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Silêncios em discurso: Família, conflito e micropolítica em narrativas sobre a revelação da homossexualidade

Silencios en el discurso: Familia, conflicto y micropolítica en las narraciones sobre la revelación de la homosexualidad

Silences in discourse: family, conflict and micropolitics in narratives about the revelation of homosexuality

Resumo

Este artigo aborda experiências de revelação da orientação sexual para a família de origem entre gays e lésbicas, baseado em entrevistas e observação participante conduzidas na cidade de Belo Horizonte, entre 2017 e 2018. O trabalho explora sentidos e efeitos do silêncio vivenciado no cotidiano da casa após a revelação da orientação homossexual para a família, considerando como este integra disputas micropolíticas. Argumentamos que as formas plurais pelas quais silêncios podem ser constituídos, percebidos e relatados guardam relação com a constituição de lugares e distâncias sociais dentro da família, situadas no interior de contextos político-culturais mais abrangentes.

Palavras-chave:
homossexualidade; família; silêncio; micropolítica; distância social

Resumen

Este artículo analiza las experiencias de revelar orientación sexual a la familia de origen entre gays y lesbianas, en base a entrevistas y observación participante realizada en la ciudad de Belo Horizonte, entre 2017 y 2018. El artículo explora los significados y los efectos del silencio experimentado en la vida cotidiana de la casa. después de la revelación de la orientación homosexual a la familia, considerando cómo integra las disputas micropolíticas. Argumentamos que las formas plurales en las que se pueden constituir, percibir e informar los silencios están relacionadas con la constitución de lugares y distancias sociales dentro de la familia, situadas en contextos político-culturales más amplios.

Palabras clave:
homosexualidad; familia silencio micropolítica; distancia social

Abstract

This article discusses experiences of coming out to the family of origin between gays and lesbians, based on participant observation and interviews conducted in the city of Belo Horizonte, between 2017 and 2018. The study explores meanings and effects of silence experienced in the everyday life of households after the revelation of homosexual orientation for the family, considering how it takes part in micropolitical disputes. We argue that the plural forms by which silences can be constituted, perceived and narrated are articulated with the constitution of social places and social distances in the family, located within broader political-cultural contexts.

Key words:
homosexuality; family; silence; micropolitics; social distance

Não existe coisa tal como um “espaço vazio” ou um “tempo vazio”. Há sempre algo para ver, algo para ouvir. De fato, por mais que tentermos fazer silêncio, isto é impossível John Cage, 1961CAGE, John. 1961. Silence. Middletown, Connecticut: Wesleyan University Press.: 081 1 Tradução livre do texto original em língua inglesa: “There is no such thing as an empty space or an empty time. There is always something to see, something to hear. In fact, try as we may to make a silence, we cannot”.

No final do ano de 2018, eclodiu na esfera pública uma controvérsia - pontual, em meio a outras de teor equivalente - tematizando família, sexualidade e políticas públicas. Em manifestações junto à mídia, o deputado federal Luiz Henrique Mandetta (recentemente indicado para ocupar, a partir de 2019, o cargo de ministro da Saúde), expressou reticência quanto ao modo como políticas de prevenção do HIV/Aids foram conduzidas em gestões anteriores - notadamente, quanto à implementação de campanhas de prevenção no ambiente escolar. Para Mandetta, “sexualidade é uma coisa para tratar dentro de casa (...) exige diálogo entre as gerações, dentro das famílias” (Ciscati, 2018CISCATI, Rafael. 2018. “Desafio para novo governo, políticas de combate ao HIV preocupam especialistas”. O Globo, 25.11.2018. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo. com/brasil/desafio-para-novo-governo-politicas-de-combate-ao-hiv-preocupam-especialistas-23258763 [Acesso em 10/03/2019].
https://oglobo.globo. com/brasil/desafio...
), e as campanhas de prevenção ao HIV precisariam ser repensadas para não “ofender as famílias”, que poderiam perceber estas políticas públicas como “invasão do Estado no seu ambiente familiar” (Cancian, 2018CANCIAN, Natália. 2018. “Política de prevenção a HIV não pode ofender as famílias, afirma novo ministro”. Folha de São Paulo, 31.12.2018. Disponível em: Disponível em: https:// www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/12/politica-de-prevencao-a-hiv-nao-pode-ofender-as-familias-afirma-novo-ministro.shtml [Acesso em 10/03/2019].
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). Esta polêmica nos leva a perguntar se as “famílias” seriam, de fato, o contexto mais adequado para discussão sistemática destes temas; a questionar em que termos tal discussão poderia eventualmente vir a ser conduzida; e, ainda, se as populações-alvo (que parecem, presumível e invariavelmente, se tratar sempre de jovens sob a tutela de pessoas de geração anterior) estariam especialmente receptivas a ter sua vida sexual exposta ou devassada junto às suas famílias de origem.

Seria a sexualidade um assunto privado, a ser silenciado na esfera pública e debatido preferencialmente no espaço íntimo da casa e das “famílias”? As famílias estariam predispostas a discutir estes assuntos? Em que termos? Quando se trata da sexualidade de gays e lésbicas, este não parece ser exatamente o caso - e é deste tópico que trataremos nas páginas que se seguem. Sem querer, de modo algum, endossar aqui a ideia de que o debate sobre sexualidade porventura devesse ser deslocado da arena pública para espaços mais privados, gostaríamos de tomar esta polêmica como um mote inicial para uma reflexão sobre “silêncios” na família e na esfera doméstica. Uma agenda estatal deste tipo parece estar orientada por uma perspectiva sobre o que a família é (ou deveria ser) que não corresponde a convenções culturais e acordos mais ou menos tácitos vigentes no cotidiano familiar em diversos contextos. É destas convenções culturais e experiências cotidianas que desejamos tratar.

Este artigo aborda narrativas de homossexuais sobre a revelação da orientação sexual para a família de origem, motivado por um interesse, partilhado pelos autores, em explicitar e explorar conexões entre família, Estado, políticas sexuais e políticas da vida cotidiana.2 2 Somos gratos, além das generosas contribuições oferecidas pelos pareceristas deste artigo, à interlocução com Horácio Sívori, Marcelo Natividade, Alessandra Rinaldi, Naara Luna, Sabrina Finamori e Érica Renata de Souza, com os quais tivemos a oportunidade, em distintas ocasiões, de discutir aspectos e versões preliminares da análise aqui desenvolvida. Os dados apresentados fazem parte de pesquisa mais abrangente, baseada em observação participante e entrevistas em profundidade conduzidas com pessoas LGBT em Belo Horizonte, entre os anos de 2017 e 2018, acessados a partir de sua atuação no ativismo LGBT ou nas relações de sociabilidade com integrantes do movimento LGBT.3 3 O projeto, intitulado “Construção da Pessoa, Família e Sexualidades: estudo comparativo sobre convenções culturais, individuação e mudança”, envolveu a realização de etnografia e entrevistas em profundidade com 14 interlocutores, com perfis bastante plurais em termos de classe social, gênero, cor/raça e geração, ordenados comparativamente em dois conjuntos: sujeitos mais atuantes no ativismo LGBT, e sujeitos que (embora acessados a partir de redes de sociabilidade de participantes de movimentos sociais) têm menor engajamento no ativismo político. A pesquisa foi subsidiada com recursos do Edital ADRC/PRPq/UFMG 01/2017, contando com a participação (como bolsistas de Iniciação Científica, em distintas etapas da pesquisa) de Ítalo Vinícius Gonçalves, Thiago Camargo Barreto e Talles Carvalho Lima.

As entrevistas foram inspiradas na técnica de “história de família”, uma variante dos procedimentos convencionais de produção de histórias de vida em que os interlocutores são incentivados a produzir relatos sobre si que sejam altercentrados, direcionados para a identificação de situações sociais e experiências interpessoais vivenciadas no horizonte de parentesco percebido pelos sujeitos (Cabral & Lima, 2005CABRAL, João de Pina & LIMA, Antonia Pedrosa de. 2005. “Como fazer uma história de família: um exercício de contextualização social”. Etnográfica. Vol. IX (2), p. 355-388.). A análise se concentra em um tópico específico: narrativas sobre “silêncios” que se sucedem à publicização da orientação homossexual para a família, privilegiando depoimentos concedidos por quatro interlocutores (três gays e uma lésbica), selecionados por evocarem este tema de maneira mais expressiva. Acerca deste pequeno conjunto de depoimentos, cumpre assinalar que, embora os caminhos pessoais que conduzem ao engajamento político e/ou ao ativismo sejam muito plurais (e não estejam diretamente sob exame aqui), estes quatros sujeitos expressam em graus e maneiras variáveis algum tipo de aproximação com o horizonte de valores e a cultura política de defesa dos direitos LGBT.

