Acessibilidade / Reportar erro

SEXUALIDADE E GÊNERO: TENSÕES E DESLOCAMENTOS

O presente número de Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana traz uma série de trabalhos que exemplificam como as discussões que giram em torno da sexualidade, temática aparentemente restrita, têm a capacidade de problematizar e, sobretudo, deslocar importantes questões e clássicos conceitos na produção das ciências humanas e sociais.

Um primeiro conjunto de artigos poderia muito bem ser colocado sob a chave da noção de "dissonância cognitiva" (Festinger, 1957Festinger, L. 1957. A theory of cognitive dissonance. Stanford, CA: Stanford University Press. ), trazido explicitamente à baila por Eli Damian Setton. Em sua instigante análise sobre os discursos de organizações judias LGBT, no Chile e na Argentina, o autor mostra que aspectos fundamentais da construção da identidade judia, em suas dimensões étnica, nacional e religiosa (também relativamente dissonantes entre si), tornam-se mais evidentes a partir do esforço daquelas organizações em conjugar pertencimentos à primeira vista contraditórios: "ser judeu" e "ser LGBT". Tensões análogas se colocam na trajetória de um homem com conduta homossexual fora das grandes metrópoles, como explora o texto de Guilherme Rodrigues Passamani, cuja pesquisa se desenvolve na região do Pantanal, no centro-oeste brasileiro. Nesse caso, partindo da história de vida de um único personagem, é a própria oposição metrópole/interior ou centro/periferia, tão difundida nas análises sociológicas, que se desloca para abrir a reflexão à possibilidade de existência de diferentes "interiores" (e supostamente diferentes "metrópoles"), que resistem a qualquer redução simplificadora.

A conjugação entre "ser gay" e "ser homem", ou seja, de extirpar da apresentação pública de si qualquer remissão ao feminino (chegando às fronteiras da misoginia) é a tensão ou dissonância que move a reflexão de Gibran Braga Teixeira sobre sites de relacionamentos e encontros sexuais. Discutindo as variadas expressões dessa tensão, a análise do autor desloca a antinomia entre modos "tradicionais" e "modernos" de organização das identidades sociossexuais, explorada no clássico trabalho de Peter Fry (1982Fry, Peter. 1982 [1974]. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: FRY, Peter. Para inglês ver. Rio de Janeiro, Zahar, pp.87-115.). A partir das formulações batesonianas sobre processos de sismogênese complementar e simétrica, o autor discute como o chamado modelo moderno, segundo o qual a atividade sexual entre dois homens (não importa se sexualmente ativos ou passivos) os qualificaria igualmente como homossexuais, constrói-se sobre a rigidez de performances cada vez mais masculinas (e, por suposto, heteronormativas). (Re)Produz-se, assim, a abjeção dos homens "afeminados" e aprofundam-se fronteiras de gênero que, à primeira vista, o modelo moderno da homossexualidade teria contribuído para tornar mais tênues ou incertas.

A seu modo, é também da dissonância entre "ser homossexual" e "ser cidadão" que trata o artigo de Thiago Coacci em sua detalhada análise dos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça brasileiros entre os anos de 1989 e 2012. Embora identifique importante tendência democratizante nas cortes brasileiras nesse período, Coacci não deixa de apontar para o fato de que, nesse âmbito, a cidadanização das homossexualidades passa pela constituição de um novo léxico - o da homoafetividade - que permite uma espécie de heterossexualização das arquiteturas conjugais homossexuais, avaliadas agora segundo os mesmos critérios e valores vinculados à conjugalidade heterossexual: monogamia, fidelidade etc.

Apoiados em outras metodologias e referências empíricas (práticas jurídicas, policiais e de administração pública), um outro conjunto de artigos publicados neste número poderia ser discutido sob a chave da noção de heteronormatividade. Acompanhando a peregrinação de travestis profissionais do sexo pela cidade de Buenos Aires nos últimos dez anos, Martin Boy aborda os impasses colocados por um contexto em que, se sexo tarifado e corpos trans não podem mais ser simplesmente "encarcerados" (em prisões ou bordéis), tampouco podem ser visíveis na trama urbana, mesmo que, paradoxalmente como aponta o autor, o conflito público que sua presença em certos bairros produziu ao chegar às páginas dos principais jornais argentinos os tenha tornado hipervisíveis.

A moralização (leia-se heterossexualização) do espaço urbano é também o pano de fundo do minucioso trabalho histórico empreendido por Laura Natalia Milisenda sobre os éditos provinciais que disciplinavam o espaço urbano de outra cidade argentina (Córdoba), de finais do século XIX até os anos 1940. O artigo faz referência a um momento em que a "diferença sexual e de gênero" era diretamente criminalizada através, por exemplo, da proibição formal de pessoas se apresentarem em público com roupas do "sexo oposto", ou da criminalização do escândalo e da provocação obscena. Mas a contribuição mais importante de sua reflexão é, sem dúvida, mostrar como um conjunto de normativas que visava principalmente a certos atos acabou, em meados dos anos 1940, por nomear explicitamente os "homossexuais" como foco de desordem urbana. A homossexualidade emerge assim como identidade política, posto que foco de repressão policial, antes de se difundir como identidade psicológica.

