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Corpo e emoção no protesto feminista: a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro1 1 Agradeço às professoras Maria Claudia Coelho e Ceres Víctora pelo convite para integrar este dossiê, bem como à/ao parecerista anônima/o, à Bila Sorj, Silvia Aguião e Jimena de Garay Hernandez por suas valiosas revisões e sugestões a este artigo.

Body and emotion at the feminist protest: the Rio de Janeiro Slut Walk (Marcha das Vadias)

Cuerpo y emoción en la protesta feminista: la Marcha de las Putas (Marcha das Vadias) de Río de Janeiro

Resumo

Os corpos e as emoções sempre foram importantes recursos políticos para ativistas, embora apenas recentemente tenham se tornado objetos de interesse dos estudos sobre movimentos sociais. Na Marcha das Vadias, protesto feminista contra o estupro, os corpos das participantes constituem os próprios sentidos da ação coletiva, já que são mobilizados por elas para produzir novos códigos acerca da violência sexual e da sexualidade. A nudez e o uso de roupas “sensuais” são algumas das formas pelas quais o corpo é utilizado para produzir e comunicar essas mensagens. A performatividade incorporada das participantes busca produzir eficácia simbólica evocando emoções associadas ao humor, à provocação e à autoafirmação, e preterindo a expressão pública de dor e a figura da vítima, marcantes em outros protestos contra o estupro. Os repertórios corporais e emocionais do protesto, resultantes do trabalho simbólico e material feito pelas ativistas a partir de contextos culturais e de interação específicos, reelaboram a política identitária feminista, na medida em que são usados tanto pelas vadias como por outros grupos feministas para delimitar fronteiras, sempre fluidas, de diferenciação mútua.

Palavras-chave:
corpo; emoções; identidade; feminismo; Marcha das Vadias

Abstract

Bodies and emotions have always been important political resources for activists, although only recently have they become objects of social movements’ studies. In the SlutWalk (Marcha das Vadias), an anti-rape global feminist protest, demonstrators’ bodies constitute the very meanings of collective action, since they are mobilized to produce new codes about sexual violence and sexuality. The employment of nudity and “sexy” clothes by the participants are some of the ways by which the body is used to produce and communicate those meanings. The protesters’ performative embodiment aim to produce symbolic efficacy by evoking emotions connected to humor, provocation and self-affirmation, and overlooking those associated to pain and victimization, which are central at other anti-rape protests. The bodily and emotional repertoires of the protest, which result from symbolic and material work done by activists in and from specific cultural and interactional contexts, re-elaborate the feminist identity politics, as they are used by the Slutwalkers and other feminist groups to delineate fluid boundaries of mutual differentiation.

Key words:
body; emotions; identity; feminism; Slut Walk

Resumen

Los cuerpos y emociones siempre han sido un recurso político importante para activistas, pero sólo recientemente se han convertido en objetos de interés para el estudio de los movimientos sociales. En la Marcha de las Putas, protesta feminista contra la violación, los cuerpos de las participantes constituyen los propios sentidos de la de acción colectiva, ya que son movilizados por ellas para producir nuevos códigos sobre la violencia sexual y la sexualidad. La desnudez y el uso de ropa "sexy" son algunas de las formas en las que el cuerpo es utilizado para producir y comunicar estos mensajes. La performatividad encarnada de los participantes trata de producir eficacia simbólica evocando emociones asociadas con humor, provocación y autoafirmación, y pretiriendo la expresión pública del dolor y la figura de la víctima, destacada en otras protestas contra la violación. Los repertorios corporales y emocionales de la protesta, que resultan del trabajo simbólico y material realizado por activistas desde contextos culturales y de interacción específicos, reelaboran la política de identidad feministas, en la medida en que son usados ​​tanto por las vadias como por otros grupos feministas para delimitar fronteras, siempre fluidas, de diferenciación mutua.

Palabras clave:
cuerpo; emociones; identidad; feminismo; Marcha de las Putas

O apelo ao “corpo” é notável nos repertórios de ação feministas em diversos lugares do mundo, no presente e no passado. No movimento feminista brasileiro atual, o corpo - isto é, certos discursos e práticas de produção de algo chamado corpo - tem sido mobilizado de várias formas. Há muito que as reivindicações pelo direito ao aborto, ao exercício da sexualidade e a serviços de atenção à saúde da mulher têm sido enquadradas como demandas por “autonomia das mulheres sobre seus corpos”. Mas também fora do campo dos direitos sexuais e reprodutivos, o corpo tem sido construído e politizado por feministas em seus discursos e protestos.

Na última ação internacional da Marcha Mundial das Mulheres2 2 A Marcha Mundial das Mulheres nasceu no ano 2000 como uma mobilização de mulheres de todo o mundo contra a pobreza e a violência. Hoje, é muito atuante no Brasil, onde possui núcleos permanentes em diversas cidades. A Marcha Mundial das Mulheres defende a “necessidade de superar o sistema capitalista patriarcal, racista, homofóbico e destruidor do meio ambiente” (Website da Marcha Mundial das Mulheres, disponível em https://marchamulheres.wordpress.com/mmm/ [Acesso em abril de 2017). em 2015SECRETARIA DE MULHERES TRABALHADORAS RURAIS DA CONTAG. 2015. Marcha das Margaridas 2015. Desenvolvimento Sustentável com Democracia, Justiça, Autonomia, Liberdade e Igualdade. Caderno de textos para estudos e debates., por exemplo, que teve como mote “direito ao nosso corpo, trabalho e território”, as ativistas dos meios rurais definiram o agronegócio não apenas como uma violação às comunidades, mas também aos “corpos das mulheres”, ressignificados, eles mesmos, como “território”. Entre as feministas negras, a construção de identidades políticas passa muitas vezes pela incorporação de certos atributos de “negritude”, em especial a transição dos cabelos quimicamente tratados para cabelos crespos (Bueno, 2016BUENO, Josiane de Assis. 2016. “Deixa que nos olhem! Uma discussão antropológica a partir das experiências etnográficas com um grupo de mulheres negras na cidade de Porto Alegre”. In: 40 Encontro Anual da Anpocs, 24 a 28 de outubro de 2016. Caxambu, MG. ). Na Marcha das Mulheres Negras,3 3 A primeira “Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver”, realizada no dia 18 de novembro de 2015, reuniu em Brasília cerca de 30 mil de participantes de todo o Brasil. “Nossos passos vêm de longe” foi um dos slogans utilizados, reforçando a construção de uma história e de experiências compartilhadas. as participantes adornaram seus corpos com roupas e turbantes que visavam construir uma conexão simbólica e material entre cada indivíduo e uma “herança” afro-brasileira comum. Nos protestos pela descriminalização do aborto conhecidos como “Mulheres contra Cunha”,4 4 Os protestos “Mulheres contra Cunha” foram uma série de manifestações, iniciadas em outubro de 2015 no Rio de Janeiro, contra a aprovação do PL 5069/2013, que dificulta o acesso aos serviços de abortamento legal para vítimas de violência sexual no sistema público de saúde, de autoria do então presidente da Câmara Federal, deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ). Reunindo mais de 20 mil pessoas na primeira manifestação no Rio de Janeiro, o protesto foi replicado em diversas capitais brasileiras e obteve grande visibilidade midiática. mulheres com seus bebês no colo, ou com suas barrigas grávidas pintadas com a frase “maternidade é uma escolha”, buscavam reenquadrar imagens e narrativas sobre maternidade e aborto (Brito, no preloBRITO, Priscilla (no prelo). “Primavera das mulheres: o on-line e o off-line nas manifestações feministas de 2015”. Revista Sociologia (Magazine), edição 68. São Paulo: Editora Escala.).

Desnudados, encobertos, paramentados ou pintados, fazendo-se presentes nas ruas, em imagens ou em manifestos, os corpos são transformados em artefatos políticos, acionados de diversas formas por ativistas para comunicar diferentes mensagens e produzir efeitos desejados. Chave importante de organização dos discursos e das práticas feministas, a construção política do corpo não é, contudo, uma exclusividade deste movimento. Em maior ou menor medida, todos os movimentos sociais politizam o corpo e incorporam a política. No feminismo, entretanto, o “corpo” é um articulador central dos repertórios políticos, um lugar discursivo onde as ativistas depositam uma multiplicidade de significados e projetos, constituindo uma gramática ao mesmo tempo compartilhada e disputada.

Um elemento importante no processo de construção do corpo pelos movimentos sociais é a mobilização de emoções. As mensagens produzidas pelos movimentos têm componentes emocionais que lhes dão sentido e capacidade de apelo público. Seus slogans e palavras de ordem expressam/incitam certas emoções e afetos, como indignação, orgulho e ironia, enquanto inibem outros. Isto fica evidente nas ruas, quando ativistas incorporam emoções que se articulam ao teor das suas mensagens políticas: são corpos enlutados, potentes, vulneráveis, estoicos, transgressores, ameaçadores, que riem ou que expressam dor. Assim como os discursos e as práticas corporais, a chave emocional de um protesto não é casual, mas resultado de um trabalho de seleção e modulação de um repertório afetivo.

Além disso, os diferentes modos com que ativistas constroem corpos e emoções denotam diferentes projetos políticos, o que afeta a própria configuração das redes e da política identitária dos movimentos. Isto ocorre porque corpos e emoções têm marcas de geração, raça, classe, gênero e sexualidade que são transformadas por ativistas em substrato político para identificação e diferenciação, alianças e rupturas. Tomando a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro como caso, analiso como as ativistas têm politizado seus corpos e suas emoções nos protestos e como isto afeta o campo feminista.

