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“Crianças” e “Adolescentes” trans. A construção de categorias entre profissionais de saúde

Transgender “Children” and “Adolescents”. Categories construction among health professionals

“Niños” y “Adolescentes” trans. Construcción de categorias entre los profesionales de la salud

Resumo

Este artigo tem por objetivo descrever e discutir os significados e concepções atribuídos por um grupo de profissionais de saúde às categorias “crianças” e “adolescentes” trans e sua relação com as práticas de cuidado por eles realizadas, privilegiando uma abordagem sociocultural sobre o cuidado. Baseia-se em uma pesquisa de abordagem etnográfica que incluiu a realização de entrevistas em profundidade com profissionais de saúde que atuam ou já atuaram em serviços especializados no atendimento de crianças e adolescentes trans e seus familiares, localizados no Estado de São Paulo. Os resultados apontam como as definições dos profissionais sobrepõem critérios biomédicos e concepções socioculturais de gênero, revelando impasses e controvérsias implicadas na avaliação diagnóstica da identidade de gênero de crianças e adolescentes em termos de fixidez e permanência.

Palavras-chave:
transexualidade; transgênero; cuidado; criança; adolescente; saúde coletiva

Abastract

This article describes and discusses the meanings and conceptions attributed by a group of health professionals to the categories trans “children” and “adolescents” and their relationship with the care practices performed by these professionals, prioritizing a socio-cultural approach of care. It is based on an ethnographic approach to indepth interviews with health professionals who work or have worked in specialized services in the care of trans children and adolescents and their families, located in the State of São Paulo. The results show how the professionals definitions overlap biomedical criteria and socio-cultural conceptions of gender, revealing impasses and controversies involved in the diagnostic evaluation of the gender identity of children and adolescents in terms of fixity and permanence.

Keywords:
transexuality; transgender; care; child; adolescent; collective health

Resumen

El artículo pretende describir y discutir los significados y concepciones que un grupo de profesionales de la salud atribuye a las categorías “niños” y “adolescentes” trans y su relación con las prácticas de cuidado que realizan, según un enfoque sociocultural del cuidado. Se basa en una investigación de enfoque etnográfico que incluyó entrevistas en profundidad con profesionales de la salud que trabajan o han trabajado en servicios especializados en la atención de niños y adolescentes trans y sus familias, ubicados en el Estado de São Paulo. Los resultados muestran cómo las definiciones de los profesionales se superponen a los criterios biomédicos y a las concepciones socioculturales de género, revelando los impasses y las controversias que intervienen en la evaluación diagnóstica de la identidad de género de los niños y adolescentes en términos de fijeza y permanencia.

Palabras clave:
transexualidad; transgénero; cuidado; niño; adolescente; salud colectiva

Introdução

A assistência em saúde a pessoas trans vincula-se historicamente ao campo dos saberes biomédicos e psi - psiquiatria, psicanálise e psicologia - que seguem ocupando uma posição privilegiada de interlocução na formulação de modalidades explicativas e de intervenção sobre as sexualidades e o(s) gênero(s) (Leite Junior, 2011LEITE JUNIOR, Jorge. 2011. Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico. São Paulo: Annablume. 240p.; Machado, 2005MACHADO, Paula Sandrine. 2005. “O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e a produção do sexo (como se fosse) natural”. Cadernos Pagu. N° 24, p. 249-281.). O desenvolvimento de tecnologias biomédicas hormonais e cirúrgicas, por um lado, têm promovido a reedição das possibilidades de definição de aspectos relacionados ao domínio do sexo/gênero. Por outro lado, a legitimidade das intervenções depende de categorias, conceitos e convenções que as justificam, produzindo arranjos socioculturais que formulam e respondem a novas demandas sociais. É neste quadro que a não-conformidade com o gênero designado ao nascer entre crianças e adolescentes adquire estatuto médico, mas também jurídico-legal.

O primeiro marco regulatório para as práticas em saúde dirigidas a crianças e adolescentes trans no Brasil foi o parecer nº 8 do Conselho Federal de Medicina (CFM), emitido em 2013. Em diálogo com recomendações e diretrizes internacionalmente reconhecidas1 1 Este aspecto retoma o debate sobre a globalização de categorias e nosologias psiquiátricas relacionadas a pessoas trans e sua influência na definição de gramáticas de reconhecimento social e jurídico, e delimitação de práticas em saúde (Barbosa, 2015; Leite Júnior, 2011) acerca do cuidado a este grupo e suas demandas, como as Normas de atenção à saúde da WPATH (Coleman et al., 2012COLEMAN, Eli et al. 2012. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. 7ª ed. [online] WPATH. Disponível em: Disponível em: https://www.wpath.org/publications/soc [Acesso em: 21/02/2020].
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) e as Diretrizes da Sociedade Americana de Endocrinologia (Hembree et al., 2009HEMBREE, Wylie et al. 2009. “Endocrine treatment of transsexual persons: An Endocrine Society clinical practice guideline”. Journal of Endocrinology and Metabolism. Vol. 94, n° 9, p. 3132-3154.), o parecer apresenta um quadro sucinto de fundamentos ético-científicos para esta assistência, discutindo duas modalidades centrais de intervenção: o bloqueio puberal e a hormonioterapia para indução de puberdade em acordo com o gênero de identificação. Trata-se de um documento que regula práticas e fornece amparo para o surgimento de serviços de saúde especializados.

A regulação das práticas recorre ao diagnóstico de Transtorno de Identidade de Gênero no DSM-IV, imprimido às intervenções um caráter terapêutico. De acordo com essa perspectiva, a puberdade e as mudanças físicas em desacordo com o gênero de identificação seriam responsáveis por produzir sofrimento intenso, conduzindo a possíveis prejuízos na vida social e ao desenvolvimento de quadros como depressão e ansiedade (CFM, 2013CFM. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. 2013. Parecer nº 8. Terapia hormo nal para adolescentes travestis e transexuais [online] Portal Médico. Disponível em: Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/pareceres/CFM/2013/8_2013.pdf [Acesso em 21/02/2020].
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;Coleman et al., 2012COLEMAN, Eli et al. 2012. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. 7ª ed. [online] WPATH. Disponível em: Disponível em: https://www.wpath.org/publications/soc [Acesso em: 21/02/2020].
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; Hembree et al., 2017HEMBREE, Wylie et al. 2017. “Endocrine treatment of gender-dysphoric/gender-incongruent persons: an endocrine society clinical practice guideline”. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism. Vol. 102, n° 11, p. 3869-3903.). O diagnóstico e as intervenções possibilitariam prevenir estes desfechos, diminuindo ou evitando-os. O bloqueio puberal, a ser realizado na fase II de Tanner, prolongaria o tempo para que a identidade de gênero se defina e para que os profissionais formulem um diagnóstico. Já a hormonioterapia, permitida a partir dos 16 anos, seria responsável por induzir características corporais em acordo com o gênero de identificação. O atendimento por equipe multidisciplinar em centro especializado é sugerido como ponto de partida para a assistência em saúde a crianças e adolescentes trans.

