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Biografias e contextos: especificidades da iniciação sexual de jovens vivendo com HIV infectadas por transmissão vertical

Biographies and contexts: specificities of the sexual initiation of young women living with HIV infected by vertical transmission

Biografías y contextos: especificidades de la iniciación sexual de jóvenes viviendo con HIV infectadas por transmisión vertical

Resumo

O artigo discute as especificidades do processo de iniciação sexual (IS) das jovens vivendo com HIV infectadas por transmissão vertical (TV) a partir de um estudo transversal, com amostragem probabilística, conduzido no município de São Paulo entre 2013 e 2014. Foram comparadas as médias da idade da primeira relação sexual das jovens de 18 a 24 anos, segmentadas entre infectadas por TV, infectadas por outras vias e aquelas que não vivem com HIV/Aids. Observou-se associação entre o adiamento da primeira relação sexual e a infecção por TV, ter filiação religiosa, ter ao menos ensino médio completo, não ter feito uso de drogas na vida e ter tido a primeira relação com parceiro mais novo ou até dois anos mais velho. A infecção pelo HIV confere complexidade aos processos de socialização para a sexualidade e, consequentemente, de transição para a vida adulta. Os resultados indicam que diferentes vias de infecção pelo HIV aparecem associadas a modos peculiares de viver a sexualidade.

Palavras-chave:
iniciação sexual; transmissão vertical; jovens; mulheres; HIV

Abstract

The article discusses the specificities of the sexual initiation (SI) of young women living with HIV infected by vertical transmission (VT). The empirical data comes from a transversal study, with probabilistic sampling, carried out in the city of São Paulo from 2013 to 2014. The age average of the first sexual intercourse of the 18-24-year-old women was compared among the three groups: those infected by VT, those infected by other means and those who have not been infected by HIV/Aids. The postponement of the first sexual intercourse is associated with having a religious practice, a secondary school, not having ever used drugs and having the first sexual intercourse with younger or up to two years older partners. HIV infection confers complexity to the processes of socialization for sexuality and, consequently, transition into adult life. The results indicate that different routes of HIV infection are associated with peculiar ways of experiencing sexuality.

Key words:
sexual initiation; vertical transmission; youth; women; HIV

Resumen

El artículo discute las especificidades del proceso de iniciación sexual (IS) de las jóvenes viviendo con HIV infectadas por transmisión vertical (TV) a partir de un estudio transversal, con muestreo probabilístico, conducido en el municipio de São Paulo entre 2013 y 2014. Se compararon las medias de la edad de la primera relación sexual de las jóvenes de 18 a 24 años, segmentadas entre infectadas por TV, infectadas por otras vías y aquellas que no viven con HIV/SIDA. Se observó asociación entre el aplazamiento de la primera relación sexual y la infección por TV, tener filiación religiosa, tener al menos la enseñanza media completa, no haber hecho uso de drogas en la vida y haber tenido la primera relación con pareja más joven o hasta dos años más viejo. La infección por el HIV confiere complejidad a los procesos de socialización para la sexualidad y, consecuentemente, de transición a la vida adulta. Los resultados indican que diferentes vías de infección por el HIV aparecen asociadas a modos peculiares de vivir la sexualidad.

Palabras clave:
iniciación sexual; transmisión vertical; jóvenes; mujeres; HIV

Introdução

Este artigo tem como foco as especificidades do processo de iniciação sexual de mulheres jovens vivendo com HIV/Aids. O destaque é conferido ao processo de iniciação sexual de moças que foram infectadas pelo HIV através da transmissão vertical (TV), mas também são consideradas as experiências das jovens que vivem com HIV infectadas por outras vias (predominantemente por via sexual).

Dois elementos contextuais/históricos estão subjacentes a esta escolha: o recente recrudescimento do HIV/Aids no Brasil entre jovens de 15 a 24 anos (Brasil, 2017) e a chegada à vida adulta, na quarta década da epidemia, de pessoas que vivem com HIV desde a infância, infectadas por transmissão vertical (TV). Entre os anos de 2006 e 2015 a taxa de detecção de casos de Aids entre jovens 15 a 19 anos passou de 2,4 para 6,9 casos por 100 mil habitantes (BRASIL, 2017). Entre aqueles com idade entre 20 e 24 anos, a taxa variou de 15,9 para 33,1 casos por 100 mil habitantes (Brasil, 2017).

