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Resenha

RAMOS, Silvina. 2015. .Investigación sobre aborto en América Latina y el Caribe: una agenda renovada para informar políticas públicas e incidencia. 1ª ed.Buenos Aires: Cedes, 207

Legislações retrógadas e reacionárias acerca da prática abortiva são comumente encontradas na América Latina e o Caribe. Dos nove Estados do mundo que criminalizam o aborto terapêutico (quando a vida da mãe está em risco), sete se localizam nessa região, a saber: Chile (em processo de legalização do aborto em caso de risco para a mãe, de feto incompatível com a vida e de gravidez decorrente de um estupro), El Salvador, Honduras, Haiti, Nicarágua, República Dominicana e Suriname (Rosas, 2014ROSAS, E.G. (28.09.2014). 28 de setembro: dia mundial pela descriminalização do aborto [online]. Anistia Internacional Brasil. Disponível em: Disponível em: https://anistia.org.br/28-de-setembro/ [Acesso em: 10.03.2016].
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). Não por acaso, a América Latina e o Caribe têm a maior taxa mundial de abortos inseguros: 31 por 1.000 mulheres com idades entre 15 e 44 anos. Em regiões desenvolvidas, essa taxa é de 1 para cada 1.000 mulheres (World Health Organization, 2012WORLD HEALTH ORGANIZATION. 2012. Unsafe abortion incidence and mortality - Global and regional levels in 2008 and trends during 1990-2008. Disponível em: Disponível em: http://apps.who.int/iris/bitstream/10665/75173/1/WHO_RHR_12.01_eng.pdf [Acesso em: 12.03.2016].
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).

Tendo em vista esses dados, a coletânea Investigación sobre aborto en América Latina y el Caribe: una agenda renovada para informar políticas públicas e incidência é uma importante leitura tanto para quem estuda a temática da interrupção gestacional quanto para quem atua no ativismo político. Compilada por Silvina Ramos e lançada em 2015, a coletânea apresenta um estado da arte através da revisão de 399 trabalhos publicados entre os anos de 2009 e 2014, disponíveis em revistas indexadas em bases de dados virtuais e em bibliotecas universitárias.

O livro é composto por nove capítulos de revisão da literatura, cada um deles sobre uma temática relacionada ao aborto: as trajetórias e as experiências de mulheres; a participação masculina na tomada de decisão; as práticas e as resistências dos profissionais de saúde; os atores políticos; as igrejas; a opinião pública; as normativas e os marcos legais; o estigma; a objeção de consciência. A partir de sua leitura, é possível identificar alguns fios de conexão e "nós cegos" no emaranhado fenômeno do aborto induzido na região.

Um dos assuntos transversais, discutido em todos os nove capítulos, é a religião. A América Latina e o Caribe são marcados por forte influência religiosa, e a literatura evidencia o quanto as igrejas atuam contra as leis e as normativas que visam facilitar o acesso ao aborto seguro, colocando em xeque a noção de Estado laico. A região, de maioria católica, vem passando por mudanças constantes e graduais em relação ao perfil dos fiéis. Em quatro décadas, houve queda do percentual de católicos, de 92% em 1970 para 69% em 2014. No mesmo período, os crentes evangélicos cresceram de 4% para 19% (Pew Research Center, 2014PEW RESEARCH CENTER. (13.11.2014). Religion in Latin America. Widespread Change in a Historically Catholic Region. Disponível em: Disponível em: http://www.pewforum.org/ 2014/11/13/religion-in-latin-america/ [Acesso em: 25.03.2016].
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). A expansão do número de evangélicos tem aumentado a representatividade de parlamentares ligados a esta denominação, especialmente no Brasil, e tem tornado o discurso sobre o aborto cada vez mais conservador.

A revisão bibliográfica mostra que a religião impacta a forma como as mulheres e os homens significam a experiência abortiva. Os argumentos religiosos são ainda base da objeção de consciência de parte dos profissionais de saúde. Tal objeção é entendida como uma barreira no acesso feminino ao aborto seguro e hierarquiza o "direito divino ou direito natural acima do direito positivo" (Ramos, 2015:199). Esse pensamento binário é frequente na literatura investigada e coloca, de um lado, os ativistas religiosos que defendem o direito à vida fetal e, do outro, a luta feminista de autonomia e soberania das mulheres sobre seus corpos. Essa disputa é desigual, visto o amplo apoio político, midiático e financeiro que as igrejas têm, ao passo que os movimentos feministas carecem desses tipos de suporte, sobretudo de maior representação política parlamentar.

Parte da bibliografia revisada propõe que o entendimento sobre o aborto na América Latina e no Caribe deva ir além desses binarismos, pois eles reduzem a complexidade do fenômeno estudado. A compreensão de que há diferenças e pluralidades no interior do catolicismo e entre diferentes igrejas devem ser levadas em consideração. Para além do conservadorismo, há religiosos "progressistas" ou "dissidentes" (:108) que são favoráveis ao aborto previsto em lei. Esses movimentos, porém, tendem a ser marginalizados dentro das próprias igrejas.

