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BISPO, Raphael. 2016. Rainhas do Rebolado: carreiras artísticas e sensibilidades femininas no mundo televisivo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Mauad/ Faperj. 392 pp.

BISPO, Raphael. . 2016. Rainhas do Rebolado: carreiras artísticas e sensibilidades femininas no mundo televisivo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Mauad/ Faperj. 392 pp.

O universo televisivo brasileiro e suas produções artísticas sem dúvida alguma compõem o imaginário social do seu povo. Desde sua “estreia” no Brasil no início da década de 1950 e com a sua popularização a partir da década de 1970, a televisão vem ocupando um lugar central na vida social, tanto como instrumento de informação, mas principalmente, como instrumento de entretenimento. Foi nesse universo em que o sonho do sucesso e da fama é marca da sua configuração que personagens como as chacretes surgiram e ganharam grande projeção nacional.

Até quem nasceu depois da morte de Abelardo Barbosa, o Chacrinha, sabe, mesmo que superficialmente, o que ele representou para a televisão brasileira. Como aponta Rapahel Bispo, o Chacrinha foi o primeiro a usar mulheres jovens, belas e sensuais a fim de aumentar a audiência de seus programas. É por causa dele que até hoje as chacretes estão presentes nas lembranças dos mais velhos e no imaginário dos mais novos.

Dessa maneira, Rainhas do Rebolado: carreiras artísticas e sensibilidades femininas no mundo televisivo traz para nós um olhar etnográfico sobre a vida das chacretes da primeira geração que moram no Rio de Janeiro. Tendo como foco principal as trajetórias das chacretes, o trabalho procura focar nos seus modos de vida, como agem, pensam e falam sobre a própria experiência. Segundo o autor: é o “’esqueleto’, a ‘carne’, o ‘sangue’ e o ‘espírito’ das chacretes que tento transpor para esse estudo” (p. 20). De maneira sensível e profunda, somos levados a refletir, a partir de um olhar antropológico, sobre subjetividades e sociabilidades modeladas em um contexto específico. A obra nos revela as diversas facetas da vida das chacretes antes, durante e após a participação no mundo televisivo.

O livro nos apresenta o universo televiso em que as chacretes surgiram. Para o autor, a televisão teve uma grande atuação na dinamização da cultura popular de massa no país. Foi num contexto de modernização da televisão no Brasil, na década de 1970, que as chacretes surgiram efetivamente e ganharam notoriedade e, nas palavras de Bispo, “tornaram-se figuras-chave para a compreensão de uma linguagem audiovisual de marca popular no âmbito da televisão” (p. 21).

Um dos pontos fortes do trabalho é, nos termos de Maria Macedo Barroso (2014BARROSO, M.M. 2014. Moedas de troca, sinceridade metodológica e produção etnográfica no trabalho com elites. In: CASTILHO, Sergio Ricardo Rodrigues, SOUZA LIMA, Antonio Carlos de & TEIXEIRA, Carla Costa (orgs.). Antropologias das práticas de poder. Rio de Janeiro: Contracapa.), a sinceridade metodológica nele presente, uma vez que ao longo de todo o livro o autor vai nos apresentar as dificuldades encontradas no campo. A principal intenção de Bispo era que sua pesquisa não fosse baseada apenas em entrevistas pontuais, mas que sua análise fosse também advinda de uma maior proximidade com as chacretes. Essa “intimidade” buscada foi um dos principais desafios do autor, pois nem todas as chacretes contatadas se mostraram solícitas e confortáveis em relatar suas experiências de vida, as antigas e as atuais, para um desconhecido interessado em fazer uma pesquisa que tinha como foco as suas narrativas. A insistência característica do trabalho antropológico foi a responsável pela maior proximidade com algumas delas. E como Bispo salienta, não houve uma razão específica para umas terem aceitado participar e outras não, e o que ocorreu foram afinidades que se efetivaram.

Bispo desenvolveu sua pesquisa entre os anos de 2010 a 2013, tendo um aporte interdisciplinar para fomentar sua análise e investigação uma mescla de conhecimentos históricos, da comunicação social e, em especial, os socioantropológicos. Nesse período, o autor investigou reportagens e matérias em jornais e revistas da época. Também buscou informações em registros audiovisuais nos quais as chacretes estavam presentes ou eram o foco, como nos caso do documentário “Alô, Alô Terezinha” e da série “As Chacretes”, ambos dirigidos por Nelson Hoineff. Mas a fonte principal de produção de dados no trabalho de Bispo são as entrevistas pessoais feitas por ele com 12 chacretes da primeira geração. Todavia, o autor evidencia que apenas com quatro chacretes ele teve uma aproximação maior, o que possibilitou a experiência antropológica da “observação participante”.