O silêncio aparece, nestas narrativas, como um símbolo particularmente adequado para a assinalação de distâncias sociais e micro-hierarquias sentidas por pessoas LGBT na relação com seus familiares. A noção de “distância social” (Park, 1970PARK, Robert E. 1970 [1924]. “Distância Social”. In: PIERSON, Donald. Estudos de Organização Social: leituras de sociologia e antropologia social. Tomo II. São Paulo: Livraria Martins Editores S/A. p. 439-444. [1924]) é uma metáfora que tentava originalmente circunscrever variações no grau de intimidade entre pessoas em conexão com sua posição na estrutura social. Esta noção é retomada pela socióloga Candace Clark (1997CLARK, Candace. 1997. “Simpathy, Microhierarchy and Micropolitics”. In: Misery and company: sympathy in everyday life. Chicago/London: The University of Chicago Press.), no bojo de uma análise sobre micropolíticas e micro-hierarquias em situações de interação. Em seu estudo sobre trocas emocionais envolvendo a expressão de sympathy (simpatia/ compaixão), Clark operacionaliza uma distinção entre status social e lugar social: hierarquias de status são posições mais estáveis situadas em um nível macro da estrutura social, enquanto os “lugares” que as pessoas ocupam em situações sociais estão ordenados em micro-hierarquias dinâmicas, nas quais as distâncias sociais estão sujeitas a oscilações sutis e velozes.

Neste artigo, argumentamos que tanto o silêncio sobre a homossexualidade quanto os discursos que o cercam, visibilizam e inscrevem podem atuar micropoliticamente, sustentando ou desestabilizando lugares sociais. Micropolítica, desta perspectiva, é “[...] a conduta orientada para obter, manter e eventualmente conceder poder interpessoal através de atividades como reivindicar lugares, negociar e disputar posições” (Clark, 1997CLARK, Candace. 1997. “Simpathy, Microhierarchy and Micropolitics”. In: Misery and company: sympathy in everyday life. Chicago/London: The University of Chicago Press.: 233), que ganha espaço, notadamente, em contextos democráticos de valorização ideal da igualdade, em que a conexão entre status e lugares sociais estaria mais fragilizada. Partimos da premissa de que estas micropolíticas situadas na família ocorrem no interior de um cenário delineado por processos políticos e culturais mais amplos, que é marcado pela visibilidade de minorias sexuais e por contestações a essa visibilidade (Oliveira, 2011OLIVEIRA, Leandro de. 2011. “Diversidade sexual, gênero e família: notas sobre o problema da superioridade moral da heterossexualidade”. In: PASSAMANI, Guilherme. (Contra)Pontos: ensaios de gênero, sexualidade e diversidade sexual. Campo Grande: Editora UFMS., 2013). Ainda que este cenário não seja diretamente analisado aqui, ele permanece como um pano de fundo para as narrativas e experiências que serão apresentadas adiante.

Persistente e elusivo: o silêncio nos estudos sobre sexualidade

Tornou-se quase um lugar comum considerar a obra de Michel Foucault uma espécie de marco ou referência fundadora no campo dos estudos contemporâneos sobre sexualidade. Ironicamente, é possível que a enxurrada de comentários (no interior da qual este artigo poderia, inclusive, vir a ser incluído) que sucederam à publicação de A Vontade de Saber tenha integrado as ondas ruidosas de burburinho sobre o sexo cuja genealogia Foucault tentou de algum modo mapear. Releituras de Foucault no campo das Ciências Sociais têm sido, invariavelmente, bastante ciosas em enfatizar o tema da “explosão discursiva” sobre o sexo (Foucault, 1988 [1976]: 21), relegando a segundo plano o lugar peculiar que o silêncio ocupa na argumentação deste autor. Explorar a fundo este tópico excederia, decerto, os limites deste artigo; gostaríamos apenas de lembrar que Foucault dedicou alguma consideração ao tema espinhoso dos “silêncios” na formulação de sua crítica à “hipótese repressiva”. Incitando ou ressaltando discursos, o mutismo pode integrar dispositivos de poder em uma sociedade que “fala prolixamente de seu próprio silêncio”; em vez de assumir que certos temas simplesmente instituiriam uma suspensão da fala, é preciso investigar os distintos modos de discrição e “as diferentes maneiras de não dizer” que são impostas e/ou emergem aqui e acolá (Foucault, 1988: 30, 14).

Em texto posterior (entrevista em língua inglesa concedida em 1982 no Canadá e publicada no ano seguinte, na qual Foucault é interpelado sobre o trecho supracitado de sua obra), o autor lamenta a renúncia ao silêncio que se instaurou nas sociedades ocidentais, e observa que o silêncio mútuo pode ser considerado um modo de relação com o outro, talvez até “mais interessante” que a “obrigação de falar” (Foucault, 2014FOUCAULT, Michel. 2014 [1983]. “Uma entrevista de Michel Foucault por Stephen Riggins”. In: MOTTA, Manuel Barros da (org). Ditos e escritos: Genealogia da ética, subjetividade e sexualidade. Vol. IX. Rio de Janeiro: Forense Universitária. p. 192-206. [1983]: 192-193). Se é verdade que o silêncio pode integrar aquela “vontade de verdade” que galvanizou as sociedades ocidentais modernas (por exemplo, na escuta alerta e especializada de terapeutas e de pesquisadores), é razoável assumir que ele também pode expressar modos de conexão entre pessoas, passíveis de investigação e análise.

Embora o silêncio possa ser considerado um tema pouco discutido nas Ciências Sociais, é também um assunto peculiarmente antigo e persistente.4 4 Já na primeira década do século XX, Simmel (1950), em seu ensaio sobre as “sociedades secretas”, sugeriu que a sociação humana, embora diretamente dependente da fala, é regulada por uma capacidade historicamente cultivada de manutenção do silêncio: “Se a sociação humana é condicionada pela capacidade de falar, ela é também modelada pela capacidade de permanecer em silêncio, ainda que isto se torne evidente apenas em ocasiões específicas. Quando pensamentos, sensações e impulsos são jorrados através da fala sem inibição, eles produzem uma desordem caótica em vez de coordenação orgânica. Raramente percebemos quão necessária é esta capacidade para o silêncio no desenvolvimento de qualquer interação regulada; em vez disto, a naturalizamos. A despeito disto, se trata indubitavelmente de um processo histórico [...]. Este processo de desenvolvimento se inicia com os desajeitados comandos de silêncio acima mencionados. Ele culmina na urbanidade da alta cultura societária, que inclui entre seus bens mais nobres o sentimento seguro de saber onde uma pessoa deve falar, e onde ela deve permanecer em silêncio” (Simmel, 1950: 349, tradução livre do original). Da perspectiva da Antropologia, disciplina em especial preocupada com os sentidos que sujeitos social e culturalmente situados atribuem às suas próprias experiências, o silêncio pode se revelar um objeto de análise um tanto quanto elusivo, paradoxal ou no mínimo desafiador. Como identificar sua ocorrência e seus sentidos?5 5 Bispo (2016) e Oliveira (2013: 83-96) discutiram estes problemas metodológicos a partir do caso, particularmente sensível, de experiências de sofrimento sobre as quais os interlocutores da pesquisa silenciam, ou das quais sequer se lembram. A perspectiva adotada neste trabalho, embora convergente com a destes estudos, opera com uma abordagem ligeiramente distinta, focalizando o modo como situações de “silêncio” são percebidas e narradas pelos interlocutores, integradas às suas histórias de vida. Partindo da releitura de Foucault acima esboçada, uma precaução teórico-metodológica se impõe. É preciso evitar perspectivas essencialistas sobre o silêncio e/ou sobre aquilo que ele pode eventualmente estar silenciando - leia-se, evitar tomá-lo como mera expressão de interditos e de forças ditas repressivas. A própria epígrafe que escolhemos para este artigo (embora assinada por um teórico do campo da musicologia, em uma reflexão sobre som e processos de criação musical) já nos alerta para o fato de que o silêncio não é um vácuo: ele não apenas exclui ou ressalta conteúdos que lhe são externos, mas comporta conteúdos plurais que se oferecem à percepção.

É preciso considerar, ainda, que o meio de que dispomos para analisar o silêncio é o discurso, que poderia à primeira vista lhe parecer fundamentalmente hostil, mas que guarda com ele uma relação constitutiva. É a expectativa de que haja discurso - aqui e ali cultivada por parte de nossos interlocutores, mas também, decerto, por parte do pesquisador - que torna o silêncio significativo, perceptível, passível de análise e/ou comentário. Ele se dá a conhecer mais facilmente quando, tal como o proverbial “elefante na sala de estar”, ele destoa; não seria possível compreendê-lo sem levar em consideração a malha de expectativas e de enunciações que são mobilizadas no trabalho social de torná-lo visível e narrável. Esta dupla precaução (evitar incorrer em um olhar essencialista sobre o silêncio como se ele fosse um fato puro e neutro, e reconhecer que silêncios são sentidos e fabricados em conexão com certas malhas discursivas) é de particular relevância em projetos comparativos. Unidade e contrastes entre contextos são, em algum grau, elicitados por um confronto entre perspectivas, e não meramente dados que o antecedem - isto vale, em particular, para a unidade subjacente aos “silêncios” que encontramos evocados, de maneira residual mas estranhamente persistente, em diversos estudos no campo das Ciências Sociais.

