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Direito ao aborto, gênero e a pesquisa jurídica em direitos fundamentais

Derecho al aborto, género y la investigación jurídica en derechos fundamentales

Abortion rights, gender and legal research on fundamental rights

Resumo

A partir de um retrato da situação atual do abortamento inseguro e de uma breve reconstrução das lutas feministas pela descriminalização do aborto no Brasil, o trabalho discute o papel do constitucionalismo democrático no reconhecimento de novos sujeitos de direitos sexuais e reprodutivos. Recorremos ao fundamento político-filosófico dos direitos sexuais e reprodutivos para apontar que sua regulamentação jurídica só tem validade se os “sujeitos de direitos” construídos e pressupostos por sua regulamentação não se prestarem à violação dos postulados fundamentais do constitucionalismo democrático. Tal violação ocorre quando as relações de inclusão e exclusão estabelecidas por seus contornos hipotéticos se prestam a negar reconhecimento institucional à plena dignidade de experiências identitárias dissidentes. Propomos a utilização da teoria de Rosenfeld em pesquisas sobre direito ao aborto sob a perspectiva do Direito Constitucional. Esta teoria permite ver como os discursos sobre direitos criam e enunciam seus sujeitos com marcas de gênero, e podem servir tanto à ampliação das liberdades como de formas de subordinação.

Palavras-chave:
Direito Constitucional; direito ao aborto; direitos sexuais e reprodutivos; metodologia de pesquisa em direito; gênero e direito

Resumen

A partir de un retrato de la situación actual del aborto clandestino y de una breve reconstrucción de las luchas feministas por la despenalización del aborto en Brasil, este trabajo discute el rol del constitucionalismo democrático en el reconocimiento de nuevos sujetos de derechos sexuales y reproductivos. Recurrimos al fundamento político-filosófico de los derechos sexuales y reproductivos para sugerir que su reglamentación jurídica sólo puede tener validez si los “sujetos de derechos” construidos y presupuestos por dicha reglamentación no son utilizados como instrumento para la violación de los postulados fundamentales del constitucionalismo democrático. Esto ocurre cuando las relaciones de inclusión y exclusión establecidas por sus contornos hipotéticos sirven para negar reconocimiento institucional a la plena dignidad de experiencias de identidad disidentes. Sugerimos la utilización de la teoría de Rosenfeld en investigaciones sobre derecho al aborto bajo la perspectiva del derecho constitucional. Esta teoría permite mostrar cómo los discursos sobre derechos crean y enuncian sus sujetos con marcas de género y pueden servir tanto a la ampliación de las libertades como o a formas de subordinación.

Palabras-clave:
Derecho constitucional; derecho al aborto; derechos sexuales y reproductivos; metodología de investigación en derecho; género y derecho

Abstract

After a brief portrayal of the situation of unsafe abortion in Brazil and the feminist struggles for the decriminalization of abortion, this paper discusses the role of democratic constitutionalism in the acknowledgment of new subjects of sexual and reproductive rights. I resort to the political and philosophical basis of sexual and reproductive rights to suggest that the legal regulation can only be considered valid if the “legal subjects” constructed and presupposed by those regulations do not violate the basic grounds of democratic constitutionalism. This happens whenever the relations of inclusion and exclusion posed by their hypothetical contours deny institutional acknowledgment for the experience dissident identities. I suggest the employment of Rosenfeld’s theory for researching abortion rights on a constitutional perspective. This theory provides a tool to show how discourses about rights create and enunciate gendered subjects, and they may work to either expand freedom, or enhance forms of subordination.

Keywords:
Constitutional Law; abortion rights; sexual and reproductive rights; law research metodology; gender and law

A partir de um retrato situação atual do abortamento inseguro no Brasil e de uma breve reconstrução histórica das lutas feministas pela descriminalização do aborto, inclusive em esferas institucionais, o presente trabalho1 1 O presente trabalho foi realizado durante mestrado em Direito Constitucional e Teoria da Constituição, desenvolvido sob a orientação do Professor Doutor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e defendido em julho de 2016 no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – instituição a que agradeço pelo apoio indispensável para a realização da pesquisa. discute o papel do constitucionalismo democrático no reconhecimento de novos sujeitos de direitos sexuais e reprodutivos, diante da inércia legislativa quanto à ampliação das hipóteses de aborto lícito no país. Apontamos que a regulação jurídica da sexualidade e dos direitos reprodutivos só pode encontrar um fundamento político-filosófico se os “sujeitos de direitos” construídos e pressupostos por sua regulamentação não se prestarem à violação dos postulados básicos do constitucionalismo democrático. Isto acontece quando as relações de inclusão e exclusão estabelecidas por seus contornos hipotéticos se prestam a negar institucional reconhecimento à plena dignidade de experiências identitárias dissidentes. Nesse quadro, propomos a utilização da teoria de Michel Rosenfeld sobre a identidade do sujeito constitucional para a realização de pesquisas jurídicas sobre o direito ao aborto ancoradas na perspectiva disciplinar do Direito Constitucional. Esta teoria permite compreender como os sujeitos de direitos dos discursos que disputam os conceitos centrais relativos aos direitos sexuais e reprodutivos são criados e enunciados, metafórica ou metonimicamente, com marcas de gênero específicas. Permite também compreender de que modo esses discursos podem servir à ampliação das liberdades ou à reprodução de formas de subordinação.

1. Breve introdução sobre a questão do aborto no Brasil

O Brasil possui hoje uma das legislações mais restritivas do mundo ocidental em relação ao aborto. A prática foi criminalizada no país pela primeira vez no Código Criminal do Império, em 1830, e desde então permaneceu tipificada pelos códigos subsequentes (Rede Feminista de Saúde 2005, p. 11). Atualmente, os artigos 124 a 128 do Código Penal criminalizam o aborto praticado pela própria gestante ou por terceiros, com ou sem consentimento - salvo quando não há outro meio de salvar a vida da gestante (art. 128, I, CP) ou em caso de estupro (art. 128, II, CP). Em abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 (ADPF 54), declarou inconstitucional a interpretação de acordo com a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos termos do Código Penal.

A clandestinidade e o estigma social associados ao aborto voluntário no Brasil dificultam a realização de estudos que demonstrem a magnitude da prática (Osis, Hardy, Faúndes, Rodrigues 1996OSIS, Maria José D. et al. 1996. Dificuldades para obter informações da população de mulheres sobre aborto ilegal. Revista de Saúde Pública . October 1996. Vol. 30, no. 5, p. 444-451. DOI 10.1590/S0034-89101996000500007.
https://doi.org/10.1590/S0034-8910199600...
, p. 444). A maior parte dos dados disponíveis está baseada ou em recortes populacionais específicos (como em Souza, Fusco, Andreoni, Silva 2014SOUZA, Milena Goulart; FUSCO, Carmen L. B.; ANDREONI, Solange A.; SILVA, Rebeca de Souza. 2014. “Prevalência e características sociodemográficas de mulheres com aborto provocado em uma amostra da população da cidade de São Paulo, Brasil”. In: Revista Brasileira de Epidemiologia. June 2014. Vol. 17, no. 2, p. 297-312. ), ou em abordagens indiretas, como análise secundária de bancos de dados (como em Cecatti, Guerra, Sousa, Menezes 2010CECATTI, José Guilherme et al. 2010. “Aborto no Brasil: um enfoque demográfico”. In: Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia . Mar/2010. Vol. 32, no. 3, p. 105-111. ). A primeira estimativa nacional baseada em método direto de apuração sobre o assunto (Diniz, Medeiros 2010DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo. 2010, Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Ciência & Saúde Coletiva. June 2010. Vol. 15, p. 959-966. ) aponta que, ao completar quarenta anos, 22% das brasileiras já terá se submetido voluntariamente a um aborto (Diniz, Medeiros 2010, p. 964)2 2 Há inúmeros estudos sociodemográficos e antropológicos sobre a incidência do aborto no Brasil e regiões. Alguns exemplos: Martins-Melo et al (2014) analisaram tendências temporais e padrões de distribuição espacial do aborto inseguro no Brasil e concluiram que o aborto inseguro se mantém como problema de saúde pública, com fortes diferenças regionais e concentração nas regiões socioeconomicamente mais desfavorecidas do País. Borsari, Nomura, Benute, Lucia, Francisco e Zugaib (2013) ao analisarem aspectos socioeconômicos e emocionais do aborto provocado e espontâneo na periferia da cidade de São Paulo concluiram que o aborto provocado está relacionado a condições socioeconômicas desfavoráveis. Silva e Andreoni (2012) investigaram fatores associados ao aborto induzido entre jovens de uma comunidade pobre da cidade de São Paulo e observaram que “a chance de se optar pelo aborto se reduz 17% para cada incremento de um ano na idade dos jovens”, verificando necessidade de investimento em contracepção. Leal (2012) identificou, em estudo etnográfico a fluidez de significados atribuídos ao aborto em populações de baixa renda. Mello, Sousa e Figueroa (2011) pesquisaram a magnitude e as motivações para a prática do aborto inseguro em Pernambuco. Para um panorama geral dos resultados da pesquisa sobre o aborto realizada no Brasil nas duas últimas décadas, ver a coletânea “20 anos de pesquisas sobre aborto no Brasil”, publicada pelo Ministério da Saúde (Brasil 2009). .