Os dados empíricos são construídos a partir de etnografia das atividades promovidas pelo grupo organizador da Marcha das Vadias do Rio de Janeiro (de agora em diante, MdV ou Marcha) entre fevereiro de 2013 e agosto de 2014, como reuniões, debates, protestos e campanhas. Ocasionalmente, observei outros espaços e grupos feministas, como fóruns e reuniões sobre violência contra a mulher e descriminalização do aborto, protestos de rua e seus preparativos, eventos acadêmicos, entre outros, que me ensinaram sobre o campo feminista onde a MdV do Rio de Janeiro está situada, as relações e as disputas entre diferentes grupos e os principais debates e desafios em jogo. Também entrevistei 29 ativistas com diferentes experiências em termos de idade, raça, classe, origem geográfica e forma de ativismo, para me familiarizar com distintas narrativas de feminismo. E, finalmente, como a internet é um importante espaço de mobilização política, recolhi material de páginas de Facebook, blogs, vídeos e fotos sobre a Marcha carioca e de outras cidades, e também sobre outros eventos feministas relevantes.5 5 Esses dados integram minha pesquisa de doutorado em andamento sobre a Marcha das Vadias e o movimento feminista carioca, realizada no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com bolsa do CNPq.

Na primeira seção, eu descrevo a Marcha das Vadias. Em seguida, dialogo criticamente com estudos sobre corpo e emoções nos movimentos sociais. Na última parte, eu analiso os repertórios corporais e emocionais da Marcha e indico brevemente como esses repertórios têm sido um terreno fértil para a reelaboração da política identitária feminista, na medida em que são usados tanto pelas vadias6 6 Grafada em itálico a partir daqui, vadia é uma categoria nativa, central para as participantes do protesto e em suas relações com outros grupos no campo feminista. Seus sentidos serão explicitados ao longo do texto. como por outros grupos feministas para delimitar fronteiras de diferenciação mútua.

A Marcha das Vadias

A origem da Marcha das Vadias, segundo vários relatos encontrados na internet, se deu em 2011, quando um policial alertou, em um fórum de segurança para estudantes da Universidade de York, em Toronto, Canadá, que “as mulheres deveriam evitar se vestir como vadias (sluts) para não serem vitimizadas”. A declaração gerou repercussão na mídia e ele teve que se retratar publicamente.7 7 Uma entre muitas reportagens sobre a declaração do policial e a SlutWalk: http://on.thestar.com/ 1rWNIuk [Acesso em fevereiro de 2013]. Considerando que a declaração do policial não era acidental, mas expressão de noções do senso comum que legitimam o estupro, algumas estudantes organizaram a primeira SlutWalk, em Toronto, em 3 de abril de 2011. Vestidas como vadias - com lingerie aparente, batom vermelho e outros elementos considerados “provocantes” - as ativistas visavam mostrar que os significados pejorativos da palavra vadia são uma forma de controle da sexualidade feminina. Segundo o site da SlutWalk Toronto,8 8 O site http://www.slutwalktoronto.com (Acesso em dezembro de 2015) era um manifesto político, contendo problematizações do tratamento dispensado à violência sexual na cultura e pelas instituições, além de reinvindicações e propostas. Ademais, era também uma espécie de memória viva do movimento, constantemente incrementada, editada, inventada, pela qual as organizadoras relatavam como o protesto surgiu, os repertórios utilizados (os cartazes, as roupas, os slogans), o modo como se espalhou pelo mundo, as críticas recebidas, e respostas a elas. Infelizmente, parece ter saído do ar em 2016. A página do Facebook da SlutWalk Toronto (https://www.facebook.com/SlutWalkToronto/?fref=ts [Acesso em fevereiro de 2017]) continua no ar e ativa, mas não cumpre o mesmo papel. a intenção era “tomar de volta a palavra”, “ressignificá-la” como “autonomia” e “empoderamento”, promovendo uma “visão positiva do sexo” (“sex-positivity”). Com slogans como “somos todas vadias”, as principais bandeiras eram “o fim da violência sexual” e da “culpabilização da vítima” e a defesa da “liberdade das mulheres e autonomia sobre seus corpos”.

Desde então, muitos protestos semelhantes foram organizados em várias cidades do mundo, levando milhares de pessoas às ruas. Em países de língua espanhola, ganharam o nome de Marcha de las Putas. No Brasil, foi organizada pela primeira vez em junho de 2011 em São Paulo, e chamada de Marcha das Vadias. A tradução de slut para vadia não é o resultado de uma equivalência de representações, mas, como toda tradução, é uma transfiguração, uma criação política. Ainda que vadia seja um termo depreciativo direcionado às mulheres percebidas como “promíscuas”, vagabunda, piranha ou puta são termos mais correntes no sudeste do Brasil quando se quer chamar uma mulher de slut. Por um lado, a palavra assume conotações negativas associadas à moral sexual e à criminalização da “vadiagem”;9 9 A “vadiagem” é criminalizada desde as leis do período colonial e do Império até a redação do artigo 59 da Lei de Contravenções Penais de 1941, que vige até hoje e assim a define: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”. O dispositivo jurídico da vadiagem tem sido historicamente usado como instrumento de controle de populações específicas por meio do emprego seletivo de uma certa ética do trabalho, informada por outros dispositivos de hierarquização social, como raça, classe e gênero. Embora hoje sejam pouco frequentes as condenações por vadiagem (Ribeiro, 2000), a noção ainda atravessa representações e práticas discriminatórias por parte do Estado e da sociedade, direcionadas em especial a negros(as), favelados(as), prostitutas, cafetões, trabalhadores informais, moradores de rua, usuários de certas drogas (Leal, 2017), entre outros. por outro lado, na língua corrente, na música, na literatura, na capoeira, nos imaginários de “nação”, entre outras expressões culturais, “vadiagem” é utilizada com conotação positiva para expressar o tempo do prazer, do ócio, da “liberdade”, do vagar sem propósito específico, em contraposição ao tempo do trabalho, da produtividade e da instrumentalidade. Neste sentido, vadiar é como flanar, um modo não rotinizado de experimentar o tempo, a cidade, o corpo. Como esta acepção suaviza a carga pejorativa dos termos vagabunda, piranha e puta, acredito que a escolha foi uma estratégia para tornar a recepção do protesto mais bem-sucedida no contexto cultural brasileiro. Como também esta significação positiva está via de regra associada aos homens e ao universo masculino, vadia pode ter sido percebida como mais rentável para questionar a política sexual das palavras do que os outros termos.

Já em 2012, 23 cidades de todas as regiões do país organizaram suas marchas, mantendo o espírito original do protesto canadense, mas definindo localmente outras reivindicações e modos próprios de mobilização. Em 2013, a Marcha ocorreu simultaneamente em sete capitais. Até maio de 2015, havia acontecido em cerca de 60 cidades brasileiras,10 10 Cheguei a este número buscando por “Marcha das Vadias” no Facebook. Identifiquei páginas e eventos do protesto em 63 cidades. Em alguns casos não é possível saber se os protestos de fato ocorreram (dada a ausência de fotos, comentários ou eventos que os confirmassem), ou se se tratava apenas de tentativas de mobilização ou fóruns de discussão. e continua até hoje em alguns locais. A velocidade com que o protesto se propagou pelo país e pelo mundo mobilizou a juventude e repercutiu em diversas mídias e é inseparável das possibilidades que as novas tecnologias de comunicação oferecem ao ativismo político.

O modo como as participantes exibem, vestem e modificam seus corpos, colocando-os no centro do protesto, é notável nas Marchas das Vadias de diversos lugares. No Brasil, muitas mulheres vestem lingeries “sexy” ou exibem os peitos - afirmação encarnada da sexualidade como atributo de si e do espaço público. Ao lado destas, outras usam sutiãs de amamentação, calcinhas bege, cuecas e burca.11 11 Algo semelhante é feito, por exemplo, em Hong Kong, onde muitas participantes usam pijamas com calças, mangas compridas e estampas infantis, ou macacões coloridos de super-heróis, com dizeres como “Oh, sorry. Does my dress make you feel like a rapist today?” (Garrett, 2015). Em todos os casos, as participantes, como as drag queens, “se montam” (Vencato, 2005VENCATO, Anna Paula. 2005. “Fora do armário, dentro docloset: o camarim como espaço de transformação”. Cadernos Pagu . Nº 24, p. 227-247.), produzem seus corpos de modo a revelar a cotidianidade do estupro e questionar os pressupostos que o enquadram como uma forma de “sexo” com mulheres que “estão pedindo”. Essas corporalidades políticas incluem a expressão de emoções e sentimentos ligados ao riso, à ironia e à provocação, e são mobilizadas pelas ativistas como dispositivos que evidenciam e questionam a naturalização das normas sociais de gênero.

Porque o corpo é tão provocador na MdV, este protesto angaria tanto adesões como rejeições apaixonadas e levanta muitas controvérsias e debates em todos os países por onde passa. Se, por um lado, a Marcha atrai muitas participantes interessadas em um formato menos “convencional” de ativismo - menos “careta”, “engessado” ou “hierarquizado”, segundo minhas interlocutoras - por outro, provoca muitas reações negativas por parte da mídia mainstream, do público e de setores dos movimentos sociais e feminista, que reprovam o nome do protesto, o uso da nudez ou duvidam da sua capacidade de representação política.

Tanto a MdV como outros protestos feministas recentes têm sido criticados por supervalorizarem a cultura popular, a sexualidade e a expressão corporal em detrimento de aspectos “estruturais” da política (O’Keefe, 2014O’KEEFE, Theresa. 2014. “My body is my manifesto! SlutWalk, FEMEN and femmenist protest”. Feminist Review. Vol. 107, p. 1-19.; Cook & Hasmath, 2014COOK, Julia & HASMATH, Reza. 2014. “The discursive construction and performance of gendered identity on social media”. Current Sociology. Vol. 62, issue 7, p. 975-993.). Diferente de gerações anteriores de feministas, cuja atuação mais visível se dava em organizações formais e nacionais, com ênfase na incidência nas políticas públicas e em outros processos de Estado, as gerações contemporâneas atuam principalmente em espaços menos visíveis em termos de escala e organização. São inúmeros coletivos não institucionalizados em universidades e bairros; grupos de mulheres negras, lésbicas, mães, grafiteiras, ciclistas; núcleos em sindicatos urbanos e rurais; setoriais do movimento estudantil, de moradia, anarquista, entre outros (Alvarez, 2016ALVAREZ, Sonia E. 2016. “Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista”. Cadernos Pagu. Nº. 43, p. 13-56.; Gomes, 2016GOMES, Carla C. 2016. “Nossos corpos, nossos manifestos”. Revista Cult (Magazine). Dezembro de 2016. Ano 19, nº 219, p. 40-43. São Paulo: Editora Bregantini.). Ganham visibilidade por meio de ações nas ruas e na internet, e engajam-se muito, embora não exclusivamente, em lutas que visam à mudança dos códigos culturais. Partindo deste contraste geracional (e ajudando a construí-lo), muitas estudiosas e ativistas acusam as jovens de serem “ineficientes”, “apolíticas” e mesmo “não feministas” (Reger, 2012REGER, Jo. 2012. Everywhere and nowhere: Contemporary feminism in the United States. New York: Oxford University Press.).