Ao menos em parte, o silêncio poderia ser tomado como uma espécie de símbolo, um sinal ou recurso expressivo investido de sentido por expectativas histórica e culturalmente construídas que incidem sobre a comunicação interpessoal (Courtine & Haroche, 2007COURTINE, Jean-Jacque & HAROCHE, Claudine. 2007 [1988]. Histoire du visage: exprimer et taire ses emotions, du XVI siècle au début du XIX siècle. Paris: Payot & Rivages. ). Apresentá-lo de modo muito estrito sob esta ótica, contudo, incorre no risco de reduzir o silêncio àquilo que ele suposta ou efetivamente representa - relegando a um segundo plano aquilo que, no cotidiano das pessoas, ele faz. A vida cotidiana é repleta de pequenos silêncios que expressam acordos tácitos sobre situações sociais, que podem ser mais ou menos naturalizados e eventualmente necessários para preservar uma “definição da situação”, no sentido atribuído por Thomas (1923THOMAS, W.I. 1923. The Unadjusted Girl: with cases and standpoint for behavior analysis. Boston: Little, Brown and company.: 42) a esta expressão. Durante o desempenho de atividades convencionais em situações claramente definidas, as ações são “autoexplicativas” (o sentido das ações, mesmo quando estas envolvem comunicação oral, provém de pressupostos, e não gera perguntas); situações “problemáticas” ou inesperadas, por outro lado, conduzem a questionamentos que podem eventualmente vir a ser verbalizados (Strauss, 1999STRAUSS, Anselm L. 1999. Espelhos e Máscaras: a busca da identidade. São Paulo: Edusp.).

Acrescente-se a isto que, como sugeriu Goffman (2013GOFFMAN, Erving. 2013. “Exclamações Reativas”. In: COELHO, Maria Cláudia (org). Estudos sobre Interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Eduerj.: 164) em seu ensaio sobre exclamações reativas, em nossas sociedades o silêncio em certas situações sociais (em especial, mas não apenas, na interação entre desconhecidos) pode ser considerado o estado normal das coisas, expressão de deferência pelo outro; a conversa, em contraste, é algo que requer permissão especial. O fato de que naturalizamos a manutenção do silêncio em certas situações sociais não o torna menos relevante - nem menos artificial - que o discurso. Esta breve revisão bibliográfica sugere que o estranhamento ante o silêncio, que nos permite percebê-lo e nomeá-lo, pode ser tomado como a contraface de certas expectativas de discurso. E tais expectativas, por sua vez, tomam parte nas condições de possibilidade da própria pesquisa acadêmica que se dedica a colocar em evidência tais e quais formas de silêncio.

No campo da Antropologia da Sexualidade, a dissertação de Guimarães (2004GUIMARÃES, Carmem Dora. 2004. O Homossexual Visto por Entendidos. Rio de Janeiro: Garamond. [1977]), fortemente impactada pela obra de Foucault (1988FOUCAULT, Michel. 1988 [1976]. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal. [1976]), abordou o “silêncio” sobre a homossexualidade como um “mito” ou “ideologia”. Este mito do silêncio encobriria não somente a proliferação de discursos sobre a sexualidade, mas formas de comunicação não verbal presentes nas experiências sexuais dos jovens - usos do corpo estruturados como uma linguagem e dedicados à marcação de diferenciações de gênero (Guimarães, 2004 [1977]: 46). Trabalhos posteriores sugeriram que, mais que um “mito do silêncio” envolvendo a homossexualidade, pode haver malhas discursivas dedicadas a um silenciamento ativo do outro - isto aparece, com particular clareza, na análise da injúria como um ato de fala performativo (Eribon, 2008ERIBON, Didier. 2008. Reflexões sobre a Questão Gay. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.). Eribon argumentou, de maneira bastante eloquente, que a marca primeira da experiência vivida de gays e lésbicas é a posição de objeto do discurso alheio deflagrada nas situações de injúria, que se manifesta posteriormente no dilema (com o qual pessoas heterossexuais nunca são confrontadas) de ter que decidir entre enunciar ou se calar sobre aquilo que elas são. Estas mesmas pessoas que se veem objeto da interpelação de terceiros podem, depois, se tornar sujeitos políticos bastante ruidosos. A reinvindicação do direito de falar sobre si, presente no discurso de ativistas, coloca em evidência um silenciamento de minorias sexuais que a injúria promove.

A historiadora canadense Heather Murray (2010MURRAY, Heather. 2010. “Better blatant than latent”. In: MURRAY, Heather. Not in this family: gays and the meanings of kinship in postwar North América. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.), abordando conflitos intergeracionais e mudanças em um ethos da intimidade nas camadas médias norte-americanas, sinaliza para o modo como, ao longo do século XX, certas transformações nas sensibilidades coletivas favoreceram a atribuição de novos sentidos para o silêncio sobre a homossexualidade nas famílias. No período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial, era possível compatibilizar o pertencimento à família de origem e a adesão a uma identidade “gay” através da premissa, mais ou menos partilhada entre gerações mais jovens e mais velhas, de que a vida sexual de uma pessoa era um assunto íntimo, que devia ser tratado com discrição pelas famílias, e que não precisava ser abertamente discutido em casa. Nos anos 19601970, este estilo de sensibilidade passa a ser tensionado pelos códigos culturais de politização da sexualidade, que incluíam a prescrição do coming out como um ato político. Na geração anterior, não se cultivava uma expectativa de comunicação íntima com os pais; a maior ou menor aceitação da homossexualidade pela família de origem não era um foco de ansiedade para jovens homossexuais, dado que tais assuntos não deviam sequer ser discutidos.

A geração de ativistas que emerge nos anos 1960-1970, por outro lado, conjugava a visão de que seus pais eram profundamente intolerantes ante a homossexualidade com o anseio de que esta intolerância fosse por eles superada, em nome da construção de uma intimidade dentro das famílias: cada vez mais, os filhos sentiam que o que eles “deviam” aos pais era a “revelação” e não “decoro”. O silêncio e a discrição eram sentidos como uma reticência forçada, imposta e coercitiva - enquanto para seus pais, por outro lado, a exigência de exposição da intimidade na família é que podia ser sentida como uma forma de coerção (Murray, 2010MURRAY, Heather. 2010. “Better blatant than latent”. In: MURRAY, Heather. Not in this family: gays and the meanings of kinship in postwar North América. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.: 41-77). Esta análise histórica documentou uma mudança nos idiomas de conectividade na família, em que uma linguagem de construção de laços por meio da revelação autobiográfica deslocou o lugar de convenções anteriores, pelas quais o desvio sexual não era necessariamente ocultado dos familiares, mas expresso através de alusões, insinuações e metáforas.6 6 Embora a noção de “conectividade” não seja utilizada pela própria Heather Murray, acreditamos que a narrativa histórica construída por esta autora contribua para uma reflexão comparativa sobre idiomas de conectividade em distintos contextos. O conceito de conectividade (relatedness) vem sendo acionado, desde o início do século XXI (em trabalhos antropológicos preocupados com as limitações e o potencial etnocentrismo da noção euro-americana de “parentesco”) como uma categoria que expressa atenção e abertura ao modo como idiomas culturais locais concebem o que é “estar em relação” (Carsten, 2000). A rentabilidade deste tipo de perspectiva consiste em propiciar algum controle, no âmbito de estudos comparativos, sobre a projeção de concepções do universo do pesquisador acerca da natureza e/ou o modo de operação de tais e quais “relações”. Esta mudança político-cultural tornou a naturalização dos silêncios no cotidiano familiar potencialmente problemática; estes ficam suscetíveis a um enquadramento como ausência de confissão e/ou diálogo em um contexto no qual a enunciação de um discurso sobre si é cada vez mais imperativa.

Trabalhos etnográficos que discutiram experiências de gays e lésbicas focalizando o cotidiano de grupos domésticos documentaram uma persistência ao longo da 2ª metade do século XX desses silêncios naturalizados, eventualmente tensionados por expectativas de discurso. O antropólogo norte-americano Joseph Carrier (1995), em pesquisa iniciada em 1968 com homens homossexuais no México (envolvendo a construção em campo de conexões pessoais que se estenderam ao longo de mais de duas décadas), sinalizou brevemente para este tema ao tratar das histórias de vida de alguns dentre seus interlocutores. Um destes, José, saíra de casa por decisão pessoal aos 17 anos, logo após ter sua homossexualidade visibilizada através de fofocas na rede de vizinhança que chegaram aos ouvidos de seus pais por intermédio de seus irmãos, ensejando reações de perturbação por parte de sua mãe e de fúria por parte de seu pai. Algum tempo depois, sabendo através de amigos que estes ânimos exaltados tinham arrefecido, decide voltar a morar com a família de origem, na expectativa de que seria “aceito”. Carrier nota que, após algum tempo, a relação de José com a mãe e os seis irmãos mais novos retornou ao normal, mas durante anos a fio o pai e um irmão mais velho não trocaram uma única palavra com ele - e na casa, seja com quem fosse, sua homossexualidade “jamais era mencionada” (Carrier, 1995: 132).