Em estudo sobre os itinerários e métodos do abortamento ilegal no Brasil, decorrente dos resultados da etapa de entrevistas estruturadas da “Pesquisa Nacional de Aborto”, concluiu-se que “a rapidez e facilidade com que uma mulher aciona uma rede de cuidados e dispositivos para abortar é um dos sinais de como a cultura do aborto é compartilhada entre as mulheres no Brasil” (Diniz, Medeiros 2010DINIZ, Debora; MEDEIROS, Marcelo. 2010, Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Ciência & Saúde Coletiva. June 2010. Vol. 15, p. 959-966. , p. 1679). Não há, para os autores, como descrevê-la como uma cultura secreta: as semelhanças encontradas entre mulheres tão diferentes espalhadas ao longo do território nacional, durante a pesquisa, mostra que se trata de uma cultura feminina clandestina à restrição legal, mas transmitida entre diferentes gerações (Diniz, Medeiros 2010, pp. 1679-80), o que demonstra a ineficácia da criminalização. Além disso, a taxa de condenações criminais pela prática aborto é pouco significativa (Sarmento 2010SARMENTO, Daniel. 2010. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris ., p. 96). Nesse quadro, o efeito mais sensível da probição é o de obrigar milhares de mulheres a recorrerem a procedimentos clandestinos para pôr término a uma gestação indesejada. Com o cerceamento da oferta de métodos seguros para o abortamento e com o risco a que se submetem os profissionais de saúde envolvidos com a prática, o procedimento realizado em condições adequadas é levado a se tornar muito caro, de forma que são sobretudo mulheres em situação vulnerável, negras e pobres, as que colocam suas vidas e saúdes em risco, submetendo-se a procedimentos clandestinos, perigosos e realizados sem as necessárias condições de higiene e segurança (Rede Feminista de Saúde 2005, p. 10; Souza, Fusco, Andreoni, Silva 2014SOUZA, Milena Goulart; FUSCO, Carmen L. B.; ANDREONI, Solange A.; SILVA, Rebeca de Souza. 2014. “Prevalência e características sociodemográficas de mulheres com aborto provocado em uma amostra da população da cidade de São Paulo, Brasil”. In: Revista Brasileira de Epidemiologia. June 2014. Vol. 17, no. 2, p. 297-312. ). Apesar das dificuldades relativas à subnotificação das mortes por aborto, já que muitos óbitos devido à septicemia e hemorragia decorrentes de complicações de abortamentos não são devidamente computados (Cecatti, Guerra, Sousa, Menezes 2010CECATTI, José Guilherme et al. 2010. “Aborto no Brasil: um enfoque demográfico”. In: Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia . Mar/2010. Vol. 32, no. 3, p. 105-111. , p. 106), um estudo nas capitais brasileiras, com utilização de um fator de correção, permitiu identificar que o abortamento correspondia à terceira causa de morte materna no país (Laurenti, Jorge, Gotlieb 2004LAURENTI, Ruy et al. 2004. “A mortalidade materna nas capitais brasileiras: algumas características e estimativa de um fator de ajuste”. In: Revista Brasileira de Epidemiologia. December 2004. Vol. 7, no. 4, p. 449-460. )3 3 Pesquisa mais recente apontou que as internações decorrentes de aborto inseguro foram a terceira causa de morte materna no Estado do Rio de Janeiro, entre 1999 e 2007 (Galil, Viana, Shiraiwa 2010). .

A literatura citada aponta consistentemente, a partir de distintas perspectivas, para conclusões semelhantes: o aborto é amplamente praticado pelas mulheres brasileiras, a revelia da sua proibição legal. A criminalização do aborto, mais do que dissuadir da conduta, se presta a empurrar para a insegurança e para a clandestinidade as mulheres que procuram interromper voluntariamente uma gestação - o que causa sérios problemas à saúde das mulheres, afetando principalmente a vida, saúde e integridade física de mulheres negras e pobres.

2. Movimentos feministas e direito ao aborto no Brasil

Marlise Matos (2010MATOS, Marlise, 2010, Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a partir do sul global? Revista de Sociologia e Política. June 2010. Vol. 18, no. 36, p. 67-92. ) e Sonia Alvarez (2009ALVAREZ, Sonia E.. 2009. “Beyond NGO-ization?: Reflections from Latin America”. Development. 2009. Vol. 52, no. 2, p. 175-184. , 2014) classificam o feminismo brasileiro em diferentes “momentos” ou “ondas” a partir do destaque de elementos semelhantes. Num primeiro momento, há a formação do movimento feminista no singular, marcado pela luta contra a ditadura militar e forte reivindicação de autonomia - em que, segundo Sônia Alvarez, a disputa de espaço entre luta geral (militância política) e luta específica (militância feminista) era um embate constitutivo do campo. Num segundo momento, o movimento, no contexto da redemocratização, passa a se defrontar com a possibilidade de sua institucionalização (vários coletivos se transformam em ONGs); a questão da autonomia é discutida em relação à institucionalidade do poder, e o embate entre feministas autônomas e institucionais passa a ser uma disputa constitutiva do campo; formam-se redes entre distintas expressões da política feminista; ocorre o “mainstreaming” do conceito de gênero, que passa a integrar o repertório das políticas públicas; e há a criação de órgãos especializados na inclusão de mulheres no desenvolvimento. Um terceiro momento é, por fim, marcado pelo “fluxo horizontal do feminismo”, em que o movimento, além de transversalizado (de ter se estendido verticalmente por diferentes níveis do governo, atravessando a maior parte do espectro político em arenas nacionais e internacionais), se estende também horizontalmente, “ao longo de uma larga gama de classes sociais, de outros movimentos (...) e também no seio de comunidades étnico-raciais e rurais, bem como de múltiplos espaços sociais e culturais, inclusive em movimentos sociais paralelos” (Matos, Paradis 2012, p. 9). Observa-se uma multiplicação de espaços feministas em curso, com a formação de campos autônomos (como, por exemplo, de mulheres negras ou de mulheres lésbicas), num movimento que tem sido denominado de “feminismos de terceira onda” - em que as mulheres cujas “feministas hegemônicas” da chamada “segunda onda” consideravam “outras” (pobres mulheres trabalhadoras, negras, indígenas, lésbicas) traduziram e transformaram cânones do movimento e modelaram “outros feminismos” ou “feminismos com sobrenomes”, muitas vezes profundamente entrelaçados com lutas nacionais e globais contra a desigualdade social, sexual e racial (Alvarez 2009, p. 182). A chave aqui é o conceito de interseccionalidade, que pretende tornar visíveis as conexões existentes entre opressões socioeconômicas, de gênero, raça e sexualidade, ocultadas pelo chamamento identitário “da mulher” à luta universal contra o patriarcado: “as diferenças entre mulheres são o novo eixo articulador do feminismo” (Bidaseca 2011BIDASECA, Karina, 2011, “‘Mujeres blancas buscando salvar a mujeres color café’: desigualdad, colonialismo jurídico y feminismo postcolonial”. In: Andamios: Revista de Investigación Social. 2011. Vol. 8, no. 17, p. 61-89. , p. 66).