O escopo dessas práticas é redefinido na Resolução nº 2.265, emitida pelo CFM em 2019. O diagnóstico de Incongruência de Gênero (CID-11) é adotado como referência e, ao lado do bloqueio de puberdade, realizado em caráter experimental em Hospitais Escola2 2 Dentre alguns dos serviços estão os ambulatórios vinculados a Hospitais Escola, como o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade Federal de Porto Alegre. , e da hormonioterapia, a resolução enfatiza as dimensões de acolhimento e acompanhamento, ressaltando a articulação entre serviços de saúde e outras instâncias, tais como a escola. As relações entre equipes de saúde e familiares ou responsáveis legais pelas crianças e adolescentes são destacadas, especialmente nos processos decisórios envolvendo intervenções hormonais. Vale notar que, semelhante à assistência em saúde a adultos trans, há uma ênfase nas tecnologias hormonais em ambos os documentos do CFM (Arán et al., 2009ARÁN, Márcia; MURTA, Daniela. 2009. “Do diagnóstico de transtorno de identidade de gênero às redescrições da experiência da transexualidade: uma reflexão sobre gênero, tecnologia e saúde”. Physis: revista de Saúde Coletiva. Vol. 19, n° 1, p. 15-40.; Lionço, 2009LIONÇO, Tatiana. 2019. “Atenção integral à saúde e diversidade sexual no Processo Transexualizador do SUS: avanços, impasses, desafios”. Physis: revista de Saúde Coletiva . Vol. 19, n° 1, p. 43-63.), embora seu uso, no caso de crianças e adolescentes, esbarre em valores e concepções socioculturais relacionadas à adolescência, infância e gênero, sugerindo uma negociação complexa no campo do cuidado.

Nesta discussão, adotamos uma abordagem socioantropológica para pensar o tema das práticas de cuidado acionadas para crianças e adolescentes trans. Trata-se de uma abordagem que privilegia as configurações múltiplas e contextuais do cuidado, ou seja, os arranjos de saberes, relações e práticas socialmente elaborados (Bustamante & Mccalum, 2014BUSTAMANTE, Vania; MCCALLUM, Cecilia. 2014. “Cuidado e construção social da pessoa: contribuições para uma teoria geral”. Physis: revista de Saúde Coletiva . Vol. 24, n° 3, p. 673-692.; Epele, 2012EPELE, María. 2012. “Sobre o cuidado de outros em contextos de pobreza, uso de drogas e marginalização”. Mana. Estudos de Antropologia Social. Vol. 18, n° 2, p. 247-268.; Mol, 2008MOL, Annemarie. 2008. “Política ontológica: algumas ideias e várias perguntas”. In: NUNES, João Arriscado; ROQUE, Ricardo (org.) Objetos impuros: experiências em estudos sociais da ciência. Porto: Edições Afrontamento. 328p.). As práticas de cuidado são tomadas a partir dos valores, concepções e significados que as orientam, bem como as relações através das quais se realizam, com ênfase nas interações entre atores sociais e instituições. Trata-se de dar atenção aos “pressupostos epistemológicos, políticos e morais envolvidos na produção de bem-estar, saúde e cidadania” (Epele, 2012: 249EPELE, María. 2012. “Sobre o cuidado de outros em contextos de pobreza, uso de drogas e marginalização”. Mana. Estudos de Antropologia Social. Vol. 18, n° 2, p. 247-268.) e, em particular, os “projetos de pessoa” a que se vinculam (Bustamante & Mccallum, 2014BUSTAMANTE, Vania; MCCALLUM, Cecilia. 2014. “Cuidado e construção social da pessoa: contribuições para uma teoria geral”. Physis: revista de Saúde Coletiva . Vol. 24, n° 3, p. 673-692.).

A investigação sobre a não-conformidade e, em específico, a não-conformidade de gênero entre crianças e adolescentes permite refletir sobre como a construção de quadros clínicos se articula a aspectos socioculturais e, portanto, os modos pelos quais “cada sociedade qualifica os problemas e pensa as respostas sociais mais adequadas a eles, separando ou articulando problemas sociais e médicos” (Cottet, Béliard & Nakamura, 2019: 7COTTET, Pablo; BÉLIARD, Aude; NAKAMURA, Eunice. 2019. “Conceitos, trajetórias e perspectivas sobre ‘agitação’ e ‘crianças não conformes’: experiências sociais e culturais no Brasil, Chile e França”. Saúde e Sociedade. Vol. 28, n° 1, p. 6-11.). Assim, o objetivo deste artigo é descrever e discutir os significados atribuídos por um grupo de profissionais de saúde às categorias “crianças” e “adolescentes” trans e a relação com suas práticas de cuidado, buscando apreender como as demandas em saúde relacionadas a esse grupo específico são inscritas em determinadas lógicas.

Métodos

Tratou-se de uma pesquisa qualitativa3 3 Pesquisa financiada pela FAPESP (nº de processo: 17/154608), intitulada “Concepções e significados de crianças e adolescentes trans nas práticas de cuidado de profissionais da área da saúde”. de abordagem etnográfica, realizada em 2018, que incluiu entrevistas em profundidade com profissionais que atuam ou já atuaram na atenção em saúde direcionada a crianças e adolescentes trans. O contato com os profissionais de saúde foi realizado inicialmente a partir de eventos sobre a temática4 4 Destaca-se o I Encontro Brasileiro de Saúde Trans - BRPATH, realizado entre os dias 1 e 4 de novembro de 2017 na Universidade Federal de São Paulo, Campus São Paulo. e, posteriormente, através de indicações entre os próprios interlocutores.

Foram entrevistados cinco profissionais de saúde, sendo três médicos psiquiatras e duas psicólogas, com diferentes tempos de atuação na área. Até o término da pesquisa, com exceção de uma das psicólogas, todos os outros participantes integravam equipes multidisciplinares em dois serviços especializados no atendimento a crianças e adolescentes trans, localizados no Estado de São Paulo. O quadro 1 caracteriza os participantes e o modo como serão identificados no texto, a fim de garantir o anonimato.

Quadro 1:
Identificação dos/as interlocutores/as

O roteiro aberto que orientou a entrevista foi organizado em quatro eixos: a) identificação (formação, inserção profissional na área, tempo de atuação); b) características do serviço (equipe, organização do funcionamento, etc.); c) práticas de cuidado (descrição das pessoas acompanhadas e de suas demandas, fluxo de atendimento, modelo de cuidado e principais preocupações éticas, técnicas, etc.); d) considerações sobre o cuidado em saúde a crianças e adolescentes trans. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas com consentimento dos entrevistados5 5 Agradecemos aos entrevistados pela disponibilidade em participar da pesquisa. Trata-se de um campo de atuação profissional e de pesquisa relativamente novo e que resulta diretamente do comprometimento e implicação dos profissionais envolvidos. , inscrito em TCLE.

A entrevista foi escolhida como procedimento por permitir acesso a rede de significados partilhados pelas pessoas sobre sua realidade, possibilitando a descoberta de estruturas conceituais que se presentificam nas relações e práticas sociais e são por elas reelaboradas, revelando seu sentido para quem as vive (Geertz, 1989GEERTZ, Clifford. 1989. A interpretação das culturas. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan. 326p.; Minayo, 2013MINAYO, Maria Cecília de Souza. 2013. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13ª ed. São Paulo: Hucitec. 406p.). O trabalho de campo foi inspirado pelo método etnográfico e orientado pelo debate socioantropológico no campo da saúde (Nakamura, 2011NAKAMURA, Eunice. 2011. “O método etnográfico em pesquisas na área da saúde: uma reflexão antropológica”. Saúde e Sociedade . Vol. 20, n° 1, p. 95-103.). Junto as entrevistas, foram realizadas leituras das principais diretrizes sobre a assistência em saúde a crianças e adolescentes trans6 6 Além da Revisão de Literatura Científica sobre o cuidado em saúde voltado a crianças e adolescentes trans, realizada nas bases de dados: Lilacs, Medline, IBECS, Scopus e Web of Science e que, no entanto, não é o foco deste artigo. . A discussão apresentada neste artigo prioriza os conteúdos das entrevistas em diálogo com os protocolos e diretrizes sobre o tema.