Os artigos de Boy e Milisenda dialogam muito diretamente entre si, mostrando a heteronormatividade que rege a conformação do espaço urbano e que relega às sombras certas práticas e certos corpos. De modo geral, é interessante notar que em todos os artigos até aqui comentados sob a chave da noção de heteronormatividade, como apropriada pela filósofa Judith Butler (2002Butler, J. 2002. Cuerpos que importan: Sobre los límites materiales y discursivos del "sexo". Buenos Aires: Paidós. ) (referência incontornável para a maioria dos textos publicados neste número), condensa-se uma série de mal-estares em relação ao modo pelo qual vem sendo promovido contemporaneamente o ideal de "democracia sexual", conforme formulado nos campos científico e político a partir dos anos 1960 (Weeks, 1985Weeks, J. 1985. Sexuality and its discontents: meanings, myths & modern sexualities. London: Routlegde & Kegan Paul.).

Finalmente, um terceiro conjunto de artigos retoma temas caros à Revista, vinculados às relações entre sexualidade, saúde e processos vitais mais amplos, como a morte e a reprodução. O artigo de Fabiula Renilda Bernardo e Luciana Patrícia Zucco analisa os discursos científicos do campo materno-infantil sobre a "Política de Atenção Humanizada ao Recém-Nascido de Baixo Peso", adotada no Brasil desde 2000 e conhecida como "Método Canguru". As autoras destacam como, em nome da des-hospitalização e da "humanização" do cuidado com os bebês prematuros, a literatura analisada acaba responsabilizando a mãe pela eficácia do método. Cristaliza-se assim como doxa, em uma literatura comprometida com a humanização do cuidado em saúde, o ideal da mulher como mãe cuidadora por natureza, ou seja, um ideal que a perspectiva feminista e os estudos de gênero vêm procurando contestar há várias décadas.

A originalidade do artigo de Juan Cruz Esquivel e Juan Pedro Alonso é tratar simultaneamente temas aparentemente díspares: a "humanização" da morte e a educação sexual. O foco recai na análise dos discursos religiosos, sobretudo o da Igreja Católica, ao longo do processo de discussão e aprovação pelo Congresso Nacional argentino da Lei da Educação Sexual Integral (2006) e da chamada Lei da Morte Digna (2012). Ao problematizarem os modos pelos quais os campos político e religioso se interpenetram e se opõem e, sobretudo, ao explorarem as diferentes estratégias utilizadas pelo ativismo católico para manter sob seu controle os fenômenos vitais, os autores trazem contribuição significativa para a compreensão de um processo que certamente afeta e modula o modo como a agenda dos direitos sexuais e reprodutivos vem se implantando em diferentes países latino-americanos.

As consequências das dificuldades dessa implantação não deixam de ser os temas centrais do artigo de Yanine González Gómez, de um lado, e do de Jimena Luz Silva Segovia e Leyla Carolina Méndez Caro, de outro. Gonzáles Gomes, a partir de uma pesquisa com homens e mulheres jovens que frequentam o ensino médio em Antofagasta (Chile), explora os ideais regulatórios (adultocêntrico, de gênero, religiosos e familiares) através dos quais se materializa a "gravidez prematura", cercada de negatividade e desaprovação. É sumamente importante notar que entre os achados das autoras está o fato de que ideais regulatórios religiosos são mantidos pelos jovens, mesmo os que frequentam escolas públicas. É também a respeito do discurso de jovens sobre sexualidade e gravidez na adolescência que trata o artigo de Jimena Luz Silva Segovia e Leyla Carolina Méndez. A pesquisa se desenvolve com universitários na Colômbia, onde desde 1993 a educação em sexualidade é obrigatória. Talvez uma das principais contribuições da reflexão das autoras, a partir do que ouviram de seus entrevistados, seja mostrar que a existência formal de leis, normativas e programas não garante a difusão de uma informação sobre sexualidade que não se centre fundamentalmente no medo e no risco, que promova a equidade de gênero e que rompa com os paradigmas biologizantes e naturalizantes que continuam pautando o (pouco) que se tem ensinado sobre o tema nas escolas.

Do ponto de vista editorial, a partir deste número, Sexualidad Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana incorpora uma série de mudança visando aprimorar sua qualidade e sua capacidade de fazer circular pela América Latina reflexões de ponta sobre as temáticas que privilegia. Neste sentido, as diferentes editorias (Editores Associados, Editores Executivos e Editores de Resenhas) foram ampliadas, diversificando-se ainda mais a origem nacional de seus membros. Introduzimos também importantes mudanças na política editorial. Transformamos a modalidade de manuscrito "Resenhas" por "Resenhas críticas" (que inclui normas específicas de submissão e avaliação por pares), e nos propusemos, principalmente, a aumentar o número de artigos publicados em cada número.

Referencias bibliográficas

  • Bateson, G. 2008 [1958]. Naven: um exame dos problemas sugeridos por um retrato compósito da cultura de uma tribo da Nova Guiné, desenhado a partir de três perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP.
  • Butler, J. 2002. Cuerpos que importan: Sobre los límites materiales y discursivos del "sexo". Buenos Aires: Paidós.
  • Festinger, L. 1957. A theory of cognitive dissonance. Stanford, CA: Stanford University Press.
  • Fry, Peter. 1982 [1974]. Da hierarquia à igualdade: a construção histórica da homossexualidade no Brasil. In: FRY, Peter. Para inglês ver. Rio de Janeiro, Zahar, pp.87-115.
  • Weeks, J. 1985. Sexuality and its discontents: meanings, myths & modern sexualities. London: Routlegde & Kegan Paul.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015
Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) R. São Francisco Xavier, 524, 6º andar, Bloco E 20550-013 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel./Fax: (21) 2568-0599 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: sexualidadsaludysociedad@gmail.com