Com a Marcha das Vadias não é diferente. Ela movimenta disputas internas do feminismo, em que ativistas de diferentes vertentes elaboram narrativas de “nós” e das “outras”, avaliações sobre o que é ou não legítimo no feminismo, traçando fronteiras e produzindo reacomodações no campo político. O modo pelo qual as vadias produzem o corpo e trabalham as emoções está no centro dessas disputas e é acionado na produção de diferenças identitárias. Por isso, a análise deste protesto permite compreender as práticas corporais e emocionais dos movimentos sociais e como elas afetam seus processos constitutivos: as suas relações com diferentes públicos, com outros movimentos, além das interações internas entre ativistas.

Performatividade e Trabalho Emocional nos movimentos sociais: incorporando frames

A literatura sociológica sobre movimentos sociais fala pouco sobre corpo. Recursos, organizações, redes, contexto político e as mensagens dos movimentos têm sido privilegiados nas análises.12 12 Alguns dos trabalhos fundantes dessas abordagens são: sobre organizações e mobilização de recursos (Zald & McCarthy, 1987); para redes de mobilização e capital social (Diani, 1997); sobre processo e oportunidades políticas (Tilly, 1978; McAdam, 1982); sobre movimentos sociais e seus códigos culturais (Melucci, 1996). Recentemente, alguns estudos têm tratado de emoções na ação coletiva,13 13 Goodwin, Jasper e Poletta (2001) e Flam e King (2005) organizaram coletâneas sobre emoções e movimentos sociais. Sobre este tema, há também os trabalhos de Jasper (1997), Goodwin e Jasper (2006), Juris (2008), entre outros. mas frequentemente as tomam como elementos autoevidentes, sem explicitar a sua relação com a política dos corpos e com o contexto sociocultural. A partir de um diálogo crítico com os conceitos de performatividade incorporada, frame e trabalho emocional eu tomo o corpo, transformado em artefato político pelos movimentos sociais, como uma profícua chave de análise do movimento feminista, em particular, e da ação coletiva, em geral.

Em sua obra recente, Towards a performative theory of assembly, instigada pelos grandes protestos na Praça Tahrir em 2011 e outros que os sucederam, Butler (2015BUTLER, Judith. 2015. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge/London: Harvard University Press.) vê o corpo como produtor do espaço público. Para ela, a mera presença de corpos nas “assembleias”14 14 Uso a palavra assembleia no sentido amplo, tal como empregado pela autora, para denotar a reunião de pessoas no espaço público, de forma planejada ou não, com fins políticos, e que pode assumir várias formas: ocupações, assembleias deliberativas, caminhadas, performances artístico-políticas etc. - reunindo-se, gesticulando, ficando de pé - já comunica uma demanda pelo direito de existir e aparecer publicamente, mesmo que permaneçam em silêncio. Isto significa que o espaço público não está dado: são os atos corporais dos sujeitos em assembleia que o reclamam e o instituem enquanto tal. A noção de “performatividade incorporada” (embodied performativity) busca dar conta dessa dimensão produtiva dos corpos nos protestos. A autora parte da noção de performatividade que fundamenta seu pensamento sobre gênero: os atos corporais são performativos porque instituem o gênero, tanto reproduzindo-o como reinventando-o (Butler, 2003BUTLER, Judith. 2003. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Record.). Do mesmo modo, os corpos reunidos em assembleia são performativos porque, ao “dizerem” que eles também têm direito a aparecer publicamente, tanto reafirmam como transformam o espaço público, produzindo-o.15 15 Butler está interpelando Hannah Arendt que, reproduzindo a divisão público x privado fundamentada pelo gênero, exclui o corpo do espaço público. Enquanto o espaço privado é habitado por mulheres e outros corpos feminilizados, o espaço público é concebido por Arendt como a esfera de sujeitos sem corpos e sem gênero, cujas necessidades materiais (corporais) de existência já foram misteriosamente satisfeitas: o ator da polis é um sujeito que “não sente fome” atuando num espaço que não conhece necessidades físicas (Butler, 2015: 47). Para Butler, diferentemente, a mera presença corpórea dos sujeitos na assembleia revela que as condições materiais para sua existência (alimentação, segurança) são inseparáveis das condições para sua aparição pública e, portanto, para a produção do espaço público.

Se todas as assembleias públicas são um exercício de corpos que afirmam e produzem algo, também os corpos protestadores são produzidos pelas assembleias. Algumas delas, como mostram Sasson-Levy e Rapoport (2003SASSON-LEVY, Orna & RAPOPORT, Tamar. 2003. “Body, gender, and knowledge in protest movements: the Israeli Case”. Gender & Society. Vol. 17, issue 3, p. 379-403.), transformam o corpo na principal “mensagem” do protesto e, desta forma, investem deliberadamente na produção de corpos políticos. Tipicamente, entretanto, os estudos que analisam a construção de mensagens pelos movimentos sociais não concebem o corpo enquanto tal. Entre esses estudos, o conceito de frame ou “enquadramento” é uma das principais ferramentas analíticas. Criado por Snow e Benford com base no trabalho de Goffman, frame é “um esquema interpretativo que simplifica e condensa o ‘mundo lá fora’ através da pontuação e codificação seletiva de objetos, situações, eventos, experiências e sequências de ação em determinado ambiente presente ou passado” (Snow & Benford, 1992: 137SNOW, David A. & BENFORD, Robert D. 1992. “Master frames and cycles of protest”. In: MORRIS, A.D. & MUELLER, C.M. (eds.). Frontiers in social movement theory. New Haven, CT: Yale University Press. p. 133-155.). Em outras palavras, é um modo simples de apresentar eventos e experiências, uma interpretação que potencialmente é capaz de atrair apoiadores e mantê-los comprometidos com um movimento (Goodwin & Jasper, 2015GOODWIN, Jeff & JASPER, James M. (eds.). 2015. The social movements reader: Cases and concepts. Hoboken, Nova Jersey: Wiley Blackwell.).

Snow e Benford (1988SNOW, David A. & BENFORD, Robert D. 1988. “Ideology, Frame Resonance, and Participant Mobilization”. International Social Movement Research. Nº 1, p. 197-217.) identificaram três tipos de frames necessários aos movimentos sociais: os diagnósticos, pelos quais os ativistas atribuem sentidos a problemas comumente percebidos como individuais ou naturais e os transformam em “problemas sociais”; os prognósticos, que definem soluções, estratégias e táticas; e os motivacionais, que produzem incentivos à ação e ao recrutamento de ativistas. Os enquadramentos raramente são explicitados pelos atores; eles aparecem como fórmulas implícitas que organizam a retórica dos movimentos em manifestos, declarações, slogans, palavras de ordem e imagens. Por exemplo, Taylor e Whittier (1995TAYLOR, Verta & WHITTIER, Nancy. 1995. “Analytical Approaches to Social Movement Culture: The Culture of the Women's Movement”. In: JOHNSTON, H. & KLANDERMANS, B. (eds.). Social movements and culture. Minneapolis: University of Minnesota Press. p. 163-187.) observam que o movimento de “depressão pós-parto” nos EUA inicialmente investiu no frame de “doença psiquiátrica” e mais tarde reformulou o problema, bem como suas estratégias, em torno da noção de “direitos das mulheres”.

Embora esta perspectiva tenha o mérito de inserir a cultura nos estudos sobre movimentos sociais, ela foi alvo de críticas. Uma delas diz respeito ao enfoque predominantemente cognitivista dos frames, sempre imaginados como “ideias”, “retórica”, “palavra”. Se o corpo é transformado em mensagem pelos movimentos, se ele é produzido para produzir efeitos políticos, então ele também é frame. Frames, portanto, não são apenas “pensados”, “ditos”, “escritos”, mas são também performativamente incorporados. Pensar corpos como frames amplia as possibilidades analíticas sobre o que fazem os movimentos, e como.

Para Goodwin, Jasper e Polletta (2001GOODWIN, Jeff; JASPER, James M. & POLLETTA, Francesca (eds). 2001. Passionate politics: Emotions and social movements . Chicago: University of Chicago Press.), a experimentação de emoções também é um importante elemento dos frames, em especial os motivacionais. Sentimentos de raiva, vergonha, orgulho ou falta de respeito são, argumentam os autores, estimuladores do engajamento, assim como laços de solidariedade e amizade são cruciais na manutenção das redes de relações que constituem os movimentos. Para Jasper (1997), os “choques morais”, que ocorrem quando um evento inesperado provoca tamanha indignação em uma pessoa que ela se inclina à ação política, são o primeiro passo em direção ao engajamento.

