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CARDINALI, Daniel Carvalho. 2018. A Judicialização dos Direitos LGBT no STF: limites, possibilidades e consequências. 1ª ed. Belo Horizonte: Arraes. 228 p.

CARDINALI, Daniel Carvalho. . 2018. A Judicialização dos Direitos LGBT no STF: limites, possibilidades e consequências.1ª ed. Belo Horizonte: Arraes. 228 p.

O fenômeno da judicialização é de especial importância para a compreensão do processo de institucionalização dos direitos de pessoas lésbicas, gays, bissexuais e trans (LGBT) no cenário brasileiro. Acompanhando as tradições constitucionais europeias do pós-Segunda Guerra e se alinhando com algumas daquelas constituições do chamado “novo constitucionalismo latino-americano”, a Constituição Brasileira de 1988 tem um texto de caráter substantivo, com grande ampliação da pauta de direitos. No entanto, ainda que seu texto apresente direitos bem demarcados para grupos historicamente oprimidos, como mulheres e negros, não apresenta nenhuma previsão específica relativa às pessoas LGBTs.

Esse cenário, somado à enraizada e crescente maioria conservadora no Poder Legislativo, torna o Judiciário um caminho propício ao avanço na proteção jurídica e no reconhecimento dessa população. Nesse sentido, o livro de Daniel Cardinali, fruto de sua dissertação de mestrado, traz uma enorme e densa contribuição para a compreensão e a análise crítica do fenômeno, a partir de um prisma muito mais amplo do que uma visão estritamente jurídica sobre o tema.

Apesar de o livro propor a análise da judicialização das demandas do movimento LGBT no contexto nacional, especificamente a partir da atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), o resultado da pesquisa extrapola este objetivo inicial. Trazendo aportes das ciências sociais e políticas, o trabalho narra a história do movimento LGBT no Brasil, permitindo compreender quais razões levaram à escolha do caminho da judicialização. Ademais, não se restringindo ao antes e ao durante, Cardinali traz contribuições acerca do fenômeno do backlash, analisando a reação do Poder Legislativo e de outros setores da sociedade aos resultados das ações julgadas pelo STF.

No primeiro capítulo da obra, denominado “Construção do Movimento LGBT Brasileiro”, o autor se dedica à importante tarefa de destacar o papel imprescindível ocupado pelos movimentos sociais no tensionamento democrático e na luta pelo reconhecimento de direitos. E faz isto em duas diferentes abordagens: traça uma perspectiva história e delineia algumas das pautas atualmente buscadas pelo movimento.

Para reconstruir o histórico de criação e desenvolvimento de grupos LGBTs (que somente no avanço de sua história viriam a caracterizar um verdadeiro movimento), Cardinali realiza uma revisão bibliográfica extensa e de significativa qualidade. O autor não se abstém da menção a nenhum dos clássicos essenciais à discussão do tema no Brasil e, ainda assim, dialoga com novas e mais recentes contribuições ao tema. Guiado pela consolidada divisão de Regina Facchini (2005FACCHINI, Regina. 2005. Sopa de Letrinhas?: movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90. São Paulo: Garamond Universitária. ), o texto explora a estruturação do movimento LGBT nas três ondas estabelecidas pela autora. Nesse sentido, faz sobressair a importância de iniciativas como o jornal Lampião e o grupo Somos no início da politização da pauta LGBT, ainda a partir de um modelo que valorizava, sobretudo, a troca de experiências de seus integrantes e a utilização de espaços de sociabilidade e confraternização como marcações políticas.

Em seguida, o autor relata os impactos ocasionados pela epidemia de Aids no estabelecimento organizacional do movimento LGBT, gerando uma alteração forçada nos modos de atuação política. Além disso, destaca a participação de grupos LGBTs durante o processo constituinte iniciado em 1987. Em especial, chama a atenção para a tentativa de inclusão da proibição à discriminação por orientação sexual no texto constitucional, expondo posicionamentos homofóbicos utilizados pelos parlamentares para justificar a rejeição à proposta.

