-lhe também a coroa de Miss Mundo e o título de Carmen, la sauvage, conforme ficaria conhecida no período em que ganhou grande projeção como modelo em Paris. De volta à Venezuela, Duijm foi recebida como heroína nacional, depois de ter vivido o sonho de ser "rainha por um dia" (la reina de la noche/queen for a day), encarnando a possibilidade de negociação de poder e mediação a partir de posições marginais que Ochoa estende para a própria ideia que o país faz de si no cenário global.

Após traçar um panorama histórico e estabelecer as bases teóricas de sua abordagem, a autora parte para seu trabalho etnográfico junto a dois concursos de beleza "La Noche de las Luciérnagas" (A Noite dos Vagalumes) e um dos castings da Organización Miss Venezuela (OMV). Estes concursos são caracterizados e descritos através de empolgantes relatos de campo no capítulo "La Reina de la Noche: Performance, Sexual Subjectivity, and the Form of the Beauty Pageant in Venezuela". O primeiro concurso é realizado desde a década de 1980, no decorrer das festividades do Carnaval da pequena cidade de Carúpano. Ali, transformistas e maricos (bichas) competem pela coroação como Reina de las Luciérnagas, título que se explica pelo fato de "estarem indo iluminar o mundo [...] com suas bundas" (:104).

Este concurso entrou por acaso no trabalho de campo de Ochoa e foi analisado para ilustrar como o formato estabelecido pelos concursos de beleza hegemônicos pode funcionar como um mediador de autoridade e poder em contextos ainda mais à margem da modernidade almejada no projeto de nação venezuelano. Segunda ela, existiria uma espécie de "democracia do concurso de beleza", através da qual eles de tornam um "local para a atualização e para a contestação de políticas de representatividade" (:99). E seria esta negociação em torno do poder e da representatividade que também estaria em jogo nos diversos castings regionais, realizados pela OMV por todo o país, para selecionar as jovens que competirão na etapa nacional do concurso Miss Venezuela. Neles se torna ainda mais evidente o formato do concurso de beleza, até porque os eventos da OMV seguem um padrão profissional, segundo a lógica de uma verdadeira indústria da beleza:

Enquanto o sistema de casting regional e estadual suscita a participação de pessoas de fora do circuito imediato da OMV, e enquanto ele replica a ideia de eleições democráticas [...] há de fato uma grande dose de cumplicidade com as estruturas autoritárias que produzem o espetáculo - o painel de juízes composto por patrocinadores e a figura central do presidente da OMV [o mundialmente reconhecido Osmel Sousa] como o czar da beleza. [...] O que é interessante aqui é que o espetáculo toma forma de uma falsa [mock] democracia, usando a linguagem e a lógica de uma deliberação política e determinação (eleição, representação, equidade, justiça). O espetáculo, neste caso, condiciona não apenas as relações entre as participantes, plateias e produtores; ele também tem implicações para formações subjetivas (:120-121).

A ideia de "miss" também será ali forjada através da transformação de uma jovem (niña) em mulherona (mujerona), ou seja, naquela que encarnará e corporificará ideais modernos e individualizantes, como ter personalidade e atitude, e que se manifestarão em seus gestos, na forma como se veste, como utiliza seu poder sexual etc. Tudo isto dentro dos cânones ocidentais de beleza exigidos pela OMV, mas também incrustados no imaginário social. Assim como a política de representatividade acima mencionada, tais cânones não precisam ser exatamente verbalizados para serem corporificados ou carnalizados, ideia que Ochoa trabalhará na sequência.

Esta corporificação/carnalização dos ideais de uma miss e de um tipo de feminilidade hegemônica é explorada por Ochoa nos capítulos finais do livro. Porém, antes de se deter mais especificamente em tal temática, ela nos apresenta no capítulo 4 - "Pasarelas y Perolones: Transformista Mediations on Avenida Libertador in Caracas" - a Avenida Libertador, projeto urbanístico de grande magnitude e símbolo de uma modernização feita de asfalto e concreto. Ochoa destaca, sobretudo, a apropriação transformista deste espaço para o mercado sexual, que se realiza em suas calçadas e passarelas. Segundo a autora, a Avenida Libertador não é o único lugar voltado para a prostituição transformista em Caracas, porém é o mais visível. Suas passarelas se oferecem como um palco para que transformistas mostrem seus corpos, geralmente em roupas mínimas e seios nus, e exercitem seu glamouroso e estilizado modo de andar. Tais passarelas acabam adquirindo sentido semelhante ao daquela pela qual as misses desfilam. A autora argumenta que nelas, perante o público que passa a pé ou de carro pela avenida, as transformistas exibem aquilo que deve ser característico de uma miss, demonstrando personalidade, atitude e apelo sexual. Enfim, transformam-se em mujeronas "disponíveis, desejáveis, e perigosas" (:152). E por já ocuparem tal espaço há algumas décadas, acabaram por se inscrever no imaginário urbano de Caracas, partilhando e contribuindo, como os concursos de beleza, para o mesmo projeto de modernidade venezuelano/caraquenho.