Stéphane Latté (2015LATTÉ, 2015. “Des ‘mouvements émotionnels’ à la mobilisation des émotions. Les associations de victimes comme objet électif de la sociologie des émotions protestataires” [on-line]. Terrain/Théories. Vol. 2. Disponível em: https://teth.revues.org/244?lang=en [Acesso em 07.10.2016].) defende uma abordagem alternativa das emoções nos movimentos sociais. Para ela, a noção de emoções mobilizadoras promovida por Goodwin, Jasper e outros tenta derivar nexos causais das emoções tais como supostamente experimentadas pelos ativistas, o que equivale a tomá-las como naturais, evidentes e autossuficientes, além de serem de difícil demonstração empírica. Em contraste, as emoções tais como publicamente mobilizadas pelos atores se prestam melhor à observação e à análise. Esta perspectiva torna visível o trabalho emocional realizado pelos atores, que Hochschild (1979HOCHSCHILD, Arlie Russel.1979. “Emotion Work, Feeling Rules, and Social Structure”. American Journal of Sociology. Vol. 85, nº. 3, p. 551-575.) define como o gerenciamento das emoções de modo a torná-las “apropriadas” às situações, e que é continuamente realizado pelos ativistas quando publicizam certas emoções e inibem outras. Tomando as emoções como cultural e socialmente construídas, esta abordagem analisa as regras sociais para classificação, gerenciamento e expressão de sentimentos e emoções. Aplicada ao estudo dos movimentos sociais, a noção de trabalho emocional supõe que ativistas são conhecedores dos constrangimentos e das virtudes atribuídos aos diferentes registros emocionais em um determinado léxico cultural.

Assim, antecipando as expectativas da mídia, do público, dos poderes públicos e de movimentos sociais concorrentes sobre um protesto, ativistas buscam modular a expressão pública de emoções. Por exemplo, Vianna e Farias (2011VIANNA, Adriana & FARIAS, Juliana. 2011. “A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional”. Cadernos Pagu . Nº 37, p. 79-116.) mostram que no movimento de mães de vítimas de violência policial do Rio de Janeiro não apenas a expressão pública de dor é central nos discursos e nas corporalidades das ativistas, como também elas aprendem a dosá-la de acordo com as distintas arenas políticas em que atuam. MacRae (1990MacRAE, Edward. 1990. A construção da igualdade. Identidade Sexual e Política no Brasil da “Abertura”. Campinas: Editora da Unicamp.) observa que no movimento homossexual brasileiro da década de 1970 havia uma disputa entre militantes que consideravam necessário transparecer “seriedade e dignidade” para difundir uma imagem “normal” dos homossexuais e outros que apostavam na “fechação” - performances de “desmunhecação” ou “bichice” marcadas por deboche, sátira e humor - como forma de contestação da naturalidade dos padrões de gênero e da própria “sisudez”.

É, portanto, no jogo relacional entre ativistas e outros atores que o trabalho emocional é organizado. Segundo esta perspectiva, os afetos não são tomados como um dado pré-discursivo, um estado interno pronto para “eclodir” ao sinal de algum “choque moral”, mas como artefatos que os ativistas se dedicam a produzir, legitimar, publicizar, controlar. Isto não significa dizer que a relação dos ativistas com as emoções será sempre e unicamente instrumental, mas que a análise das emoções não deve perder de vista os contextos nos quais elas se situam e ganham sentido.

Do modo como vejo, a noção de trabalho emocional permite trazer à tona a dimensão da produção do corpo pelos movimentos sociais. Assim, trabalho emocional não é apenas resultado dos constrangimentos da estrutura social e das regras de expressão dos sentimentos, como enfatiza Hochschild (1979HOCHSCHILD, Arlie Russel.1979. “Emotion Work, Feeling Rules, and Social Structure”. American Journal of Sociology. Vol. 85, nº. 3, p. 551-575.) em sua elaboração original do conceito, mas também um vetor de agência e criatividade. Trata-se de compreender como, no processo mesmo de gerenciamento das emoções e dos corpos, os atores produzem afetos e corporalidades. Ademais, os frames foram frequentemente tomados como estruturas estáticas, com pouca atenção dispensada à sua emergência e mudança ao longo do tempo, como resultado de diálogos e disputas entre vários atores (Della Porta & Diani, 2006DELLA PORTA, Donatella & DIANI, Mario. 2006. Social movements: An introduction. Malden, MA: Blackwell.). Portanto, analisar a fabricação dos corpos e o trabalho emocional nos movimentos permite pensar os frames como processo. O modo como a Marcha das Vadias elabora corpos e emoções nos oferece algumas pistas nestas direções.

Corpo, emoção e identidades na Marcha das Vadias no Rio de Janeiro

No Rio de Janeiro, a primeira MdV aconteceu em julho de 2011, apenas poucos meses depois da marcha canadense e da paulistana, e num contexto de crescentes mobilizações no país e no mundo.16 16 No contexto brasileiro, a Marcha da Maconha e a Marcha da Liberdade (pela liberdade de expressão, e motivada pela violenta repressão do Estado à Marcha da Maconha de São Paulo) tinham acontecido há poucas semanas, e foi durante a organização desses protestos que algumas ativistas começaram a preparar também a MdV carioca. No plano internacional, a “Primavera Árabe” estava em curso, e em breve o Occupy Wall Street tomaria as manchetes de jornal. Para mais detalhes sobre a emergência e a organização da MdV do Rio de Janeiro, ver Gomes (2016). Repetindo-se anualmente, os protestos ocorrem desde a primeira edição em Copacabana, que tem sido palco para manifestações diversas.17 17 Copacabana é um bairro bastante heterogêneo em termos de classe e estruturas de habitação. Há setores muito ricos, outros de classe média e ainda favelas populosas. Além de turística, é área de lazer para moradores de várias partes da cidade. É tanto comercial como residencial, além de tradicional área de prostituição. Somente durante o período do meu trabalho de campo foi palco de protestos situados em um amplo espectro político e cultural: contra a Copa Mundial de Futebol e os Jogos Olímpicos, de professores em greve, pelo fim da violência policial contra moradores de favelas, contra as mortes de policiais no exercício do trabalho, contra e a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff, contra o Uber, pela descriminalização do aborto, em defesa da liberdade religiosa, em “defesa da família” etc.. Em 2013, alcançou cerca de 3.000 participantes, segundo estimativas das organizadoras, que consideraram este número um sucesso de público. As pessoas vão ao evento individualmente ou integrando coletivos feministas, partidos políticos, grupos de performances artísticas, grupos de estudantes, de amigos, entre outros. Um survey realizado com 102 participantes da Marcha de 2012 por Name e Zanetti (2013NAME, L. & ZANETTI, Julia P. 2013. “Meu corpo, minhas redes: a Marcha das Vadias do Rio de Janeiro”. In: Encontros Nacionais da ANPUR, 20 a 24 de maio de 2013, Recife, PE.) mostra que a maioria (52%) toma conhecimento da Marcha pela internet. Os autores apontam ainda que os participantes são majoritariamente mulheres (68%) e jovens (66% têm entre 15 e 29 anos); 83% são solteiras(os); 67% são heterossexuais e 33% se declaram lésbicas, gays ou bissexuais; 89% têm ensino superior completo ou incompleto; 48% se declararam brancas(os) e 49% negras(os) - sendo 26% pretas(os) e 23% pardas(os), distribuição racial semelhante à do último censo do IBGE. Somente 16% moravam ou haviam morado em favelas e 64% tinham renda superior a R$ 3.001,00, o que indica uma composição de classe média.18 18 Os autores pontuam que é difícil mensurar a quantidade de pessoas que participam da Marcha. No ano em que aplicaram o survey (2012), as contagens noticiadas pelos meios de comunicação variaram entre 400 e 1.500 (Name & Zanetti, 2013). Embora a constituição da Marcha varie a cada edição, de acordo com as estratégias de ação e recrutamento, observei que é significativa a presença de pessoas que se identificam como trans,19 19 O termo “pessoas trans” é usado para abarcar as identidades “travestis”, “mulheres transexuais” e “homens trans” (Carvalho, 2011). homens heterossexuais acompanhando suas parceiras sexo-afetivas, e crianças.

Na Marcha das Vadias o corpo das ativistas tem um lugar central. Há um grande investimento das participantes na apresentação dos seus corpos. Muitas mulheres usam sutiãs, biquínis, decotes ou exibem os seios nus, usam roupas transparentes e curtas, batom vermelho e salto alto, pintam a pele com bordões como “meu corpo, minhas regras”, “tire seus conselhos dos meus pentelhos”, “puta livre” e “útero laico”. As vadias usam o corpo para demandar o corpo; a tautologia como modo de incorporar projetos de “autonomia” e “liberdade sexual”. As roupas são muito coloridas, há homens de saias e vestidos, mulheres com bigodes sintéticos, pessoas com perucas, com purpurina na pele, mascaradas, fantasiadas, rodando bambolês, empunhando dildos, sinalizando “bucetas” com as mãos. Os “gritos de guerra” são irreverentes: “se o corpo é da mulher, ela dá pra quem quiser, inclusive pra outra mulher”, “de burca ou de shortinho todos vão me respeitar”.

Não há carro de som, palanque ou qualquer aparato que exija grande volume de recursos ou apoio substantivo de organizações. Há apenas um ou dois megafones usados em revezamento pelas pessoas e uma batucada de mulheres, com tambores feitos de latas velhas customizadas. Os cartazes, muito coloridos, podem ser confeccionados por qualquer participante e se expressam com uma linguagem informal: “Sou minha, só minha, e não de quem quiser”, “Estamos muito putas”, “Mulher bonita é mulher que luta”. Houve performances de mulheres comendo maçãs, transfigurando o “pecado de Eva”; um “papa” fazendo “batismo” de “fiéis” com chuva de purpurina; uma banda de fanfarra chamada “Meu cu é laico”. Jocosidade, deboche, piada, provocação, brincadeira, riso e ironia caracterizam os repertórios emocionais da MdV, cuja atmosfera lembra a de um bloco de carnaval carioca.