É inegável a existência de uma grande heterogeneidade de trajetórias juvenis no Brasil, expressa em diversos âmbitos da vida, tais como nos processos de escolarização (Almeida, 2008ALMEIDA, M.C.C. 2008. Gravidez na adolescência e escolaridade: um estudo em três capitais brasileiras. 2008. Tese de Doutorado em Saúde Coletiva, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. ) e inserção no mercado de trabalho (Sabóia, 1998SABÓIA, A.L. 1998. “Situação educacional dos jovens. In: Comissão Nacional de População e Desenvolvimento - CNPD (org.). Jovens Acontecendo na Trilha das Políticas Públicas. Brasília: CNPD. p. 499-518.; Camarano et al., 2004CAMARANO, A.A. et al. 2004. “Caminhos para a vida adulta: as múltiplas trajetórias dos jovens brasileiros”. Última Década, Valparaíso, Chile. Vol. 21, p. 11-50.) e nas experiências reprodutivas (Aquino et al., 2003AQUINO, E.M.L. et al. 2006. “Gravidez na Adolescência: a heterogeneidade revelada”. In: HEILBORN, M.L. et al. (org.). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Garamond/Editora Fiocruz. p. 310-363. ; Menezes et al., 2006MENEZES, G.; AQUINO, E.M.L. & SILVA, D.O. 2006. “Aborto provocado na juventude: desigualdades sociais no desfecho da primeira gravidez”. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro. Vol. 22, supl. 7, p. 46-1431.). O entrelaçamento de gênero, geração, classe social, raça/etnia - apenas para citar alguns - enseja contextos distintos de vivência da sexualidade. O argumento desenvolvido neste artigo é o de que a (con)vivência com a infecção pelo vírus HIV é um outro elemento que modula as biografias de mulheres e homens jovens e imprime especificidades na transição para a vida adulta.

A juventude corresponde a uma categoria que se constrói socialmente a partir das representações que cada grupo cultural estabelece sobre as idades. Atualmente, na cultura ocidental, não se observa um rito de passagem que marque o início ou o final da juventude. Os processos de entrada na juventude e de transição para a vida adulta se dão por meio de uma acumulação de “primeiras vezes” experienciadas pelo sujeito, tais como o primeiro trabalho, a primeira viagem sem a supervisão dos pais, a primeira habilitação de motorista, entre outros (Bozon, 2002BOZON, M. 2002. “Des rites de passage aux ‘premières fois’. Une expérimentation sans fin?”. Agora débats-jeunesses. Nº. 28, p. 22-33. ; Calvès et al., 2006CALVÈS, A.E. et al. 2006. “Le passage à l’âge adulte: repenser la définition et l’analyse des ‘premières fois’”. In: ANTOINE, P. & LELIEVRE, E. (dirs.). États flous et trajectoires complexes. Observation, modélisation, interprétation. Paris: INED. p. 137-156.). Em cada uma dessas experiências inaugurais o jovem adquire atributos sociais de maturidade e autonomização social. A primeira relação sexual com parceiro/a tem grande importância nesse cenário (Lagrange & Lhomond, 1997 apud Calvès et al., 2006).

O processo de iniciação sexual corresponde a uma série de experimentações sociais que permitem ao sujeito identificar, aprender e se impregnar da cultura sexual dos grupos de que faz parte (Heilborn, 2006HEILBORN, M.L. 2006. “Experiência da sexualidade, reprodução e trajetórias biográficas juvenis”. In: HEILBORN, M.L et al. (org.). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Garamond /Editora Fiocruz. p. 30-62.). As condutas sexuais não são atemporais ou universais; somente é possível atribuir significados aos comportamentos sexuais levando-se em consideração os contextos históricos e culturais em que eles ocorrem (Bozon & Giami, 1999BOZON, M. & GIAMI, A. 1999. “Les scripts sexuels ou la mise en forme du dèsir - presèntation de l`árticle de John Gagnon”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris. Nº 128, p. 68-72.; Gagnon, 2006GAGNON, J. 2006. “O uso explícito e implícito da perspectiva da roteirização nas pesquisas sobre sexualidade”. In: GAGNON, J. Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade. Rio de Janeiro: Garamond . p. 211-268.). Ainda que o processo de iniciação sexual não se reduza à primeira relação sexual, a idade da “primeira vez” corresponde a um “bom indicador das maneiras diferenciadas de viver a sexualidade na adolescência” segundo distintos marcadores sociais (Bozon & Heilborn, 2006: 156BOZON, M. & HEILBORN, M.L. 2006. “Iniciação à sexualidade: modos de socialização, interações de gênero e trajetórias individuais”. In: HEILBORN, M.L. et al. (org.). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Garamond /Editora Fiocruz. p. 156-211.).