Não obstante a heterogeneidade e conflituosidade interna do campo feminista, a luta pela descriminalização do aborto é hoje uma pauta unânime do movimento (Mayorga, Magalhães 2008MAYORGA, Claudia; MAGALHÃES, Manuela de Souza. 2008. “Feminismo e as lutas pelo aborto legal ou por que a autonomia das mulheres incomoda tanto?”. In: MAIA, Mônica Bara (org.). Direito de Decidir: múltiplos olhares sobre o aborto . Belo Horizonte: Autêntica Editora . p. 141-170., p. 154). Os debates sobre a vivência e o exercício da sexualidade pelas mulheres ganham força no cenário público durante a década de 80. Antes disso, o movimento tendia a deixar essas questões de fora da pauta pública - seja pelas próprias condições do país, que exigiam um engajamento do movimento feminista na luta contra a ditadura militar; seja por estratégia, pois “a esquerda via a questão como um tema burguês e a direita como uma ameaça à família” (Pinto 2003PINTO, Céli Regina Jardim. 2003. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo., p. 84). No contexto de incipiente institucionalização do feminismo da década de 80, se consolidou o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), criado como resultado da intensa mobilização feminina durante a campanha das “Diretas Já”. O Conselho congregou e articulou as mulheres em torno das mobilizações relativas à Assembleia Nacional Constituinte. O movimento em torno do CNDM coordenou a campanha pelos direitos da mulher na Assembleia (Mayorga, Magalhães 2008, pp. 157-8; Pitanguy 2011PITANGUY, Jacqueline. 2011. “Mulheres, Constituinte e Constituição”. In: ABREU, Maria Aparecida (org.). Redistribuição, reconhecimento e representação: diálogos sobre igualdade de gênero. Brasília: Ipea. p. 17-46., p. 21). Muito embora houvesse um reduzido número de constituintes mulheres, a atuação do CNDM, acolhida por um regimento que, revisto, abriu canais de participação direta e indireta da sociedade civil organizada na constituinte (Carvalho Netto 2002CARVALHO NETTO, Menelick de. 2002. “A revisão constitucional e a cidadania: a legitimidade do poder constituinte que deu origem à Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e as potencialidades do poder revisional nela previsto”. In: Revista do Ministério Público do Estado do Maranhão. January 2002. Vol. 9. , pp. 43-5) e baseada nos princípios expostos na “Carta das mulheres brasileiras aos constituintes”, logrou importantes vitórias, como o estabelecimento da igualdade no seio da sociedade conjugal e a inserção da previsão de licença paternidade no texto constitucional (Pitanguy 2011, p. 24). No âmbito da saúde, conforme relato de Jacqueline Pitanguy, que presidiu o CNDM de 1986 a 1989:

a partir da atuação do movimento sanitarista, que incorporou na nossa constituição o princípio de que saúde é um direito de todos e um dever do Estado, lutamos por expandir este princípio ao campo da saúde reprodutiva, pelo reconhecimento do direito de realizar escolhas reprodutivas livres de coerção e amparadas por informações e meios cujo acesso deveria ser garantido pelo Estado. As demandas das mulheres no âmbito da saúde foram debatidas em um grande encontro nacional sobre saúde da mulher, organizado pelo CNDM, com delegações de todo o país. Entre os vários temas, foi aprovada a questão do direito ao abortamento. Esta questão não foi, entretanto, incorporada à Constituição. Isto porque, diante das forças conservadoras já articuladas na campanha pela proteção do feto desde a concepção, o CNDM entendeu que a melhor estratégia era argumentar que o aborto não era matéria constitucional, evitando graves retrocessos, o que também contabilizamos como uma forma indireta de vitória (Pitanguy 2011PITANGUY, Jacqueline. 2011. “Mulheres, Constituinte e Constituição”. In: ABREU, Maria Aparecida (org.). Redistribuição, reconhecimento e representação: diálogos sobre igualdade de gênero. Brasília: Ipea. p. 17-46., p. 26).

Apesar de a luta das mulheres não ter logrado incluir na Constituição menção expressa ao direito ao aborto, o fato de que o texto constitucional não contém a expressão “garantir a vida desde a concepção”, que tornaria muito mais árdua a luta em prol dos direitos sexuais e reprodutivos, foi uma vitória do CNDM e do movimento feminista.

Os anos seguintes foram marcados por disputas pelo reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos em arenas internacionais. Dois marcos são aqui importantes: a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento realizada em 1994, no Cairo - em que 184 Estados reconheceram os direitos reprodutivos como direitos humanos - e a IV Conferência Mundial da Mulher, em Pequim (Anjos, Santos, Souzas, Eugênio 2013ANJOS, Karla Ferraz dos; SANTOS, Vanessa Cruz; SOUZAS, Raquel; EUGÊNIO, Benedito Gonçalves. 2013. “Aborto e saúde pública no Brasil: reflexões sob a perspectiva dos direitos humanos”. Saúde em Debate. September 2013. Vol. 37, no. 98, p. 504-515. , p. 513). Em âmbito nacional, a disputa em relação ao aborto, na década de 80, esteve centrada na ampliação das hipóteses em que o aborto é permitido por lei e na garantia de acesso à rede pública de saúde para realização de abortos em caso de estupro ou de risco de morte para a mulher (Barsted 1992BARSTED, Leila Linhares. 1992. “Legalização e descriminalização do aborto no Brasil: 10 anos de luta feminista”. In: Revista Estudos Feministas, vol. 0, no. 0, p. 104-130. ). Nos anos seguintes, normas técnicas operacionais do Ministério da Saúde buscam garantir a realização do aborto na rede do SUS, nos casos autorizados pela lei - mais especificamente, a partir de 1997, com a Resolução 258, de 6/11/1997, do Conselho Nacional de Saúde, norma cuja abrangência foi ampliada em 2005 (Ventura 2011VENTURA, Mirian. 2011. “Saúde Feminina e o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos”. In: PITANGUY, Jacqueline (org.). O Progresso das Mulheres no Brasil 2003-2010. Rio de Janeiro; Brasília: Cepia; Onu Mulheres., p. 312). A história dos debates e das ações políticas feministas em prol da liberalização do aborto no País foi marcada por avanços, recuos e, sobretudo, por inúmeras negociações políticas (Scavone 2008SCAVONE, Lucila. 2008. “Políticas feministas do aborto”. In: Revista Estudos Feministas . August 2008. Vol. 16, no. 2, p. 675-680. , p. 676). No âmbito do Poder legislativo, Rocha (2013ROCHA, Maria Isabel Baltar da. 2013. “A discussão política sobre aborto no Brasil: uma síntese”. In: Revista Brasileira de Estudos de População. 5 September 2013. Vol. 23, no. 2, p. 369-374. ) aponta que,

imediatamente após a Constituinte, foram apresentados seis projetos de lei, sendo a maioria com o objetivo de ampliar os permissivos legais ou mesmo descriminalizar o aborto. Nas duas legislaturas seguintes, situadas nos anos 90, mais 23 propostas foram apresentadas e sua maior parte era, de algum modo, favorável à permissão da prática do aborto - embora já tivesse começado uma reação a essa tendência no Congresso. Nas duas outras legislaturas posteriores, iniciadas em 1999 e 2003, respectivamente, foram enviadas outras 34 proposições e acentuou-se a reação conservadora, que, na realidade, já vinha emergindo na segunda metade do período anterior (Rocha 2013ROCHA, Maria Isabel Baltar da. 2013. “A discussão política sobre aborto no Brasil: uma síntese”. In: Revista Brasileira de Estudos de População. 5 September 2013. Vol. 23, no. 2, p. 369-374. , p. 373).

Nas legislaturas de 2003-2006 e de 2007-2010, com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva ao governo, por fim, Luna (2009LUNA, Naara. 2009. “Fetos anencefálicos e embriões para pesquisa: sujeitos de direitos?”. In: Revista Estudos Feministas. August 2009. Vol. 17, no. 2, p. 307-333. ) destaca três momentos críticos no que diz respeito à discussão sobre o direito ao aborto no país:

1) a aprovação no Congresso Nacional em 2005, com sanção do presidente Lula, da Lei de Biossegurança, que autorizou a extração de células-tronco embrionárias de embriões restantes de reprodução assistida e decorrente ação no Supremo Tribunal Federal julgada em 2008; 2) a posição do ministro da Saúde José Gomes Temporão que coloca o aborto como problema de saúde pública e defende sua descriminalização em 2007; 3) a proposta do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), em dezembro de 2009, debatida em 2010, de apresentar projeto legislativo que descriminaliza o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre seus corpos (Luna 2009LUNA, Naara. 2009. “Fetos anencefálicos e embriões para pesquisa: sujeitos de direitos?”. In: Revista Estudos Feministas. August 2009. Vol. 17, no. 2, p. 307-333. , p. 87).

A tendência atual no Congresso Nacional aponta perceptivelmente à manutenção de uma agenda conservadora em relação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Entre 2003 e 2008, por exemplo, de 124.318 pronunciamentos realizados na Câmara dos Deputados, apenas 225 tiveram o aborto como tema central; outros 112, como tema secundário (Miguel 2012MIGUEL, Luis Felipe. 2012. “Aborto e Democracia”. In: Revista Estudos Feministas . December 2012. Vol. 20, no. 3, p. 657-672. , pp. 668-9). De todos esses, apenas 47 foram discursos favoráveis à legalização do aborto, à ampliação dos casos de aborto legal ou à redução das punições em virtude da prática (Miguel 2012, p. 669). O Projeto de Lei 1.135/91, de autoria dos Deputados Eduardo Jorge (PT-SP) e Sandra Starling (PT-MG), que pretendia retirar a criminalização do aborto do Código Penal, foi votado na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados e rejeitado por 33 votos a zero, isto é, por unanimidade. Em julho de 2008, a medida foi apreciada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, que aprovou, por 33 votos contra 4, o parecer do relator “pela inconstitucionalidade, injuridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela rejeição” do Projeto de Lei; após apreciação de recursos, o PL foi finalmente arquivado em janeiro de 2011 (Miguel 2012, p. 665).