Pollak (1990POLLAK, Michael. 1990. Os homossexuais e a AIDS: sociologia de uma epidemia. São Paulo: Estação Liberdade.), embora pesquisando em um contexto e período histórico-cultural bastante distintos, registrou um tipo de experiência que poderia ser comparada a esta primeira. Em pesquisa conduzida com homossexuais na França no período de eclosão da epidemia de HIV, Pollak notou que “mesmo nas famílias que aceitam a homossexualidade do filho ou do irmão, um contrato tácito relega esse tema de conversa ao plano do não dito”; a tensão entre formas convencionais de silêncio e a prescrição cultural de confessar/justificar a homossexualidade gera um ônus sobre os sujeitos que se veem obrigados a gerir uma identidade “indizível” (1990: 26-27). Em que pesem as nítidas diferenças que repontam ao se cotejar estes dois registros etnográficos - por exemplo, a ausência no texto de Carrier de menções a um anseio pela revelação da homossexualidade entre seus interlocutores, e o fato de que as experiências de José precederem a emergência da epidemia de HIV/Aids, que ocupa lugar central na análise de Pollak - é possível, retrospectivamente, identificar em ambos os casos a alusão a certos usos sociais do silêncio no processo mesmo de sustentação e manutenção das relações familiares.

Por outro lado, acordos tácitos que retiram a homossexualidade de um familiar dos tópicos de conversa corriqueira na casa ou na família não devem ser confundidos com a conduta mais “literal” de silêncio, a recusa ou a suspensão de toda e qualquer conversação, evocada de modo bastante explícito na etnografia de Carrier. Oliveira (2019OLIVEIRA, Leandro de. 2019. “A ‘vergonha’ como uma ‘ofensa’: homossexualidade feminina, família e micropolíticas da emoção”. Horizontes Antropológicos. Vol. 25, p. 141-171, ago. ), analisando a história de vida de uma jovem lésbica, aborda o mutismo dos pais - que sucede à revelação da orientação sexual pela filha que com eles residia - como uma reação provisória ao súbito rompimento da definição da situação anteriormente vigente no espaço doméstico. O silêncio aparece aqui como um “ritual de evitação” que (tal como os rituais de apresentação de si) expressa um mínimo de deferência necessário à manutenção da conexão com o outro (Goffman, 2011GOFFMAN, Erving. 2011. “A natureza da deferência e do porte”. In: GOFFMAN, Erving. Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face. Rio de Janeiro: Vozes.). Paralelamente, em alguns dos depoimentos de jovens gays apresentados por Oliveira, a recusa ao intercâmbio linguístico simboliza uma recusa ao reconhecimento de certas relações - como no caso do avô que “nunca destratou” o companheiro do neto, mas também “não conversa [com ele] [...] só dá ‘oi’, ‘boa tarde’ e sai de perto” (Oliveira, 2013: 140). Em ambos os casos, a expectativa de que haja algum tipo de diálogo possibilita uma associação entre silêncio e “preconceito”, que é verbalizada nestes termos pelos próprios sujeitos da pesquisa, e que confere a eles margem para a colocação do silêncio em discurso, no interior de uma narrativa em tom de queixa.

Natividade e Oliveira (2013OLIVEIRA, Leandro de. 2013. Os Sentidos da Aceitação: família e orientação sexual no Brasil contemporâneo. Tese de Doutorado, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.), amparados em etnografia com pessoas LGBT integrantes de comunidades evangélicas inclusivas, chamaram a atenção para a ambivalência da qual o suposto silêncio coletivo sobre a homossexualidade pode ser investido em contextos locais. Um jovem gay evangélico que adere à discrição enquanto um projeto pessoal e considera que “nunca foi vítima de preconceito” menciona o silêncio sobre a homossexualidade em sua comunidade de origem como sinal de que, se esta era um “pecado”, não era grave a ponto de precisar ser mencionado. Há, no mesmo estudo, um depoimento de uma mulher lésbica sobre como - embora ela nunca tenha sido diretamente interpelada sobre sua orientação sexual na igreja tradicional em que foi socializada - ela se sentia alvo de “olhares”, “fofocas” e insinuações (Natividade & Oliveira, 2013: 180NATIVIDADE, Marcelo & OLIVEIRA, Leandro. 2013. As Novas Guerras Sexuais: diferença, poder religiosos e identidade LGBT no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond .). O trabalho mostra como a percepção do silêncio é impactada pelo lugar que o narrador ocupa no contexto da narrativa, podendo variar de sinal de constrangimentos coletivos a indicador de espaço para exercício da agência.

De fato, tais estudos parecem sugerir que, se, por um lado, a homossexualidade incita discursos, por outro, as pessoas homossexuais são um sujeito-objeto de discurso que guarda uma relação política muito especial com certas modalidades de silêncio. Ora elas aparecem como aquilo de que não se deveria sequer falar, ora como algo sobre o qual se fala, mas que não deveria falar sobre si (exceto, talvez, em certas tecnologias do self dedicadas à destruição do objeto da enunciação, como nas terapias de conversão/reorientação sexual), ora são sujeitos cuja fala sobre si é condicionada enquanto réplica à interpelação heterossexual. Trabalhos mais recentes - notadamente Murray (2010MURRAY, Heather. 2010. “Better blatant than latent”. In: MURRAY, Heather. Not in this family: gays and the meanings of kinship in postwar North América. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.), Natividade e Oliveira (2013OLIVEIRA, Leandro de. 2013. Os Sentidos da Aceitação: família e orientação sexual no Brasil contemporâneo. Tese de Doutorado, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.) e Oliveira (2013) - sinalizaram, ainda que de maneira mais ou menos incidental, que o silêncio não necessariamente simboliza constrangimentos, e pode comparecer em formas locais de conectividade e de exercício de agência. A reflexão que desenvolveremos nas próximas páginas está atenta não somente aos sentidos, mas também a esta eficácia produtiva dos silêncios que podem se suceder à revelação da orientação homossexual para a família, sinalizando algumas linhas de interpretação possível atinentes à sua conexão com processos político-culturais mais abrangentes.

O silêncio, vivido e narrado: quatro histórias

Afonso,7 7 Visando resguardar a privacidade de nossos interlocutores, todos os nomes citados foram alterados. 54 anos, é um homem gay, branco, pertencente a segmentos de camadas médias, com ensino superior completo na área de artes. Ele foi acessado a partir de observação participante no Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais (Cellos/MG), durante as reuniões para a organização da Parada do Orgulho LGBT da cidade em 2017, cuja coordenação foi encabeçada por este coletivo. Sua aproximação com o movimento social se dera há pouco mais de cinco anos, quando voltou a morar em sua cidade natal, Belo Horizonte, após passar um período morando em São Paulo.

Afonso relata que, junto à sua família, o “silêncio” sobre sua sexualidade foi uma constante em sua vida: ao menos diretamente, “nunca se falou sobre esse assunto”. Quando tinha cerca de 17 anos - época em que seus familiares “estranhavam” o fato de ele nunca ter apresentado uma namorada à família - um escândalo envolvendo outros parentes deu margem a comentários percebidos por ele como um tipo de insinuação sobre sua sexualidade. O cerne deste escândalo/fofoca eram as relações sexuais que o marido de uma prima de seu pai teria, supostamente, estabelecido com um vizinho. Pouco tempo depois, à mesa da cozinha e durante um café, a mãe de Afonso o interpelou e, numa alusão ao episódio envolvendo os parentes, afirmou preferir que ele “fosse o que fosse, ao invés de se casar e fazer alguém sofrer” - um comentário que o fez “engasgar com o pão” e mudar de assunto.

Ele já havia percebido, em ocasiões anteriores, certos comentários de seus familiares como alusões à sua orientação sexual. Afonso, contudo, relata que ele próprio não tinha muita certeza sobre sua orientação sexual, e por isto fingia não compreender o sentido de tais insinuações. Alguns anos depois, no período em que residiu em São Paulo, se envolveu em um namoro, decidindo então contar sobre sua sexualidade para os familiares e apresentar o namorado à família. Considera que eles reagiram com bastante tranquilidade, talvez porque ele estivesse simplesmente confirmando expectativas prévias que eram de tempos em tempos externadas por meio de insinuações e comentários velados. Embora tenha sido “aceito” desta maneira, nunca se mencionava sua sexualidade dentro de casa, ou muito menos se falava sobre seu namorado ou sobre a relação que mantinham. Nas raras ocasiões em que seus familiares comentavam algo a esse respeito, o namorado era referido como “aquele seu amigo”. Este silêncio no interior do grupo doméstico é percebido por Afonso como sinal de que sua orientação sexual não era considerada um problema por eles: “Nunca se falou sobre isso em casa, porque não era uma questão para minha família [...]”. Paralelamente, Afonso considerava que estes assuntos eram privados, pessoais e íntimos, e cultivava uma atitude de reserva como um projeto pessoal: “não queria comentar nada sobre minhas relações com ninguém [...] isso fica no privado”.