Como meio de provocação, o corpo é usado pelas ativistas para questionar as normas de gênero e sexualidade, especialmente as regras de apresentação dos corpos femininos no espaço público. Ao mesmo tempo, o corpo é um veículo de “narrativas de auto-identidade” (Giddens, 1991GIDDENS, Anthony. 1991. Modernity and Self-Identity: Self and Society in the Late Modern Age. Stanford: Stanford University Press.), um artefato em que cada participante busca expressar uma mensagem distintiva, um self único e autêntico que demanda reconhecimento (Taylor, 1992TAYLOR, Charles. 1992. “The Politics of Recognition”. In: GUTMANN, Amy (ed.). Multiculturalism: Examining the Politics of Recognition. Princeton: Princeton University Press. p. 25-73.). Em contraste com a uniformidade que caracteriza e legitima alguns protestos, como, por exemplo, a maioria dos protestos trabalhistas, na MdV a customização do corpo e a expressão da originalidade definem o modo desejado de ação coletiva. Transformado em artefato político - lócus de “resistência”, autoexpressão e, como veremos, diferenciação - o corpo das vadias é um “corpo-bandeira” (Gomes & Sorj, 2014GOMES, Carla C. & SORJ, Bila. 2014. “Corpo, geração e identidade: a Marcha das Vadias no Brasil”. Revista Sociedade e Estado. Vol. 29, n. 2, p. 433-447.).20 20 Considero que a palavra “bandeira” comunica bem a noção de corpo como invenção política, porque uma bandeira pode ser simultaneamente o assunto ou a pauta em questão (como em “a principal bandeira do protesto é a descriminalização do aborto”), um veículo material (um tecido e uma haste, uma camisa, a pele, partes específicas do corpo), e uma mensagem (“autonomia”, “liberdade”, “transgressão”).

Eu argumento que o elemento mais distintivo da Marcha das Vadias, enquanto um protesto feminista contra o estupro, é o seu reenquadramento (reframing) da abordagem pública da violência sexual. Em suas performatividades corporais e emocionais, as ativistas da MdV apostam em um frame de transgressão, relegando a segundo plano o frame vitimário que costuma dar o tom das ações feministas contra o estupro e a violência contra a mulher no Brasil e no mundo nas últimas décadas.

No Brasil, os grandes protestos contra o assassinato de mulheres na década de 1980, sob o lema “Quem ama, não mata”, inauguram um longo processo de politização da “violência contra a mulher”, em especial a violência conjugal. A violência sexual aparece implicitamente nesse processo, subsumida à noção de violência contra a mulher. O tratamento público da violência contra a mulher pelos movimentos feministas brasileiros se centrou, não sem disputas e ambiguidades, na identidade de vítima das mulheres. O esforço de criar mecanismos institucionais para administração deste tipo de violência, como as delegacias, os centros de atendimento e os juizados especializados, tem sido politicamente inseparável da afirmação de uma imagem de vítima. Embora a vitimização seja sempre passível de relativização pelos agentes públicos e pelas próprias mulheres que utilizam esses serviços (Gregori, 1993GREGORI, Maria Filomena. 1993. Cenas e queixas: um estudo sobre mulheres, relações violentas e prática feminista. Rio de Janeiro: Paz e Terra; São Paulo: Anpocs.; Brandão, 1998BRANDÃO, Elaine Reis. 1998. “Violência conjugal e o recurso feminino à polícia”. In: BRUSCHINI, Cristina & HOLANDA, Heloísa Buarque de (orgs.). Horizontes plurais: novos estudos de gênero no Brasil. São Paulo: Ed. 34/Fundação Carlos Chagas. p. 51-84. ; Debert, 2006DEBERT, Guita Grin. 2006. “Conflitos éticos nas Delegacias de Defesa da Mulher”. In: DEBERT, Guita Grin; GREGORI, Maria Filomena & PISCITELLI, Adriana (orgs.). Gênero e distribuição de justiça: as delegacias de defesa da mulher e a construção das diferenças. Campinas: Pagu/Unicamp. p. 13-53.; Sorj & Moraes, 2008SORJ, Bila & MORAES, Aparecida F. 2008. “Paradoxes of the expansion of women's rights in Brazil”. In: NITSCHACK, Horst; BIRLE, Peter & COSTA, Sérgio (eds.). Brazil and the Americas: Convergences and Perspectives. Madrid: Iberoamericana; Frankfurt: Vervuert. p. 121-134.; Gomes, 2010GOMES, Carla C. 2010. A Lei Maria da Penha e as práticas de construção social da violência contra a mulher em um Juizado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), acabou se cristalizando como frame principal do movimento de combate à violência contra a mulher.

Na Europa e nos EUA, o Take back the night (também chamado de Reclaim the Night e Toma la Noche), protesto que emergiu no final da década de 1970 e ressurgiu no início dos anos 2000, ficou conhecido por abordar publicamente o estupro. Em seu formato mais conhecido, as participantes desse protesto, em sua maioria mulheres, fazem uma caminhada em grupo segurando velas, invocando um cortejo ou uma vigília fúnebre, em que demandam o direito de andar sem medo pelas ruas a qualquer hora e compartilham depoimentos pessoais de suas experiências de estupro. O trabalho emocional e as corporalidades mobilizadas estão centrados na experiência de vitimização e expressam, por um lado, sentimentos de luto, dor e reparação e, por outro, um sentido coletivo de “força” e “agência”. Nos depoimentos, é comum que se refiram a si mesmas como “sobreviventes” (Taylor & Whittier, 1995TAYLOR, Verta & WHITTIER, Nancy. 1995. “Analytical Approaches to Social Movement Culture: The Culture of the Women's Movement”. In: JOHNSTON, H. & KLANDERMANS, B. (eds.). Social movements and culture. Minneapolis: University of Minnesota Press. p. 163-187.), como forma de questionar as regras sociais que confinam a experiência do estupro à esfera privada e ao registro da vergonha e da culpa. Assim, a partir da publicização e da reelaboração da experiência de violência sexual no protesto emerge uma identidade coletiva positiva. Como a experiência de vitimização é o principal substrato da ação, eu chamo este enquadramento de frame vitimário.

A Marcha das Vadias relativiza ou confronta a noção de vítima e prioriza um frame de transgressão. O ponto de partida da ação não é a experiência de vitimização, nem a identidade de “sobrevivente”, mas a afirmação da transgressão das normas de gênero, que se expressa na celebração da sexualidade das participantes, e se traduz em performatividades corporais de provocação e nudez. A MdV quer desafiar os displays socialmente legítimos da vítima de violência sexual. A “verdadeira” vítima, aquela que conquista o topo da hierarquia de credibilidade (Moraes, 2006MORAES, Aparecida F. 2006. “‘Universal’ e ‘local’ nas expressões da violência conjugal”. Revista de Ciências Sociais. Vol. 37, p. 60-78.) perante o Estado e a sociedade, pode até demonstrar força, desde que mantenha uma certa “política da respeitabilidade” (Higginbotham, 1993HIGGINBOTHAM, Evelyn B. 1993.Righteous discontent: The women's movement in the Black Baptist church, 1880-1920. Cambrige: Harvard University Press.), que requer a expressão pública de sentimentos como vergonha, culpa, medo e, principalmente, a negação de si como sujeito desejante, sexualizado. Ao incorporar sujeitos individualizados, autônomos, fortes, que afirmam seu desejo sexual e transformam seus corpos em lócus de “resistência” e “mudança”, e ao apostarem na expressão de emoções de humor, ironia, jocosidade e deboche, as vadias questionam as lógicas de gênero que regulam as definições de vitimização e, no limite, eclipsam a figura da vítima em seus repertórios de ação. Os depoimentos de experiências de violência são pouco comuns nos protestos da MdV no Brasil e, no Rio de Janeiro, estão completamente ausentes. Assim, em vez da expressão pública de gravidade que caracteriza as marchas do Take Back the Night, os protestos de mães contra a violência do Estado no Brasil e outras manifestações centradas na categoria de vítima (Taylor & Whittier, 1995TAYLOR, Verta & WHITTIER, Nancy. 1995. “Analytical Approaches to Social Movement Culture: The Culture of the Women's Movement”. In: JOHNSTON, H. & KLANDERMANS, B. (eds.). Social movements and culture. Minneapolis: University of Minnesota Press. p. 163-187.; Vianna & Farias, 2011VIANNA, Adriana & FARIAS, Juliana. 2011. “A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional”. Cadernos Pagu . Nº 37, p. 79-116.; Latté, 2015), a MdV, à semelhança das Paradas do Orgulho LGBT, investe na “carnavalização” do protesto, como me disse Teresa, uma das organizadoras da Marcha carioca:

A MdV tem uma capacidade midiática boa; é isso, ela tem uma capacidade de visualidade, é performática, então, ela carnavaliza, o ‘vadia’ é uma carnavalização, que é interessante, mas é interessante muito pelo ato comunicacional. E trabalha diretamente com sexo, com a ideia de sexualidade e direito reprodutivo, mas é uma marcha que fala de violência, então, é uma forma da gente pegar, a partir dessa sexualidade, retornar de modo bem declarado para o discurso sobre violência. [...] A ideia é você tensionar, a MdV também tensiona, né, nesses contrapontos políticos. Tensiona carnavalizando, mas tensiona. A gente vai experimentando núcleos que propiciam sensações de liberdade, né, sensações de tirar a blusa, sensações [que vão] desde encarar o nosso corpo, a nossa nudez, [até] enfrentar posições ideológicas religiosas, classistas (Teresa, entrevista concedida em 1o de julho de 2015).

É interessante notar que a “carnavalização” é descrita por Teresa tanto como uma estratégia de “comunicação” e “tensionamento” quanto como uma experiência sensorial significativa de “encarar” o próprio corpo e experimentar “liberdade”. O corpo produzido pelas vadias é objetivado e subjetivado, um desafio às regras sociais e a si mesmas.

O “Hino Nacional Vadix”, composto e cantado ao microfone na abertura do protesto de 2014 por Monique, organizadora travesti e prostituta da MdV carioca, com os seios à mostra, é um dos muitos exemplos do frame transgressor adotado pelas ativistas:

Suspiros do Ipiranga às margens plácidas

De vadias em gemidos retumbantes

E o gozar da liberdade em lábios úmidos

Esguichou no céu da mátria nesse instante [...]