Há uma tendência à estabilização da primeira relação sexual entre 15 e 19 anos não apenas no Brasil, mas também em diversos outros países desde a década de 90 (Dixon-Mueller, 2009DIXON-MUELLER, R. 2009. “Starting young: sexual initiation and HIV prevention in early adolescence”. AIDS and Behavior. Vol. 13, p. 100-109. Disponível em: <Disponível em: https://www.medscape.com/viewarticle/586440_2 > [Acesso em 11/10/2018].
https://www.medscape.com/viewarticle/586...
; Paiva et al., 2008PAIVA, V. et al. 2008. “Idade e uso de preservativo na iniciação sexual de adolescentes brasileiros”.Revista de Saúde Pública, São Paulo. Vol. 42, supl. 1, p. 45-53. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0034-89102008000800007 > [Acesso em 30/09/2015].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Bozon & Heilborn, 2006HEILBORN, M.L. 2006. “Experiência da sexualidade, reprodução e trajetórias biográficas juvenis”. In: HEILBORN, M.L et al. (org.). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Garamond /Editora Fiocruz. p. 30-62.; Bozon, 1993BOZON, M. 1993. “L´entrée dans la sexualité adulte: le premier rapport et ses suítes, du calendrier aux atitudes”. Population, Paris. Nº 5, p. 1317-1352. , 2003BOZON, M. 2003. “A quel âge les femmes et les hommes commencent-ils leur vie sexuelle? Comparaisons et évolutions recentes”. Populations et Societés, Paris. Nº 391, p. 1-4. , 2005BOZON, M. 2005. “Novas normas de entrada na sexualidade no Brasil e na América Latina”. In: HEILBORN, M.L. et al. Sexualidade, família e ethos religioso. Rio de Janeiro: Garamond. p. 301-314. ). Por exemplo, o estudo GRAVAD, conduzido com jovens de 18 a 24 anos, no ano de 2002, nas cidades de Porto Alegre, Rio de Janeiro e Salvador, identificou que as jovens tiveram a primeira relação sexual com idade mediana de 17,9 anos (Bozon & Heilborn, 2006). Em inquérito populacional realizado em São Paulo em 2015, 33,9% das jovens entre 15 e 19 anos tiveram a primeira relação sexual antes dos 15 anos e 60,2%, entre 15 e 17 anos (Olsen et al., 2018OLSEN, J.M.; LAGO, T.D.G.; KALCKMANN, S.; ALVES, M. & ESCUDER, M.M.L. 2018. “Young women’s contraceptive practices: a household survey in the city of Sao Paulo, Brazil”. Cadernos de Saúde Pública. Nº 34 (2), e00019617.).

Estudos realizados com mulheres vivendo com HIV/Aids aponta para uma antecipação da primeira relação sexual. Pesquisa conduzida em Porto Alegre, em 2011, com jovens vivendo com HIV/Aids, encontrou a mediana da idade de iniciação sexual de 15 anos para jovens da mesma faixa etária (Teixeira et al., 2013TEIXEIRA, L. et al. 2013. “Sexual and reproductive health of women living with HIV in Southern Brazil”. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro. Vol. 29, p. 609-620.). Outro estudo, desenvolvido em Santos, São Paulo e São José do Rio Preto, também com mulheres vivendo com HIV/Aids, observou que as jovens de 18 a 24 anos iniciaram-se sexualmente em média aos 15,8 anos (Paiva et al., 2002PAIVA, V. et al. 2002. “Sexualidade de mulheres vivendo com HIV/AIDS em São Paulo”.Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro. Vol. 18, n. 6, p. 1609-1619. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S0102311X2002000600015&lng=en&nrm=iso > [Acesso em 24/10/2017].
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).

A variabilidade em relação ao momento em que ocorre a primeira relação sexual, em especial entre a população feminina, observada pelos estudos acima aponta para a importância de se investigar a idade da primeira relação sexual de subpopulações específicas de mulheres, uma vez que eventos peculiares ou características de suas biografias pessoais parecem ter maior impacto sobre sua sexualidade do que para os homens.

O presente artigo tem por objetivo discutir as especificidades do processo de iniciação sexual das jovens infectadas por TV. Ao aportar os resultados de um estudo transversal, adota-se como estratégia de análise comparativa as médias de idade de iniciação sexual (IS) das jovens infectadas por TV com as idades de IS das infectadas por outras vias (OV) e com as de jovens que não vivem com HIV/AIDS. Trata-se de um desdobramento temático do estudo “GENIH: Gênero e Infecção no Contexto da Epidemia de HIV/Aids no Município de São Paulo”, investigação sobre a saúde sexual e reprodutiva de mulheres que vivem com HIV.

Aspectos metodológicos

Os resultados aqui apresentados foram produzidos a partir do Estudo GENIH: pesquisa de corte transversal, com amostragem probabilística, conduzido entre fevereiro de 2013 e maio de 2014, no município de São Paulo. O estudo foi realizado com uma amostra representativa de mulheres vivendo com HIV/Aids (MVHA), com idades entre 18 e 49 anos, e uma amostra comparativa de mulheres sem diagnóstico para o HIV, usuárias dos serviços públicos de atenção básica (MNVHA).

Foram entrevistadas 975 usuárias das 18 unidades públicas de saúde de referência para o atendimento a pessoas vivendo com HIV (PVHIV), responsáveis por 95% do atendimento às PVHIV no município. Para compor a amostra de jovens, optou-se pela ampliação do trabalho de campo junto às jovens até março de 2016. Nesse período foram entrevistadas mais 34 jovens, que passaram a compor a amostra de MVHA.

O conjunto de MNVHA foi composto por meio de processo de amostragem estratificada por conglomerados. A amostra foi partilhada entre as Coordenadorias Regionais de Saúde do Município de São Paulo proporcionalmente ao número de consultas realizadas em cada uma das regiões. Foram sorteadas, então, 38 unidades básicas de saúde, de um total de 442. Ao final dessas etapas haviam sido entrevistadas 975 MVHA e 1003 MNVHA. Detalhes da metodologia do estudo estão descritos em Barbosa et al. (2016BARBOSA, R.M.; CABRAL, C.D.; DO LAGO, T.D. & PINHO, A.A. 2016. “Differences in the Access to Sterilization between Women Living and Not Living with HIV: Results from the GENIH Study, Brazil”. PLoS One. Nº 11 (11), e0164887.).