Mais recentemente, ocorreu a aprovação, em junho de 2013, do controverso PL 478/2007 na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados. O projeto pretende instituir o “Estatuto do Nascituro” no Brasil, para, dentre outras disposições, criminalizar a pesquisa com células-tronco embrionárias; aumentar as penas para os tipos de aborto já criminalizados pela legislação penal; superar o entendimento assentado pelo STF quando ao caráter penalmente atípico do aborto de fetos anencefálicos; criminalizar a “apologia ao aborto”; e oferecer “proteção integral ao nascituro”, que passaria a ser sujeito de “expectativa de direito à vida” a ser prioritariamente assegurada pela família, pela sociedade e pelo Estado.

No âmbito jurisdicional - mais especificamente, no STF - até recentemente, os conceitos centrais em torno dos quais se articulam os discursos favoráveis e contrários ao direito ao aborto no Brasil ainda não haviam sido discutidos - muito embora a jurisdição constitucional de diversos países do mundo já tenha enfrentado a questão do direito ao aborto. Nos Estados Unidos e no Canadá, o direito fundamental à realização do aborto foi reconhecido pelas respectivas cortes supremas, no famoso caso Roe vs. Wade, no primeiro, e no caso Morgentaler, Smoling and Scott vs. The Queen, no segundo. As cortes constitucionais de outros países, provocadas a se manifestar após a edição de leis que garantiam em maior ou menor medida o direito ao aborto, referendaram-no como compatível com o texto constitucional: é o caso de França, Portugal e Espanha. Em particular nos Estados Unidos, desde que, em 1973, a Suprema Corte declarou que qualquer legislação estadual que proíba o aborto para proteger o feto nos dois primeiros trimestres de gravidez é inconstitucional, o tema passou a ser fundamental para toda a teoria constitucional norte-americana - a ponto de Ronald Dworkin chegar a comentar que há o risco de ver a teoria constitucional estadunidense limitada a um único tema (Dworkin 2009, p. 173).

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3510 - em declarou a constitucionalidade dos dispositivos da lei de biossegurança que autorizam, em algumas condições, o uso de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa científica - o Supremo Tribunal Federal firmou importante jurisprudência em relação à vida humana pré-natal. Na ocasião, o Tribunal afirmou, por maioria, seguindo entendimento do relator, Ministro Ayres Britto, que a Constituição, em tendo se mantido silente em relação à proteção a qualquer forma de vida intra-uterina, não oferece diretamente proteção constitucional à vida em potencial do embrião ou do feto - ainda que o silêncio constitucional não implique que a legislação infraconstitucional, em seus estritos limites, não possa oferecer proteção a essa vida.

Na ADPF 54, por sua vez, o Tribunal encerrou uma antiga controvérsia jurídica, relativa à tipicidade do aborto de fetos anencefálicos. Até então, em caso de diagnóstico de anencefalia, as mulheres eram obrigadas a recorrer ao Judiciário para obter a autorização para um aborto terapêutico. Disso decorriam duas principais dificuldades: não só a jurisprudência sobre a matéria oscilava, como muitas vezes os processos judiciais perdiam o objeto, uma vez que as decisões demoravam mais do que o tempo remanescente de gestação (Diniz 2003DINIZ, Débora. 2003. “Quem autoriza o aborto seletivo no Brasil? Médicos, promotores e juízes em cena”. In: Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro. December 2003. Vol. 13, no. 2, p. 13-34. , pp. 253-60). Muito embora tenha se verificado, como é comum no Brasil, uma integração anárquica do conteúdo dos princípios constitucionais, com votos desconexos e ausência de explicitação de razões e fatos que levaram à formação do julgado (Nunes, Bahia, Câmara, Soares 2011NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; CÂMARA, Bernardo Ribeiro; SOARES, Carlos Henrique. 2011. Curso de Direito Processual Civil: Fundamentação e Aplicação. Belo Horizonte: Editora Fórum., p. 658), o STF declarou inconstitucional a interpretação de acordo com a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos termos do Código Penal.

3. Gênero, direitos fundamentais e jurisdição constitucional: o constitucionalismo como processo e o sujeito dos direitos constitucionais

A atual legislação repressiva brasileira em matéria de aborto foi elaborada em princípios da década de 40 do século passado, em circunstâncias sociais absolutamente distintas das atuais. O contexto era de uma sociedade ainda mais machista e patriarcal, em que pouco se cogitava de um exercício da sexualidade feminina que não estivesse circunscrito às finalidades reprodutivas. Basta lembrar que o homem era juridicamente considerado o chefe da família; que a mulher necessitava de autorização do marido para a prática de determinados atos; bem como que “a ausência de virgindade da mulher desconhecida pelo ‘cônjuge varão’ era considerada ‘erro essencial sobre a pessoa do cônjuge’ e motivo de anulação do casamento” (Barsted 2010BARSTED, Leila Linhares. 2010. “O Reconhecimento dos Direitos Sexuais: Possibilidades e Limites”. In: SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (org.). Igualdade, Diferença e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris. , p. 249). No âmbito jurídico, não se cogitava a plena igualdade formal entre os sexos, conquistada tão somente com a Constituição democrática de 1988.

Em especial após as críticas capitaneadas pelos feminismos, no presente contexto histórico é mais amplo o horizonte de sentido em que é possível buscar compreender as questões relativas às mulheres - bem como as possíveis repercussões constitucionais dessas novas perspectivas. Atualmente, não podem ser ignoradas as críticas à atribuição à mulher do papel social de cuidado do outro, que decorreria de sua própria natureza, em função da capacidade física feminina para a gestação - de tal forma que a maternidade seja vista como impingida à mulher por encargo de seu próprio equipamento biológico (Cavalcante, Buglione 2008CAVALCANTE, Alcilene; BUGLIONE, Samantha. 2008. Pluralidade de Vozes em Democracias Laicas: o desafio da alteridade. In: MAIA, Mônica Bara (org.). Direito de Decidir: múltiplos olhares sobre o aborto. Belo Horizonte: Autêntica Editora. p. 105-139., p. 127).

A partir da ideia de gênero, ou seja, a partir da concepção de que não existe nenhum fato biológico que não seja mediado pela cultura, o feminismo denunciou que não existe representação da diferença sexual independente dos significados dados anteriormente à diferença - significados que não raro possuem sentidos de inferiorização das mulheres e legitimação de práticas de subalternidade e de violência, simbólica ou mesmo material (Mayorga, Magalhães 2008MAYORGA, Claudia; MAGALHÃES, Manuela de Souza. 2008. “Feminismo e as lutas pelo aborto legal ou por que a autonomia das mulheres incomoda tanto?”. In: MAIA, Mônica Bara (org.). Direito de Decidir: múltiplos olhares sobre o aborto . Belo Horizonte: Autêntica Editora . p. 141-170., p. 141). Os movimentos feministas introduziram novas perspectivas e novas interrogações aos diferentes saberes disciplinares (Matos 2008MATOS, Marlise. 2008. “Teorias de gênero ou teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e feministas se transformaram em um campo novo para as ciências”. In: Revista Estudos Feministas . August 2008. Vol. 16, no. 2, p. 333-357. , p. 340). Como pondera Joan Scott, o termo “gênero”, ao longo do tempo, passou a ser empregado por distintas teóricas feministas para referência à organização social do relacionamento entre os distintos sexos, como forma de tornar visível a rejeição ao determinismo biológico implícito na utilização de categorias como “sexo” ou “diferença sexual” e insistir no caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, demarcando o aspecto relacional das normas sociais definidoras da feminilidade. Além disso, “gênero” foi um termo empregado por acadêmicas que afirmavam que seu estudo não só adicionaria novos objetos de pesquisa às disciplinas tradicionais, mas transformaria paradigmas disciplinares, na medida em que forçaria um reexame crítico de suas premissas - dependendo de como o gênero pudesse ser desenvolvido como uma categoria de análise social (Scott 1986, p. 1054).

A Constituição de 1988 é um marco importantíssimo de um projeto que transcende ao seu momento de promulgação. Ela reafirma os ideais de autonomia e emancipação presentes nas revoluções do final do século XVIII, mas, como projeto constituinte, apenas enuncia o sentido performativo dessa prática destinada a produzir uma comunidade política de cidadãos livres e iguais, que se determinam a si mesmos (Habermas 2001HABERMAS, Jürgen. 2001. “Constitutional Democracy: A Paradoxical Union of Contradictory Principles?”. In: Political Theory. 1 December 2001. Vol. 29, no. 6, p. 766-781., p. 775). Uma constituição democrática, em seu conteúdo e em sua forma de legitimação, é um projeto aberto que constrói uma tradição a partir da sua promulgação e que nos possibilita aprender com o direito e com a história, cabendo às gerações seguintes atualizar o conteúdo normativo inesgotável do sistema de direitos fundamentais promulgado (Habermas 2001, p. 774).