Nos capítulos 5 e 6 - "Sacar el Cuerpo: Transformista and Miss Embodiment" e "Spectacular Feminisms" - Ochoa desenvolve duas ideias extremamente interessantes e pertinentes para pensar a produção de feminilidades e corporalidades/carnalidades nesses ambientes como também no dia a dia, conforme alerta em diversos pontos de seu trabalho. São elas a de sacar el cuerpo (bring out the body/ tirar o corpo) e a de "feminilidades espetaculares". A autora entrevistou uma série de transformistas e dois cirurgiões plásticos, sendo evidente em sua discussão o alijamento das transformistas dos atendimentos clínicos e protocolos biomédicos para a modificação de seus corpos, o que ela chama, baseada no trabalho de Mantini-Briggs, de produção de "sujeitos antissanitários" (unsanitary subjects), dentro de uma "cidadania sanitária" (sanitary citizenship), que cria e legitima tais práticas e concepções biomédicas.

Deste modo, transformistas construirão seus corpos e feminilidades de forma paralela a este saber biomédico, que legitima aquelas que se enquadram no que é exigido para a transexualidade, mas as excluem - ao menos oficialmente - de seu rol de cuidados e práticas. O que a autora argumenta é que no discurso oficial voltado à transexualidade há uma primazia de justificativas baseadas em um sentimento racional de pertença a um gênero diverso do atribuído no nascimento, como expresso na máxima "uma mulher em um corpo de homem". Para se validar e se ancorar no diagnóstico de Disforia de Gênero prevista nos manuais psiquiátricos internacionais, tal tipo de discurso apelaria para uma mente ou uma psique, ao passo que para as transformistas com quem trabalha, "gênero já está sempre em seus corpos. A tarefa de uma transformista é permitir sua emergência" (:161).

Ochoa chega a esta acurada formulação através de uma ênfase nas práticas cotidianas de dar forma aos corpos, o que considera faltar em abordagens que muitas vezes se baseiam em práticas ditas discursivas. Esta ênfase nas "práticas envolvidas na construção de uma performance generificada cotidiana" (:160) baseia-se na etnometodologia de Harold Garfinkel e na "carnalidade" (carnality) postulada por Elizabeth Povinelli, o que leva a autora à noção de sacar el cuerpo, como processo de construção de si originado no corpo e que "sugere uma relação entre natureza e tecnologia na qual a tecnologia é empregada para trazer para fora o que está naturalmente lá, ajudando a natureza a se expressar" (:162). A autora utiliza o conceito de carnalidade em diálogo com o de performatividade (Butler, 1993BUTLER, Judith . 1993. Bodies that matter: On the discursive limits of "sex". New York: Routledge., 2008). Reconhece a pertinência da argumentação de Butler, mas busca justamente dar mais corpo e carne ao processo reiterativo de inscrição de determinado gênero no real através de práticas discursivas, visto por alguns como um "discurso desencarnado (disembodied discourse)" (:168). Segundo ela, a carnalidade se mostra mais pertinente por parecer mais real, vívida e cotidianamente manipulável do que a corporalidade, ou termos correlatos que poderíamos utilizar para falar da construção material do corpo.

As misses também se construirão segundo esta lógica de sacar el cuerpo, pois serão produzidas nos mais diversos níveis de acordo com o que o concurso exige delas - e a ideia de que algo precisa ser "consertado" é abertamente declarada pelo czar da beleza da OMV, Osmel Sousa. Além disso, precisam dar personalidade e atitude a este corpo, segundo uma lógica que exige que façam parte de determinado padrão ao mesmo tempo em que, dentro dos seus limites, tragam tais personalidade e atitude de acordo com certo voluntarismo moderno: "Chúpate; sácate el cuerpo" (Força; mostre este corpo) (:169), como exigia o fotógrafo em uma sessão de fotos de biquíni observada por Marcia Ochoa em um dos castings de sua pesquisa.