A coleta de dados foi feita através de questionário eletrônico sociocomportamental aplicado em sala privativa, nas unidades de saúde, antes ou após a consulta da usuária, por uma entrevistadora treinada, com auxílio de um netbook. O questionário foi estruturado a fim de que se reconstituíssem as trajetórias afetivo-sexuais, contraceptivas e reprodutivas das mulheres, elegendo-se alguns eventos marcadores para aprofundamento, e sua inter-relação com o diagnóstico de HIV no caso de MVHA.

Este artigo traz os resultados referentes às mulheres de 18 a 24 anos que já haviam tido relações sexuais.1 1 Foram incluídas no presente estudo apenas as jovens que já haviam tido relações sexuais e que informaram a idade da primeira relação consentida. Foram, portanto, excluídas, 18 jovens vivendo com HIV/Aids que não haviam tido relações sexuais na época do trabalho de campo e duas jovens não vivendo com HIV que não informaram a idade da primeira relação sexual. A amostra de MVHA foi estratificada de acordo com a via de infecção, em mulheres infectadas por TV e aquelas infectadas por outras vias (OV). As jovens que desconheciam o modo como haviam sido infectadas foram classificadas entre as infectadas por OV, já que as respostas a outras questões sugeriam que a infecção não estivesse presente desde a infância. Assim, a população deste estudo está composta por 112 MVHA, sendo 66 infectadas por TV e 46 infectadas por outras vias, e por 255 MNVHA.

Cada subgrupo foi caracterizado segundo variáveis sociodemográficas. A média da idade da primeira relação sexual foi calculada para cada um dos subgrupos estudados. Foi aplicado o teste de normalidade Shapiro-Wilk a fim de verificar se a idade de iniciação sexual apresentava distribuição normal na amostra de jovens. Na sequência, foi realizada comparação das médias da idade de iniciação sexual entre os três subgrupos e as seguintes variáveis: cor/raça, filiação a alguma religião, escolaridade, interrupção da trajetória escolar, ter vivido em alguma instituição em algum momento da vida (institucionalização), escolaridade materna, ter mãe viva à época da entrevista, número de anos em que viveu junto com a mãe, tipo de parceiro na primeira relação sexual, diferença de idade entre a jovem e o parceiro na primeira relação sexual e uso de drogas na vida. Para esta análise foi usado o teste de T de Student. Adicionalmente, foi realizado o teste post hoc de Bonferroni para as variáveis que apresentaram associação estatisticamente significativa.

Por último, aplicaram-se modelos de regressão logística binária univariados e múltiplos para amostras complexas para identificar fatores associados ao adiamento da iniciação sexual. Para esta análise, foi construída uma variável dicotômica, considerando-se o fato de terem adiado a primeira relação sexual as jovens que declararam ter tido a primeira relação com 17 anos ou mais (último tercil da população com iniciação sexual), condição de 36,9% das jovens que compuseram o estudo. As variáveis que apresentaram valor de p <20% na análise univariada foram testadas no modelo múltiplo pela técnica Stepwise por meio do método Forward. Para a significância estatística, assumiu-se um nível de 5%. Os dados foram analisados em SPSS versão 22.0 para Windows.

O estudo foi conduzido de acordo com os princípios da Declaração de Helsinque e atendeu a todos os requisitos da resolução 466/12 para pesquisas que envolvem seres humanos (Brasil, 2012BRASIL. 1996. Resolução CNS n o 196/1996. Brasília: Ministério da Saúde - Conselho Nacional de Saúde, 1996. Disponível em: <Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/aquivos/re solucoes/resolucoes.htm > [Acesso em 17/11/2015].
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), sendo submetido e aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa do CRT, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, da Secretaria Municipal de Saúde de SP e da Unifesp.

Resultados

Heterogeneidade nos perfis sociodemográficos dos subgrupos do estudo

Tabela 1:
Caracterização sociodemográfica da população segundo condição sorológica e via de infeção pelo HIV

As especificidades da epidemia de HIV/Aids se exprimem desde o exame das características demográficas e socioeconômicas dos subgrupos que compõem a população do estudo (cf. tabela 1). A distribuição etária variou significativamente entre os três grupos. Ainda que em todos eles tenha havido predominância de jovens com 20 anos ou mais, 88,2% das infectadas por outras vias correspondiam a essa faixa etária. Já entre as infectadas por TV, 39% das jovens tinham até 19 anos no momento da entrevista, constituindo-se, assim, como “o mais jovem” dos três grupos. As moças infectadas por TV tiveram a revelação de seu diagnóstico aos 13 anos de idade, enquanto as infectadas por outras vias foram diagnosticadas aos 19,8 anos (ambos são valores médios das idades). Observou-se maior concentração de jovens pretas entre as que vivem com HIV/Aids (raça/cor autodeclarada); as jovens infectadas por outras vias mostraram-se menos escolarizadas e com maior frequência de interrupção dos estudos do que as demais. Aproximadamente 2/3 das jovens declararam filiação religiosa sem variações importantes entre os três grupos.