Essas experiências de silêncio e aceitação, vivenciadas em situações cotidianas de interação, estão situadas contra o pano de fundo de cenários político-culturais mais abrangentes. A narrativa de Afonso rememora experiências vividas cerca de 30 a 35 anos antes, em meados dos anos 1980, período em que os discursos sobre a epidemia de HIV/Aids promoviam uma associação direta desta com a homossexualidade masculina (uma década antes da emergência das Paradas do Orgulho, quando a visibilidade massiva passou cada vez mais a ser adotada como estratégia política pelos movimentos de minorias sexuais). Afonso tem uma releitura das próprias experiências como geracionalmente marcadas, matizadas pelo contexto histórico: “hoje é um pouco diferente, fala-se mais sobre o sexo em todo lugar”, mencionando o modo como a homossexualidade aparece em séries e novelas para ilustrar essa afirmativa. Ao mesmo tempo, lembra como o silêncio em relação aos seus familiares o dispensava de ter que discutir questões que considerava muito pessoais, como crises e decepções amorosas, ou o próprio espectro dos primeiros anos da epidemia de HIV/Aids, em um período em que presenciou o adoecimento e a morte de muitos de seus amigos, e em que preferiu durante muitos anos permanecer solteiro por receio de exposição ao vírus.

Experiências narradas com tom bastante distinto emergem do depoimento de Miguel, um jovem gay de 22 anos, negro, pertencente a segmentos de camadas populares, com ensino superior em andamento na área de Ciências Sociais Aplicadas. Inicialmente, Miguel morava com sua mãe e seu pai, indo residir com um casal de tios ao iniciar a graduação devido à maior proximidade entre a casa destes últimos e o bairro em que estava localizada sua faculdade. Pertencente a uma família evangélica pentecostal e intensamente engajada em atividades na congregação, aos 17 anos assumiu a homossexualidade para a mãe.

Fomos para o quarto dela, e falei que estava me sentindo triste, infeliz. Ela perguntou a razão, mas eu não conseguia dizer. Eu sabia o que queria falar, mas as palavras não saíam. Num dado momento, eu disse: mãe, acho que sou gay. Eu não tinha forças - apesar de ter certeza, não conseguia dizer para ela que eu era “gay”. Então disse isso, “acho que sou gay”. Ela perguntou quem [me] disse isso, pois achou que era algo que alguém estava me falando, dizendo isso de mim. Falei que ninguém tinha dito isso, que era eu quem achava isso. Ela falou que era uma fase, que eu me distanciei da igreja e que ficava enchendo minha cabeça de conteúdos que me mostravam isso e que por isso estava achando que eu pertencia a esse mundo [dos gays]. [...]. Depois dessa conversa que demorou bastante tempo ficamos sem nos falar por muito tempo, e nunca mais tocamos nesse assunto. Por muito tempo mesmo, por meses [...]. Entre nós, em casa, jamais tocamos no assunto.

Após um momento inicial de choro e subsequente conversa, ela recomenda em tom imperativo que ele converse com o pastor de sua igreja, o qual por sua vez o encaminha para uma espécie de terapia religiosa voltada à “cura” da homossexualidade: “eles [na igreja] tentaram me convencer que era apenas uma fase, só um momento, e que, se eu voltasse para o caminho certo, isso ia mudar. Mas não mudou”. A homossexualidade, no discurso de lideranças desta comunidade religiosa, aparecia como uma porta de entrada para outros “males” que ela supostamente deflagraria: nas palavras de Miguel, “o pastor falava era que, se você é homossexual, você começa a usar droga e pega AIDS”. Nomeá-la como uma “fase” parece ser um ato performativo, almejando constituí-la enquanto estado transitório - nos termos da formulação clássica de Douglas (1977DOUGLAS, Mary. 1977 [1966]. Pureza e perigo. São Paulo: Ed. Perspectiva. [1966]), um trabalho ritual de tentar fixar os poderes da desordem em uma zona de passagem, provisória e marginal, de modo a regular sua força e a evitar a dissolução de um sistema simbólico. Miguel relata que, para evitar maiores atritos com a mãe, consentiu em procurar este aconselhamento religioso.

Nessas atividades na igreja, das quais inicialmente participara a contragosto, estabeleceu contato com outros jovens frequentadores que também eram gays. Após algum tempo, passou a encarar a igreja como um espaço de sociabilidade onde podia encontrar outros homossexuais, e a extrair maior satisfação destas atividades religiosas. Em casa, por outro lado, o silêncio imperava. Apaziguada pelo fato de que o jovem estava recebendo orientação na igreja, sua mãe não conversava com ele sobre questões pertinentes à sexualidade. Miguel relatou também que, embora sua mãe tivesse compartilhado estes acontecimentos com seu pai, este mantinha uma postura de “prefiro não saber”, e nunca tocou explicitamente no assunto. O pai também nunca questionou o fato de Miguel levar para casa produções culturais como livros e filmes com temáticas LGBT.

Como sugere Simmel (1964SIMMEL, Georg. 1964. Conflict and the Web of Group Affiliations. NY/London: The Free Press/MacMillan Publishers.), certas relações íntimas entre pessoas estão sujeitas a pequenos conflitos e vacilações cotidianas que precisam ser silenciados em prol de uma aparente harmonia - verbalizar o conflito é um ato de conflito, e o silêncio pode ser uma estratégia de manutenção da relação. É importante notar, contudo, que o silêncio parece aqui possibilitar para nosso interlocutor uma margem de manobra e agência da qual ele talvez não desfrutasse se estivesse sendo cotidianamente interpelado a justificar sua sexualidade para os pais - por exemplo, a possibilidade de participar de uma rede de sociabilidade gay originada de atividades na comunidade religiosa. No cotidiano da casa, de início, sua orientação sexual era um assunto rigorosamente evitado nas conversas com a mãe. Com o tempo, contudo, ela passou a “aceitar” que Miguel fosse gay, e a querer participar mais da vida do jovem, o que tornou possível reconhecer e eventualmente conversar sobre a orientação sexual de Miguel.

Minha mãe e eu ficamos brigados um tempo e depois ela voltou a se aproximar de mim. Minha mãe, depois, começou a entender um pouco sobre sexualidade. Ela confundia sexualidade com identidade de gênero. Ela não sabia se eu queria me tornar uma mulher, por exemplo, então foi difícil para ela entender isso, e fui trazendo conteúdo que achava na internet, e ela foi compreendendo.

O acesso a discursos (laicos e não patologizantes) sobre identidade de gênero e orientação sexual que circulam na esfera pública através da internet e seu posterior compartilhamento com a mãe teriam colaborado nesta reaproximação. A mãe do jovem continua atuando ativamente em sua comunidade religiosa de origem, mas hoje frequenta também eventos de um grupo de pesquisa do qual Miguel participa (em que questões tocantes a preconceito racial, gênero e sexualidades são tematizadas), tendo acesso a perspectivas alternativas à religiosa a partir do contato com estas redes e ambientes universitários. Para Miguel, esta mudança na conduta materna teve relação também com o ingresso do jovem na graduação e no mercado de trabalho, que lhe proporcionaram prestígio e maior autonomia financeira - configurando, deste modo, maior possibilidade de autoafirmação (Duarte & Gomes, 2008DUARTE, Luiz Fernando Dias & GOMES, Edlaine de Campos. 2008. Pertencimento Familiar, autoafirmação, individualização. In: DUARTE, Luiz Fernando Dias & GOMES, Edlaine de Campos. Três Famílias: identidades e trajetórias transgeracionais nas classes populares. Rio de Janeiro: Editora FGV.) no interior da família. A autoafirmação do jovem comparece aqui como fator que favoreceria a dissolução de silêncios previamente configurados.