Resultados e discussão

Descrição dos contextos: os ambulatórios

Os serviços ambulatoriais citados pelos interlocutores como contexto de atuação eram vinculados ao setor psiquiátrico de Hospitais Universitários em dois municípios do Estado de São Paulo e, nesse artigo, foram nomeados de “Ambulatório A” e “Ambulatório B”. Com base nas descrições fornecidas pelos entrevistados, apresentamos uma breve caracterização de ambos os serviços.

A psicóloga [1] e o médico [1] atuaram no Ambulatório A, mas durante o período da pesquisa apenas o médico [1] permanecia vinculado ao serviço. Ambos acompanharam a implementação do serviço, a constituição da equipe, elaboração do fluxo e protocolo de atendimento. Prestando assistência a crianças e adolescentes trans desde 2010, o Ambulatório A, de acordo com médico [1], conta com cerca de 50 profissionais de diversas especialidades: psicólogos, assistentes sociais, médicos (ginecologista, endocrinologistas e psiquiatras,) e fonoaudiólogo. Já a psicóloga [2], o médico [2] e a médica [3], atuam no Ambulatório B, serviço mais recente e que conta com uma equipe composta por cerca de 13 profissionais, dentre os quais: psicólogos, enfermeiros, assistente social, médicos (psiquiatras e endocrinopediatras) e residentes de medicina. A maioria dos profissionais, em ambos os ambulatórios, atua a partir de um vínculo voluntário e mantém outras atividades, como docência e pós-graduação.

A entrada nos serviços ocorre a partir de uma consulta inicial que deve ser agendada. Os profissionais entrevistados apontam esse primeiro contato entre as crianças ou adolescentes, seus familiares e o serviço, como momento para com preender as motivações que orientaram a procura. Após o primeiro contato, novas consultas são agendadas, buscando avaliar a demanda e sua adequação à proposta do serviço. Nas avaliações subsequentes são considerados o estágio puberal e possíveis contraindicações clínicas para uso de hormônios, caso a decisão pelo bloqueio de puberdade ou hormonioterapia seja tomada mais à frente, e a presença ou não de outros quadros clínicos ou comorbidades, com eventual uso de testes psicométricos (WISC, WAIS, HTP, TAT)7 7 WISC, WAIS, HTP, TAT são siglas de testes psicológicos utilizados para avaliar capacidades, competências e demais aspectos do desenvolvimento afetivo-cognitivo e da personalidade. O WISC e o WAIS têm por objetivo avaliar a capacidade intelectual, sendo o primeiro aplicado em pessoas na faixa etária de 6 anos a 16 anos, e o segundo em pessoas entre 16 anos e 90 anos. O HTP é um teste gráfico projetivo destinado a pessoas com idade superior a 8 anos; O TAT - Teste de Apercepção Temática - é também um teste projetivo, que tem por objetivo revelar conteúdo da personalidade como: conflitos, desejos, reações ao ambiente externo e mecanismos de defesa. . Após esta etapa, o fluxo se diferencia entre crianças, adolescentes e pais/familiares.

No Ambulatório A, as crianças são encaminhadas para um grupo de observação lúdica, o “grupo do brincar”, e os adolescentes para um grupo dividido por faixa etária, em que são abordados temas como: hormonioterapia, identidade de gênero e orientação sexual, relacionamentos, escola, mercado de trabalho, violência, dentre outros. No Ambulatório B, os casos parecem ser acompanhados mais individualmente. Em ambos os serviços, existe o “grupo de pais” ou “grupo de família”, para os quais são encaminhados os pais/familiares das crianças e adolescentes atendidos, sugerindo a centralidade destes atores e de suas demandas na constituição das práticas de cuidado. Todos os grupos são coordenados por profissionais da saúde mental e os casos atendidos costumam ser discutidos em reuniões de equipe, espaço fundamental para a elaboração das avaliações e processos decisórios. De acordo com os interlocutores, durante o período da pesquisa, o Ambulatório B acompanhava cerca de 25 pessoas entre 4 a 22 anos e o Ambulatório A, cerca de 50 crianças e 105 adolescentes.

Como relatam os interlocutores, a elaboração das práticas de cuidado e dos protocolos de atendimento é resultado também da participação em eventos científicos, do debate da literatura, bem como do contato com equipes de outros serviços no Brasil ou internacionais, o que aponta como a discussão sobre este cuidado ultrapassa o contexto delimitado de cada ambulatório.

Significados e práticas: as categorias “crianças” e “adolescentes” trans

Neste item são apresentadas as descrições feitas pelos interlocutores acerca das crianças e adolescentes atendidos nos serviços, bem como de seus pais/familiares. Destacam-se nestas descrições como esses diversos atores chegam ao serviço, como se relacionam com os profissionais e como são por eles caracterizados e definidos.

As crianças

Para os interlocutores, a chegada das crianças menores aos serviços, acompanhadas pelos pais/familiares, parece estar relacionada a identificação de algum desacordo entre os comportamentos infantis e o que a família considera próprio para meninos e meninas. A visão acerca das crianças e de seus comportamentos difere entre profissionais e familiares, contrapondo critérios biomédicos aos do senso comum, as percepções de adultos àquelas das próprias crianças:

As crianças que eu mais vejo não são crianças que eu encaixaria no diagnóstico de crianças trans. São crianças que geralmente apresentam características estereotipadas do gênero oposto ao que elas foram designadas ao nascer, principalmente meninos afeminados. Então, muitas crianças que eu recebo, os pais me contam que ela diz que não quer ser menino ou não quer ser menina, mas eu demoro muito para escutar isso quando eu escuto da criança. (Psicóloga [1])

A maioria das crianças que a gente acompanha não são crianças trans. São crianças trazidas pelos pais por apresentarem um comportamento desviante do que eles têm como norma. Então, são meninos que gostam de brincadeiras tidas como de menina, meninas que gostam de brincadeiras tidas como de menino, não necessariamente eles têm alguma dúvida em relação a identidade de gênero [...] é, muitas vezes, uma demanda dos pais de falarem sobre o assunto, sobre as suas dificuldades. (Médico [1])

A relação que os profissionais estabelecem com as crianças atendidas é marcada pela mediação dos familiares, os primeiros a levantar suspeitas sobre os significados da não-conformidade8 8 A categoria ‘não-conformidade’ é empregada para indicar expressões e comportamentos que escapam às normas sociais de gênero, mas que não adquirem, especialmente no caso de crianças, a forma de uma identidade autodeclarada. Seu uso permite refletir a relação entre modelos socioculturais, comportamentos infantis considerados inadequados e as categorias diagnósticas mobilizadas para classificá-los, como em Nakamura & Barbarini (2019). identificada nas crianças9 9 A identificação que fazem os familiares dos comportamentos infantis e a narrativa que os próprios adolescentes elaboram sobre si mesmos, como veremos, levantam questões sobre a difusão de categorias biomédicas pelo saber não-especializado que, como propõe Hacking (2007), incidem sobre o modo como pessoas definem a si mesmas, significam suas ações e reescrevem o sentido de suas experiências. . A procura pelo serviço, como aponta o Médico [1], teria mais relação com as dificuldades dos familiares em lidar com o modo de ser das crianças, ressaltando sua influência na experiência de parentalidade. Contudo, ainda que a maioria das crianças levadas aos serviços não seja “trans”, existiria “uma porcentagem de crianças trans que não se identificam em nada com o sexo atribuído ao nascimento” (Médico [1]), o que impõe a necessidade de diferenciação - entre crianças trans e não-trans - como uma problemática no âmbito das práticas. Para realizá-la, de acordo com os profissionais, duas dimensões são prioritárias: a escuta e a observação.