Diferenças na idade da primeira relação sexual consentida

A média de idade da iniciação sexual das jovens infectadas por TV se aproxima daquela encontrada no grupo das MNVHA; já as jovens que se infectaram por outras vias se iniciaram em média um ano mais cedo do que as demais (cf. tabela 2).

Tabela 2:
Idade da primeira relação sexual segundo variáveis da jovem de acordo com a condição sorológica e a via de infecção pelo HIV

Observou-se também diferença estatisticamente significativa (p<0,05) entre os subgrupos nas análises estratificadas por raça/cor, filiação religiosa, escolaridade da jovem, uso de drogas na vida, tempo que viveu junto com a mãe, tipo de parceiro com quem teve a primeira relação sexual e diferença de idade entre a jovem e esse parceiro.

A variação da média de idade na iniciação sexual em cada subgrupo em função da raça/cor é mais evidente apenas entre as jovens infectadas por outras vias. Nesse grupo, as pretas iniciaram-se em média aos 14,61 anos, enquanto as não pretas aos 15,49 anos. No entanto, na comparação entre os três grupos, tem-se que as jovens pretas infectadas por TV iniciaram-se em média aos 16,53 anos, as infectadas por outras vias iniciaram-se em média aos 14,61 anos (post hoc; p=0.040), correspondendo a uma diferença de quase dois anos. Jovens mais escolarizadas e aquelas com alguma filiação religiosa apresentaram tendência de iniciação sexual mais tardia, assim como as jovens que nunca fizeram uso de drogas na vida (cf. tabela 2).

Tabela 3:
Idade da primeira relação sexual segundo variáveis da família de acordo com a condição sorológica e a via de infecção pelo HIV

Há diferenças na idade da iniciação sexual quando são analisadas variáveis que dizem respeito à família de origem das jovens (p=0,034). As jovens que viveram com a mãe por 15 anos ou mais iniciaram a vida sexual mais tardiamente nos três subgrupos quando comparadas com aquelas que viveram menos tempo com a mãe, com diferenças no entanto mais acentuadas no grupo de jovens infectadas por outras vias (cf. tabela 3).

Tabela 4:
Idade da primeira relação sexual segundo variáveis do primeiro parceiro sexual de acordo com a condição sorológica e a via de infecção pelo HIV

Adicionalmente, observa-se que as jovens que se iniciaram no contexto do namoro ou casamento tenderam a se iniciar mais tardiamente nos três subgrupos em comparação com as que tiveram a primeira relação sexual com “ficante” ou amigo, com diferenças mais acentuadas entre aquelas que adquiriam o vírus por TV (cf. tabela 4).

Fatores associados ao adiamento da iniciação sexual

Resultados da análise de regressão logística múltipla indicaram associação entre o adiamento da iniciação sexual e a infecção por transmissão vertical (Tabela 5). As jovens infectadas via transmissão vertical apresentam maior chance (OR=2,17, p=0,038) de terem uma iniciação sexual mais tardia em relação às MNVHA. Independente da infecção pelo HIV, foi observada associação entre o adiamento da primeira relação sexual e possuir alguma filiação religiosa (OR=1,66, p=0,046), ter pelo menos ensino médio completo (OR=2,37, p=0,003), não ter feito uso de drogas na vida (OR=2,28, p=0,027) e ter tido a primeira relação com parceiros mais novos ou até dois anos mais velhos (OR=1,80, p=0,036). Nenhuma das variáveis testadas relacionadas à família de origem se manteve no modelo final de ajuste.

Tabela 5:
Fatores associados à iniciação sexual tardia em mulheres jovens vivendo ou não vivendo com HIV - regressão logística binária univariada e múltipla

Discussão

O momento em que ocorre a primeira relação sexual nas trajetórias das jovens que vivem com HIV/Aids não pode ser interpretado sem que se levem em conta a temporalidade do diagnóstico de HIV e as moralidades sexuais e expectativas de gênero relacionadas a esse processo. A maioria das jovens infectadas por TV inicia-se sexualmente já vivendo com HIV/Aids, enquanto a quase totalidade das infectadas por outras vias adquiriu o vírus depois de iniciar a vida sexual. Entre as mulheres infectadas por outras vias, apenas uma, que contraiu o vírus na infância devido à transfusão de sangue, declarou conhecer o diagnóstico da infecção pelo HIV antes da primeira relação sexual. Entre as jovens infectadas por TV, seis relataram que se iniciaram antes de saber que viviam com HIV.