Posteriormente, o autor encerra sua reconstrução histórica abordando não somente os processos de institucionalização e as alianças estatais (elementos marcantes da terceira onda, como definida por Facchini), mas também trazendo reflexões do momento atual e das possibilidades acerca do estabelecimento, até mesmo, de uma quarta onda. Nesse sentido, ressalta marcos importante relativos à representatividade LGBT no Congresso Nacional (por presença ou por defesa da pauta) e também fenômenos mais recentes, como implicações da popularização das redes sociais e o advento do chamado “ciberativismo”.

Na sequência, Cardinali levanta alguns dos elementos que propiciaram (e exigiram) a incorporação da linguagem jurídica pelo movimento LGBT, caracterizando-a como a “construção de uma gramática de direitos”. Assim, a partir das pautas LGBTs mais frequentemente exploradas junto ao Legislativo, o autor empreende dedicada análise sobre três diferentes categorias de direitos defendidos por parcela do movimento LGBT: casamento igualitário, criminalização da homofobia e demandas das pessoas trans. É de se frisar que, embora sejam analisadas as três categorias apontadas, Cardinali não se furta a uma crítica necessária: identifica a existência de uma hierarquização de sujeitos dentro do próprio movimento, que proporciona maior destaque, sobretudo, às demandas dos homossexuais masculinos, brancos e de classes privilegiadas.

Ao discorrer sobre as duas primeiras categorias, Cardinali delimita o conteúdo de cada um dos direitos levantados, apontando ainda estratégias legislativas engendradas com o objetivo de positivação das referidas demandas. Mais importante que isso, o autor ressalta as dissonâncias existentes dentro do próprio movimento LGBT acerca da necessidade ou não do reconhecimento jurídico destas duas pretensões. Assim, aponta as críticas daqueles que encaram o pleito pelo casamento igualitário como uma espécie de assimilacionismo, que acabaria por limitar as identidades LGBTs ao enquadrá-las nos padrões cis-heteronormativos. Por outro lado, sinaliza também a resistência de parte do movimento em relação à hipótese de criminalização da homofobia, por se tratar de medida de um sistema repressivo penal que já atua em padrões de opressão e discriminação e cujo impacto é distribuído desproporcionalmente pelos setores da população.

O destrinchamento das demandas veiculadas pelas pessoas trans encerra o primeiro capítulo da obra. Nele, o autor acentua a pluralidade desse conjunto de pessoas, estabelecendo que três grandes grupos de direitos perseguidos seriam: a possibilidade de alteração do registro civil (nome e sexo); o direito a transformações corporais assistidas pelo SUS (terapia hormonal, cirurgia de transgenitalização, entre outros); e a luta pela despatologização das identidades trans. Desta forma, delineia alguns avanços, mas também traça importantes críticas a determinadas arquiteturas de reconhecimento, como, na esteira de Berenice Bento, à precariedade representada pelo nome social; e também aos riscos inerentes à despatologização no Brasil, uma vez que o diagnóstico médico ainda é pressuposto para o acesso ao sistema público de saúde.

No segundo capítulo, Cardinali traz uma perspectiva comparada do processo de judicialização dos direitos LGBTs, contrastando nosso histórico com os registros estadunidense, colombiano e argentino. Fugindo de uma perspectiva clássica de direito comparado, o conteúdo não se limita a contrapor aspectos técnicos de cada sistema jurídico, mas evidencia também o contexto político e as estratégias dos movimentos sociais de cada país. O panorama traçado é essencial para a compreensão mais profunda da judicialização e de seus efeitos que, nas palavras do autor, “não se produz no ‘vazio’, estando sempre circundada pela ação coletiva e contextos políticos e institucionais”.

No trecho sobre os Estados Unidos da América, que ocupa a maior parte do capítulo, é trazida a longa e complexa trajetória da judicialização naquele país, que foi marcada por uma constante marcha de avanço e retrocessos, sendo os últimos tanto no próprio campo judicial quanto no backlash político e social. Ao tratar do caso Orbegfell v. Hodges, o autor destaca a importância do caso julgado em 2015 e, acertadamente, coloca o futuro como uma incógnita temerosa. De fato, após a publicação do livro, a Suprema Corte dos EUA pronunciou polêmica decisão no caso Masterpiece Cakeshop v. Colorado Civil Rights Commission, no qual dá abertura para a discriminação LGBT com fundamento na liberdade religiosa (Scotus, 2018SCOTUS, Supreme Court of the United States (04/06/2018). “Masterpiece Cakeshop, Ltd., et al. v. Colorado Civil Rights Commission et al.”. Disponível em: <Disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/17pdf/16-111diff2_e1pf.pdf > [Acesso em: 04/09/2018].
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). Ingrediente extra ao quadro temerário, o justice Kennedy, que, como o autor destaca, teve papel fundamental na construção pretoriana dos direitos LGBTs, anunciou em 2018 a sua aposentadoria e, consequentemente, abriu uma nova vaga para ser preenchida por Donald Trump.