O que mantém legítimos e aceitos os dispositivos de um Código Penal elaborado em 1940 é o fato de que eles possam ser continuamente relidos e reinterpretados à luz de uma Constituição estabelecida democraticamente - no marco da construção de um projeto político pluralista, caracterizado pelo desacoplamento entre a integração ética de grupos e subculturas com suas identidades coletivas próprias do plano da integração política abstrata (Habermas 2002HABERMAS, Jürgen. 2002. A Inclusão do Outro: estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola. , p. 261), o que possibilita uma adesão autônoma aos fundamentos de um regime constitucional que não se assenta em “substratos culturais pré-políticos de uma pretensa comunidade étnico-nacional” (Cattoni de Oliveira 2006, p. 68).

À luz dos debates políticos e filosóficos atuais e da análise das pautas e práticas de movimentos sociais, é impossível deixar de perceber, com Honneth (2014HONNETH, Axel. 2014. Freedom’s Right: The Social Foundations of Democratic Life. Columbia: Columbia University Press. ) e outros, que a matéria da justiça (ou das lutas políticas por reconhecimento) não se permite circunscrever ao conteúdo de qualquer conjunto de direitos. Há muito mais conteúdo nas exigências normativas de justiça do que o que pode ser assegurado pelo Estado. No entanto, discursos formulados em termos de direitos humanos e fundamentais são constantemente mobilizados na esfera pública, na medida em que traduzem e legitimam lutas políticas específicas: o conteúdo desses direitos se torna um referencial comum em torno do qual são travadas disputas hermenêuticas e, portanto, políticas (Estévez 2012ESTÉVEZ, Ariadna. 2012. “Por uma conceitualização sociopolítica dos direitos humanos a partir da experiência latino-americana”. In: Lua Nova: Revista de Cultura e Política. 2012. No. 86, p. 221-248.). Além disso, outras esferas sociais de reconhecimento não suplantam o papel do Estado enquanto agência de promoção da justiça (Honneth 2009a, pp. 357-8) e, sob o ponto de vista político-institucional, lutas políticas por reconhecimento encampadas nos termos de disputas jurídicas contra a privação de direitos humanos e fundamentais encontram maior permeabilidade potencial no seio do Estado democrático, na medida em que podem ser conhecidas e juridicamente impostas também pelo Poder Judiciário. A constitucionalização pode ser reconstruída como um processo não linear e descontínuo de lutas políticas por reconhecimento e de aprendizagem social.

Nessa seara, a tradição da Teoria Crítica adota um criticismo social de caráter reconstrutivo, na medida em que apresenta um tipo de autorreflexão do processo histórico em que as normas ou princípios aos quais a crítica se refere poderiam apenas ser aqueles que estariam de algum modo ancorados na própria realidade histórica (Honneth 2009bHONNETH, Axel. 2009b. Pathologies of Reason: On the Legacy of Critical Theory. Columbia University Press. , p. 49). No âmbito da teoria constitucional, uma postura reconstrutiva é uma postura reflexiva sobre como os princípios, as regras e os procedimentos - que, em sua dinâmica interna, constituem determinada tradição constitucional - se impuseram historicamente como forma de justificação política das ordens jurídicas na Modernidade (como seu fundamento de legitimidade), procurando mostrar que eles estão permanentemente abertos a um futuro de novas construções políticas e jurídicas. Do ponto de vista de processos concretos, a democracia constitucional é fruto de um processo de aprendizagem de longo prazo que envolveu lutas sociais (por reconhecimento). Os direitos desdobram seus significados, na medida em que se colocam como objeto de novas lutas políticas e sociais.

As, constituições, em sentido moderno, entendidas como documentos que plasmam a ordenação sistemática de uma comunidade política, têm desde as revoluções burguesas do século XVII duas funções primordiais: organizar o Estado, com a separação e delimitação dos poderes políticos, e declarar os direitos fundamentais dos cidadãos, ressalvando-os da ingerência dos poderes constituídos (Fernandes 2013FERNANDES, Bernardo Gonçalves, 2013, Curso de Direito Constitucional. 5ª ed. Salvador: Jus Podivm. , pp. 27-38). Segundo Michel Rosenfeld, não é mera coincidência histórica o fato de que, desde as Revoluções francesa e norte-americana, Constituições são concebidas como declarações fundamentais que “o povo” impõe sobre si mesmo: em ambos os casos, o colapso de sociedades estamentais hierarquicamente ordenadas e religiosamente fundamentadas deu espaço para a reorganização das comunidades políticas em novas ordens horizontais (Rosenfeld 2010, p. 17). No entanto, pelo menos três questões permanecem em aberto: quem deve estar submetido a determinado regime jurídico-constitucional; o que uma Constituição deve abranger e proteger; e como essa Constituição deve ser imposta sobre e legitimada por aqueles a que se refere (Rosenfeld 2010, p. 3).

As constituições repousam num paradoxo, porque o “nós” que dá a si mesmo uma Constituição deve projetar algo para além de si mesmo e se comprometer contra parte do que previamente compunha sua identidade, repudiando, p. ex., o ancién régime (Rosenfeld 2010ROSENFELD, Michel. 2010. The Identity of the Constitutional Subject: Selfhood, Citizenship, Culture, and Community. London: Routledge . , p. 11) - ou, no caso do constitucionalismo latino-americano das décadas mais recentes, uma estrutura civil-militar autoritária, patriarcal e colonial de organização do poder. Assim, esse “nós” deve adotar medidas de autocontenção, justamente contra algumas de suas tendências mais pronunciadas (não é senão em face de um histórico de autoritarismo, violência e desigualdade que a Constituição brasileira se pronuncia de maneira tão contumaz quanto à proteção de direitos fundamentais, políticos e sociais). No entanto, ainda que uma constituição deva em parte ser estabelecida contra elementos da prévia identidade do grupo constituinte, ela não pode dar uma guinada tão grande a ponto de se tornar incapaz de genuína implementação - ou seja, de ser apropriada pelos cidadãos para a expressão de sua vontade política (Rosenfeld 2010, p. 11). A identidade constitucional emerge dos paradoxos em que se assenta: ela é ao mesmo tempo produzida por e dependente das identidades pré-constitucionais, extraconstitucionais e nacionais com as quais deve ser consistente, mas, ao mesmo tempo, se diferenciar. Permanece, dessa forma, em uma relação tensa e dinâmica com essas identidades (Rosenfeld 2010, p. 12).

A noção de sujeito constitucional, para Rosenfeld, é extremamente ambígua, pois pode se referir tanto aos constituintes - aos que elaboram a Constituição - àqueles sujeitos à Constituição ou à matéria constitucional [the subject-matter - o assunto, o tema, a disciplina constitucional] (2010, p. 18). Para o autor, a ideia de um contrato social contrafático, como ferramenta heurística, pode jogar luz sobre a questão de quem pertence a determinado pacto constitucional; do que se concordou nesse pacto; e de quais direitos e obrigações titularizados para aqueles sujeitos pela Constituição pactuada (Rosenfeld 2010, p. 20). Assim, a promessa contrafática de autolegislação democrática e de concessão de iguais direitos subjetivos de liberdade, ancorada tanto na razoabilidade dos termos pactuados quanto na aquiescência histórica de determinada população aos princípios do constitucionalismo, gera uma permanente tensão entre tradição e normatividade - que aponta permanentemente para além dessa mesma tradição. Os cidadãos podem empreender esforços para mais bem alinhar uma constituição ancorada em suas tradições com os princípios do constitucionalismo - sem nunca alcançar um alinhamento puro. No âmbito dessa relação tensa entre tradição e normatividade, o sujeito constitucional é ao mesmo tempo quem elabora a Constituição, aqueles aos quais a Constituição se dirige e aqueles que preenchem a Constituição de sentido, projetando-se no texto constitucional para especificar seu significado, sempre inesgotável.

No entanto, abordar o sujeito constitucional (o sujeito que elabora e titulariza direitos constitucionais, bem como a matéria sujeita à jurisdição constitucional) no que diz respeito às lutas políticas pelo reconhecimento dos direitos fundamentais das mulheres e dos direitos sexuais e reprodutivos pode ser uma atividade sinuosa. Isso porque o discurso sobre direitos fundamentais pressupõe e delimita - muitas vezes de modo furtivo e não problematizado - o seu sujeito. Nesse sentido, o discurso jurídico sobre direitos humanos e fundamentais das mulheres deve ter o cuidado de problematizar e desvelar qual é o sujeito que ele constrói em sua própria enunciação. Judith Butler alerta sobre esse desafio:

“O sujeito” é uma questão crucial para a política, e particularmente para a política feminista, pois os sujeitos jurídicos são invariavelmente produzidos por via de práticas de exclusão que não “aparecem”, uma vez estabelecida a estrutura jurídica da política. Em outras palavras, a construção política do sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimação e de exclusão, e essas operações políticas são efetivamente ocultas e naturalizadas por uma análise política que toma as estruturas jurídicas como seu fundamento. (...) Com efeito, a lei produz e depois oculta a noção de “sujeito perante a lei”, de modo a invocar essa formação discursiva como premissa básica natural que legitima, subsequentemente, a própria hegemonia reguladora da lei. Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem e na política. A crítica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais se busca emancipação (Butler 2012BUTLER, Judith. 2012. Problemas de gênero: Feminismo e subversão da identidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., p. 19).