Trajetórias marcadas diferentemente pelo HIV apresentam distintos cenários de socialização para a sexualidade. Viver com HIV parece ter impacto sobre o momento em que ocorrerá a primeira relação sexual, conforme pode ser observado pela associação encontrada entre ser infectada por transmissão vertical e iniciar-se mais tardiamente

Os processos de vinculação institucional de que as jovens participam, isto é, a inserção dessas jovens em instituições como a escola e a filiação religiosa, aparecem como elementos associados à postergação da primeira relação sexual. Esses resultados são consoantes aos apresentados em outras pesquisas que discutem a idade da primeira relação sexual. A maior escolaridade apareceu como o elemento que mais impactou esse adiamento. Essa associação já foi descrita por outros estudos (Heilborn & Bozon, 2006HEILBORN, M.L. 2006. “Experiência da sexualidade, reprodução e trajetórias biográficas juvenis”. In: HEILBORN, M.L et al. (org.). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Garamond /Editora Fiocruz. p. 30-62.; Gonçalves, 2008GONÇALVES, H. et al. 2008. “Determinantes sociais da iniciação sexual precoce na coorte de nascimentos de 1982 a 2004-5, Pelotas, RS”. Revista de Saúde Pública [on-line]. Vol. 42, supl.2, p. 34-41. Disponível em: < Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102008000900 006 > [Acesso em 20/10/2017].
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) e há evidências, embora não significativas estatisticamente neste estudo, sugerindo que também a baixa escolaridade materna e a interrupção da trajetória escolar pela jovem estariam ligadas à iniciação sexual tida como precoce (Almeida, 2008ALMEIDA, M.C.C. 2008. Gravidez na adolescência e escolaridade: um estudo em três capitais brasileiras. 2008. Tese de Doutorado em Saúde Coletiva, Instituto de Saúde Coletiva, Universidade Federal da Bahia. ; Heilborn & Bozon, 2006; Taquette, Vilhena & Paula, 2004TAQUETTE, S.R.; VILHENA, M.M. & PAULA, M.C. 2004. “Doenças sexualmente transmissíveis na adolescência: estudo de fatores de risco”. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, Uberaba. Vol. 37, n. 3, p. 210-214.).

Não ter filiação religiosa aparece associado a iniciar-se precocemente em diferentes populações (Hugo et al., 2011HUGO, T.D.O. et al. 2011. “Fatores associados à idade da primeira relação sexual em jovens: estudo de base populacional”.Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro. Vol. 27, n. 11, p. 2207-2214. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2011001100014&lng=en&nrm=iso > [Acesso em 24/10/2017].
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). O estudo GRAVAD destaca a importância da religião da família de origem - o que não foi investigado pelo estudo GENIH - no processo de iniciação sexual: jovens educadas em famílias sem religião ou que mudaram de religião em relação àquela praticada por sua família de origem também tenderiam a iniciar-se mais precocemente do que as demais (Heilborn & Bozon, 2006HEILBORN, M.L. 2006. “Experiência da sexualidade, reprodução e trajetórias biográficas juvenis”. In: HEILBORN, M.L et al. (org.). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Garamond /Editora Fiocruz. p. 30-62.). Em consonância com estes estudos, nossos resultados também apontam uma ligação positiva entre filiação religiosa e o adiamento da iniciação sexual.

No caso específico das jovens infectadas por TV, há que se ponderar sobre o peso da família de origem no processo de socialização para a sexualidade, pois muitas enfrentaram muito cedo em suas vidas a morte da mãe. Mais da metade das jovens infectadas por TV declarou não ter mãe viva ou não ter vivido com ela por pelo menos 14 anos, situações pouco frequentes entre os outros grupos. Ainda que não tenha sido encontrada uma associação estatisticamente significativa entre ter e não ter a mãe viva e ter se iniciado mais tarde, é possível pensar que a ausência da figura materna produza algum impacto sobre a vivência da sexualidade na juventude no caso de jovens do sexo feminino.

Cabe destacar que um estudo realizado com jovens órfãos por Aids no município de São Paulo encontrou resultados relativos à iniciação sexual para as moças órfãs coincidentes com os encontrados na presente investigação para as infectadas por TV (Chongo, 2007CHONGO, L.S. 2007. Início da vida sexual de jovens órfãos por AIDS na cidade de São Paulo. 2007. Dissertação de Mestrado em Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.). Os autores levantaram a hipótese de que a orfandade pela Aids impactaria “as moças órfãs, de modo a retardar o início da vida sexual” (Chongo, 2007: 77), devido a um sentimento de autoproteção gerado pela experiência de cuidarem de seus pais adoecidos pela Aids, tarefa tradicionalmente delegada à mulher na divisão sexual do trabalho (Chongo, 2007).2 2 O estudo GENIH não perguntou às jovens a causa da morte de suas mães, mas é muito provável que a quase totalidade das infectadas por TV que relataram não ter mãe viva tenha perdido a mãe em decorrência da Aids. Colabora para esta hipótese a informação de que a Aids foi a primeira causa na hierarquização dos APVP (anos potenciais de vida perdidos) para as mulheres no ano de 1995, no município de São Paulo (Unaids, 1998), o que sugere o impacto da Aids na mortalidade de mulheres na cidade na década de 90.