Ainda na abordagem comparada, são trazidos dois contextos latino-americanos: Colômbia e Argentina. No primeiro, é evidenciada uma marcante semelhança com o processo que ocorreu no Brasil. No caso da Argentina, apesar da proximidade que o país guarda com o contexto brasileiro, a obra mostra que a judicialização teve, naquele país, um papel que se pode definir como secundário, isto é, possibilitou a atenção midiática, impulsionando o processo de garantia dos direitos LGBTs por meio do Legislativo. Em ambos os casos, destaca-se a capacidade do autor de demonstrar como as peculiaridades de cada sistema jurídico, a exemplo da existência ou não de controle de constitucionalidade abstrato ou da variação no acesso à jurisdição constitucional, estão profundamente conectadas com as estratégias adotadas pelos movimentos LGBTs.

Voltando às especificidades do cenário brasileiro, o terceiro capítulo trata dos aspectos técnicos e jurídicos relativos às possibilidades e aos limites do acesso dos movimentos LGBTs à jurisdição constitucional. Assim, Cardinali aborda como ocorre o controle abstrato e concreto de constitucionalidade no ordenamento brasileiro e também a dinâmica dos mecanismos de participação democrática, como o amicus curiae e a audiência pública. Distanciando-se de uma abordagem manualesca, os aspectos jurídicos do tema são, a todo o tempo, relacionados às especificidades do movimento LGBT e aos casos concretos apreciados pelo STF.

Alguns pontos do capítulo merecem destaque, como a explicação de como as demandas LGBTs passam por um processo de “dupla-tradução” para poderem ser levadas à apreciação do Supremo. Isto porque, primeiro, deve-se transformar a realidade fática em uma demanda jurídica, com toda a exacerbação técnica típica do campo jurídico. E, em segundo lugar, depende-se de que a demanda seja “comprada” por um dos legitimados a propor uma ação de controle concentrado de constitucionalidade. Neste ponto, são trazidas críticas de como o STF construiu uma jurisprudência que limita o acesso de movimentos sociais à sua jurisdição de forma direta, mesmo que tais limitações não decorram do texto constitucional. Assim, as pautas que versam sobre direitos fundamentais da população LGBT são subordinadas a contatos e interesses políticos e deixadas à mercê de estigmas pessoais, que se sobrepõem aos deveres institucionais.

Na direção das críticas delineadas pelo autor neste ponto, houve importante avanço após o lançamento do livro. Ele comenta que, desde o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.291, haveria sinais acerca da possibilidade de revisão da jurisprudência do STF no sentido de não mais restringir o acesso direto de algumas organizações civis. Em consonância, em agosto de 2018, importante vitória ocorreu: o reconhecimento da legitimidade ativa da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) para a proposição de ação de controle concentrado de constitucionalidade perante o STF. A admissão da ação, que versa sobre a situação das pessoas trans no sistema prisional, permitiu acesso direto do movimento LGBT ao STF, sendo significativo avanço tanto para as pautas LGBT quanto para a democratização da jurisdição constitucional em geral.