Apesar da vida das chacretes ter se tornando tema de uma série televisiva, é apenas por meio da obra do Bispo que temos acesso a inúmeras narrativas e depoimentos que, dado o contato contínuo e íntimo com algumas delas, captam o que está além da “gestão da memória” (Pollak, 1990POLLAK, M. 1989. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, p. 3-15.). Numa pesquisa como a apresentada por Bispo é possível que temas “abafados” ou ditos de maneira superficial sejam revelados e problematizados em profundidade: a vida sexual na juventude e na velhice; o processo de envelhecimento; aproximações e limitações em relação ao mercado erótico; vida familiar; a experiência de conversão religiosa e as formas como algumas delas lidam com a solidão. Temos então, na obra de Bispo, uma pesquisa que analisa as experiências de gênero e sexualidade de mulheres que, na lógica social de uma época, eram consideradas desviantes, pois participavam de um programa de auditório na televisão expondo seus corpos. Bispo também nos mostra como essa experiência de participar de um programa televisivo produziu uma visão de mundo específica ao ponto de produzir um tipo de feminino e “feminismo” próprios.

O livro tem seis capítulos divididos em três partes. Na parte 1 - Refletores e Bastidores - Bispo busca desenvolver uma argumentação em torno da experiência singular pela qual as chacretes passaram ao se tornarem dançarinas sensuais de programas televisivos. Assim sendo, no capítulo 1 - Virando Boazuda - o autor analisa os processos de seleção vividos pelas chacretes, os requisitos exigidos para se tornarem uma chacrete, além de diversas outras questões existentes nessa “carreira”, assim como a fabricação de uma hiperfeminilidade imperativa para que as dançarinas pudessem ter sucesso. Como apontado pelas chacretes, existe uma diferença crucial entre as mulheres que tentam ser sensuais e as que arduamente trabalham para a construção de uma imagem de pessoa sempre disponível aos desejos masculinos. Ainda neste capítulo somos apresentados aos processos de recrutamentos das chacretes e a todos os mecanismos simbólicos de agregação e exclusão das dançarinas, sendo ressaltado que nesse universo a juventude era um valor inquestionável. Outro ponto interessante abordado por Bispo neste capítulo é que, juntamente com as variações da idade, do gênero e da estética corporal, também operavam critérios de cor/raça nas seleções para ser tornar uma chacrete. Em suma, Bispo, ao parodiar a famosa frase de Simone de Beauvoir, sintetiza a intenção do capítulo: “não se nasce boazuda, torna-se boazuda”.

No capítulo 2 - Circulações Eróticas - somos apresentados aos bastidores do mundo televisivo, em especial aàquele que as chacretes faziam parte (denominado por Bispo com a expressão francesa bas-fond). Assim sendo, esse capítulo evidencia a dinâmica das diversas atividades, umas visíveis para o público e outras nem tanto, que se entrecruzam na ocupação de chacrete. Bispo busca mostrar que, para compreender a carreira das chacretes, faz-se necessário atentar para o modo como essas mulheres circulam por diferentes contextos e redes sociais, incluído o bas-fond e suas diversas negociações, que por inúmeras vezes atravessavam a ocupação de chacrete com vertentes do mercado do sexo e o do entretenimento existentes na década de 1970.

No decorrer do capítulo, somos apresentados a narrativas divulgadas na imprensa da época sobre os inúmeros casos amorosos que as chacretes tinham com homens famosos. Para conquistá-los, nos diz Bispo, elas “interpretavam” a persona de mulher sensual, boa de cama, um tanto burra/ingênua, todavia competente na arte de engambelar os homens. As pequenas variações desse reportório apenas serviam para confirmar tais reiterações. Um ponto alto do capítulo são as experiências de prostituição vividas por algumas chacretes. O autor evidencia que elas demonstram preocupação em se distinguirem de mulheres que se dedicam exclusivamente à prostituição, denominadas pelas chacretes de as “putas de verdade”. Bispo, numa referência direta aos estudos sobre comportamento desviante de Becker (2008BECKER, H. 2008. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar.), salienta que, por suas relações com a prostituição terem sido fortuitas, casuais, não existe um “padrão de desvio”, ou seja, elas não faziam do comércio sexual uma forma de organizar suas identidades em torno de um padrão de comportamento desviante. Como escreve Bispo: “Seus programas são ‘sutis’, ‘disfarçados’, na ‘encolha’, ‘sem ninguém perceber’. Logo, não são ‘putas de verdade’” (p. 116).

