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Práticas e saberes sobre corpos e sexualidades

Ao longo dos seus 10 anos de existência, Sexualidade, Saúde e Sociedade - Revista Latino-Americana, contribuiu para a difusão de resultados de investigações provenientes de diversos países, tendo os contextos latino-americanos como ponto de observação e reflexão. O número 33 da revista está composto por nove artigos e uma resenha, além de um dossiê temático intitulado “Parentesco, Família e Diversidade: controvérsias públicas e perspectivas etnográficas”, organizado por Naara Luna e Leandro Oliveira.

Os artigos que, fora o dossiê, compõem o presente número colocam em perspectiva saberes e seus efeitos sobre concepções e práticas a respeito da sexualidade, tais como a medicina/ginecologia, a pedagogia, a psicanálise, o direito e a comunicação. Como se verá, trata-se de artigos que, além de apresentarem reflexões e análises teóricas, têm em comum a crítica construtiva a esses saberes, visando à promoção de uma sociedade mais justa, menos violenta e comprometida com a diversidade sexual e de gênero.

Nesse sentido, o número inicia com o artigo de Heloisa Buarque de Almeida que analisa os efeitos das campanhas sobre assédio sexual no Brasil inicialmente veiculadas pela mídia alternativa. Em perspectiva etnográfica, a autora descreve processos de demanda por reconhecimento social, seguindo a inspiração de Honneth (2003HONNETH, Axel. 2003. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34.) e Fraser (1996FRASER, Nancy. 1996. “From distribution to recognition - Dilemmas of justice in a ‘post-socialist’ age” New Left Review, 212, July/August 1996, pp.68-93.), e aponta que mudanças culturais em torno da percepção do assédio e de outras formas de violência contra a mulher tiveram como efeito não planejado a produção de um novo tipo penal, a “importunação sexual”.

Os dois artigos seguintes, de Virgínia Cano e de Núria Calafell Sala, tratam da ginecologia como campo de saber-poder disciplinador, medicalizante e patologizante, com incidência particular sobre os corpos das mulheres. O trabalho de Cano, embasado na obra de Foucault, apresenta o campo médico da ginecologia como formado por um conjunto de saberes que exercem violência de tipo normativo e ensejam práticas excludentes através da transformação da diversidade de corpos e de experiências em corpos cisgêneros e heterossexuais. O efeito disso, argumenta a autora, é a produção da des/atenção e da precarização de corporalidades e modos de vidas lésbicos, trans, bi e pansexuais, entre outros. Em contraponto com uma ciência que exclui e invisibiliza, Núria Calafell Sala traz experiências editoriais que visam difundir práticas e princípios da “ginecologia natural”. Para a autora, visibilizar e compreender esse movimento é apostar em uma perspectiva descolonizante sobre corpos e experiências que possa produzir efeitos de descentramento do saber médico e de sua autoridade sobre as mulheres.

O tema da ginecologia permanece no artigo seguinte, sobre as parteiras tradicionais na região rural do estado do Amazonas, no Brasil, de autoria de Oliveira, Peralta e Souza. Através de entrevistas, os autores analisam o trabalho das parteiras que atuam em mais de 10 comunidades rurais para oferecer assistência a parturientes e suas famílias, recuperando as perspectivas de Tornquist (2005TORNQUIST, Carmen Susan. 2005. “Parteiras populares: entre o folclore e a escuta”. Gênero. 1º sem. 2005. Vol. 6, n. 1, p. 61-80.) em torno da relação entre a figura das parteiras e especificidades rurais, ribeirinhas, indígenas e de periferias urbanas. A assistência das parteiras, em muitos casos, combina-se com o atendimento medicalizado, o que os autores analisam em termos de “encontros e desencontros” entre saberes. O artigo finaliza pontuando a importância das parteiras na saúde reprodutiva das mulheres das comunidades rurais, enfatizando que essa realidade deve ser conhecida e incorporada na formulação de políticas públicas para as populações da Amazônia.

Em “Limitaciones sociales en los derechos a la sexualidad de las personas con Síndrome de Down», de Luna Zaenz e Jácome Mora, estão no centro da análise normas e saberes especializados, mas também medos e preconceitos como elementos que impactam o exercício da sexualidade e da construção da subjetividade das pessoas com Síndrome de Down. Analisando obras científicas publicadas na Espanha, na Argentina e na Colômbia, as autoras apontam os principais elementos que condicionam ou limitam a satisfação das necessidades afetivas e sexuais de pessoas com Síndrome de Down. Apontam a família e a sociedade como fontes de obstáculos produzidos em função do medo, do estigma e de mitos sobre a sexualidade dessas pessoas.

O tema das emoções e das percepções subjetivas reaparece no texto seguinte, de autoria de Serna Botero, Cárdenas e Zamberlin. Tratando do “fenômeno da objeção de consciência”, argumento apresentado por profissionais da saúde que se recusam a realizar os procedimentos relacionados à saúde sexual e reprodutiva, as autoras demonstram os altos custos que incidem sobre a vida das mulheres quando há recusa dos profissionais envolvidos . Nos três países onde foi realizada a investigação (Argentina, Uruguai e Colômbia), os profissionais da saúde entrevistados reproduzem representações sobre as mulheres e seus corpos como espécies de máquinas de reprodução, segundo as conclusões da pesquisa.

O artigo de Ávila de Garay apresenta críticas e encaminha sugestões interessantes no que se refere à centralidade do gênero no processo psicanalítico. Tomando como base sua experiência clínica como psicanalista no México, a autora propõe que o gênero é constitutivo do próprio processo de formação do sujeito, não apenas daqueles que manifestam algum conflito em relação à sua expressão de gênero, ou à sua orientação sexual, por exemplo. Além das contribuições teóricas, o artigo pretende colaborar com a clínica psicanalítica.

As diferenças entre países com herança colonial, como os latino-americanos, e países que não compartilham tal herança, como os países nórdicos, foram exploradas no trabalho de Motta e Campos sobre as políticas de bem-estar social e seus efeitos sobre o gênero. Demonstram os autores que, a despeito do fortalecimento de políticas públicas em países latino-americanos nas últimas décadas - chamado por eles de “onda rosa” - verificou-se a corroboração de políticas familistas, isto é, que interpretam o cuidado de crianças e idosos como um tema “de família” e, com isso, promovem licenças maternidade e/ou paternidade. O contraponto a esse modelo é representado pela experiência dos países nórdicos, nos quais a tradição social-democrata resultou na oferta de serviços e estruturas públicas e coletivas, como creches, espaços para o cuidado de idosos e outras políticas que estimulam a saída das mulheres para o mercado de trabalho.

O cenário colonial e a expectativa de mudança social reaparecem no último artigo do número, que trata de experiências de violência relacionadas à heteronormatividade em escolas do México. De autoria de Enrique Bautista Rojas, o artigo pode ser compreendido como um convite para a reflexão e a transformação pedagógica, tarefa não só da comunidade escolar, mas de toda a população.

Referencias Bibliográficas

  • FRASER, Nancy. 1996. “From distribution to recognition - Dilemmas of justice in a ‘post-socialist’ age” New Left Review, 212, July/August 1996, pp.68-93.
  • HONNETH, Axel. 2003. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34.
  • TORNQUIST, Carmen Susan. 2005. “Parteiras populares: entre o folclore e a escuta”. Gênero. 1º sem. 2005. Vol. 6, n. 1, p. 61-80.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019
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