Pelo sexo e pelo humor, essa paródia ridiculariza a nação e seus símbolos, seus “heróis patriarcas”, sua seriedade e pompa, ao mesmo tempo em que afirma um sujeito feminino que protagoniza a “grande história” pelo gozo do corpo. Esse framing de transgressão e os repertórios de humor e provocação que o expressam são, segundo participantes e organizadoras, uma das principais “potências” e atrativos da MdV. Há um trabalho emocional e corporal efetivamente realizado pelas ativistas quando abrem o protesto com o “Hino Nacional Vadix”; ou quando evitam o silêncio durante a Marcha, e a todo momento exortam gritos de guerra, palmas e batucada, pulos e danças; quando escolhem propositalmente as roupas mais coloridas, decotadas, curtas, justas e/ou rasgadas que possuem; quando confeccionam cartazes com dizeres minuciosamente provocativos, como “Degenerai-vos” e “Seu machismo é brochante (sic)”; ou ainda quando ironizam o controle da polícia cantando “Ei, Pezão, toma da polícia, porque tomar no cu eu te garanto é uma delícia!”21 21 Fernando Pezão era em 2014 o então recém-eleito governador do estado do Rio de Janeiro. Os protestos ocorridos no país desde as chamadas Jornadas de Junho de 2013 têm sido reprimidos pela polícia, com sprays de pimenta e bombas “de efeito moral”. No Rio de Janeiro, em especial nos protestos contra as recentes políticas governamentais de “ajuste fiscal”, é comum que os manifestantes expressem repúdio ao prefeito e governador gritando “vai tomar no cu”, o que é considerado pelas vadias, ativistas LGBT e outros como “homofobia”. O grito “tomar no cu é uma delícia” é, assim, uma provocação tanto aos governantes e policiais quanto aos demais movimentos sociais que compõem o “exterior constitutivo” da Marcha, com o qual se contrasta (Alvarez, 2016). e “Contra a polícia, estou na luta e meu spray é água de chuca”.22 22 “Chuca” é uma gíria usada principalmente entre homens gays para se referir à lavagem retal com água, realizada antes de relações sexuais anais. Há um esforço deliberado em rir do poder por meio da aparição pública de sujeitos, corpos e sexualidades que normalmente são punidos com violência e negados no espaço público.

É preciso ressalvar que a “transgressão”, o humor e a afirmação da sexualidade não são, de modo algum, estranhos ao movimento feminista ou uma “inovação” da MdV. O recurso à figura bruxa, tão recorrente em protestos passados, ou os discursos e as práticas de “liberação sexual”, ou ainda, o próprio uso da nudez, se não perante um público amplo, ao menos em espaços feministas, são apenas alguns exemplos de como o movimento feminista está familiarizado com repertórios de transgressão. É o seu uso em protestos contra a violência sexual e a violência contra a mulher que é incomum e controverso no movimento, porque contraria as noções sobre vitimização historicamente mobilizadas pelas feministas. Assim, como um “evento crítico” (Benski, 2005BENSKI, Tova. 2005. “Breaching events and the emotional reactions of the public. In: FLAM, Helena & KING, Debra (eds.). Emotions and social movements. New York/London: Routledge.), a MdV produz uma violação simbólica e concreta de práticas e definições socialmente aceitas em dois níveis: no nível da cultura do senso comum, desafia regras de gênero e sexualidade que conformam imagens de vítima, da política e do espaço público;23 23 Embora fora do escopo deste artigo, o estatuto ambíguo da nudez na cultura brasileira, que simultaneamente a incita e controla, premia e pune, merece atenção na análise do uso do corpo na MdV. É no mínimo intrigante que a Marcha carioca aconteça na praia de Copacabana, na pista de asfalto que fica a poucos metros da areia, onde banhistas seminuas não constituem, a princípio, nenhuma anormalidade. Que fronteiras simbólicas há entre a areia e o asfalto? Quem pode ficar nua, em que ocasiões e lugares, e como? no nível da cultura dos movimentos sociais, a MdV diverge dos enquadramentos já estabelecidos nos movimentos feministas antiestupro. Como isso afeta a política identitária feminista? É o que passo a analisar agora.

O corpo, articulador central dos repertórios políticos do movimento feminista, é mobilizado de diferentes formas pelas ativistas, expressando tanto experiências corporais desiguais como agendas políticas distintas. Experiências e agendas são afetadas pelo modo como raça, gênero, sexualidade, idade, classe, origem geográfica e outros marcadores de diferença simultaneamente hierarquizam pessoas e são politizados por elas em seu favor. Por meio do manejo dessas categorias classificatórias, as feministas produzem fronteiras entre “nós” e as “outras”, transformando o corpo em instrumento de reelaboração da política identitária do movimento. Embora não seja possível aprofundar esta discussão aqui, eu aponto rapidamente os principais eixos de diferenciação e disputa entre as vadias e outras feministas.

O primeiro eixo de diferenciação é organizacional. O frame de transgressão é constituído não apenas em contraste ao frame vitimário comumente empregado em outros protestos antiestupro presentes e passados, mas também em contraposição direta ao campo feminista dos anos 1990 e 2000. Estes anos correspondem à fase de institucionalização do movimento feminista nas ONGs e no Estado (Alvarez, 2016ALVAREZ, Sonia E. 2016. “Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista”. Cadernos Pagu. Nº. 43, p. 13-56.)24 24 Alvarez enfatiza que o feminismo brasileiro sempre foi plural em sua constituição e modos de organização. A fase de institucionalização tem como fluxo mais visível, mas não único, a hegemonia das ONGs. Havia também, embora com menor “acesso ao microfone público”, as chamadas feministas “autônomas”, que se organizavam de outras formas. A autora argumenta que as “institucionalizadas” e “autônomas” eram categorias mutuamente constitutivas, ou seja, definiam-se e eram definidas pela relação de contraste entre si. O mesmo se aplica ao contexto atual, em que “institucionalizadas” e “autônomas” ganham outros significados, forjados no jogo de diferenciação entre as ativistas. que Coralina, uma feminista brasileira atuante desde a década de 1970, descreve como uma fase de “encaretamento” do feminismo.25 25 Entrevista concedida em agosto de 2015. De modo geral, as vadias rejeitam aquilo que classificam de ativismo “institucionalizado” e “hierárquico”, que imputam, de modo mais ou menos generalizado, à geração anterior, às organizações feministas como um todo, e às mulheres dos partidos e sindicatos.

Assim, os repertórios corporais e emocionais das vadias são produzidos nas dinâmicas do jogo identitário, pelo qual elas buscam se distanciar de práticas e discursos que consideram “caretas”, “engessados” e “inexpressivos”. Incluídos nesse jogo de diferenciação estão também os ideais de “horizontalidade” e “autonomia” defendidos pelas organizadoras da MdV carioca como formas mais “democráticas” e “críticas” de atuação em relação aos das feministas das instituições. Do mesmo modo, muitas dessas feministas criticam a MdV pelo que consideram ser uma incapacidade de incidência nas políticas públicas e um uso político “contraprodutivo” do corpo e da sexualidade. Assim, os diferentes modos com que as ativistas relacionalmente imaginam e produzem o corpo para propósitos políticos é um importante meio pelo qual a política de identidade é elaborada e reelaborada.

O segundo eixo de diferenciação gira em torno de gênero e sexualidade. O debate sobre a inclusão ou não de pessoas trans, prostitutas e homens “cisgênero”26 26 “Cisgênero” ou “cis” é uma categoria êmica, contraposta à de “trans”, e designa pessoas cuja identidade ou performance de gênero está em conformidade com as normas consideradas adequadas ao sexo que lhes foi designado ao nascer. como sujeitos do feminismo, muito presente nos últimos anos no campo feminista como um todo, e particularmente intensificado no Rio de Janeiro e nas redes sociais a partir de ações da MdV, também excita a política identitária do movimento. Muitos foram os embates entre vadias e as chamadas “feministas radicais ou RadFems” que, grosso modo, consideram que ter uma vagina é determinante das relações de poder (Ferreira, 2015FERREIRA, Carolina Branco. 2015. “Feminismos web: linhas de ação e maneiras de atuação no debate feminista contemporâneo”. Cadernos Pagu . Nº 44, p.199-228.) e se opõem tanto à participação de homens e mulheres trans nos espaços feministas como à regulamentação da prostituição, enfaticamente defendidas pela MdV carioca. Uma das principais lideranças da Marcha do Rio é Monique, travesti e prostituta, e outras pessoas trans fazem parte ativa da organização. A participação de homens cis nos espaços de deliberação da Marcha se tornou mais controversa ao longo dos anos, mas não foi interditada no período do meu trabalho de campo (entre fevereiro de 2013 e agosto de 2014). Embora apenas um homem gay tenha se envolvido esporadicamente nas atividades de organização, muitos homens estavam presentes nos protestos de rua propriamente ditos. Há uma grande preocupação nas atividades da organização de incluir bandeiras (“combate à transfobia”), linguagem (pronomes neutros, respeito ao nome social) e campanhas de divulgação que contemplem pessoas trans. Buscando atrair todos os que se identifiquem com as bandeiras de “autonomia” e “liberdade” dos corpos e de combate à violência de gênero, a Marcha busca se diferenciar de “RadFems” e “outros feminismos”, inclusive da MdV de outras cidades, cujos critérios de identidade podem ser mais restritos.

Finalmente, o terceiro eixo de diferenciação mobiliza classificações de raça, classe e origem geográfica. No Brasil, como em outros países, a MdV tem recebido críticas a respeito das implicações raciais da noção de vadia. Para alguns movimentos de mulheres negras, assumir-se vadia no protesto impacta diferentemente mulheres brancas e mulheres negras. Enquanto para as brancas o termo pode ser ressignificado como “transgressão”, “libertação” e “autonomia” - logo, como produto de sua individualidade - para as negras reforçaria seu estigma de mulheres “hipersexualizadas” e “inferiores”, reafirmando o assujeitamento produzido pelas hierarquias sociais. Para os grupos que sustentam esta posição, a Marcha das Vadias expressa as experiências de mulheres brancas de classe média, e não atenta para o modo como a interação de gênero, raça e classe marca negativamente os corpos de mulheres negras.