No quarto capítulo, Cardinali traz a maior (se é que seja possível fazer essa distinção) contribuição de seu trabalho, ao empreender uma detalhada análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal relativa aos direitos LGBTs. Nesse sentido, o autor examina: a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, a ADI nº 4277 e a Resolução 175/2013 do Conselho Nacional de Justiça, referentes à união e ao casamento homoafetivos; o Recurso Extraordinário (RE) nº 846.102, referente à possibilidade de adoção por casais do mesmo gênero; a ADPF nº 291, que buscava o reconhecimento da não recepção do crime de pederastia previsto no Código Penal Militar; o RE nº 845.779, a ADI nº 4275 e o RE nº 670.422, que abarcam demandas específicas da população trans; a ADI nº 5543, cujo objeto é a (in)constitucionalidade da Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde, que impede a doação de sangue por homens que tenham tido relação sexual com outros homens no período anterior de doze meses; e, por fim, o Mandado de Injunção (MI) nº 4733 e a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26, que se ocupam da criminalização da homofobia.

Este capítulo da obra é essencial para qualquer um que queira compreender a forma pela qual o STF tem enfrentado a temática LGBT, desde o mero reconhecimento (ou não) de demandas legais, até o discurso empregado por cada um/a dos/as ministros/as ao abordar a questão. São cerca de 50 páginas dedicadas a uma análise pormenorizada de cada um dos detalhes e de cada um dos votos que envolveram esses casos. Desse modo, o autor destaca não só estratégias jurídicas adotadas pelos requerentes e pelos relatores para facilitar o reconhecimento de determinados direitos, como também ressalta a presença de discursos conservadores e carregados de estereótipos utilizados por alguns dos ministros no tratamento da temática.

Merece especial atenção o alerta feito por Daniel Cardinali, que acabou se concretizando após a finalização da obra. Escrito antes do julgamento pelo STF da ADI nº 4275 e do RE nº 670.422, que somente foram decididos pelo Supremo em fevereiro de 2018, o trabalho já alertava para o posicionamento que poderia ser adotado pelo relator dos casos, ministro Marco Aurélio. Com razão, embora o ministro tenha se posicionado de forma favorável ao pleito, o fez com postura extremamente conservadora e estabelecendo, além da obrigatoriedade de autorização judicial, a necessidade de laudos médicos para que fosse possível a realização de alteração dos registros de nome e sexo de pessoas trans. Desse modo, destaca-se que o julgamento apenas teve um saldo extremamente positivo após a apresentação de votos divergentes, que foram iniciados pelo ministro Luiz Edson Fachin, que se tornou o relator dos casos para a elaboração do acórdão.

Os efeitos “extrajurídicos” são tema do quinto e último capítulo da obra. Na primeira parte, Cardinali busca evidenciar como a judicialização provoca um maior debate público sobre a agenda LGBT. Valendo-se de revisão bibliográfica e também de dados empíricos, o autor traz suas conclusões sobre a hipótese levantada, que sinalizam para um aumento do debate e possível transformação da opinião pública como efeito da judicialização. Já na segunda metade do capítulo, a análise se restringe ao efeito do backlash, principalmente a partir das reações provocadas no Poder Legislativo federal. Assim, o autor analisa os projetos legislativos de maior destaque propostos como forma de oposição aos reconhecimentos empreendidos pelo Judiciário. Enfoca, em especial, a relação entre religião, produção legislativa e direitos LGBTs, explorando a atuação estratégica da chamada “Frente Parlamentar Evangélica” no Congresso Nacional.

Por fim, não há como não se reconhecer que a obra de Daniel Cardinali se apresenta como uma das mais substanciais contribuições no campo dos direitos LGBTs no Brasil, tornando-se uma leitura imprescindível para quaisquer trabalhos conduzidos na temática. O texto, ao mesmo tempo fluido para a leitura e denso de conteúdo, aborda de forma consistente todos os pontos mais essenciais. É, assim, uma obra destinada aos mais variados públicos, tanto aqueles que desejam iniciar seus estudos na área quanto aqueles pesquisadores já experientes na matéria.

Referências bibliográficas

  • FACCHINI, Regina. 2005. Sopa de Letrinhas?: movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90 São Paulo: Garamond Universitária.
  • SCOTUS, Supreme Court of the United States (04/06/2018). “Masterpiece Cakeshop, Ltd., et al. v. Colorado Civil Rights Commission et al.”. Disponível em: <Disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/17pdf/16-111diff2_e1pf.pdf > [Acesso em: 04/09/2018].
    » https://www.supremecourt.gov/opinions/17pdf/16-111diff2_e1pf.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018
  • Data do Fascículo
    Dez 2018
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