Contextos em que o narrador se percebe em situação de dependência financeira junto aos familiares, por outro lado, parecem potencializar tensões nas quais silêncios e alusões são capazes de desempenhar um papel importante. Isto pode ser notado no relato de Dionny, um jovem gay de 20 anos, oriundo de camadas populares, com ensino superior em andamento na área de Ciências da Natureza, inicialmente acessado durante a Parada do Orgulho LGBT de Belo Horizonte em 2017. Dionny reside com seu pai e sua mãe, ambos evangélicos, e também com uma irmã mais nova. Ele relata que, um ano antes de “contar que era gay” para a família, sua mãe já havia ficado a par de sua orientação sexual. Ela encontrara uma carta íntima trocada com outro rapaz, “paquerinha de adolescência”, cujo teor deixava transparecer a atração afetivo-sexual experimentada por Dionny. Neste mesmo dia, ela o questionou sobre o conteúdo desta carta, e Dionny confirmou que de fato era gay. Sua mãe chorou, ficou algumas horas sem falar com ele, e nunca mais tocou neste assunto em ocasiões posteriores. Com seu pai, a revelação da orientação sexual foi um pouco mais conflituosa. Era um domingo de novembro de 2017; sua mãe e sua irmã estavam fora, e o pai solicitou que Dionny o ajudasse na oficina mecânica que mantém na garagem de sua casa. Nesta ocasião, interpelou o pai dizendo que tinha algo para contar

Ele parou e disse que eu podia falar. Eu olhei para ele e disse: “eu sou gay”. Ele deu um passo para trás, sabe, quando você pega alguém no susto? Ele se assustou. Me perguntou se eu estava brincando, e eu disse que não. Ele perguntou de novo, e novamente eu disse que não. Os olhos deles encheram de lágrimas; ele disse que não acreditava que o único filho dele estava fazendo aquilo com ele, e começou a chorar. Bom, eu fui homem o suficiente para falar aquilo para ele, então eu posso tomar a atitude e abraçá-lo nesse momento. E fui em direção a ele para dar o abraço. Mas ele quis que eu me afastasse, disse para eu não chegar perto. [...] Ele me perguntou como eu sabia que era gay, e eu disse que era porque eu tinha atração, e que já tinha ficado com homens. Disse a ele que não precisava chorar, pois isso não era uma doença. Ele discordou de mim, me questionou: “como não?!”. E me mandou subir. Ele disse que terminava o trabalho sozinho. Foi o que fiz. Subi e deixei ele na garagem.

Quando sua mãe retorna a casa, ambos choram, sugerindo que se tratava apenas de uma “fase” e recomendando que ele procurasse ajuda na igreja para “se tratar”. Dionny replica que não se tratava de uma “fase”, que não queria ir para a igreja e que não precisava se “tratar”. Seu pai, então, ameaça agredi-lo, sendo impedido pela mãe. Ambos começam a chorar novamente, e o pai afirma que ele deveria procurar outro lugar para morar.

Os dois voltaram a chorar e eu saí, fui para a rua. Mas pouco antes eles me disseram: “você trate logo de arrumar um lugar para você ficar! Você não tem muitos amigos? Não sai bastante com eles? Então, quem sabe, um deles também não te oferece um lugar para você ficar?”. Perguntei se eles estavam me mandando embora de casa. Meu pai respondeu que era para eu dar um rumo na minha vida o mais rápido possível. Eles ficaram sem falar comigo por uma semana. Um dia, do nada, minha mãe puxou conversa comigo, como se nada tivesse acontecido. Meu pai chegou do trabalho e falou comigo também, fez questão de puxar conversas algumas vezes. Tudo foi voltando ao normal. Eu sempre respondi o básico, estava com muita mágoa.

Oliveira (2013OLIVEIRA, Leandro de. 2013. Os Sentidos da Aceitação: família e orientação sexual no Brasil contemporâneo. Tese de Doutorado, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.), inspirado em uma argumentação desenvolvida originalmente em Moore (2000MOORE, Henrietta. 2000. “Fantasias de poder e fantasias de identidade: gênero, raça e violência”. Cadernos Pagu, 14, p. 13-44.), sugeriu que a descoberta de que um filho é homossexual pode romper fantasias de poder e de identidade cultivadas por seus pais. Na situação narrada por Dionny, lágrimas, ameaças de agressão física e de expulsão da casa podem ser vistas como respostas iniciais à frustração destas fantasias, que operam em um plano micropolítico, visando à preservação do lugar social e à restauração de um senso de si do pai, que são ameaçadas pela revelação feita pelo filho. Estas primeiras reações são sucedidas pelo silêncio. O relato de Dionny, focado em eventos ainda bastante recentes, coloca em evidência a transição entre esse período percebido como de mutismo total e uma retomada de conversações “como se nada tivesse acontecido”, sem que sua orientação sexual jamais voltasse a ser explicitamente mencionada.

Na noite subsequente à cena narrada acima, Dionny não conseguiu dormir, pensando sobre “o que faria da vida”: ele não tinha emprego, apenas estudava, e não teria como se manter fora de casa. Pela manhã, contudo, ninguém mencionou o ocorrido. Alguns dias depois, todos o estavam tratando de maneira totalmente “normal”: sua mãe interagia com ele quando cuidava das tarefas domésticas, o pai voltou a conversar sobre assuntos “aleatórios”, tal como o carro que estava consertando ou o jogo de futebol do dia anterior, como se nada tivesse ocorrido. Este retorno à “normalidade” é, por um lado, a substituição de um modo de silêncio, de mutismo absoluto e recusa à conversa, por outro, é percebido como omissão seletiva dos tópicos da conversa cotidiana, excluindo a orientação sexual do filho do rol dos assuntos legítimos.

Ao contrário de Afonso, para quem o silêncio familiar resguarda sua intimidade e é sinal de que sua orientação sexual não é considerada por eles algo especialmente problemático, Dionny expressa um incômodo com o fato de que seus pais “preferem nem tocar no assunto”. Esta divergência poderia, ao menos em parte, ser compreendida considerando o posicionamento destes interlocutores no interior de gerações e etapas da vida distintas. Convém notar, contudo, que embora o “silêncio” dos pais seja relatado por Dionny como uma recusa por parte deles em aceitar sua sexualidade, o próprio jovem omite qualquer menção à orientação de parceiros amorosos ou colegas gays quando se engaja, na companhia destes, em atividades cotidianas de sociabilidade: ele simplesmente comunica à família que está indo encontrar “amigos”, de modo a evitar novos atritos. Esta relativa conivência com o silêncio familiar faz parte de formas específicas de agência possibilitadas a Dionny neste contexto.

Embora sua orientação sexual nunca seja explicitamente mencionada em casa, Dionny se sente constantemente alvo de alusões e insinuações que a tematizam. Por exemplo, se recebe presentes de conhecidos e amigos, seu pai o interroga sobre a procedência destes objetos, como se suspeitasse que seriam agrados oferecidos por parceiros sexuais. Isto ocorreu, por exemplo, quando uma colega de faculdade ofereceu um celular usado para substituir o seu, que parara de funcionar. Aconteceu também a propósito de duas blusas de frio que ganhou de uma colega de estágio. O sobrinho desta amiga havia crescido, e os agasalhos não serviam mais nele; sabendo que Dionny tinha poucas roupas para o clima do inverno, ela o presenteou com estas roupas: “Ele [o pai] me questionou como eu apareci do nada com aquelas blusas e [eu] disse que foi minha amiga do trabalho quem me deu. [...] Ele não acreditou, e insinuou que eu estava fazendo ‘algo de errado’”. Logo após o conflito sobre a origem das blusas, seu pai voltou a mencionar que Dionny precisava, “rapidamente”, procurar outro lugar para morar. Para Dionny, o pai agia deste modo por presumir que tanto o celular quanto as blusas fossem presentes dados por “machos” que ele teria conhecido na rua.

A orientação sexual de Dionny, contudo, jamais é diretamente enunciada, e a homossexualidade de modo geral parece ser intencionalmente evitada enquanto um tópico explícito de atenção e discussão. Seu pai, inclusive, faz questão de mudar o canal da televisão quando aparecem personagens gays em telenovelas, ou quando alguma reportagem tematiza questões LGBT - limitando-se, quando muito, a comentar laconicamente: “que coisa feia”. No momento atual da vida de Dionny, ele considera que a rotina em sua casa está “normal”, “sem brigas”. O jovem tem evitado se relacionar sexual ou afetivamente com outros homens, desde que o pai ameaçou “segui-lo” secretamente na rua para monitorar em que lugares o filho vai, na companhia de quem e fazendo que tipo de atividade. Desde então, sua sexualidade nunca mais foi mencionada no ambiente doméstico.

Uma percepção muito aguda desses silêncios interpessoais (e dos sentidos potenciais de seu rompimento) despontou na fala de Cristina, uma jovem lésbica de 22 anos, branca, pertencente a segmentos ascendentes de camadas populares, com ensino superior completo na área de Humanidades. Nascida em uma cidade do interior de Minas Gerais, migrou ainda durante a infância para um município na região metropolitana de Belo Horizonte, onde reside atualmente com seu pai, sua mãe, uma irmã e um irmão. Desde muito jovem, Cristina se engajou em ativismo político via redes sociais na internet, inicialmente integrada ao grêmio estudantil em sua escola de ensino médio, debatendo política e ações governamentais. Nessa época, tornou-se uma figura local relativamente conhecida, chegando a ser procurada por jornalistas para opinar sobre questões políticas em mídia impressa e programas de rádio. Embora não atue no movimento LGBT organizado, sempre defendeu publicamente ideias afinadas com suas pautas. Ela recorda que, cinco anos antes, decidira contar para sua mãe que estava namorando uma mulher - logo após um jantar de réveillon no qual a mãe e algumas de suas tias fizeram comentários velados e alusivos a “uma prima que todo mundo sabe que é lésbica”, ainda que ninguém jamais toque explicitamente neste assunto. Nessa ocasião, uma fala da mãe sobre esta prima foi percebida por Cristina como uma insinuação sobre sua própria sexualidade.