A ‘escuta’, realizada em geral por psicólogos e psiquiatras, possibilita uma aproximação com a experiência das crianças, indicada em expressões como: “a criança vai dizer” ou de que é preciso “escutar o que essa criança está falando”. A prática de escuta permite aos profissionais definirem as crianças atendidas, atribuindo a elas e aos seus comportamentos significados que constituem suas definições de crianças trans:

Então, eu acho incrível a gente poder dar ouvidos, eu realmente escutei crianças muito pequenas dizendo: ‘Eu não sou menino, eu sou menina’, ‘Eu não quero ser isso aqui, meu nome é tal…’ e inventar um outro. Mas eu também vi muitos pais muito angustiados e muito ansiosos por respostas. (Psicóloga [1])

Então, a gente precisa escutar o que essa criança está falando, né? E perceber algumas nuances. Do tipo, uma criança falar ‘Ah, eu quero ser uma menina’ é diferente de uma criança que chega e fala ‘Eu sou uma menina’, né? E é a partir disso que a gente pode abrir e ir ampliando o conteúdo desse indivíduo: ‘Tá, que menina? Quem é essa menina que você está falando?’ [...] Então, falar sobre crianças e adolescentes trans é muito amplo, e a gente tem que ter na cabeça essa ideia da amplitude e da diversidade. (Médico [1])

A partir da escuta, os interlocutores distinguem dois ‘tipos’ de crianças trans. De um lado, como apontam as Psicólogas [1] e [2] e o Médico [1], estão aquelas crianças que “tem uma questão muito clara de gênero”, que “falam bem firme” e demonstram uma assertividade considerada importante. Nota-se que embora a fala da criança desempenhe um papel central na identificação do gênero, os ouvidos dos profissionais ‘psi’ são os responsáveis por decodificá-la. Por outro lado, como descrito pelo Médico [1], existem as que estão em “dúvida em relação à identidade de gênero”. Nessas situações, a observação complementa a escuta e o ‘brincar’ torna-se objeto de interesse. De acordo com os relatos, o brincar vai apresentar “algo de diferente” (Psicóloga [2]), e seria necessário, então, observar “com o que a criança prefere brincar, estar junto em relação as companhias e tudo o mais” (Médico [1]).

Crianças muito pequenas, a gente tem pacientes de 4 anos, menos de 6 anos vamos colocar, a gente nota que é mais uma variabilidade no brincar, no universo lúdico dessa criança que já causa alguma questão para essa família, né? E aí, normalmente, são mais meninos, do sexo biológico masculino, que vem, por ser uma sociedade que choca mais um menino com boneca, do que uma menina com carrinho. (Médico [2])

Ao tencionar padrões “reconhecíveis de inteligibilidade do gênero” (Butler, 2013: 37BUTLER, Judith. 2013. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 236p.), o brincar não-conforme produz crise no exercício de parentalidade, o que leva os familiares a interpelar os profissionais sobre o seu possível significado. Embora os profissionais coloquem em dúvida as visões dos familiares acerca dos comportamentos das crianças, sua avaliação - ao ressaltar preferências por brinquedos e por companhia - expõe uma sobreposição entre critérios clínicos e expectativas socioculturais10 10 Como destaca o próprio texto do DSM 5: muitos dos critérios básicos fundamentam-se nas diferenças comportamentais de gênero bem comprovadas entre meninos e meninas com desenvolvimento normal” (APA, 2014: 455). . Trata-se de um aspecto encontrado também no DSM 5 que, ao definir os critérios diagnósticos, ressalta a preferência por “jogos estereotípicos e passatempos tradicionalmente femininos”, entre crianças trans designadas meninos ao nascer e, entre aquelas designadas meninas ao nascer, a preferência por “brincadeiras agressivas e competitivas, jogos tradicionalmente masculinos e ter meninos como pares” (APA, 2014: 453-454APA. American Psychiatric Association. 2014. DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed Editora. 948p.). Os critérios se mostram pouco precisos e, frente a imprecisão que a avaliação do brincar pode despertar, outro elemento a complementa: o “sofrimento”.

O sofrimento parece constituir um critério mais familiar no campo de atuação desses profissionais.

Quando tem sofrimento, a gente tem que entender o porquê que está sofrendo. A primeira criança que eu vi [no serviço] foi uma criança que estava deprimida, ela não queria mais ir para a escola, ela queria por um vestido, era uma criança que foi designada menino ao nascer e que se entendia enquanto menina. Ela já tinha dado um nome para ela mesma, ela tinha 4 anos, recém feitos. Os pais já estavam desesperados, porque ela já não queria mais comer de tão deprimida que ela estava. Se uma criança chega nesse ponto, seja por qual motivo for, a gente tem que olhar. (Psicóloga [1])

A gente tem já crianças de 9 anos que já fizeram transição social, que essa é uma disforia de gênero bem mais intensa, então a família já chega com essa criança já feita a transição em alguns espaços, né? Na escola ainda não. Porque viu que o sofrimento estava intenso (Médico [2])

Trata-se, assim, de um aspecto importante na mobilização das práticas e uma das justificativas para manter as crianças em acompanhamento. Ele aparece algumas vezes cifrado na categoria diagnóstica ‘disforia de gênero’ do DSM 5 (APA, 2014: 2APA. American Psychiatric Association. 2014. DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed Editora. 948p.), que designa o “desconforto ou mal-estar causado por uma discrepância entre a identidade de gênero de uma pessoa e seu sexo atribuído ao nascer”, e associado a noção de ‘variabilidade de gênero’, que ressalta o “grau em que a identidade, o papel ou a expressão de gênero difere das normas culturais prescritas para pessoas de um determinado sexo” (Coleman et al., 2012: 5COLEMAN, Eli et al. 2012. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. 7ª ed. [online] WPATH. Disponível em: Disponível em: https://www.wpath.org/publications/soc [Acesso em: 21/02/2020].
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). O quanto uma criança se distancia das normas sociais definidas com base no ‘sexo’ e o grau de sofrimento associado a essa experiência constituem, portanto, dois aspectos para a classificação da não-conformidade de gênero entre crianças; uma classificação articulada a partir da visão dos adultos e que parece evidenciar um “projeto de pessoa”, segundo expressão de Bustamante & Mccalum (2014BUSTAMANTE, Vania; MCCALLUM, Cecilia. 2014. “Cuidado e construção social da pessoa: contribuições para uma teoria geral”. Physis: revista de Saúde Coletiva . Vol. 24, n° 3, p. 673-692.), sujeito a determinadas concepções socioculturais de gênero e organizado em torno da possibilidade de evitar ou gerir sofrimentos que derivam do desacordo a esses padrões.

Os adolescentes e a “puberdade”

Diferente das crianças, os interlocutores relatam que os adolescentes costumam chegar sozinhos/as aos serviços. Mesmo quando os pais/familiares os acompanham, ressalta-se a maior autonomia e acesso à informação quando comparados às crianças. A procura pelos serviços, por sua vez, teria menos relação com as demandas dos familiares, sugerindo que esta mediação se constitui de outro modo.