Embora reconheça que os marcadores de gênero, raça e nacionalidade estão concomitantemente presentes no corpo e no ideal de miss, a dimensão racial não é tão explorada ao longo do livro, aparecendo mais claramente apenas no primeiro capítulo, em que apresenta a história dos concursos de beleza e a construção da ideia da Venezuela como uma terra "produtora de títulos de concursos de beleza mundiais" (:31). Parece que a dimensão racial, tão presente na literatura sobre concursos de beleza, acaba secundária e subordinada à performance de gênero quando se trabalha (também) com concursos de beleza trans. E, segundo Ochoa, tal performance assumirá, nos concursos de miss, contornos de espetacularidade, supondo ou imaginando uma plateia que admira e exige uma feminilidade que se construirá de acordo com

ideologias de interioridade que são pensadas para produzir formas exemplares de espetáculo. Além de realizar o corpo correto, a candidata do concurso de beleza deve realizar algo mais: um tipo de atitude, afeto ou desempenho que se supõe irá influenciar o resultado do evento. Se a candidata vai ser ou não realmente bem sucedida através dessas técnicas é outra questão, o importante é que se discipline a fim de manifestar externamente o efeito desejado (Ochoa, 2014:222).

Os concursos de beleza da OMV serão o palco primordial para a construção de tal feminilidade espetacular, mas ela também se inscreve nos corpos e nos fazeres cotidianos da Reina das Luciérnagas, das transformistas da Avenida Libertador, ou da atendente daquele voo para Isla Margarita, colocando a todos "em um universo de recursos simbólicos, oferecendo oportunidades para projeções imaginárias que ultrapassam as condições materiais em que nos encontramos" (:211). Está inscrito nos corpos, assim como o anseio de modernidade está inscrito no projeto nacional da Venezuela.

Uma questão que poderia ter sido problematizada por Marcia Ochoa é aquela referente à produção do seu próprio lugar no campo. Ainda que anuncie que sua presença não era estranha junto às transformistas da Avenida Libertador, dadas as suas experiências anteriores na luta contra a AIDS em grupos e locais similares, talvez os possíveis impactos da presença de uma mulher assumidamente lésbica em um ambiente de castings de concurso de beleza pudesse ter sido foco de alguma reflexão. A anedota contada por ela, inserida em um de seus longos relatos de campo, acerca de um maquiador que, em um dos castings da OMV, ironicamente questionava a sexualidade de uma das candidatas que preparava, insinuando que ela poderia ser lésbica, talvez tenha surgido por conta da presença da pesquisadora neste ambiente. Outro aspecto pouco explorado é o uso, em diversos momentos em campo, de uma câmera de vídeo. Se, como afirma a autora, a feminilidade espetacular necessita da mediação de uma plateia (ainda que imaginária), até que ponto o uso da câmera de vídeo e a possibilidade de registro definitivo daquele momento não potencializavam tal espetacularidade? Mesmo que a pesquisadora explicasse para todas, conforme afirma, que as imagens produzidas seriam para uso particular, o registro de determinada cena, que poderia ser exibida para outrem, não exigiria uma postura mais voluntariamente performática? Isto não compromete em nada o argumento de Ochoa, mas certamente contribuiu para que esta dimensão da feminilidade se tornasse mais claramente visível.

Curiosamente, Ochoa encerra seu trabalho com um epílogo intitulado "Democracy and Melodrama: Frivolity, Fracaso, and Political Violence in Venezuela", no qual relata seu retorno a Caracas no início de 2003, após ter finalizado o trabalho de campo. O momento era de protestos e de fortes disputas políticas. Questionando certas ideias estereotipadas acerca do fracasso da modernidade na Venezuela, a autora insere sua reflexão no âmbito de discussões políticas e econômicas mais amplas, relativas à chamada Revolução Bolivariana, iniciada por Hugo Chávez em 1998. Aponta também para a crescente participação da comunidade LGBT e das transformistas em instâncias de governo. Em comparação com a cena inicial que abre o livro e com toda a trajetória que ele percorre, tal epílogo parece cumprir a função de demonstrar que concursos de beleza podem ser um tópico sociológico relevante e não apenas a frívola reafirmação de padrões normativos de feminilidade, raça e nacionalidade, como postulado por diversos trabalhos sobre o tema (Rahier, 1998RAHIER, Jean Muteba . 1998. "Blackness, the Racial/Spatial Order, Migrations, and Miss Ecuador 1995-96". American Anthropologist. Vol. 100, nº 2, p. 421-430., 2001RAHIER, Jean Muteba . 2001. "Poética y Política de cuerpos blancos y negros: Señoras, Mujeres, Blanqueamiento y Miss Esmeraldas 1997-1998, Ecuador". In: BENÁLCAZAR, Patricio. Diversidad: ¿Sinónimo de Discriminación? Quito: Comunicaciones INREDH.; Banet-Weiser, 1999BANET-WEISER, Sarah. 1999. "The most Beautiful Girl in the World: Beauty Pageants and National Identity". Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California.; Canessa, 2008CANESSA, Andrew. 2008. "Sex and the Citizen: Barbies and Beauty Queens in the Age of Evo". Journal of Latin American Cultural Studies. Vol 17, nº 1, p. 41-64.; Balogun, 2012BALOGUN, Oluwakemi M. 2012. "Cultural and Cosmopolitan: Idealized Femininity and Embodied Nationalism in Nigerian Beauty Pageants". Gender & Society. Vol. 26, nº 3, p. 357-381., entre outros).