Na segunda parte do livro - É Bom para a Moral? - o autor procura desenvolver a ideia de que há um juízo da fama entre as chacretes, tendo em vista principalmente as suas narrativas sobre a carreira artística. Bispo aponta que inúmeras vezes em seu campo o estrelato foi avaliado e esquadrinhado, prós e contras foram colocados em xeque, chegando a uma apreciação final, ou seja, um juízo da fama. Somos então apresentados às biografias de Índia Potira (capítulo 3) e de Edilma Campos (capítulo 4). O autor deixa evidente que Índia e Edilma emergem como tipos ideais e ao mesmo tempo polos opostos de um continuum de feminilidades. Todavia, as biografias traçadas nesses capítulos procuraram dar conta das idiossincrasias existentes em suas narrativas. Bispo nos diz que as demais chacretes entrevistadas por ele tinham um tanto de Índia e outro tanto de Edilma em suas trajetórias.

No capítulo 3 - O Juízo da Fama - o autor nos mostra como as chacretes constantemente estabelecem um jogo de construção de suas autoimagens e de afirmação de si mesmas diante do olhar alheio, sempre levando em consideração o processo de singularização vivenciado por elas enquanto dançarinas famosas. Portanto, o juízo da fama é vivenciando numa dialética composta de lembranças e esquecimentos, o renome e o acaso, a singularização e a massificação, permitindo problematizar a honra feminina, popular, urbana no contexto do mundo televisivo, principalmente em relação à moral afetivo-sexual esperada. Para tanto, o autor nos apresenta as histórias, as lembranças, as queixas e as vivências descrevendo e refletindo de maneira exclusiva o juízo da fama da chacrete Glória Maria, a Índia Potira. De maneira respeitosa e ética, a trajetória de vida de Índia é narrada desde suas atuações profissionais na TV até os percalços causados pelo uso de drogas e os relacionamentos abusivos.

Bispo, ao refletir sobre a biografia de Índia, aponta a existência de uma forte “gestão da memória”, conceito formulado por Pollak (1990POLLAK, M. 1989. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, p. 3-15.), principalmente quando o assunto é o uso dos psicoativos, reinando nesses momentos as palavras entrecortadas, as omissões, os silêncios. Demonstrando sua expertise antropológica, Bispo nos mostra que esses silêncios revelam o receio de trazer à tona lembranças pouco confortáveis de um passado que incomoda, ou seja, também é uma forma de construir o juízo da fama.

O capítulo 4 - O Espetáculo na Vida - dá continuidade à discussão sobre o juízo da fama por meio de narrativas da trajetória da chacrete Edilma Campos, a Rainha do Palmeiras, atentando para como ela formula o seu juízo da fama. Como salienta Bispo, Edilma constituiu-se ao longo do seu campo num contraponto relevante às chacretes consideradas “sem juízo”, como a própria Índia Potira. O interessante é que o autor relaciona estas duas chacretes evidenciando que a riqueza das duas trajetórias está para além das divergências pontuais. Seus caminhos nos revelam um embate entre feminilidades, ou como escreve Bispo, “a contraposição entre duas construções possíveis de femininos e “feminismos” nas camadas populares urbanas” (p. 124).

Com uma análise rica em detalhes e uma sensibilidade antropológica aguda, o autor procura traçar fios analíticos a partir da comparação das experiências dessas duas chacretes, tendo em vista que elas sintetizam, mas não esgotam, os diferentes estilos de vida e as visões de mundo percebidos nos contatos que ele manteve com as chacretes da primeira geração. Tendo como principal material analítico as biografias de Índia e Edilma, Bispo demonstra que as experiências a princípio antagônicas das duas chacretes nos revelam, por meio de seus variados matizes, as diversas faces de mulheres dos subúrbios cariocas. Mulheres estas que em um dado período das suas vidas “viveram do rebolado”, frequentando o mesmo ambiente, mantendo algum tipo de relação entre si, mas acima de tudo sendo bem diferentes umas das outras.