Minha mãe [durante o jantar] fez um discurso sobre essa minha prima, sobre aceitação, “cada um é de um jeito, está certo, temos que deixar, que aceitar”. Como eu namorava desde outubro, eu achava que minha mãe estava dizendo isso para mim, porque talvez ela já soubesse, e ela estava me dando um sinal. Encorajada pela fala dela, mais tarde, no quarto, contei que estava namorando. Minha mãe demonstrou surpresa. Falei que estava namorando uma mulher; ela achou um absurdo, disse que eu estava ficando doida, e que isso não era possível.

Cristina, supondo que sua mãe já tivesse suspeitas sobre a sua orientação sexual, tomou a conversa no jantar de réveillon como uma “deixa” de que a mãe não teria maiores problemas para aceitar uma filha homossexual. A mãe perguntou a Cristina quem era sua namorada, e expressou reprovação ao saber que se tratava de uma jovem que já frequentava sua casa, apresentada como “amiga” de Cristina, que reagiu relembrando a fala de sua mãe para suas tias naquele mesmo dia, mais cedo, perguntando se a mãe tinha subitamente mudado de opinião. A mãe respondeu, em tom imperativo, “dentro da minha casa, não!”. Cristina acusou-a de hipocrisia; sua mãe retrucou que, se pudesse, colocaria a filha dentro de um ônibus e a mandaria para algum lugar bastante distante de casa, para “pensar sobre tudo isto”, e recomendou que ela rompesse o namoro. Dias depois deste primeiro embate verbal, sua mãe interpelou-a novamente sobre este assunto, e Cristina se sentiu compelida a ocultar a relação com a companheira. Embora ainda continuasse encontrando sua namorada secretamente, afirmou para a mãe que terminara o namoro: “agora eu tinha que fazer um esforço maior em esconder, não podia mostrar nem que aquela amiga ainda era minha amiga”.

Algum tempo depois, uma situação de evasão de privacidade trouxe a orientação sexual de Cristina novamente à baila dentro de casa. A jovem esquecera o Facebook aberto no computador de casa; sua mãe, a partir da leitura de mensagens trocadas pela filha, concluiu que ela não tinha rompido o namoro. Quando a mãe, exaltada, interpelou-a sobre o conteúdo destas mensagens, seu pai estava em casa e quis saber o que estava acontecendo. Ao ser informado sobre o motivo do conflito, ele reagiu chorando, dizendo que “aquilo estava errado, e que na Bíblia isso é pecado”.

Passados cinco anos, Cristina considera que hoje sua família “aceita” sua orientação sexual. Ambos os pais tratam sua atual namorada “como se fosse uma filha”, mas “[...] em relação a mim mesma enquanto pessoa lésbica, enquanto mulher lésbica, para o meu pai ainda é um pouco complicado - nunca mais conversamos sobre isso”. Algumas condutas do pai são relatadas em tom de queixa, como expressivas de preconceito, ainda que não direcionado contra ela. Um exemplo citado por ela diz respeito a comentários feitos pelo pai a propósito de aparições de Pabllo Vittar em programas de televisão, que tendem a ocorrer especialmente na presença de outros parentes e amigos da família.

Aconteceu uma vez quando meu padrinho estava na minha casa. Ele falou algo sobre a Pabllo Vittar, e os dois fizeram chacotas sobre isso, [dizendo] que agora esses “viadinhos” estão na TV. E meu pai concordando, [dizendo] “onde já se viu?”. Se estivesse sozinho, ele talvez não iria falar nada, mas na frente das pessoas ele reforça isso. Do meu lado, isso me incomoda, isso dói.

Os referidos comentários sobre Pabllo Vittar são vinculados por Cristina à postura do pai de “ser conivente e apoiar políticos que são, declaradamente, contra a comunidade LGBT”. Ainda assim, o contraste entre as experiências vivenciadas cinco anos antes e o contexto atual faz com que ela perceba suas relações com seus pais como “boas”, e considere que eles aceitam “bem” sua sexualidade. Em sua narrativa, o silêncio comparece demarcando, diferencialmente, distâncias estabelecidas na relação com o pai, que é de menor proximidade, e com sua mãe, em que há um esforço de aproximação. Pequenas interlocuções cotidianas são consideradas indicativas deste trabalho social de construção da intimidade, que demanda a dissolução de zonas de silêncio previamente estabelecidas - por exemplo, quando sua mãe a chama para conversar e questiona, curiosa, querendo saber de que forma duas mulheres “transam”. Cristina conta que sentiu “vergonha” diante da pergunta, mas a interpreta como um acontecimento positivo, evidente sinal de transformação na relação: agora, a mãe a “aceita”, em um grau tal que é capaz de abordar, de maneira casual e espontânea, assuntos sobre os quais jamais poderiam ter conversado cinco anos antes. O trabalho emocional (Hochschild, 2013HOCHSCHILD, Arlie Russel. 2013. “Trabalho Emocional, regras de sentimento e estrutura social”. In: COELHO, Maria Cláudia (org). Estudos sobre Interação: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Eduerj .) de transformar sentimentos negativos vivenciados ao descobrir que sua filha se relacionava sexualmente com mulheres parece ser uma pré-condição para que a mãe de Cristina se disponha a reconhecer e a expressar um desconhecimento prévio e, em seguida, discutir com a filha algo a respeito da sexualidade lésbica.

Considerações finais

Examinamos aqui depoimentos de quatro interlocutores que evocam, de maneiras distintas e com coloridos diferentes, formas pelas quais o silêncio sobre a orientação sexual nas famílias de origem pode ser percebido e sentido. É possível que esteja em jogo, em algumas destas narrativas sobre relações familiares, algo aproximável a que Veena Das (1999DAS, Veena. 1999. “Fronteiras, violência e o trabalho do tempo: alguns temas wittgensteinianos”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 14, n. 40, p. 31-42.) se referiu como o trabalho do tempo: reconfigurações das relações em que o tempo exerce uma agência, possibilitando a colocação em discurso no espaço doméstico de experiências inicialmente situadas no limiar do indizível. Isto é mais aparente nos depoimentos de Miguel e Cristina, em que mudanças (positivas) percebidas na relação com suas respectivas mães, referidas como uma maior “aceitação” materna, se fazem acompanhar de uma suspensão de silêncios reconhecidos, hoje, como parte integrante de etapas anteriores da vida. Paralelamente, pequenos atritos cotidianos acumulados na relação com o pai, nas narrativas destes dois interlocutores, são associados a uma persistência de silêncios.

A queixa sobre estas situações vividas no cotidiano doméstico, relatadas como algo que “incomoda”, “dói” ou “provoca mágoa”, pode se ser pensada como um discurso emocional que questiona micropoliticamente as hierarquias que são dramatizadas em comentários que desqualificam pessoas LGBT em geral, em ameaças veladas e discursos imperativos dirigidos ao próprio sujeito, e também (inclusive) na postura de “não querer tocar no assunto”. Este questionamento de hierarquias não emerge do próprio contexto da casa, mas da interação com o pesquisador, em uma outra cena, que oferece um contexto mais propício para sua enunciação (Oliveira, 2013OLIVEIRA, Leandro de. 2013. Os Sentidos da Aceitação: família e orientação sexual no Brasil contemporâneo. Tese de Doutorado, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ.). No espaço doméstico, por outro lado, acordos tácitos de manutenção de silêncio sobre a homossexualidade são estabelecidos, podendo implicar o cultivo de fantasias de poder por parte dos pais, mas também (ao menos em parte) o exercício de certas formas agência por parte de nossos interlocutores.

No depoimento de Dionny, o caráter recente dos eventos narrados ajuda a compreender o peso conferido a eles na narrativa. O depoimento de Dionny coloca em evidência a substituição de um tipo de silêncio (a suspensão da conversa) por outro, um retorno à “normalidade” em que se fala sobre assuntos variados, elidindo a homossexualidade do rol dos tópicos possíveis de conversa. O jovem, por sua vez, também evita tocar nesse assunto potencialmente sensível. O fato de que a omissão seja retribuída com omissão não sugere que se trate de um intercâmbio de silêncios recíprocos e equivalentes; estes se inserem em uma relação que é sentida como de subordinação, na qual a vigilância parental e a ameaça de expulsão de casa pairam como possibilidades latentes e constantes para o jovem. Este segundo estilo de silêncio é ocasionalmente perturbado por comentários mais ou menos velados enunciados pelo pai, percebidos por Dionny como insinuações sobre sua vida sexual.