Eles chegam bastante, eles falam, mas eles têm uma… é isso, já vai pesquisar na internet, já entrou em um grupo de Facebook de trans ou já frequentou alguma reunião ou uma roda de conversa da militância. Então, geralmente, na grande maioria, são muito informados, muito mais do que eu [...] depois que popularizou a internet, as pessoas se descobrem de outros jeitos. Hoje, os adolescentes me dão aula. (Psicóloga [1])

Se no acompanhamento das crianças menores, os profissionais relatam um esforço para ouvir o que elas teriam a dizer, em relação aos adolescentes uma característica relevante é o fato de que eles próprios elaboram uma narrativa sobre suas demandas. Eles são “informados” e “sabem tudo”, como afirma a Psicóloga [1], sugerindo que os adolescentes se descrevem a partir de definições talvez mais próximas daquelas compartilhadas pelos profissionais. Em que pese a maior autonomia dos adolescentes na procura pelos serviços e no acesso à informação, é preciso relativizar o uso do termo. Não se trata aqui da autonomia como um valor, que pressupõe indivíduos livres e independentes, agentes de suas próprias mudanças. Referimo-nos à autonomia que permeia as relações sociais, na qual a ideia de independência se associa a relações de interdependência entre diferentes atores e instituições (Ehrenberg, 2014EHRENBERG, Alain. 2014. “Santé mentale: l’autonomie est-elle un malheur collectif?”. Esprit. Vol. 402, nº 1, p. 101-110.). Essa interdependência fica mais evidente nos processos decisórios que implicam na participação de adultos, da família e dos profissionais, como será abordado no próximo item.

Os adolescentes são atendidos em grupos ou individualmente e as práticas de escuta e observação também são empregadas, mas elaboradas de modo distinto em comparação com o atendimento das crianças. Na medida em que se aproximam da puberdade, é o corpo, “a disforia mesmo relacionada ao próprio corpo” (Médico [1]) que se constitui como ponto central na definição das práticas e das pessoas atendidas.

[...] essa incongruência de gênero fica mais marcada quanto mais vai se aproximando da adolescência, aí a gente encaminha para a endocrinologia pediátrica, que pensa junto, tanto com a criança e os pais, quanto com as equipes, como é que a gente pode ajudar. (Médico [1])

Eu vejo que, justamente, em pacientes mais velhos, há uma procura específica do serviço por conta de hormônios, né? Então, aí a ideia é de acompanhamento em saúde mental, até porque isso fica em segundo plano, na expectativa dos pacientes, das pacientes, né? (Médico [2])

Ao centralizarem as definições de “adolescentes” trans no corpo, os interlocutores revelam como, a partir dessas noções, se constituem outras propostas de intervenção, diferentes daquelas direcionadas às crianças e voltadas principalmente ao brincar. O incômodo frente a puberdade dá base a práticas como o bloqueio puberal e a hormonioterapia:

[...] quando tem a questão já próxima da puberdade, aí as demandas são mais em questão das intervenções. Então, aumentam os sintomas disfóricos, a família já vem buscando bloqueio, na adolescência uma hormonização. (Médica [3])

Então, existe uma certa etapa da puberdade que a gente pode, através da administração de um hormônio que é mensal, bloquear a puberdade para a gente ganhar mais tempo para acompanhar essa criança em psicoterapia, e a criança também diminui muito a ansiedade em relação ao desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários da puberdade, e daí isso acalma também, protege em relação a depressão, ansiedade, tudo o mais [...] tem como a gente brecar, e é um procedimento totalmente reversível [...] Não passa por todo o desconforto do desenvolvimento de um corpo físico que não é atribuído a identidade de gênero daquela pessoa. (Médico [1])

Como no caso das crianças, a categoria “disforia” é empregada para indicar um sofrimento frente ao qual se definem as práticas. Contudo, os relatos sugerem que entre os adolescentes esse sofrimento é mais intenso, resultado das mudanças corporais promovidas pela “puberdade”. Diante de quadros como ansiedade e depressão, o bloqueio puberal representaria uma intervenção reversível11 11 Há um consenso de que o bloqueio puberal não deve ser feito antes de determinado ponto da maturação sexual (Estágio II de Tanner), como dispõe o parecer nº 8 do CFM (CFM, 2013) e a Resolução nº 2.265 (CFM, 2019). capaz de impedir as mudanças corporais, permitindo, como afirma o Médico [1], “ganhar mais tempo” para as decisões sobre os próximos passos e diminuir a “ansiedade em relação ao desenvolvimento dos caracteres sexuais”. Tais afirmações estão em consonância com a literatura científica sobre o bloqueio puberal, que o sugere como forma de prolongar o tempo (Coleman et al., 2012COLEMAN, Eli et al. 2012. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. 7ª ed. [online] WPATH. Disponível em: Disponível em: https://www.wpath.org/publications/soc [Acesso em: 21/02/2020].
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; Hembree et al., 2017HEMBREE, Wylie et al. 2017. “Endocrine treatment of gender-dysphoric/gender-incongruent persons: an endocrine society clinical practice guideline”. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism. Vol. 102, n° 11, p. 3869-3903.; Janicka & Forcier, 2016JANICKA, Agnieszka; FORCIER, Michelle. 2016. “Transgender and gender nonconforming youth: psychosocial and medical considerations”. Rhode Island medical journal. Vol. 99, n° 9, p. 31-34.; Vance et al., 2014VANCE, Stanley R; EHRENSAFT, Diane; ROSENTHAL, Stephen M. 2014. “Psychological and Medical Care of Gender Nonconforming Youth”. Pediatrics, Vol. 134, n° 6, p. 1184-1192.), de aliviar “o sofrimento causado pelo desenvolvimento das características sexuais secundárias” (Vrouenraets et al., 2015VROUENRAETS, Lieke Josephina Jeanne Johanna et al. 2015. “Early medical treatment of children and adolescents with gender dysphoria: an empirical ethical study”. Journal of Adolescent Health. Vol. 57, n° 4, p. 367-373.: 368) e como prática capaz de evitar as “consequências sociais e emocionais negativas da disforia de gênero” (Coleman et al., 2012: 22COLEMAN, Eli et al. 2012. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. 7ª ed. [online] WPATH. Disponível em: Disponível em: https://www.wpath.org/publications/soc [Acesso em: 21/02/2020].
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).

Vale notar que embora o sofrimento seja um aspecto central na definição das pessoas trans12 12 O sofrimento é parte da gramática psicopatológica da transexualidade desde suas primeiras formulações. Como resultado da suposta incongruência entre corpo e mente, ele foi utilizado como critério de acesso as tecnologias de transformação corporal, acionadas como formas de “cura” e ou de “terapêutica” (Barbosa, 2015). acompanhadas e das práticas, seu uso parece sobrepor duas acepções: a) como experiência psicológica que define o quadro clínico de disforia; b) como consequência do não-reconhecimento da identidade de gênero. Ainda que façam menção a situações de exclusão ou violência relacionadas a não-conformidade de gênero, os interlocutores remetem o sofrimento ao próprio paciente, individualizando-o. No caso dos adolescentes, a individualização acompanha uma compreensão da puberdade como dado “natural” e pré discursivo (Butler, 2013BUTLER, Judith. 2013. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 236p.), distante das relações sociais que a inscrevem na vida cultural. Porém, poderíamos questionar: o que produz sofrimento é a puberdade como dado natural e/ou a puberdade como experiência generificada? O que parece estar em jogo é um tipo de sofrimento que resulta de processos sociais mediados por normatividades, impossível de ser totalmente reduzido a um problema médico ou psicológico e que transborda os limites das disciplinas, sendo tanto individual quanto social (Kleinman, Das & Lock, 1997KLEINMAN, Arthur; DAS, Veena; LOCK, Margareth. 2006. Social suffering. Berkeley: University of California Press, 1997. 432p.).