Uma identidade constitucional é construída, reconstruída e desconstruída, em todas as suas dimensões, em um processo dinâmico, dialético, conflituoso e inesgotável. O sujeito constitucional só pode adquirir identidade no domínio intersubjetivo circunscrito pelo discurso constitucional, mas nem os constituintes, nem os intérpretes da Constituição, nem os cidadãos que se encontram sujeitos às suas prescrições são, propriamente falando, o sujeito constitucional (Rosenfeld 2010ROSENFELD, Michel. 2010. The Identity of the Constitutional Subject: Selfhood, Citizenship, Culture, and Community. London: Routledge . , p. 41). A própria questão acerca do sujeito e da matéria constitucional é provocada porque encontraremos um vazio onde quer que busquemos um fundamento último de validade para a ordem constitucional (Rosenfeld 2010, p. 36). O sujeito constitucional enquanto tal só pode ser apreendido mediante expressões, sempre precárias e contingentes, de sua autoidentidade, no discurso intersubjetivo que vincula todos os atores humanos que estão e virão a estar reunidos pelo mesmo conjunto de normas constitucionais.

Os discursos dos distintos atores envolvidos nas lutas políticas pela ampliação ou pela restrição de direitos sexuais e reprodutivos, na medida em que fazem referência a um horizonte comum de direitos fundamentais e de conceitos centrais para o Direito Constitucional (vida, igualdade, liberdade, autonomia, saúde, integridade física e psicológica, etc.), disputam um espaço de enunciação comum sobre a identidade do sujeito constitucional. A questão do direito ao aborto está impregnada de conteúdo constitucional. Não obstante, para além da ADPF 54, que tratou apenas de casos de anencefalia fetal, a jurisdição constitucional brasileira - seja difusa ou concentrada - ainda não foi instada a se manifestar sobre a compatibilidade da criminalização da interrupção voluntária não-circunstanciada da gravidez, de 1940, com os princípios da nova ordem democrático-pluralista, inaugurada com nossa Constituição democrática. Essa complexa tarefa hoje se impõe à pesquisa jurídica em direitos fundamentais.

4. O direito ao aborto sob o ponto de vista do constitucionalismo democrático: apontamentos metodológicos

Como ressalta Giacomo Marramao, não é de surpreender que a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos primeiros anos do pós-guerra, tenha sido acompanhada de um revival do jusnaturalismo. Contra o dispositivo autorreferencial da dogmática continental positivista - que não oferecia critério para diferenciar um ordenamento jurídico positivo formal como o nacional-socialista de outros ordenamentos positivos, como os de inspiração liberal democrática - Radbruch afirmava que se deveria recorrer a um ordenamento supralegal, formado por direitos universais, em relação ao qual o direito positivo poderia representar uma injustiça legal (Marramao 2011, p. 151). Qual ordenamento supralegal, no entanto? A solução jusnaturalista reforça o que se chamou de “ideologia ocidental”: o pressuposto de que a razão do ocidente seja o standard do universalismo, frente aos particularismos das outras civilizações.

Ilse Scherer-Warren aponta que é possível partir da universalidade dos direitos humanos para o combate às opressões, desde que essa universalidade não seja pensada a partir do universalismo abstrato da Modernidade, mas como um universalismo que contemple as diferenças, vinculado a uma plataforma de direitos humanos em permanente construção, sempre a partir dos discursos emancipatórios e das dinâmicas cotidianas dos grupos oprimidos (Scherer-Warren 2010, p. 23). Assim, não se trataria da pretensão de universalidade dos direitos humanos e fundamentais como uma radicalização do etnocentrismo, mas da necessidade de construção de um universal contingente, de um sistema de direitos que respeite e considere o lugar de origem.

Para que os direitos humanos possam valer como parâmetro supralegal oponível a ordenamentos jurídico-positivos concretos, é necessário, para Marramao, recuperar o tema da relação entre direito natural e história. Isto se aplica, acrescentamos, aos direitos constitucionais enquanto limites materiais à legislação política. Seria necessário, nesse sentido, superar a “antítese paralisante” entre um esquematismo transcendental do direito e um historicismo justificacionista tendente ao relativismo:

Devemos (...) entender a dimensão do universalismo jurídico não como um modelo estático e pré-constituído, mas como um fazer-se histórico dinâmico. E, conseqüentemente, colher na Declaração Universal de 1948 uma aquisição evolutiva a ser ancorada não tanto no plano meta-histórico do direito natural, mas sim, ao contrário, na cláusula histórica do “nunca mais” (...). É necessário conectar a deontologia com a compreensão histórico-estrutural, o momento normativo com o momento crítico-analítico. O apelo ao universalismo dos direitos humanos arrisca, de fato, de se transformar em uma retórica vazia se não se conjuga com o pathos analítico, que visa a determinar conceitualmente e a localizar operativamente as raízes efetivas da violência, do poder e da violação da dignidade da pessoa (Marramao 2007MARRAMAO, Giacomo. 2007. “Passado e futuro dos direitos humanos: da “ordem pós-hobbesiana” ao cosmopolitismo da diferença”. In: XVI Congresso Nacional do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI). PUC Minas, Belo Horizonte. 15 November 2007. , pp. 8-9).

Em suma, para não recorrer à saída “fácil” do jusnaturalismo, a pesquisa jurídica em direitos fundamentais precisa estar atenta para o modo com que o sentido dos direitos constitucionais (da mesma forma que as próprias exigências normativas de justiça) é colocado. Esse sentido não remete a um ideal transcendente - que operaria num campo puramente abstrato da teoria jurídica. Ele está atrelado de forma imanente à própria facticidade social - a um contexto conflituoso de disputas hermenêuticas sobre o próprio sentido insaturável desses princípios, “já inscrito, ainda que parcialmente, na facticidade social dos processos políticos e sociais” (Cattoni de Oliveira 2012, p. 83).

Aqui o instrumental analítico proposto por Rosenfeld é extremamente útil. Por meio dos discursos constitucionais, entendidos como discursos sobre o sentido e extensão dos direitos fundamentais e humanos, Rosenfeld propõe que a construção e reconstrução de determinada identidade constitucional - simultaneamente distinta e dependente das múltiplas identidades individuais e coletivas em que está apoiada - perpassa três eixos discursivos principais: negação, metáfora e metonímia.

O papel da negação na formação da identidade dos sujeitos constitucionais é complexo e multifacetado. Envolve, num primeiro estágio, a renúncia a outras identidades relevantes, que posteriormente são seletivamente reincorporadas, combinadas de modos distintos e ocupando diferentes posições daquelas pré-constitucionais (Rosenfeld 2010ROSENFELD, Michel. 2010. The Identity of the Constitutional Subject: Selfhood, Citizenship, Culture, and Community. London: Routledge . , pp. 46-8). Ao passo em que, na negação, a identidade constitucional pode ser concebida em termos do que ela não é, a metáfora, por sua vez, é essencial para a interação entre identidade e diferença que sustenta a busca de uma autoidentificação positiva por parte do sujeito constitucional por. Como uma ferramenta desenhada para fornecer as bases discursivas para o polo da identidade na dialética identidade/diferença, a metáfora, por meio de um processo de combinação e substituição, desvela similaridades e equivalências para forjar conexões de identidade (Rosenfeld 2010, p. 51). No âmbito dos discursos constitucionais, a metáfora contribui para estabelecer “pontos cardinais de referência” da ordem constitucional; desde a referência à “igualdade” de “todos os homens” subjacente ao postulado da igualdade sobre o qual o constitucionalismo moderno repousa, diversos ideais constitucionais estão baseados em discursos metafóricos (Rosenfeld 2010, p. 52). O postulado de que “homens e mulheres são iguais perante a lei em direitos e obrigações” resulta da ênfase na similaridade dos sexos, impedindo, a princípio, que a diferença sexual seja utilizada como fundamento para tratamento discriminatório.