A literatura indica que a opinião pública varia de acordo com a idade, a classe social, a escolaridade e a crença religiosa. De modo geral, os mais jovens, de classes sociais mais abastadas, com maior grau de instrução e com pouco ou nenhum envolvimento religioso, tendem a apoiar mais o aborto induzido e a defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Os "abortos traumáticos" (quando há risco de morte ou de comprometimento da saúde da mulher) têm mais apoio da opinião pública do que os "abortos socioeletivos" (decorrentes de dificuldades econômicas, juventude ou desejo feminino) (:147).

Outro tópico amplamente discutido nos artigos revisados é o estigma vivido por diferentes atores envolvidos com o aborto. O baixo conhecimento das legislações, a inadequada formação acadêmica e o medo do estigma levam muitos profissionais de saúde a não realizarem a interrupção gestacional, mesmo nos casos previstos por lei. O receio de terem a sua prática médica vinculada a um "trabalho sujo" (:173) faz com que haja uma "prevalência de posturas conservadoras" (:182), e os médicos preferem não realizar o aborto a cumprir com a ética profissional. Em outras palavras, o direito das mulheres de interromper a gravidez é frequentemente violado pelos temores dos profissionais.

Já as mulheres que abortaram podem ter seus laços conjugais, familiares e religiosos abalados, o que gera sentimentos de vergonha, culpa e tristeza. Algumas mulheres optam por afirmar que o aborto foi espontâneo para evitar o rechaço social. Já outras percorrem trajetos clandestinos mesmo quando há permissão legal de realizar o aborto, devido ao receio de serem socialmente rejeitadas e estigmatizadas.

Nas trajetórias femininas, a baixa escolaridade, a classe social menos favorecida, a juventude e a ausência de apoio familiar e conjugal são determinantes nos percursos abortivos inseguros. Nestes, o uso de medicações, especialmente do Misoprostol, tem sido uma ferramenta feminina para manter o aborto em sigilo. Este tipo de método abortivo autoinduzido também é percebido pelas mulheres como vantajoso, por evitar um procedimento cirúrgico e por ser menos estigmatizado. Contudo, essa prática nem sempre é bem-sucedida e pode comprometer a saúde delas, podendo levá-las à hospitalização.

Logo, o aborto deve ser compreendido como um fato social que evidencia as estruturas desiguais e as diferenças de capitais materiais e simbólicos entre classes sociais. Tais disparidades permitem maior ou menor facilidade para burlar a lei na realização do aborto induzido (Heilborn, Cabral, Brandão, Cordeiro & Azize, 2012HEILBORN, M.L.; CABRAL, C.S.; BRANDÃO, E.R.; CORDEIRO, F. & AZIZE, R.L. 2012. "Gravidez imprevista e aborto no Rio de Janeiro, Brasil: gênero e geração nos processos decisórios". Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana12, p. 224-257.) e impactam diretamente a saúde feminina. Assim, nas classes sociais populares, o aborto realizado de modo inseguro é uma forma brutal de controle de fertilidade, que coloca em risco a vida de milhões de mulheres pobres.

A América Latina e o Caribe, pelas suas legislações restritivas, têm taxas epidêmicas de aborto inseguro. Considerando que "as leis e as políticas são expressões ideológicas", a criminalização do aborto evidencia as práticas machistas e moralizantes de controle dos corpos e da sexualidade feminina através da imposição da "maternidade compulsória" (:185). O investimento em políticas educacionais voltadas para a juventude parece ser um meio de mudar as ideologias, pois os mais jovens e escolarizados tendem a apoiar mais o direito ao aborto seguro e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres de modo mais amplo.

A coletânea contribui para que os debates sobre o aborto induzido na região latino-americana sejam aprofundados. A potência da publicação está na compilação de um conjunto amplo de estudos que analisam o aborto induzido através de perspectivas que fogem de binarismos e pensamentos maniqueístas.

O fenômeno da interrupção gestacional é tão complexo que as centenas de pesquisas compiladas na coletânea não esgotam o tema. Pelo contrário, os próprios autores dos capítulos apontam lacunas. Dentre elas, a falta de trabalhos sobre a participação masculina, os poucos estudos com profissionais não médicos, a ausência de pesquisas sobre outras igrejas além da católica e da evangélica, entre outras brechas.

A coletânea apresenta poucos dados sobre o quesito raça/cor/etnia. Em função de a região ter ampla miscigenação e imensa desigualdade social entre brancos, negros e indígenas, sugere-se que os pesquisadores abordem este tópico nos estudos sobre aborto na América Latina e no Caribe.

