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As cores do antirracismo (na Améfrica Ladina)* * Tradução: Matheus França (Universidade Federal de Goiás - UFG), e-mail: matheusgfranca@gmail.com. Revisão técnica: Silvia Aguião (AFRO - Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial - AFRO/CEBRAP e CLAM- Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos - CLAM/UERJ), e-mail: saguiao@gmail.com.

Resumo

Neste artigo, refiro-me às particularidades que as lutas antirracistas têm assumido na América Latina, região em que até recentemente se pensava que o racismo era uma questão irrelevante devido à sua composição demográfica mista em termos étnico-raciais. Nos últimos trinta anos essa percepção vem mudando devido ao reconhecimento de seu multiculturalismo e, ao mesmo tempo, dos problemas que colocam em evidência a implementação do projeto de Estado multicultural e o modelo neoliberal de desenvolvimento político e econômico. Atualmente, podemos falar de uma virada antirracista na região para designar a maior atenção que se dá ao racismo na esfera pública e entre os movimentos sociais. Apresento essas reflexões a partir de minha experiência situada, como mulher colombiana e feminista afro-latino-americana; isto é, de um lugar de enunciação e de uma posicionalidade particular frente as questões do racismo e do antirracismo. Além disso, o faço isso em diálogo com o sociólogo francês Eric Fassin para examinar em paralelo os desafios que o trabalho acadêmico antirracista enfrenta hoje em função do lugar de fala que se assume.

Palavras-chave:
racismo; antirracismo; América Latina, Colômbia; lugar de fala; posicionalidade

Resumen

En este artículo me refiero a las particularidades que han adoptado las luchas antirracistas en América Latina, una región en la que hasta hace poco se pensó que el racismo era un tema irrelevante debido a su composición demográfica mezclada en términos étnico-raciales. En los últimos treinta años esta percepción ha ido cambiando en razón del reconocimiento de su multiculturalidad y, al mismo tiempo, de los problemas que puso en evidencia la puesta en práctica del proyecto estatal multicultural y el modelo político y de desarrollo económico neoliberal. En la actualidad, podemos hablar de un giro antirracista en la región, para designar la mayor atención que hoy se presta al racismo en el ámbito público, y en el de los movimientos sociales. Presento estas reflexiones desde mi experiencia situada, de mujer colombiana y feminista afrolatinoamericana; es decir desde un lugar de enunciación y una posicionalidad particulares frente a los temas del racismo y el antirracismo. Además, lo hago en conversación con el sociólogo francés Eric Fassin para examinar en paralelo los desafíos que hoy enfrenta el trabajo académico antirracista en función del lugar de enunciación que se asuma en él.

Palabras clave:
racismo; antirracismo; América latina, Colombia, lugar de enunciación, posicionalidad

Abstract

In this article, I refer to the particularities that anti-racist struggles have adopted in Latin America, a region in which until recently it was thought that racism was an irrelevant issue due to its mixed demographic composition in ethnic-racial terms. In the last thirty years, this perception has been changing due to the recognition of its multiculturalism and, at the same time, of the problems that put in evidence the implementation of the multicultural state project and the neoliberal political and economic development model. At present, we can speak of an anti-racist turn in the region, to designate the greater attention that today is paid to racism in the public sphere, and in that of social movements. I present these reflections from my situated experience, as a Colombian woman and an Afro-Latin American feminist; that is to say, from a place of enunciation and a particular positionality vis-à-vis the issues of racism and anti-racism. In addition, I do it in conversation with the french sociologist Eric Fassin to examine in parallel the challenges that anti-racist academic work faces today in terms of the place of enunciation that is assumed in it.

Keywords:
racism; anti-racism; Latin America; Colombia; place of enunciation; positionality

Introdução** ** Nota Editorial: Esse artigo é resultado do diálogo entre duas conferências apresentadas por Mara Viveros Vigoya e Eric Fassin durante a 32a Reunião da Associação Brasileira de Antropologia - RBA, realizada em formato virtual entre 30 de outubro e 6 de novembro de 2020. A publicação do artigo de Eric Fassin está prevista para o número 37 de Sexualidad, Salud y Sociedad, durante o primeiro quadrimestre de 2021.

A metáfora da cor, um signo que transmite mensagens e provoca sensações em relação à diferença, é um convite a falar, em primeiro lugar, da diversidade e da heterogeneidade do racismo e do antirracismo local, de suas tensões, ambiguidades e contradições em sociedades pigmentocráticas como podem ser a colombiana e a brasileira. Em segundo lugar, é uma imagem que nos permite colocar em perspectiva nossos distintos lugares de fala.