O depoimento de Afonso suscita outro tipo de questão, já que ele não reporta, em momento algum, a expressão de objeções à sua orientação sexual pelos familiares, sendo o silêncio familiar integrado na narrativa como sinal de aceitação (e não de sua ausência). Caso tensões na relação com a família tivessem sido vivenciadas em algum momento, será que na etapa atual da vida faria algum sentido falar sobre elas, ou mesmo lembrar de sua existência? O ato de lembrar de certas relações como “boas”, e apresentá-las desta maneira, pode integrar o próprio trabalho social de constituí-las como boas relações. A distância geracional que o separa dos demais interlocutores, é capaz também de ter um lugar neste estilo de narrativa: as situações sobre as quais ele fala foram estabelecidas em um passado mais distante e inseridas em um contexto temporal mais amplo, sujeitas a serem enquadradas como eventos menores no interior de uma relação que, para todos os efeitos, é (e sempre foi) “boa”.

Relações familiares e conflitos domésticos não ocorrem à revelia de debates presentes na esfera pública, mas estão neles situados - isto é evidenciado, por exemplo, nos comentários de Cristina e Dionny sobre o modo como seus familiares reagem a discursos de mídia que tematizam questões e pessoas LGBT; no comentário de Afonso sobre como a epidemia de HIV/Aids marcou sua juventude; na fala de Cristina sobre o modo como o pai apoiava certos políticos conservadores; no comentário de Miguel sobre como o acesso a discursos veiculados pela internet e no ambiente universitário ajudou sua mãe a compreender melhor a orientação sexual do filho. O confronto com valores religiosos, embora não tenha sido explorado a fundo aqui, aparece também como dimensão relevante nessas conexões entre expectativas culturais e situações de interação.

À guisa de conclusão, gostaríamos de retomar a provocação inicial deste artigo: será que faria sentido que o Estado delegasse às famílias o papel de discutir questões de sexualidade no espaço doméstico? A experiência vivida de gays e lésbicas, evocada nestas páginas, parece sugerir que o silêncio, mais do que o “diálogo”, ocupa destaque nas maneiras pelas quais os núcleos familiares lidam cotidianamente com a sexualidade de seus membros - notadamente quando se trata de sexualidades que divergem da norma heterossexual. Estes silêncios aparecem circundados por uma densa malha local de pequenas enunciações (fofocas, rumores, alusões, chacotas/piadas) que falam em 3ª pessoa sobre sujeitos LGBT, comportando eventualmente conexões com polêmicas que a visibilidade LGBT enseja na esfera pública (via discursos de mídia, por exemplo), sem tomar os jovens gays e lésbicas como interlocutores.

Eventualmente, há um outro tipo de discurso que incide diretamente sobre nossos interlocutores e instaura zonas de silêncio: atos de fala que, em vez de propiciarem o diálogo e a troca, comunicam aos filhos a desaprovação de seus pais, por vezes assumindo formas imperativas (como a mãe de Cristina, que recomenda à filha que rompa o namoro), ou comportando um tom de ameaça (como o pai de Dionny, que relembra ao filho a possibilidade da expulsão de casa, recomendando que ele procure outro lugar para morar). Como estas relações familiares são marcadas por hierarquias entre gerações, os jovens comparecem nelas em uma situação de relativa desvantagem, já que processos de autoafirmação no interior da família podem, a médio prazo, talvez minimizá-la, mas não a eliminam totalmente.

Em seu conjunto, os discursos que circundam e atravessam os silêncios apontados ao longo de nossa análise (tais como as acusações morais, as piadas, a proibição do estabelecimento de relações amorosas, as ameaças mais ou menos veladas de expulsão de casa) são atos de fala que exercem, micropoliticamente, um duplo efeito: reiteram o lugar social subalterno dos jovens em relação às gerações mais velhas no espaço da casa, e confirmam o status social inferior das pessoas LGBT em geral. A ruptura desses silêncios, se algum dia chegar a ocorrer, parece ser ao menos em parte tributável a mudanças nas relações familiares e nas convenções que as pautam, que podem se desenrolar em um ritmo deveras lento. De resto, o diálogo intergeracional - como o reportado por Cristina, cuja mãe revela disposição para aprender com a filha algo sobre vivências de mulheres lésbicas que inicialmente desconhecia - só é possível na ausência, ou na disposição à superação, de preconceitos direcionados contra sexualidades dissidentes. E os preconceitos não questionam a si mesmos: é preciso que alguém tome a iniciativa de promover esses debates. A quem, senão ao Estado, poderia caber esta incumbência?

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  • 1
    Tradução livre do texto original em língua inglesa: “There is no such thing as an empty space or an empty time. There is always something to see, something to hear. In fact, try as we may to make a silence, we cannot”.
  • 2
    Somos gratos, além das generosas contribuições oferecidas pelos pareceristas deste artigo, à interlocução com Horácio Sívori, Marcelo Natividade, Alessandra Rinaldi, Naara Luna, Sabrina Finamori e Érica Renata de Souza, com os quais tivemos a oportunidade, em distintas ocasiões, de discutir aspectos e versões preliminares da análise aqui desenvolvida.
  • 3
    O projeto, intitulado “Construção da Pessoa, Família e Sexualidades: estudo comparativo sobre convenções culturais, individuação e mudança”, envolveu a realização de etnografia e entrevistas em profundidade com 14 interlocutores, com perfis bastante plurais em termos de classe social, gênero, cor/raça e geração, ordenados comparativamente em dois conjuntos: sujeitos mais atuantes no ativismo LGBT, e sujeitos que (embora acessados a partir de redes de sociabilidade de participantes de movimentos sociais) têm menor engajamento no ativismo político. A pesquisa foi subsidiada com recursos do Edital ADRC/PRPq/UFMG 01/2017, contando com a participação (como bolsistas de Iniciação Científica, em distintas etapas da pesquisa) de Ítalo Vinícius Gonçalves, Thiago Camargo Barreto e Talles Carvalho Lima.
  • 4
    Já na primeira década do século XX, Simmel (1950SIMMEL, Georg. 1950. “The Secret Society”. In: WOLFF, Kurt (ed.). The sociology of Georg Simmel. Nova York: Free Press.), em seu ensaio sobre as “sociedades secretas”, sugeriu que a sociação humana, embora diretamente dependente da fala, é regulada por uma capacidade historicamente cultivada de manutenção do silêncio: “Se a sociação humana é condicionada pela capacidade de falar, ela é também modelada pela capacidade de permanecer em silêncio, ainda que isto se torne evidente apenas em ocasiões específicas. Quando pensamentos, sensações e impulsos são jorrados através da fala sem inibição, eles produzem uma desordem caótica em vez de coordenação orgânica. Raramente percebemos quão necessária é esta capacidade para o silêncio no desenvolvimento de qualquer interação regulada; em vez disto, a naturalizamos. A despeito disto, se trata indubitavelmente de um processo histórico [...]. Este processo de desenvolvimento se inicia com os desajeitados comandos de silêncio acima mencionados. Ele culmina na urbanidade da alta cultura societária, que inclui entre seus bens mais nobres o sentimento seguro de saber onde uma pessoa deve falar, e onde ela deve permanecer em silêncio” (Simmel, 1950: 349, tradução livre do original).
  • 5
    Bispo (2016BISPO, Raphael. 2016. “Tempos e Silêncios em Narrativas: etnografia da solidão e do envelhecimento nas margens do dizível”. Etnográfica. Vol. 20 (2).) e Oliveira (2013: 83-96) discutiram estes problemas metodológicos a partir do caso, particularmente sensível, de experiências de sofrimento sobre as quais os interlocutores da pesquisa silenciam, ou das quais sequer se lembram. A perspectiva adotada neste trabalho, embora convergente com a destes estudos, opera com uma abordagem ligeiramente distinta, focalizando o modo como situações de “silêncio” são percebidas e narradas pelos interlocutores, integradas às suas histórias de vida.
  • 6
    Embora a noção de “conectividade” não seja utilizada pela própria Heather Murray, acreditamos que a narrativa histórica construída por esta autora contribua para uma reflexão comparativa sobre idiomas de conectividade em distintos contextos. O conceito de conectividade (relatedness) vem sendo acionado, desde o início do século XXI (em trabalhos antropológicos preocupados com as limitações e o potencial etnocentrismo da noção euro-americana de “parentesco”) como uma categoria que expressa atenção e abertura ao modo como idiomas culturais locais concebem o que é “estar em relação” (Carsten, 2000CARSTEN, Janet. 2000. “Introduction: cultures of relatedness”. In: CARSTEN, J. (org.). Cultures of relatedness: New Approaches to the Study of Kinship. Cambridge: Cambridge University Press. p. 01-36.). A rentabilidade deste tipo de perspectiva consiste em propiciar algum controle, no âmbito de estudos comparativos, sobre a projeção de concepções do universo do pesquisador acerca da natureza e/ou o modo de operação de tais e quais “relações”.
  • 7
    Visando resguardar a privacidade de nossos interlocutores, todos os nomes citados foram alterados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    20 Maio 2019
  • Aceito
    26 Jun 2019
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