Para Ochoa, a beleza faz parte de "como as pessoas imaginam possibilidades para sua sobrevivência, particularmente quando estão em posições socialmente marginalizadas" (:239), sejam elas transformistas que se prostituem na Avenida Libertador ou jovens que aspiram participar do concurso de Miss Venezuela e construir, a partir dele, uma carreira profissional de destaque. Talvez seja este um dos pontos mais fortes do trabalho de Ochoa, pois, ao eleger trabalhar com dois grupos sociais distintos, consegue articulá-los em um mesmo contexto cultural de produção de feminilidades, corporalidades e sujeitos. Assim, ainda que seu foco recaia sobre o que chama de mediações transformistas, ou seja, sobre a forma como as transformistas venezuelanas inscrevem-se, através da incorporação de uma noção de beleza e de sua manipulação, em um imaginário urbano e nacional, a autora oferece uma ampla discussão sobre a história dos concursos de beleza destinados a mulheres na Venezuela. A inserção de diferentes formas de viver a feminilidade em um mesmo quadro discursivo de produção de si acaba, assim, por afastar definitivamente o exotismo e o caráter extraordinário de que ainda se reveste a construção do gênero e dos corpos trans em certos tipos de abordagem; além, obviamente, de afirmar que tanto a feminilidade espetacular dos concursos de beleza como aquela ordinária de uma atendente de voo são igualmente construídas através da manipulação das mesmas tecnologias e corporalidades ideais.

  • BALOGUN, Oluwakemi M. 2012. "Cultural and Cosmopolitan: Idealized Femininity and Embodied Nationalism in Nigerian Beauty Pageants". Gender & Society. Vol. 26, nº 3, p. 357-381.
  • BANET-WEISER, Sarah. 1999. "The most Beautiful Girl in the World: Beauty Pageants and National Identity". Berkeley, Los Angeles, Londres: University of California.
  • BATISTA, Ana Maria Fonseca de Oliveira. 1997. O telefone sem fio, a sobrinha do presidente e as duas polegadas a mais - concepções de beleza no concurso Miss Universo. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
  • BUTLER, Judith. 2008. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • BUTLER, Judith . 1993. Bodies that matter: On the discursive limits of "sex". New York: Routledge.
  • CANESSA, Andrew. 2008. "Sex and the Citizen: Barbies and Beauty Queens in the Age of Evo". Journal of Latin American Cultural Studies. Vol 17, nº 1, p. 41-64.
  • OCHOA, Marcia. 2012. "A moda nasce em Paris e morre em Caracas". In: MISKOLCI, Richard & PELÚCIO, Larissa. Discursos fora da ordem: sexualidades, saberes e direitos. São Paulo: Annablume/ Fapesp.
  • OCHOA, Marcia . 2011. "Pasarelas y 'perolones': Mediaciones transformistas en la Avenida Libertador de Caracas". ÍCONOS - Revista de Ciencias Sociales. Vol. 15, nº 1, p. 123-142.
  • RAHIER, Jean Muteba. 2003. "Mestizaje, Mulataje, Mestiçagem. Latin American Ideologies of National Identities". Journal of Latin American Anthropology. Vol. 8, nº 1, p. 40-50.
  • RAHIER, Jean Muteba . 2001. "Poética y Política de cuerpos blancos y negros: Señoras, Mujeres, Blanqueamiento y Miss Esmeraldas 1997-1998, Ecuador". In: BENÁLCAZAR, Patricio. Diversidad: ¿Sinónimo de Discriminación? Quito: Comunicaciones INREDH.
  • RAHIER, Jean Muteba . 1998. "Blackness, the Racial/Spatial Order, Migrations, and Miss Ecuador 1995-96". American Anthropologist. Vol. 100, nº 2, p. 421-430.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2014
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