No meu caso, referir-me às cores do antirracismo a partir da minha experiência situada, de mulher colombiana, feminista afrolatinoamericana, implica falar em três coisas: 1) das cores que tem o racismo no meu país e nesta Améfrica Ladina, para mencionar este lado do mundo com as perspicazes e penetrantes palavras da pensadora afro-brasileira Lélia González (2018GONZÁLEZ, Lélia. 2018. Lélia Gonzalez: primavera para as rosas negras. São Paulo: UCPA Editora.) - para designar uma região na qual o projeto das elites criollas, descendentes de europeus, foi pensado apagando e desconsiderando a presença e a identidade dos povos originários e das populações de origem africana; 2) do giro antirracista na região, isto é, esta mudança que se deu na forma em que hoje se presta atenção, no âmbito público, ao racismo e seus efeitos no panorama do trabalho antirracista (Moreno Figueroa & Wade, no prelo); e 3) do meu lugar de fala e posicionalidade frente aos temas do racismo e, por conseguinte, do antirracismo a partir de três experiências de pesquisa.

I. As cores do antirracismo na Améfrica Ladina

Interrelação entre racismo, racialização, raça e colonialidade do poder

Desde o período colonial as desigualdades sociais tiveram, no que hoje chamamos América Latina, uma dimensão racial. Para o sociólogo peruano Aníbal Quijano (2000QUIJANO, Aníbal. 2000. “Colonialidad del poder y clasificación social”. Journal of World-Systems Research. Summer/fall 2000. Vol. VI, nº 2, p. 342-386.), a raça é o artefato mais importante da Conquista e da colonização; o que permitiu converter em “outros” os vencidos na guerra da Conquista (Segato, 2010SEGATO, Rita Laura. 2010. “Los cauces profundos de la raza latinoamericana: una relectura del mestizaje”. Crítica y Emancipación. Junio de 2010. Año II, Núm. 3, p. 11-44.). A estes se atribuiu uma natureza outra, indelével, no corpo. Esta alteridade imposta possibilitou a expropriação de seus produtos e saberes, cuja mais-valia nunca foi reconhecida ou remunerada (Quijano, 1993QUIJANO, Aníbal. 1993. “‘Raza’, ‘etnia’ y ‘nación’ en Mariátegui: cuestiones abiertas”. En: FORGUES, R. (ed.). José Carlos Mariátegui y Europa. La otra cara del descubrimiento. Lima: Amauta.). A permanência deste padrão de poder, cuja pedra angular é a imposição de uma classificação racial/étnica à população, que Quijano denominou colonialidade, também pode ser lida na persistência do valor do capital racial da branquidade.

Parto do pressuposto de que sem racismo e sem racialização não existe raça. Dito de outra maneira, o conceito de “raça” deriva do racismo, e não o contrário (Wade & Moreno Figueroa, no prelo). O racismo alude à ideologia e às práticas que vinculam discursivamente corpos, comportamentos e heranças bioculturais para justificar, produzir e reproduzir relações de desigualdade que se traduzem em privilégios, benefícios, poder e segurança que dizem respeito a estes processos. Seu discurso é em si mesmo mutável e remete sempre a configurações históricas específicas de dominação social profundamente arraigadas em contextos políticos, econômicos e culturais variáveis (Guillaumin, 1988GUILLAUMIN, Colette. 1988. “Race and nature: The system of marks”. Feminist Issues. Jun.. Vol. 8, nº2, pp. 25-43.; Wade, 2002WADE, Peter. 2002. Race, nature and culture: an anthropological perspective. London: Pluto Press.).

Por último, é importante considerar que as hierarquias raciais foram definidas a partir de critérios múltiplos que podem ser fenotípicos, culturais, religiosos ou linguísticos; mas ao mesmo tempo, que, nos ordenamentos raciais modernos, a branquidade ou branquitude é o referente universal - que serve de ponto zero e absoluta positividade - e a tábula rasa a partir da qual se avaliam e se classificam todas as outridades do Ocidente (Laó Montes, 2020LAÓ MONTES, Agustín. 2020. Contrapunteos diaspóricos: Cartografías políticas de Nuestra Afroamérica. Bogotá: Universidad Externado de Colombia.). A esses processos de hierarquização, de atribuição de significados raciais (a sujeitos, a instituições e estruturas) e de produção de categorias que geram alteridade e minoração denominamos racialização.