Cabe apontar que, através da revisão realizada, não é possível ter um panorama geral do fenômeno do aborto na região, pois dos 42 países que a integram apenas 18 tiveram estudos incluídos na publicação. Destes, dez são da América do Sul. O Brasil é a única nação que teve seus estudos presentes em todos os nove capítulos, demonstrando o quanto os pesquisadores estão atentos à problemática do aborto no país. A Argentina, o México e o Uruguai também apresentam vasta produção científica sobre o tema. A pouca divulgação em revistas indexadas de estudos sobre aborto na América Central e no Caribe é compreensível, considerando-se a dificuldade de realizar pesquisas em países onde a criminalização do aborto é total.

Outro tema que requer pesquisas futuras é o aborto no atual cenário de epidemia do zika. A possível relação do vírus com os casos de microcefalia fetal tem pressionado os Estados a repensarem suas legislações acerca da interrupção gestacional. A Organização das Nações Unidas já fez recomendações para que os países atingidos por esse vírus permitam que as mulheres tenham acesso aos métodos contraceptivos emergenciais e ao aborto seguro nesses casos (Senra, 2016SENRA, R. (05.01.2016). ONU defende descriminalização do aborto em meio à epidemia de zika [on-line]. BBB Brasil. Disponível em: Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/ noticias/2016/02/160205_onu_aborto_zika_rs?ocid=socialflow_facebook [Acesso em: 10.03.2016].
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).

No Brasil, o Instituto de Bioética Anis, responsável pela ação no Superior Tribunal de Justiça que levou à legalização do aborto em casos de anencefalia, organiza outra ação para que as mulheres tenham acesso no pré-natal ao exame que detecta o zika vírus. Débora Diniz, fundadora do Instituto, esclarece que, diante do atual cenário de incertezas, o Estado deve fornecer às mulheres o "controle de suas vidas reprodutivas - contracepção acessível e disponível, e ao aborto seguro e legal", bem como garantir todo o suporte social para as mulheres que optarem por levar a termo a gestação de um filho com microcefalia ou com a síndrome causada pelo vírus (Diniz, 2016). Assim, as mulheres não podem arcar com as consequências da omissão do Estado no controle dos vetores - mosquitos aedes aegypti (Senra, 2016SENRA, R. (05.01.2016). ONU defende descriminalização do aborto em meio à epidemia de zika [on-line]. BBB Brasil. Disponível em: Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/ noticias/2016/02/160205_onu_aborto_zika_rs?ocid=socialflow_facebook [Acesso em: 10.03.2016].
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) - tampouco podem ficar desamparadas em face do resultado positivo de zika vírus (Diniz, 2016DINIZ, D. (08.02.2016). The Zika Virus and Brazilian Women's Right to Choose [on-line]. New York Times. Disponível em: Disponível em: http://www.nytimes.com/2016/02/08/ opinion/the-zika-virus-and-brazilian-womens-right-to-choose.html?_r=1 [Acesso em: 30.03.2016].
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).

Na contramão dos direitos sexuais e reprodutivos femininos, o deputado federal Anderson Ferreira apresentou o Projeto de Lei nº 4.396, de 2016, que busca alterar o Código Penal no intuito de aumentar a pena de aborto cometido em razão de microcefalia ou anomalia do feto (Câmara dos Deputados, 2016CÂMARA DOS DEPUTADOS (17.02.2016). Projeto de Lei nº 4.396, de 2016 [on-line]. Câmara dos Deputados. Disponível em: Disponível em: http://www.camara.leg.br/internet/SitaqWeb/ TextoHTML.asp?etapa=5&nuSessao=008.2.55.O&nuQuarto=4&nuOrador=3&nuInsercao=29&dtHorarioQuarto=20:06&sgFaseSessao=OD&Data=17/02/2016&txApelido=ANDERSON%20FERREIRA,%20PR-PE [Acesso em: 10.03.16].
http://www.camara.leg.br/internet/SitaqW...
).

Ainda no Brasil, a epidemia de zika e suas consequências para a saúde dos fetos também parecem afetar a opinião pública. Pesquisa recentemente realizada no país mostrou que 58% da população é contrária ao aborto, porém essa porcentagem cai para 51% quando confirmada a microcefalia fetal (Datafolha, 2016DATAFOLHA (29.02.2016). 51% rejeitam aborto de fetos com microcefalia causada por zika [on-line]. Datafolha Instituto de Pesquisa. Disponível em: Disponível em: http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2016/02/1744625-51-rejeitam-aborto-de-fetos-com-microcefalia-causada-por-zika.shtml [Acesso em: 10.03.16].
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).

Em suma, vivemos um período de forte embate social e político, no qual os direitos sexuais e reprodutivos estão em pauta. Estudos sobre as práticas abortivas em meio à epidemia de zika são tanto uma forma de publicizar as complexas vivências das mulheres latinas como um meio de tencionar mudanças nas legislações sobre a interrupção gestacional.

Referências bibliográficas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2016
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