Uma crítica semelhante é feita por alguns grupos de mulheres, moradoras das periferias do Rio de Janeiro, e que se autoidentificam como feministas periféricas. Elas argumentam que organizar seu ativismo em torno do termo vadia é inviável em bairros onde ser vista como tal coloca riscos mais concretos de violência do que nas zonas mais centrais da cidade. Segundo elas, a performatividade corporal das vadias é parte de um ethos “burguês” que trai profundas desigualdades de classe. Por exemplo, Rosana, negra, atuante em dois coletivos de “jovens feministas”, professora e moradora de Acari, na Zona Norte da cidade, critica a MdV por ser “um movimento ainda pensado com uma cabeça muito de Zona Sul, ou muito branca”.27 27 Entrevista concedida em 20 de agosto de 2015. A Zona Sul, a área compreendida entre os bairros da Glória e São Conrado, onde se localizam muitas praias, inclusive Copacabana, tem a maior concentração de renda da cidade. A expressão “Zona Sul” é utilizada simbolicamente como marcador de classe, tanto como distinção quanto como acusação, dependendo do contexto. Os seus opostos constitutivos, em termos socioeconômicos e simbólicos, são principalmente a Zona Norte, a Zona Oeste, a Baixada e as favelas, que constituem praticamente todo o resto da cidade. A nudez; a escolha da Praia de Copacabana como lugar do protesto, acusado de ser um bairro “rico”; os locais e os horários das reuniões organizativas (Centro e adjacências, no início da noite), que dificultam o acesso de ativistas que moram longe e de mães; e mesmo a chave emocional do protesto, seu tom “carnavalesco” e celebratório, são criticados pelas feministas periféricas e mobilizados como elementos de diferenciação.

Diferentemente dos dois primeiros casos, em que as vadias cariocas fazem questão de se diferenciar das feministas de organizações e das RadFems, as críticas colocadas por mulheres negras e da periferia é percebida como um problema, uma fonte de angústia e culpa que as leva a buscar soluções que, imersas nas dinâmicas do jogo identitário, são sempre situacionais e incompletas. Por exemplo, as organizadoras da MdV do Rio promoveram um debate sobre “feminismo negro”,28 28 Este acabou sendo um momento disruptivo na MdV do Rio, em que as fronteiras entre “feministas brancas” e “feministas negras” foram reelaboradas. aderiram ao ritual de “reconhecer” publicamente seus “privilégios” em seus discursos e, em alguns casos, adotaram o qualificativo “feminista interseccional”.

Assim, geração, gênero, sexualidade, raça e classe são mobilizados pelos grupos de ativistas para construir identidades, modos de organização e repertórios distintos que atualizam uma série de diferenças e disputas no interior do movimento feminista. Embora essas identidades possam assumir contornos políticos e corporais bem definidos e coloquem conflitos bastante concretos - entre “autônomas” e “institucionalizadas”, “brancas” e “negras”, “burguesas” e “periféricas” - também é importante analisar os modos com que essas fronteiras podem ser borradas, por exemplo, pelas narrativas e práticas de mulheres negras e/ou da “periferia” que participam da MdV.

Ramona, organizadora da MdV, se define como negra e lésbica. Ela me disse que “sempre teve dificuldade de se perceber como mulher” e que “usou salto alto e batom pela primeira vez” recentemente, aos 25 anos. Em algum momento depois de eu conhecê-la em 2013, Ramona começou a se identificar publicamente como “homem trans”. Depois, passou a se classificar como “gênero fluido” e a aceitar tanto pronomes masculinos como femininos. Eu perguntei o que ela achava das críticas das mulheres negras à Marcha. Sentindo-se bastante dividida, Ramona me disse que compreende essas críticas, mas que como “nunca foi percebida como vadia, nem nunca morou numa favela” e “como seu corpo sempre foi um corpo homossexual”, então ela não toma aquelas críticas como suas também.

Silvia, recepcionista, moradora de Nilópolis, município da Baixada Fluminense, negra e mãe de uma filha, também participou da organização da MdV. Se, por um lado, reconhece as dificuldades materiais de sua própria participação (falta de tempo, cansaço, precariedade do transporte público) e a rejeição por parte de muitas mulheres da Baixada ao termo vadia, por outro, afirma que a MdV foi “libertadora” para ela e se esforça para divulgar o protesto entre feministas locais e no partido político em que atua. Cassia, evangélica e negra, também organizadora da Marcha, promoveu debates sobre a MdV e a prostituição na sua igreja e em sua família, e faz parte de um grupo de “Feministas Cristãs”. Esses casos, que apenas superficialmente cito aqui, mostram como sexualidade, gênero, raça, classe e também religião podem se constituir mutuamente de modo a desestabilizar fronteiras identitárias entre feministas.

Tanto produto como produtor de identidades políticas, o corpo-bandeira das vadias mobiliza disputas constitutivas do campo feminista contemporâneo brasileiro e de outras partes do mundo. Na disputa sobre quais pessoas e qual feminismo a MdV representa ou não, o corpo que protesta adquire diferentes significados, e atualiza uma série de tensões. Raça, gênero, sexualidade, idade, classe e outros marcadores são mobilizados para produzir corporalidades políticas distintas e concorrentes. As ativistas acionam o corpo e as emoções na produção encarnada de narrativas de diferença, o que desloca as fronteiras entre grupos feministas e, portanto, constitui um terreno fértil para a reelaboração da política identitária contemporânea. Essas fronteiras, entretanto, nunca são definitivas, mas estão em permanente debate, e podem ser borradas. Como fontes importantes de conflitos e alianças, diálogos e rupturas, o corpo e as emoções produzem movimento no movimento feminista.