Em contraste com a persecução metafórica de similaridades em relação a um código, de maneira tendencialmente descontextualizada, a metonímia procura relações de adjacência num mesmo contexto, com tendência à contextualização (Rosenfeld 2010ROSENFELD, Michel. 2010. The Identity of the Constitutional Subject: Selfhood, Citizenship, Culture, and Community. London: Routledge . , p. 53). No discurso constitucional, a metonímia evoca diferenças contextuais, chamando atenção tanto quanto possível para detalhes concretos específicos - o que pode ser empregado tanto para estender como para restringir direitos constitucionais, dependendo das circunstâncias (Rosenfeld 2010, p. 55): ao passo em que a dupla jornada de trabalho a que a mulher está em geral submetida, em função da divisão sexual do trabalho, fundamenta um tratamento diferenciado no que diz respeito a direitos previdenciários, o recurso metonímico que põe relevo numa compreensão naturalizada de que pertence à mulher o exercício das funções reprodutivas fundamenta, no Brasil, uma completa disparidade quanto ao tempo oferecido para usufruto de licença maternidade ou paternidade.

O discurso metonímico é indispensável para a definição de uma identidade constitucional porque, na medida em que o constitucionalismo implica pluralismo e heterogeneidade, ele deve incorporar também diferenças, através da contextualização, para evitar a subordinação de uns pelos outros (Rosenfeld 2010ROSENFELD, Michel. 2010. The Identity of the Constitutional Subject: Selfhood, Citizenship, Culture, and Community. London: Routledge . , p. 56). Joan Scott explica que

igualdade e diferença não são opostos, mas conceitos interdependentes que estão necessariamente em tensão. As tensões se resolvem de formas historicamente específicas e necessitam ser analisadas nas suas incorporações políticas particulares e não como escolhas morais e éticas intemporais. (...) A igualdade é um princípio absoluto e uma prática historicamente contingente. Não é a ausência ou a eliminação da diferença, mas sim o reconhecimento da diferença e a decisão de ignorá-la ou de levá-la em consideração (Scott 2005SCOTT, Joan W., 2005. “O enigma da igualdade”. In: Estudos Feministas. January 2005. Vol. 13, no. 1. , pp. 14-5).

Em Rosenfeld, por meio do instrumental discursivo da negação, da metáfora e da metonímia, igualdade e diferença não se distanciam em polos antagônicos, mas permanecem em permanente tensão, na medida em que os discursos sobre as identidades dos sujeitos constitucionais forjam conexões identitárias ou diferencialistas sempre contextuais, tensas e polêmicas - uma atividade sempre pressuposta em qualquer discurso sobre direitos fundamentais.

O instrumental analítico proposto por Rosenfeld permite radicar a pesquisa jurídica em direitos fundamentais na análise dos discursos dos próprios participantes da prática interpretativa que é o direito. Isso evita que a pesquisa sobre direitos fundamentais seja conduzida numa perspectiva que, típica de uma teoria jurídica especializada em questões normativas, vê um hiato entre um ideal fixo, pré-político e de existência autônoma presente nos direitos fundamentais e uma realidade que busca se adequar a esse ideal - como se os direitos fundamentais tivessem uma essência e uma existência autônoma em relação à sociedade que os projeta. Essa perspectiva dualista está presente na “classificação ontológica das constituições” de Lowenstein (1976LOWENSTEIN, Karl. 1976. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ariel.)4 4 Lowenstein (1976) critica a classificação formalista das Constituições (de grande ressonância na teoria constitucional brasileira), que nada acrescentaria do ponto de vista de uma reflexão crítica sobre o sentido das Constituições e do Constitucionalismo (pp. 206-217). Daí a proposta de uma classificação ontológica, que buscará avaliar se há concordância entre texto constitucional e realidade social. e em toda a produção teórica em Direito Constitucional que pretende delinear o conteúdo dos direitos fundamentais a partir de um exercício puro da razão. Tal perspectiva ignora que a hermenêutica é uma dimensão fundamental do direito, que não existe uma essência descontextualizada e pré-política dos direitos fundamentais. Não faz sentido falar na efetividade de um princípio constitucional sem que antes se tenha delineado qual é o sentido desse princípio constitucional. O sentido da igualdade e da liberdade não é dado, mas está em permanente disputa.

Na análise dos direitos sexuais e reprodutivos no Estado Democrático de Direito, adotar o ponto de vista disciplinar do Direito Constitucional muitas vezes implica partir - como faz o próprio Michel Rosenfeld - de perspectivas contratualistas. É necessário, portanto ter em mente as lições de Carole Pateman (1993PATEMAN, Carole. 1993. O Contrato Sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra.), para quem os contratualistas clássicos contam uma história da formação da sociedade civil e do direito político por meio de um contrato original, que funda a autoridade do Estado, da legislação e do governo. Para Pateman, no entanto, a questão do contrato sexual, que estabelece o domínio dos homens sobre as mulheres é sistematicamente recalcada. Somente os homens são “indivíduos” e nascem “livres e iguais”. A exclusão das mulheres da categoria fundamental de “indivíduo” encontrou e encontra ampla expressão social e jurídica. Por isso, importa, novamente, ter em mente o modo particular com que a enunciação do “povo”, fundado na promessa de liberdade política, não se limita a descrever a pluralidade designada, mas produz e dá lugar a essa mesma pluralidade (Butler 2014BUTLER, Judith. 2014. “Nosotros, el pueblo”: apuntes sobre la libertad de reunión. In: ¿Qué es un pueblo? Buenos Aires: Eterna Cadencia. p. 47-68., p. 51). Na construção e reconstrução da identidade do sujeito constitucional, o conceito de “povo” enquanto autor e destinatário dos direitos constitucionais é ocupado e reocupado ao longo da história, na medida em que a matéria sujeita à jurisdição constitucional [the subject-matter] se coloca como objeto de disputas políticas e sociais, no curso de uma história da liberdade que é sempre possível, com cautela, reconstruir.

Como se fez evidente ao longo deste artigo, a pesquisa jurídica em direitos fundamentais sobre o direito ao aborto no Brasil enfrenta alguns desafios teóricos e práticos. Foi necessária uma descrição preliminar da situação atual da questão do aborto no Brasil sob a perspectiva sociodemográfica, tanto nas hipóteses em que é permitido, quanto nas em que é criminalizado, uma vez que a análise da efetividade do ordenamento jurídico-constitucional depende da compreensão da realidade em relação à qual os direitos constitucionais se colocam em relação de permanente tensão (Habermas 1998HABERMAS, Jürgen. 1998. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. Cambridge: MIT Press. )5 5 Butler (2012), também citada neste trabalho, formulou diversas críticas a Habermas no sentido de que as pessoas não possuem as mesmas possibilidades concretas de enunciação na esfera pública, e o reconhecimento das interpretações reprimidas ou marginalizadas sobre suas carências, no nível da teoria habermasiana, permanece hipotética. A teoria habermasiana do direito não antecipa um juízo substantivo sobre as relações desiguais de poder, mas tampouco dá a devida relevância à circunstância de que, ainda no nível formal, elas limitam e condicionam todas as efetivas possibilidades dialógicas. Habermas fundamenta a construção intersubjetiva do direito e do sentido das normas jurídicas a partir da dimensão de idealidade (uma dimensão, nesse sentido, normativa) que se encontra em permanente tensão com a facticidade de qualquer ação comunicativa. Butler questiona que se essas normas compartilhadas, por um lado, conectam os indivíduos, formando as bases para suas reivindicações éticas e políticas e para a crítica do caráter inaceitável de determinadas operações restritivas, elas também fornecem os termos socialmente articulados pelos quais a “humanidade” é reconhecida a alguns indivíduos em maior medida do que a outros, dependendo da sua morfologia e da possibilidade de reconhecimento dessa morfologia, do seu gênero e da inteligibilidade desse gênero, etc. – o que repercute sobre o modo com que os sujeitos se reconhecem reciprocamente como titulares de direitos e da prerrogativa de inclusão em uma esfera política participativa (Butler 2004, p. 2). Enquanto Habermas, um autor de inspiração kantiana, define a autonomia privada em sentido jurídico como uma zona de liberdades individuais garantidas institucionalmente sob o manto de direitos subjetivos protegidos pelo poder sancionador do Estado, Butler, uma autora de inspiração hegeliana, está interessada na liberdade social, que se torna efetiva na intersubjetividade, no reconhecimento da liberdade de cada sujeito concreto reciprocamente pelos demais sujeitos enquanto condição de possibilidade da própria liberdade. Apesar dessas objeções, a questão central aqui é a compreensão do papel importante, porém parcial, de uma teoria do direito em sentido estrito no contexto mais amplo de uma teoria da justiça. Uma teoria do direito não pode, por seus próprios meios, buscar enfrentar todas as questões que dizem respeito à igualdade de gênero. Se a autonomia necessária para a participação em um processo de autolegislação democrática de fato não se limita à esfera “abstrata” de uma esfera de liberdades juridicamente protegida, para uma teoria do direito, no entanto, esse é o ponto de partida mínimo e basilar. Elucidar todas as esferas normativas de reconhecimento recíproco, especialmente quanto a questões impenetráveis pelo Direito, não é uma tarefa disciplinar para ser desenvolvida diretamente pela pesquisa jurídica em direitos fundamentais. . Do mesmo modo, contra concepções jusnaturalistas e essencialistas dos direitos humanos e fundamentais, em vez de oferecer - como é frequente entre teóricos constitucionalistas - soluções “neutras” e “objetivas” para problemas morais controversos na sociedade, esta pesquisa sugere compreender como os conceitos centrais nas disputas políticas relativas aos direitos sexuais e reprodutivos (vida, igualdade, liberdade, autonomia, saúde, integridade física e psicológica, etc.) são disputados na esfera pública política por seus distintos atores e de que forma esses conceitos podem repercutir nas distintas esferas formais do Estado Democrático de Direito. Por meio da ideia de “gênero” enquanto referencial normativo, ou seja, a partir da compreensão do caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo, este texto explorou de que forma os distintos discursos sobre direitos sexuais e reprodutivos, por um lado, e sobre direitos humanos e fundamentais, por outro, criam e enunciam, metafórica ou metonimicamente, os seus sujeitos com marcas de gênero específicas, e de que modo esses discursos servem à ampliação das liberdades ou à subordinação de determinados sujeitos e ao privilégio de outros. Considerando que o direito de cidadania não se limita aos procedimentos formais do direito ou à lógica da argumentação, mas deve se estender às distintas “narrativas” da identidade que operam “com prova” (Marramao 2011MARRAMAO, Giacomo. 2011. La Pasión del Presente: Breve léxico de La modernidad-mundo. Barcelona: Editorial Gedisa S.A., pp. 75-6), é necessário analisar também as experiências de distintas mulheres que se submetem a abortamentos clandestinos, e o modo com que essas experiências são significadas6 6 Uma vasta literatura, em grande parte oriunda de pesquisas no campo da enfermagem, aborda os relatos das mulheres internadas em função de abortos ilegais sobre seus contextos e suas experiências. Pedrosa e Garcia (2000), por exemplo, discutem os significados atribuídos ao abortamento induzido por mulheres que abortaram. Faria, Domingos, Merighi e Ferreira (2012) buscaram compreender a experiência e as necessidades de cuidado de adolescentes em situação de abortamento. Benute, Nomura, Lucia e Zugaib (2006) entrevistaram 35 gestantes cujo feto era portador de malformação letal e que interromperam a gestação após solicitação de autorização judicial. . Sobre essas bases, torna-se possível analisar criticamente a jurisprudência do STF que toca as questões estudadas, para verificar o potencial de uma atuação mais proativa da jurisdição no que diz respeito à declaração de inconstitucionalidade da aplicação da lei penal a outras modalidades de aborto voluntário.