A individualização do sofrimento acompanha, na literatura, propostas de resolução que localizam na pessoa o ponto de intervenção ao afirmar que o “impedimento das intervenções médicas apropriadas” pode levar a uma “aparência que contribui a abusos e estigmatização” (Coleman et al., 2012: 23COLEMAN, Eli et al. 2012. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. 7ª ed. [online] WPATH. Disponível em: Disponível em: https://www.wpath.org/publications/soc [Acesso em: 21/02/2020].
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). Alguns trabalhos associam o diagnóstico precoce e a intervenção em idade adequada “a melhores resultados psicológicos e físicos” (Hembree et al, 2017: 3880HEMBREE, Wylie et al. 2017. “Endocrine treatment of gender-dysphoric/gender-incongruent persons: an endocrine society clinical practice guideline”. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism. Vol. 102, n° 11, p. 3869-3903.), especialmente quando comparados com transições realizadas após a puberdade, em que as pessoas precisariam lidar com “enormes desvantagens para a vida toda” (ibid: 3881). Uma transição “médica cuidadosamente planejada e oportuna” (Janicka & Forcier, 2016: 32JANICKA, Agnieszka; FORCIER, Michelle. 2016. “Transgender and gender nonconforming youth: psychosocial and medical considerations”. Rhode Island medical journal. Vol. 99, n° 9, p. 31-34.) traria benefícios para a saúde mental e para a aparência física ao tornar possível “viver discretamente no papel de gênero desejado” (Vrouenraets et al., 2015: 268VROUENRAETS, Lieke Josephina Jeanne Johanna et al. 2015. “Early medical treatment of children and adolescents with gender dysphoria: an empirical ethical study”. Journal of Adolescent Health. Vol. 57, n° 4, p. 367-373.). Isto posto, a crítica aqui não pretende negar a vulnerabilidade de crianças e adolescentes trans à violência, mas interrogar em que medida expressões como “viver discretamente”, ou “melhores resultados físicos”, não sugerem como o debate sobre as intervenções é interpelado por imperativos de otimização corporal que têm na passabilidade13 13 A categoria “passabilidade” indica e qualifica a possibilidade de uma pessoa trans, ao performar uma suposta coerência entre atributos corporais e o gênero de identificação, ser reconhecida socialmente como pessoa cisgênero (Pontes & Silva, 2017). um ideal e, portanto, na adequação a certo horizonte normativo de gênero a proposta de resolução da própria violência que dele deriva.

O cuidado e os processos decisórios: controvérsias e impasses

Neste item discutimos os processos decisórios e sua relação com as categorias e práticas de avaliação. Decidir favoravelmente ou não pela transição social de crianças e, sobretudo, encaminhar ou não adolescentes para as intervenções hormonais são algumas das questões que acompanham os interlocutores e evidenciam, muitas vezes, dúvidas e inseguranças:

As minhas preocupações são muito essas: de quem vão ser esses adultos que passaram aqui. Eu acho que a gente vai ter que ter uma pesquisa de longo prazo, né? De telefonar para essas pessoas, de ter e falar como você está daqui a dez anos, para saber se o nosso trabalho foi efetivo (Psicóloga [2])

Então, a criança… porque a gente não sabe como é que ela vai crescer [...] Amsterdã tem uma pesquisa enorme, né? Sobre a porcentagem de crianças que desistem, né? Então, os desistentes e os persistentes. (Psicóloga [1])

Os questionamentos sugerem a presença de expectativas e demandas que recaem sob os profissionais e os responsabiliza por uma prática capaz de distinguir, classificar e prever os rumos das experiências das crianças e adolescentes atendidos. Trata-se de uma problemática que se faz presente na relação entre os profissionais e os pais/familiares, que interpelam os primeiros por respostas imediatas, objetivas e definitivas:

A angústia é muito grande, principalmente: o nível de ansiedade por uma resposta: ‘por favor, me diz o que meu filho é’, ‘Não sei. Ele vai contar para a gente, em menos ou em mais tempo’. (Psicóloga [1])

[...] muitas vezes, pais querem respostas muito objetivas, muito exatas: ‘E aí, Doutor, do que você conheceu do meu filho, da minha filha, é uma criança trans? E em sendo, como é que eu lido com isso? Em não sendo, o que que eu tenho que fazer para melhorar?’ E a gente sempre responde que não sabe: ‘Ah, mas meu filho é uma criança trans?’’ [...] Então, um pouco é lidar com a angústia dos pais. (Médico [1])

Em diretrizes internacionais de referência (Coleman et al., 2012COLEMAN, Eli et al. 2012. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. 7ª ed. [online] WPATH. Disponível em: Disponível em: https://www.wpath.org/publications/soc [Acesso em: 21/02/2020].
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; Hembree et al., 2017HEMBREE, Wylie et al. 2017. “Endocrine treatment of gender-dysphoric/gender-incongruent persons: an endocrine society clinical practice guideline”. The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism. Vol. 102, n° 11, p. 3869-3903.) o diagnóstico é apontado como regulador do acesso às intervenções e os profissionais de saúde mental - em especial psicólogos e psiquiatras - indicados como responsáveis por “encaminhar adolescentes para intervenções físicas (como hormônios de supressão da puberdade) para aliviar a disforia de gênero” (Coleman et al., 2012: 15COLEMAN, Eli et al. 2012. Normas de atenção à saúde das pessoas trans e com variabilidade de gênero. 7ª ed. [online] WPATH. Disponível em: Disponível em: https://www.wpath.org/publications/soc [Acesso em: 21/02/2020].
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). Segundo os documentos, esses profissionais devem estar aptos a diagnosticar através dos critérios para Incongruência (CID-11) e Disforia de Gênero (DSM-5), a fim de referir os sujeitos aos tratamentos adequados. Há uma aposta na competência técnica para fornecer certezas que, no entanto, esbarram em dúvidas suscitadas na prática profissional, como sugere a Psicóloga [2]: “a minha preocupação do que está sendo feito, de como fazer isso, [...] se o nosso papel é mesmo autorizar que coisas biológicas sejam feitas, sabe? Se a gente sabe mesmo o que a gente está fazendo”.