No entanto, outra hipótese pode ser considerada para explicar esta associação. Estudos sugerem que, para mulheres jovens, a mãe tende a ser a principal informante sobre sexualidade, dividindo esse papel com a escola quando o assunto é gravidez e IST (Bozon & Heilborn, 2006HEILBORN, M.L. 2006. “Experiência da sexualidade, reprodução e trajetórias biográficas juvenis”. In: HEILBORN, M.L et al. (org.). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Garamond /Editora Fiocruz. p. 30-62.). Ao contrário do que ocorre entre os rapazes, para as moças, “o papel da mãe continua a ser mais central que o dos pares” (Bozon & Heilborn, 2006: 158). Devido ao falecimento da mãe ainda na infância/juventude, as jovens infectadas por TV podem ter vivenciado uma socialização para a sexualidade distinta da trajetória típica de sua geração. Dados do estudo GENIH (não apresentados) referentes a com quem as jovens podem contar em casos de necessidades diversas indicam que as infectadas por TV são as que menos podem contar com os parentes próximos (quando comparadas às infectadas por outras vias e às jovens que não vivem com HIV). Por outro lado, elas também relatam com maior frequência poder contar com entidades assistenciais.

Entre as jovens dos outros subgrupos quase não se encontraram relatos de institucionalização, realidade comum entre as jovens infectadas por TV. Afastar-se da família de origem na infância inseriu essas jovens em outros espaços de socialização, como as instituições de acolhimento. Embora o tamanho da amostra não tenha permitido a realização de análises separadas para cada subgrupo para identificar a existência de possíveis associações entre institucionalização e a idade da primeira relação sexual, é importante considerar que aquelas jovens infectadas por TV que viveram em instituições assistenciais apresentaram uma idade de iniciação sexual, em média, bastante superior às que não viveram em instituições assistenciais.

Vale considerar que o processo de transição para a vida adulta, com o qual a primeira relação sexual se associa (Calvès et al., 2006CALVÈS, A.E. et al. 2006. “Le passage à l’âge adulte: repenser la définition et l’analyse des ‘premières fois’”. In: ANTOINE, P. & LELIEVRE, E. (dirs.). États flous et trajectoires complexes. Observation, modélisation, interprétation. Paris: INED. p. 137-156.), também sofre variações entre os adolescentes que vivem em instituições. As jovens institucionalizadas tanto podem estar submetidas à maior tutela e ao controle por parte de seus cuidadores do que as demais, quanto podem sofrer efeitos do estigma social associado à institucionalização.

Ressalta-se ainda que as jovens infectadas por TV estão inseridas em serviços de saúde desde a infância com maior frequência e intensidade do que as demais. Também os serviços de saúde podem exercer a função de controle sobre o comportamento sexual dessas jovens, ainda mais considerando que têm uma condição que pode ser transmitida sexualmente. Parte das jovens vivendo com HIV que compuseram a população deste estudo demonstraram desconhecer métodos de prevenção à transmissão do HIV por via sexual, tais como o baixo risco de transmissão do HIV associado à carga viral indetectável (Zanelatto, 2017ZANELATTO, R. 2017. Iniciação sexual de mulheres jovens vivendo com HIV/Aids no município de São Paulo. Dissertação de Mestrado em Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo.), o que pode sugerir uma dificuldade de terem acesso a uma diversidade de estratégias de gestão da sexualidade junto aos serviços de saúde que frequentam.

Cabe ainda destacar que o não uso de drogas ao longo da vida apareceu como fator ligado ao adiamento da primeira relação sexual. Diferentes estudos indicam a associação entre uso de drogas na juventude e a iniciação sexual precoce (Hugo et. al, 2011HUGO, T.D.O. et al. 2011. “Fatores associados à idade da primeira relação sexual em jovens: estudo de base populacional”.Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro. Vol. 27, n. 11, p. 2207-2214. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2011001100014&lng=en&nrm=iso > [Acesso em 24/10/2017].
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
; Taquette, Vilhena & Paula, 2004TAQUETTE, S.R.; VILHENA, M.M. & PAULA, M.C. 2004. “Doenças sexualmente transmissíveis na adolescência: estudo de fatores de risco”. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, Uberaba. Vol. 37, n. 3, p. 210-214.), geralmente interpretados como indicadores de maior vulnerabilidade para a infecção por IST (Bassols et al., 2010BASSOLS, A. M.; BONI, R. & PECHANSKY, F. 2010. “Alcohol, drugs, and risky sexual behavior are related to HIV infection in female adolescents”. Revista Brasileira de Psiquiatria, Rio de Janeiro. Nº 32 (4), p. 361-368. ). Esse evento parece ter impacto semelhante nas trajetórias juvenis em relação à idade da primeira relação sexual, independentemente da via de infecção pelo HIV.