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  • ZALD, Mayer N. & McCARTHY, John. 1987. Social Movements in an Organizational Society New Brunswick, NJ: Transaction.
  • 1
    Agradeço às professoras Maria Claudia Coelho e Ceres Víctora pelo convite para integrar este dossiê, bem como à/ao parecerista anônima/o, à Bila Sorj, Silvia Aguião e Jimena de Garay Hernandez por suas valiosas revisões e sugestões a este artigo.
  • 2
    A Marcha Mundial das Mulheres nasceu no ano 2000 como uma mobilização de mulheres de todo o mundo contra a pobreza e a violência. Hoje, é muito atuante no Brasil, onde possui núcleos permanentes em diversas cidades. A Marcha Mundial das Mulheres defende a “necessidade de superar o sistema capitalista patriarcal, racista, homofóbico e destruidor do meio ambiente” (Website da Marcha Mundial das Mulheres, disponível em https://marchamulheres.wordpress.com/mmm/ [Acesso em abril de 2017).
  • 3
    A primeira “Marcha das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver”, realizada no dia 18 de novembro de 2015, reuniu em Brasília cerca de 30 mil de participantes de todo o Brasil. “Nossos passos vêm de longe” foi um dos slogans utilizados, reforçando a construção de uma história e de experiências compartilhadas.
  • 4
    Os protestos “Mulheres contra Cunha” foram uma série de manifestações, iniciadas em outubro de 2015 no Rio de Janeiro, contra a aprovação do PL 5069/2013, que dificulta o acesso aos serviços de abortamento legal para vítimas de violência sexual no sistema público de saúde, de autoria do então presidente da Câmara Federal, deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ). Reunindo mais de 20 mil pessoas na primeira manifestação no Rio de Janeiro, o protesto foi replicado em diversas capitais brasileiras e obteve grande visibilidade midiática.
  • 5
    Esses dados integram minha pesquisa de doutorado em andamento sobre a Marcha das Vadias e o movimento feminista carioca, realizada no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com bolsa do CNPq.
  • 6
    Grafada em itálico a partir daqui, vadia é uma categoria nativa, central para as participantes do protesto e em suas relações com outros grupos no campo feminista. Seus sentidos serão explicitados ao longo do texto.
  • 7
    Uma entre muitas reportagens sobre a declaração do policial e a SlutWalk: http://on.thestar.com/ 1rWNIuk [Acesso em fevereiro de 2013].
  • 8
    O site http://www.slutwalktoronto.com (Acesso em dezembro de 2015) era um manifesto político, contendo problematizações do tratamento dispensado à violência sexual na cultura e pelas instituições, além de reinvindicações e propostas. Ademais, era também uma espécie de memória viva do movimento, constantemente incrementada, editada, inventada, pela qual as organizadoras relatavam como o protesto surgiu, os repertórios utilizados (os cartazes, as roupas, os slogans), o modo como se espalhou pelo mundo, as críticas recebidas, e respostas a elas. Infelizmente, parece ter saído do ar em 2016. A página do Facebook da SlutWalk Toronto (https://www.facebook.com/SlutWalkToronto/?fref=ts [Acesso em fevereiro de 2017]) continua no ar e ativa, mas não cumpre o mesmo papel.
  • 9
    A “vadiagem” é criminalizada desde as leis do período colonial e do Império até a redação do artigo 59 da Lei de Contravenções Penais de 1941, que vige até hoje e assim a define: “Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita”. O dispositivo jurídico da vadiagem tem sido historicamente usado como instrumento de controle de populações específicas por meio do emprego seletivo de uma certa ética do trabalho, informada por outros dispositivos de hierarquização social, como raça, classe e gênero. Embora hoje sejam pouco frequentes as condenações por vadiagem (Ribeiro, 2000RIBEIRO, Lúcio Ronaldo Pereira. 2000. “Vadiagem” [on-line]. Âmbito Jurídico, ano I, nº 0. Disponível em: Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5349 . [Acesso em janeiro de 2017].
    http://www.ambito-juridico.com.br/site/i...
    ), a noção ainda atravessa representações e práticas discriminatórias por parte do Estado e da sociedade, direcionadas em especial a negros(as), favelados(as), prostitutas, cafetões, trabalhadores informais, moradores de rua, usuários de certas drogas (Leal, 2017LEAL, Julia Gonçalves. 2016. O Controle da População em Situação de Rua na Contemporaneidade: Um estudo sobre a Flávia Farnese, 500. Monografia de bacharelado, Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), entre outros.
  • 10
    Cheguei a este número buscando por “Marcha das Vadias” no Facebook. Identifiquei páginas e eventos do protesto em 63 cidades. Em alguns casos não é possível saber se os protestos de fato ocorreram (dada a ausência de fotos, comentários ou eventos que os confirmassem), ou se se tratava apenas de tentativas de mobilização ou fóruns de discussão.
  • 11
    Algo semelhante é feito, por exemplo, em Hong Kong, onde muitas participantes usam pijamas com calças, mangas compridas e estampas infantis, ou macacões coloridos de super-heróis, com dizeres como “Oh, sorry. Does my dress make you feel like a rapist today?” (Garrett, 2015GARRETT, Daniel. 2015. “Three times a lady: images from SlutWalk Hong Kong (2011 to 2013)”. In: TEEKAH, Alyssa et al. (eds.). This is what a feminist slut looks like. Perspectives on the SlutWalk Movement. Bradford: Demeter Press. p. 92-106.).
  • 12
    Alguns dos trabalhos fundantes dessas abordagens são: sobre organizações e mobilização de recursos (Zald & McCarthy, 1987ZALD, Mayer N. & McCARTHY, John. 1987. Social Movements in an Organizational Society. New Brunswick, NJ: Transaction.); para redes de mobilização e capital social (Diani, 1997DIANI, Mario. 1997. “Social Movements and Social Capital: A Network Perspective on Movement Outcomes”. Mobilization. Nº 2, p. 129-147.); sobre processo e oportunidades políticas (Tilly, 1978TILLY, Charles. 1978: From Mobilization to Revolution. Reading, MA: Addison-Wesley.; McAdam, 1982McADAM, Doug. 1982. Political Process and the Development of Black Insurgency: 1930-1970. Chicago: University of Chicago Press .); sobre movimentos sociais e seus códigos culturais (Melucci, 1996MELUCCI, Alberto. 1996. Challenging Codes. Collective action in the information age. Cambridge/New York: Cambridge University Press.).
  • 13
    Goodwin, Jasper e Poletta (2001) e Flam e King (2005FLAM, Helena & KING, Debra. 2005. Emotions and social movements . London/New York: Routlege.) organizaram coletâneas sobre emoções e movimentos sociais. Sobre este tema, há também os trabalhos de Jasper (1997JASPER, James M. 1997. The Art of Moral Protest: Culture, Biography, and Creativity in Social Movements. Chicago: University of Chicago Press .), Goodwin e Jasper (2006GOODWIN, Jeff & JASPER, James M. 2006. “Emotions and social movements ”. In: STETS, Jan & TURNER, Jonathan H. (eds.). Handbook of the Sociology of Emotions. New York: Springer. p. 529-648.), Juris (2008JURIS, Jeffrey S. 2008. “Performing politics: Image, embodiment, and affective solidarity during anti-corporate globalization protests”. Ethnography. Vol. 9, n. 1, p. 61-97.), entre outros.
  • 14
    Uso a palavra assembleia no sentido amplo, tal como empregado pela autora, para denotar a reunião de pessoas no espaço público, de forma planejada ou não, com fins políticos, e que pode assumir várias formas: ocupações, assembleias deliberativas, caminhadas, performances artístico-políticas etc.
  • 15
    Butler está interpelando Hannah Arendt que, reproduzindo a divisão público x privado fundamentada pelo gênero, exclui o corpo do espaço público. Enquanto o espaço privado é habitado por mulheres e outros corpos feminilizados, o espaço público é concebido por Arendt como a esfera de sujeitos sem corpos e sem gênero, cujas necessidades materiais (corporais) de existência já foram misteriosamente satisfeitas: o ator da polis é um sujeito que “não sente fome” atuando num espaço que não conhece necessidades físicas (Butler, 2015: 47). Para Butler, diferentemente, a mera presença corpórea dos sujeitos na assembleia revela que as condições materiais para sua existência (alimentação, segurança) são inseparáveis das condições para sua aparição pública e, portanto, para a produção do espaço público.
  • 16
    No contexto brasileiro, a Marcha da Maconha e a Marcha da Liberdade (pela liberdade de expressão, e motivada pela violenta repressão do Estado à Marcha da Maconha de São Paulo) tinham acontecido há poucas semanas, e foi durante a organização desses protestos que algumas ativistas começaram a preparar também a MdV carioca. No plano internacional, a “Primavera Árabe” estava em curso, e em breve o Occupy Wall Street tomaria as manchetes de jornal. Para mais detalhes sobre a emergência e a organização da MdV do Rio de Janeiro, ver Gomes (2016GOMES, Carla C. 2016. “Corpo e identidade no movimento feminista brasileiro contemporâneo: o caso da Marcha das Vadias”. In: 40º Encontro Anual da Anpocs, 24 a 28 de outubro de 2016, Caxambu, MG, Brasil.).
  • 17
    Copacabana é um bairro bastante heterogêneo em termos de classe e estruturas de habitação. Há setores muito ricos, outros de classe média e ainda favelas populosas. Além de turística, é área de lazer para moradores de várias partes da cidade. É tanto comercial como residencial, além de tradicional área de prostituição. Somente durante o período do meu trabalho de campo foi palco de protestos situados em um amplo espectro político e cultural: contra a Copa Mundial de Futebol e os Jogos Olímpicos, de professores em greve, pelo fim da violência policial contra moradores de favelas, contra as mortes de policiais no exercício do trabalho, contra e a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff, contra o Uber, pela descriminalização do aborto, em defesa da liberdade religiosa, em “defesa da família” etc..
  • 18
    Os autores pontuam que é difícil mensurar a quantidade de pessoas que participam da Marcha. No ano em que aplicaram o survey (2012), as contagens noticiadas pelos meios de comunicação variaram entre 400 e 1.500 (Name & Zanetti, 2013).
  • 19
    O termo “pessoas trans” é usado para abarcar as identidades “travestis”, “mulheres transexuais” e “homens trans” (Carvalho, 2011CARVALHO, Mario Felipe de Lima. 2011. Que mulher é essa? Identidade, política e saúde no movimento de travestis e transexuais. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.).
  • 20
    Considero que a palavra “bandeira” comunica bem a noção de corpo como invenção política, porque uma bandeira pode ser simultaneamente o assunto ou a pauta em questão (como em “a principal bandeira do protesto é a descriminalização do aborto”), um veículo material (um tecido e uma haste, uma camisa, a pele, partes específicas do corpo), e uma mensagem (“autonomia”, “liberdade”, “transgressão”).
  • 21
    Fernando Pezão era em 2014 o então recém-eleito governador do estado do Rio de Janeiro. Os protestos ocorridos no país desde as chamadas Jornadas de Junho de 2013 têm sido reprimidos pela polícia, com sprays de pimenta e bombas “de efeito moral”. No Rio de Janeiro, em especial nos protestos contra as recentes políticas governamentais de “ajuste fiscal”, é comum que os manifestantes expressem repúdio ao prefeito e governador gritando “vai tomar no cu”, o que é considerado pelas vadias, ativistas LGBT e outros como “homofobia”. O grito “tomar no cu é uma delícia” é, assim, uma provocação tanto aos governantes e policiais quanto aos demais movimentos sociais que compõem o “exterior constitutivo” da Marcha, com o qual se contrasta (Alvarez, 2016).
  • 22
    “Chuca” é uma gíria usada principalmente entre homens gays para se referir à lavagem retal com água, realizada antes de relações sexuais anais.
  • 23
    Embora fora do escopo deste artigo, o estatuto ambíguo da nudez na cultura brasileira, que simultaneamente a incita e controla, premia e pune, merece atenção na análise do uso do corpo na MdV. É no mínimo intrigante que a Marcha carioca aconteça na praia de Copacabana, na pista de asfalto que fica a poucos metros da areia, onde banhistas seminuas não constituem, a princípio, nenhuma anormalidade. Que fronteiras simbólicas há entre a areia e o asfalto? Quem pode ficar nua, em que ocasiões e lugares, e como?
  • 24
    Alvarez enfatiza que o feminismo brasileiro sempre foi plural em sua constituição e modos de organização. A fase de institucionalização tem como fluxo mais visível, mas não único, a hegemonia das ONGs. Havia também, embora com menor “acesso ao microfone público”, as chamadas feministas “autônomas”, que se organizavam de outras formas. A autora argumenta que as “institucionalizadas” e “autônomas” eram categorias mutuamente constitutivas, ou seja, definiam-se e eram definidas pela relação de contraste entre si. O mesmo se aplica ao contexto atual, em que “institucionalizadas” e “autônomas” ganham outros significados, forjados no jogo de diferenciação entre as ativistas.
  • 25
    Entrevista concedida em agosto de 2015.
  • 26
    “Cisgênero” ou “cis” é uma categoria êmica, contraposta à de “trans”, e designa pessoas cuja identidade ou performance de gênero está em conformidade com as normas consideradas adequadas ao sexo que lhes foi designado ao nascer.
  • 27
    Entrevista concedida em 20 de agosto de 2015. A Zona Sul, a área compreendida entre os bairros da Glória e São Conrado, onde se localizam muitas praias, inclusive Copacabana, tem a maior concentração de renda da cidade. A expressão “Zona Sul” é utilizada simbolicamente como marcador de classe, tanto como distinção quanto como acusação, dependendo do contexto. Os seus opostos constitutivos, em termos socioeconômicos e simbólicos, são principalmente a Zona Norte, a Zona Oeste, a Baixada e as favelas, que constituem praticamente todo o resto da cidade.
  • 28
    Este acabou sendo um momento disruptivo na MdV do Rio, em que as fronteiras entre “feministas brancas” e “feministas negras” foram reelaboradas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    14 Fev 2017
  • Aceito
    30 Mar 2017
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