Os relatos colocam em questão o protagonismo dos profissionais tanto na avaliação diagnóstica quanto no encaminhamento para a realização das intervenções, levantando dúvidas sobre sua participação no processo decisório:

Eu acho que primeiro: o profissional não pode estar em um lugar de escolha. Eu acho que o nosso primeiro papel é de acolhimento e escuta. E aí, é o que a WPATH fala, né? É a decisão conjunta [...] então, a minha questão é anterior, a partir do momento que a criança é trans e ela quer fazer esse trânsito, a gente conversa com a família, escuta, e se for o caso, ela transita. Acho que isso tem que ser uma decisão 80% da família, e não dos profissionais. Acho que o profissional tem um papel muito mais passivo, de acompanhar, do que de dizer o que eles têm ou não que fazer. (Psicóloga [1])

Na contramão da tomada de decisão, eles enfatizam a ‘escuta’, ‘observação’ e a decisão conjunta e negociada, com participação da família e de outros profissionais. Diante das controvérsias em torno dos processos decisórios, os relatos destacam ainda as distintas visões dos psicólogos e médicos. Uma das psicólogas (Psicóloga [2]) atribui aos médicos certo imediatismo na construção das práticas, sobretudo nas intervenções, contrastando essa postura com a dos psicólogos:

O que me angustia com a equipe médica é essa questão do tempo: o médico, ele escuta uma demanda, e ele quer ajudar, ele quer que isso acabe, ele quer que esse sofrimento pare de existir. Quanto a nós psicólogos… a questão é, ‘tá, tenha calma, esse aqui é o seu espaço, você vai ter esse espaço para fazer isso’, não que nada vai ser feito, mas que a gente respeite que as coisas não são assim. Mas é difícil isso, a gente quer por um tempo, a gente entende que é um tempo dolorido (Psicóloga [2])

Entre os médicos entrevistados, entretanto, a decisão aparece menos como um ponto definitivo e mais como um processo. Mesmo entre eles, as incertezas são comuns:

Eu não vejo a decisão como um ponto, eu vejo a decisão como um continuum, né? Eu acho que é tolice a gente pensar que decidir, a partir de agora eu decidi, eu realmente sou trans, então agora acabou, deixo minha vida cis para trás, né? Agora eu vou tomar hormônio, vou fazer cirurgia. Não, a decisão é um continuum. (Médico [2])

Ah, eu me pego, às vezes, em um vazio, estando em uma ilha, em uma ilha mesmo em relação aos cuidados, eu acho que tem pouquíssimos profissionais [...], já me peguei muito em dúvida se encaminhava uma criança para bloqueio puberal ou não. (Médico [1])

Os relatos expõem as demandas por uma avaliação diagnóstica capaz de fornecer respostas precisas e permanentes a fim de subsidiar os processos decisórios e responder às expectativas dos familiares. Se o ato de diagnosticar pressupõe uma terapêutica baseada em critérios definidos, visto que é “preciso localizar” para agir (Canguilhem, 2011: 8CANGUILHEM, Georges. 2011. O normal e o patológico. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 277p.), no caso do cuidado analisado, ele parece implicar uma concepção de gênero como aspecto mensurável e permanente, passível de ser identificado através de exames, em diferenças encefálicas14 14 Estudos com neuroimagem têm levantando interrogações sobre a relação entre a identidade de gênero e determinados padrões de conformação encefálica (Kreukels & Guillamon, 2016). , nos hormônios ou ainda na mente15 15 Trabalhos como o de Dias (2018), ao possibilitar contrates com situações não-ocidentais, fornecem subsídios para discutir a caráter específico desta perspectiva sociocultural que considera o “gênero” como resultado de uma verdade interior que pode ser verificada e medida. (Bento, 2010BENTO, Berenice. 2010. “Gênero: uma categoria cultural ou diagnóstica?”. In: ARRILHA, Margareth; LAPA, Thaís de Souza; PISANESCHI, Tatiane Crenn. (org.). Transexualidade, travestilidade e direito à saúde. 1ª ed. São Paulo: Oficina Editorial. 372p.). As controvérsias denunciam, no entanto, as dificuldades dos profissionais entrevistados em responder a esta lógica16 16 Este debate inspira uma comparação entre as práticas de saúde acionadas frente a pessoas intersexo e trans. Ainda que a ‘ambiguidade’ genital, no primeiro caso, seja interpretada como uma justificativa mais convincente para as intervenções, em ambos os casos, a procura pelo sexo/gênero verdadeiro é confrontada por critério difusos e múltiplos, revelando incertezas entre os profissionais (Machado, 2005). . Observamos incertezas que se ligam a indeterminação das categorias ‘disforia’ e ‘variabilidade’ e sugerem tanto dificuldades para avaliar questões de gênero a partir de uma razão diagnóstica, quanto a complexidade de experiências que nem sempre se enquadram em valores como “fixidez” e “permanência”. Percebe-se um distanciamento dos profissionais em relação a autoridade atribuída aos saberes ‘psi’ e (bio)médicos. Mais do que “muito poder e pouco saber” (Bento, 2008BENTO, Berenice. 2008. O que é transexualidade. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense. 223p.), no caso dessa pesquisa, a indefinição diagnóstica parece conduzir a busca por estratégias de partilha da responsabilidade decisória, deslocando hierarquias.

Considerações finais

Na análise realizada destaca-se como as práticas de cuidado são orientadas por categorias amplas, como as de ‘variabilidade’ e ‘disforia’ de gênero, em que a distinção entre concepções socioculturais de gênero e critérios diagnósticos é pouco precisa. Os interlocutores são interpelados a diagnosticar e assegurar o manejo adequado das intervenções, frente ao qual manifestam incertezas que acompanham as dificuldades para classificar a diversidade de gênero entre crianças e adolescentes a partir de uma razão diagnóstica, colocada em questões por alguns dos próprios profissionais. O diagnóstico possui um caráter dúbio, pois ele pode tanto limitar, sendo alvo de críticas ao vincular as experiências entre crianças e adolescentes trans a uma gramática psiquiátrica (Winter, 2017WINTER, Sam. 2017. “Gender trouble: The World Health Organization, the International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems (ICD)-11 and the trans kids”. Sexual Health. Vol. 14, n° 5, p. 423-430.), quanto pode oferece uma matriz que permite descrever e interpretar tais experiências. Trata-se, portanto, de uma discussão que aponta como o cuidado a crianças e adolescentes trans acompanha a negociação em torno de “projeto de pessoa” que articula e atualiza convenções socioculturais de gênero.

As reflexões aqui apresentadas não buscam questionar a existência de crianças e adolescentes trans, muito menos advogar contra a assistência em saúde a este público e, tampouco, colocam em dúvida o comprometimento dos profissionais. Se a ampliação do escopo de biotecnologias hormonais, tais como o bloqueio puberal e hormonioterapia, denunciam a expansão do campo biomédico, elas também desafiam as fronteiras entre ‘natural’ e ‘cultural’, oportunizando interrogar modelos socioculturais de identidade baseados em marcas corporais. As práticas interventivas podem ser tanto “produtora de limitações como propulsora de diferenças positivas” (Gaudenzi, 2018: 7GAUDENZI, Paula. 2018. “Intersexualidade: entre saberes e intervenções”. Cadernos de Saúde Pública. Vol. 34, n° 1, p. 1-11.). Logo, trata-se de interrogar o enquadramento da não-conformidade de gênero como “problema médico” (Conrad, 2007CONRAD, Peter. 2007. The Medicalization of Society: On the transformation of Human Conditions into Treatable Disorders. Baltimore: The Johns Hopkins University Press. 204p.) e os limi tes em submeter o reconhecimento das experiências de gênero entre crianças e adolescentes trans a critérios diagnósticos quase indistinguíveis de valores e modelos ideais (Nakamura & Barbarini, 2019NAKAMURA, Eunice; BARBARINI, Tatiana. 2019. “Comportamentos infantis problemáticos, perturbadores e não conformes: conceitos e demandas de cuidado relacionados à agitação em crianças em Santos e Campinas, Brasil”. Revista Saúde e Sociedade . Vol. 28, n° 1, p. 12-26.), o que restringe o cuidado a possibilidade de “fazer voltar a norma” (Canguilhem, 2011: 77CANGUILHEM, Georges. 2011. O normal e o patológico. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 277p.), ainda que os critérios desta norma sejam difíceis de sustentar.