As jovens tendem a ter a primeira relação sexual com um namorado, a despeito da idade em que esse evento ocorra. No entanto, quanto mais tarde acontece a primeira relação sexual, maior é a probabilidade de que o parceiro tenha idade mais próxima ou até mesmo inferior à da jovem. O resultado se alinha ao que se observa em outros estudos sobre o tema: há grande variabilidade na maneira como os jovens de uma mesma geração vivenciarão a entrada na sexualidade, mantendo-se, no entanto, uma estrutura mais rígida no que se refere às relações de gênero (Heilborn et al., 2006HEILBORN, M.L. 2006. “Experiência da sexualidade, reprodução e trajetórias biográficas juvenis”. In: HEILBORN, M.L et al. (org.). O aprendizado da sexualidade: reprodução e trajetórias sociais de jovens brasileiros. Rio de Janeiro: Editora Garamond /Editora Fiocruz. p. 30-62.).

Considerações finais

A infecção pelo HIV - que aparece em momentos distintos das trajetórias biográficas juvenis - confere complexidade aos processos de socialização para a sexualidade e, consequentemente, de transição para a vida adulta. Ainda que cada jovem responda de forma diferente à infecção pelo HIV, dependendo de outros aspectos de sua biografia, viver com HIV desde a infância é um marcador importante na constituição dos percursos sexuais que se desenvolverão ao longo da juventude. O presente estudo, ao tomar como objeto o processo de iniciação sexual das jovens vivendo com HIV/Aids, traz reflexões a respeito da sexualidade das mulheres jovens que vivem no município de São Paulo e que estão inseridas nos serviços públicos de saúde, considerando as especificidades que caracterizam os cenários de iniciação sexual das mulheres que têm HIV/Aids. Os resultados indicam que diferentes vias de infecção pelo HIV aparecem associadas a modos peculiares de viver a sexualidade.

Os processos de vinculação institucional (escola, religião, família, instituição de acolhimento, serviços de saúde) parecem ter impacto sobre o momento em que acontece a primeira experiência sexual com parceiro, sendo cada vez mais importante entender o modo como temas relacionados à sexualidade são abordados junto aos jovens dentro desses espaços institucionais, em especial, aqueles voltados à educação e à saúde. Este aspecto nos parece fundamental em contexto de recrudescimento da epidemia de HIV/Aids em sua quarta década. É fundamental que as políticas e os programas de prevenção de novas infecções pelo HIV entre os jovens considerem a escola e os serviços de saúde como espaços que têm impacto sobre o desenvolvimento do modo de viver a sexualidade ao longo da juventude. Devem ser estimuladas, nesses espaços, discussões e reflexões sobre práticas sexuais mais seguras e relações de gênero, considerando os diferentes contextos de vivência da sexualidade entre os jovens e seus direitos sexuais e reprodutivos.

Cabe destacar que o estudo GENIH não foi desenhado especificamente para o exame do processo de iniciação sexual na juventude. O inquérito apresentava uma seção que tinha como foco a primeira relação sexual da jovem, mas não solicitava informações sobre outras experiências juvenis que trariam mais detalhes sobre o processo de socialização para a sexualidade. Todavia, a opção metodológica por analisar os dados em função da via de infecção permitiu que se colocasse luz sobre as especificidades das jovens infectadas por transmissão vertical. Reitera-se aqui que esta é a primeira geração de infectados por TV que chega à idade adulta: entre as que se infectaram por essa via, apenas cinco mulheres tinham 25 anos de idade e nenhuma era mais velha do que isso. Ainda que os primeiros casos de transmissão vertical do HIV em São Paulo tenham ocorrido nos primeiros anos da epidemia, essas crianças provavelmente faleceram em decorrência da Aids. A geração de jovens que compuseram este estudo nasceu em um cenário em que as infecções por transmissão vertical não estavam tão controladas quanto atualmente, mas já havia possibilidade de tratamento e de maior sobrevida, apesar da infecção.

Os resultados aqui apresentados têm potencial de levantar questões a serem aprofundadas por estudos qualitativos com populações específicas de jovens vivendo com HIV. Por fim, reitera-se a importância da adoção de estratégias de prevenção e manejo da infecção pelo HIV e gestão da sexualidade que considerem a diversidade de experiências e trajetórias juvenis.

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  • 1
    Foram incluídas no presente estudo apenas as jovens que já haviam tido relações sexuais e que informaram a idade da primeira relação consentida. Foram, portanto, excluídas, 18 jovens vivendo com HIV/Aids que não haviam tido relações sexuais na época do trabalho de campo e duas jovens não vivendo com HIV que não informaram a idade da primeira relação sexual.
  • 2
    O estudo GENIH não perguntou às jovens a causa da morte de suas mães, mas é muito provável que a quase totalidade das infectadas por TV que relataram não ter mãe viva tenha perdido a mãe em decorrência da Aids. Colabora para esta hipótese a informação de que a Aids foi a primeira causa na hierarquização dos APVP (anos potenciais de vida perdidos) para as mulheres no ano de 1995, no município de São Paulo (Unaids, 1998), o que sugere o impacto da Aids na mortalidade de mulheres na cidade na década de 90.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018
  • Data do Fascículo
    Dez 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Jun 2018
  • Aceito
    20 Set 2018
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