Na terceira parte do livro, O Crepúsculo das Deusas, o capítulo 5, Retratos da Solidão e do Sofrer - apresenta uma etnografia das experiências de solidão das chacretes. Bispo evidencia então que as grandes tensões e os dilemas dessas dançarinas tangenciam, de alguma maneira, as diversas formas de elas se sentirem sós nos dias atuais. Mesmo diante das inconstâncias, dos silenciamentos, dos apagamentos e das diversidades do sofrer das chacretes, o autor, através da solidão, pôde adentrar suas sensibilidades abafadas nos “bastidores da vida”. Para tal empreitada, segue metodologicamente a proposta de uma “perspectiva contextualista das emoções” apresentada por Abu-Lughod e Lutz (1990ABU-LUGHOD, L. 1990. “Shifting politics in Bedouin love poetry”. In: LUTZ, C. & ABU-LUGHOD, L. (eds.). Language and the Politics of emotion. Cambridge: Cambridge University Press.). Sendo assim, o que se pretendeu foi a compreensão do fenômeno da solidão nas situações sociais específicas em que ele se apresenta. Em suma, Bispo, neste capítulo, aponta que a solidão é uma experiência emocional repleta de vicissitudes e ambiguidades, passível de ser vivenciada em qualquer etapa da vida, e que a idade é um marcador social da diferença que organiza certas sensações particulares de solidão e de afastamento do mundo.

No sexto e último capítulo - Velhas Guerreiras - somos apresentados a narrativas sobre o envelhecimento das chacretes que nos mostram as inúmeras tensões que marcam a sociedade contemporânea em função da forma como lida com a passagem do tempo. Bispo ressalta que as temáticas relativas ao gênero e ao curso de vida interseccionam-se nos momentos de preocupação com a aparência. Nesse contexto, as chacretes compartilham a ideia de “naturalidade” dos seus corpos ao envelhecer, ou seja, é possível lançar mão de meios para se tornar bonita, mas sem exageros. Assim, as noções de naturalidade e artificialidade emergem do cotidiano das chacretes e embaralham-se quando a questão do envelhecimento vem à tona. Temas como o controle dos corpos é abordado, tendo em vista que, como aponta Bispo, ser vaidosa é sinônimo de feminilidade, algo imprescindível a qualquer mulher na perspectiva das chacretes. A idade parece ressaltar quando a feminilidade é posta de lado. Outros pontos interessantes são escrutinados, tais como: a percepção do que é ser sexy, o prazer sexual na velhice, o anonimato etc.

Ao longo do livro constatamos a presença de um trabalho de pesquisa empírica de uma qualidade inegável, em que o autor teve a preocupação de respeitar as interlocutoras, mas sem ser superficial em suas análises e na apresentação do material empírico. Rainhas do Rebolado é uma obra que pretende mais do que narrar as trajetórias de chacretes, pois nos fala também das feminilidades dissidentes que, cotidianamente, se fazem presentes nas diversas camadas sociais, em especial, nas populares. Além disso, nos coloca em contato com o universo da indústria cultural brasileira, em que, mesmo tendo sido engrenagens secundárias dessa indústria, as chacretes tiverem suas vidas expostas ao grande público. A participação dessas mulheres no show business produziu novos significados para suas trajetórias e também intensificou e legitimou certas visões de mundo. Aprendemos então que para ser chacrete é necessário percorrer um universo variado de espaços e exigências. Além da dança, da beleza e da hiperfeminilidade, importam também as sociabilidades engendradas nos bastidores, que permitem estabelecer redes, amizades e caminhos que auxiliarão em um maior destaque.

Referências bibliográficas

  • ABU-LUGHOD, L. 1990. “Shifting politics in Bedouin love poetry”. In: LUTZ, C. & ABU-LUGHOD, L. (eds.). Language and the Politics of emotion Cambridge: Cambridge University Press.
  • BARROSO, M.M. 2014. Moedas de troca, sinceridade metodológica e produção etnográfica no trabalho com elites. In: CASTILHO, Sergio Ricardo Rodrigues, SOUZA LIMA, Antonio Carlos de & TEIXEIRA, Carla Costa (orgs.). Antropologias das práticas de poder. Rio de Janeiro: Contracapa.
  • BECKER, H. 2008. Outsiders: estudos de sociologia do desvio Rio de Janeiro: Zahar.
  • POLLAK, M. 1989. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, v. 2, n. 3, p. 3-15.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017
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