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  • 1
    Este aspecto retoma o debate sobre a globalização de categorias e nosologias psiquiátricas relacionadas a pessoas trans e sua influência na definição de gramáticas de reconhecimento social e jurídico, e delimitação de práticas em saúde (Barbosa, 2015BARBOSA, Bruno Cesar. 2015. Imaginando trans: saberes e ativismos em torno das regulações das transformações corporais do sexo. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.; Leite Júnior, 2011LEITE JUNIOR, Jorge. 2011. Nossos corpos também mudam: a invenção das categorias “travesti” e “transexual” no discurso científico. São Paulo: Annablume. 240p.)
  • 2
    Dentre alguns dos serviços estão os ambulatórios vinculados a Hospitais Escola, como o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e da Universidade Federal de Porto Alegre.
  • 3
    Pesquisa financiada pela FAPESP (nº de processo: 17/154608), intitulada “Concepções e significados de crianças e adolescentes trans nas práticas de cuidado de profissionais da área da saúde”.
  • 4
    Destaca-se o I Encontro Brasileiro de Saúde Trans - BRPATH, realizado entre os dias 1 e 4 de novembro de 2017 na Universidade Federal de São Paulo, Campus São Paulo.
  • 5
    Agradecemos aos entrevistados pela disponibilidade em participar da pesquisa. Trata-se de um campo de atuação profissional e de pesquisa relativamente novo e que resulta diretamente do comprometimento e implicação dos profissionais envolvidos.
  • 6
    Além da Revisão de Literatura Científica sobre o cuidado em saúde voltado a crianças e adolescentes trans, realizada nas bases de dados: Lilacs, Medline, IBECS, Scopus e Web of Science e que, no entanto, não é o foco deste artigo.
  • 7
    WISC, WAIS, HTP, TAT são siglas de testes psicológicos utilizados para avaliar capacidades, competências e demais aspectos do desenvolvimento afetivo-cognitivo e da personalidade. O WISC e o WAIS têm por objetivo avaliar a capacidade intelectual, sendo o primeiro aplicado em pessoas na faixa etária de 6 anos a 16 anos, e o segundo em pessoas entre 16 anos e 90 anos. O HTP é um teste gráfico projetivo destinado a pessoas com idade superior a 8 anos; O TAT - Teste de Apercepção Temática - é também um teste projetivo, que tem por objetivo revelar conteúdo da personalidade como: conflitos, desejos, reações ao ambiente externo e mecanismos de defesa.
  • 8
    A categoria ‘não-conformidade’ é empregada para indicar expressões e comportamentos que escapam às normas sociais de gênero, mas que não adquirem, especialmente no caso de crianças, a forma de uma identidade autodeclarada. Seu uso permite refletir a relação entre modelos socioculturais, comportamentos infantis considerados inadequados e as categorias diagnósticas mobilizadas para classificá-los, como em Nakamura & Barbarini (2019NAKAMURA, Eunice; BARBARINI, Tatiana. 2019. “Comportamentos infantis problemáticos, perturbadores e não conformes: conceitos e demandas de cuidado relacionados à agitação em crianças em Santos e Campinas, Brasil”. Revista Saúde e Sociedade . Vol. 28, n° 1, p. 12-26.).
  • 9
    A identificação que fazem os familiares dos comportamentos infantis e a narrativa que os próprios adolescentes elaboram sobre si mesmos, como veremos, levantam questões sobre a difusão de categorias biomédicas pelo saber não-especializado que, como propõe Hacking (2007HACKING, Ian. 2007. “Kinds of people: Moving targets”. In: Proceedings of the British Academy. Oxford University Press. Vol. 151, p. 285-318.), incidem sobre o modo como pessoas definem a si mesmas, significam suas ações e reescrevem o sentido de suas experiências.
  • 10
    Como destaca o próprio texto do DSM 5: muitos dos critérios básicos fundamentam-se nas diferenças comportamentais de gênero bem comprovadas entre meninos e meninas com desenvolvimento normal” (APA, 2014: 455APA. American Psychiatric Association. 2014. DSM-5: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 5ª ed. Porto Alegre: Artmed Editora. 948p.).
  • 11
    Há um consenso de que o bloqueio puberal não deve ser feito antes de determinado ponto da maturação sexual (Estágio II de Tanner), como dispõe o parecer nº 8 do CFM (CFM, 2013CFM. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. 2013. Parecer nº 8. Terapia hormo nal para adolescentes travestis e transexuais [online] Portal Médico. Disponível em: Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/pareceres/CFM/2013/8_2013.pdf [Acesso em 21/02/2020].
    http://www.portalmedico.org.br/pareceres...
    ) e a Resolução nº 2.265 (CFM, 2019CFM. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. 2019. Resolução nº 2.265: Dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero [online]. Disponível em: Disponível em: http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-2.265-de-20-de-setembro-de-2019-237203294- [Acesso em 21/02/2020].
    http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolu...
    ).
  • 12
    O sofrimento é parte da gramática psicopatológica da transexualidade desde suas primeiras formulações. Como resultado da suposta incongruência entre corpo e mente, ele foi utilizado como critério de acesso as tecnologias de transformação corporal, acionadas como formas de “cura” e ou de “terapêutica” (Barbosa, 2015BARBOSA, Bruno Cesar. 2015. Imaginando trans: saberes e ativismos em torno das regulações das transformações corporais do sexo. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.).
  • 13
    A categoria “passabilidade” indica e qualifica a possibilidade de uma pessoa trans, ao performar uma suposta coerência entre atributos corporais e o gênero de identificação, ser reconhecida socialmente como pessoa cisgênero (Pontes & Silva, 2017PONTES, Júlia Clara; SILVA, Cristiane Gonçalves. 2017. “Cisnormatividade e passabilidade: deslocamentos e diferenças nas narrativas de pessoas trans”. Revista Periódicus. Vol. 1, n° 8, p. 396-417.).
  • 14
    Estudos com neuroimagem têm levantando interrogações sobre a relação entre a identidade de gênero e determinados padrões de conformação encefálica (Kreukels & Guillamon, 2016KREUKELS, Baudewijntje; GUILLAMON, Antonio. 2016. “Neuroimaging studies in people with gender incongruence”. International Review of Psychiatry. Vol. 8, n° 1, p. 120-128.).
  • 15
    Trabalhos como o de Dias (2018DIAS, Diego Madi. 2018. “O parentesco transviado, exemplo guna (Panamá)”. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro). N° 29, p. 25-51.), ao possibilitar contrates com situações não-ocidentais, fornecem subsídios para discutir a caráter específico desta perspectiva sociocultural que considera o “gênero” como resultado de uma verdade interior que pode ser verificada e medida.
  • 16
    Este debate inspira uma comparação entre as práticas de saúde acionadas frente a pessoas intersexo e trans. Ainda que a ‘ambiguidade’ genital, no primeiro caso, seja interpretada como uma justificativa mais convincente para as intervenções, em ambos os casos, a procura pelo sexo/gênero verdadeiro é confrontada por critério difusos e múltiplos, revelando incertezas entre os profissionais (Machado, 2005MACHADO, Paula Sandrine. 2005. “O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e a produção do sexo (como se fosse) natural”. Cadernos Pagu. N° 24, p. 249-281.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Out 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2020
  • Aceito
    20 Ago 2020
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