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  • 1
    O presente trabalho foi realizado durante mestrado em Direito Constitucional e Teoria da Constituição, desenvolvido sob a orientação do Professor Doutor Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira e defendido em julho de 2016 no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, com bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – instituição a que agradeço pelo apoio indispensável para a realização da pesquisa.
  • 2
    Há inúmeros estudos sociodemográficos e antropológicos sobre a incidência do aborto no Brasil e regiões. Alguns exemplos: Martins-Melo et al (2014) analisaram tendências temporais e padrões de distribuição espacial do aborto inseguro no Brasil e concluiram que o aborto inseguro se mantém como problema de saúde pública, com fortes diferenças regionais e concentração nas regiões socioeconomicamente mais desfavorecidas do País. Borsari, Nomura, Benute, Lucia, Francisco e Zugaib (2013) ao analisarem aspectos socioeconômicos e emocionais do aborto provocado e espontâneo na periferia da cidade de São Paulo concluiram que o aborto provocado está relacionado a condições socioeconômicas desfavoráveis. Silva e Andreoni (2012) investigaram fatores associados ao aborto induzido entre jovens de uma comunidade pobre da cidade de São Paulo e observaram que “a chance de se optar pelo aborto se reduz 17% para cada incremento de um ano na idade dos jovens”, verificando necessidade de investimento em contracepção. Leal (2012) identificou, em estudo etnográfico a fluidez de significados atribuídos ao aborto em populações de baixa renda. Mello, Sousa e Figueroa (2011) pesquisaram a magnitude e as motivações para a prática do aborto inseguro em Pernambuco. Para um panorama geral dos resultados da pesquisa sobre o aborto realizada no Brasil nas duas últimas décadas, ver a coletânea “20 anos de pesquisas sobre aborto no Brasil”, publicada pelo Ministério da Saúde (Brasil 2009).
  • 3
    Pesquisa mais recente apontou que as internações decorrentes de aborto inseguro foram a terceira causa de morte materna no Estado do Rio de Janeiro, entre 1999 e 2007 (Galil, Viana, Shiraiwa 2010).
  • 4
    Lowenstein (1976) critica a classificação formalista das Constituições (de grande ressonância na teoria constitucional brasileira), que nada acrescentaria do ponto de vista de uma reflexão crítica sobre o sentido das Constituições e do Constitucionalismo (pp. 206-217). Daí a proposta de uma classificação ontológica, que buscará avaliar se há concordância entre texto constitucional e realidade social.
  • 5
    Butler (2012), também citada neste trabalho, formulou diversas críticas a Habermas no sentido de que as pessoas não possuem as mesmas possibilidades concretas de enunciação na esfera pública, e o reconhecimento das interpretações reprimidas ou marginalizadas sobre suas carências, no nível da teoria habermasiana, permanece hipotética. A teoria habermasiana do direito não antecipa um juízo substantivo sobre as relações desiguais de poder, mas tampouco dá a devida relevância à circunstância de que, ainda no nível formal, elas limitam e condicionam todas as efetivas possibilidades dialógicas. Habermas fundamenta a construção intersubjetiva do direito e do sentido das normas jurídicas a partir da dimensão de idealidade (uma dimensão, nesse sentido, normativa) que se encontra em permanente tensão com a facticidade de qualquer ação comunicativa. Butler questiona que se essas normas compartilhadas, por um lado, conectam os indivíduos, formando as bases para suas reivindicações éticas e políticas e para a crítica do caráter inaceitável de determinadas operações restritivas, elas também fornecem os termos socialmente articulados pelos quais a “humanidade” é reconhecida a alguns indivíduos em maior medida do que a outros, dependendo da sua morfologia e da possibilidade de reconhecimento dessa morfologia, do seu gênero e da inteligibilidade desse gênero, etc. – o que repercute sobre o modo com que os sujeitos se reconhecem reciprocamente como titulares de direitos e da prerrogativa de inclusão em uma esfera política participativa (Butler 2004, p. 2). Enquanto Habermas, um autor de inspiração kantiana, define a autonomia privada em sentido jurídico como uma zona de liberdades individuais garantidas institucionalmente sob o manto de direitos subjetivos protegidos pelo poder sancionador do Estado, Butler, uma autora de inspiração hegeliana, está interessada na liberdade social, que se torna efetiva na intersubjetividade, no reconhecimento da liberdade de cada sujeito concreto reciprocamente pelos demais sujeitos enquanto condição de possibilidade da própria liberdade. Apesar dessas objeções, a questão central aqui é a compreensão do papel importante, porém parcial, de uma teoria do direito em sentido estrito no contexto mais amplo de uma teoria da justiça. Uma teoria do direito não pode, por seus próprios meios, buscar enfrentar todas as questões que dizem respeito à igualdade de gênero. Se a autonomia necessária para a participação em um processo de autolegislação democrática de fato não se limita à esfera “abstrata” de uma esfera de liberdades juridicamente protegida, para uma teoria do direito, no entanto, esse é o ponto de partida mínimo e basilar. Elucidar todas as esferas normativas de reconhecimento recíproco, especialmente quanto a questões impenetráveis pelo Direito, não é uma tarefa disciplinar para ser desenvolvida diretamente pela pesquisa jurídica em direitos fundamentais.
  • 6
    Uma vasta literatura, em grande parte oriunda de pesquisas no campo da enfermagem, aborda os relatos das mulheres internadas em função de abortos ilegais sobre seus contextos e suas experiências. Pedrosa e Garcia (2000), por exemplo, discutem os significados atribuídos ao abortamento induzido por mulheres que abortaram. Faria, Domingos, Merighi e Ferreira (2012) buscaram compreender a experiência e as necessidades de cuidado de adolescentes em situação de abortamento. Benute, Nomura, Lucia e Zugaib (2006) entrevistaram 35 gestantes cujo feto era portador de malformação letal e que interromperam a gestação após solicitação de autorização judicial.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2017

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2016
  • Aceito
    30 Maio 2017
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