Racismo individual, racismo institucional sistêmico ou estrutural

É importante distinguir entre o racismo individual e o racismo institucional (Bonilla-Silva, 2011BONILLA-SILVA, Eduardo. 2011. “¿Qué es el racismo? Hacia una interpretación estructural”. En: MOSQUERA ROSERO-LABBÉ, C., LAÓ-MONTES, A. y RODRÍGUEZ GARAVITO, C. (eds.). Debates sobre ciudadanía y políticas raciales en las Américas Negras. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia. Facultad de Ciencias Humanas. Centro de Estudios Sociales-CES/ Universidad del Valle. p. 649-698.). O primeiro se refere a atos de estigmatização, que degradam e vulneram o valor de certa classe de pessoas racializadas, seja mediante insultos, agressões, ameaças, mas também brincadeiras, piadas, estereótipos negativos, atos negligentes etc. Igualmente, alude a atos de discriminação, que podem ser intencionais ou não, e que aplicam um tratamento ao mesmo tempo diferente e desigual a um grupo e, por conseguinte, aos indivíduos que o compõem, em função de traços socialmente construídos como diferenças negativas.

O segundo tipo de racismo, o institucional, é o que atua através das “forças estabelecidas e respeitadas na sociedade” (Carmichael & Hamilton, 1967: 4CARMICHAEL, Stokely; HAMILTON, Charles V. 1967. Black Power: the politics of liberation. New York: Random House., tradução livre), como são as instituições educativas, econômicas, sanitárias, culturais etc. Seu efeito na América Latina foi que as pessoas indígenas e afrodescendentes têm maiores taxas de mortalidade infantil, maior incidência de necessidades básicas insatisfeitas, piores condições de vida e menor acesso à educação e à saúde. O racismo institucional funciona através de organizações concretas, mas também através de estruturas sociais que se desenvolvem para além dos limites das instituições particulares. Ao falar de racismo estrutural, mais que de racismo institucional, podemos entender melhor como se perpetuou historicamente, através de distintas práticas racializadas, o poder do grupo social construído como branco, desfavorecendo sistematicamente os grupos não brancos.

Contudo, a diferença entre o racismo individual/direto e o institucional/sistêmico ou estrutural não é fácil de estabelecer se tomamos em conta que a agência e a estrutura são interdependentes na forma em que se modela o comportamento humano, constituindo-se mutuamente. Por isso, o velho e conhecido hábito na América Latina de agentes policiais “prenderem (em via pública) para averiguação de antecedentes” pode operar através da identificação que fazem os agentes individuais que se dirigem preferencialmente a certa categoria de pessoas, como acontece no Brasil com os homens negros, jovens e residentes de favelas; mas também pode vincular-se a uma “cultura” policial e a uma cultura brasileira hegemônica mais extensa - que percebe os homens negros, jovens e residentes em favelas como ameaçadores e mais propensos a criminalidade.

O racismo na América Latina

Na América Latina a mestiçagem foi uma das ficções fundacionais de suas identidades nacionais (Sommer, 1991SOMMER, Doris. 1991. Foundational Fictions: The National Romances of Latin America. Berkeley-Los Ángeles-London: University of California Press.). Enquanto em alguns países o nacionalismo adotou a forma da idealização da mestiçagem e da afirmação da ideologia democrática geral de que “todos éramos mestiços”, em outros prevaleceu a ideologia discriminatória que associou a consolidação nacional com o processo de branqueamento (Helg, 1990HELG, Aline. 1990. “Race in Argentina and Cuba, 1880-1930”. In: GRAHAM, R. (Ed.). The idea of race in Latin America, 1870-1940. Austin: University of Texas Press. p. 37-69.). Essa ideologia racial que realça a mestiçagem, afirmando que a diversidade da nação se enraíza em um longo processo de mistura, permitiu que se conclua que, se afinal de contas “todos somos mestiços”, não podemos ser outra coisa que sociedades democráticas em termos raciais (Rahier, 2012RAHIER, Jean (ed.). 2012. Black social movements in Latin America: from monocultural mestizaje to multiculturalism. New York: Palgrave Macmillan.). A ideologia da mestiçagem teve grande influência até finais do século XX, quando se reconheceu constitucionalmente na maioria dos países da região seu caráter multicultural e pluriétnico. Assim, a ideologia da mestiçagem foi complementada com a ideologia multiculturalista e ambas convivem com claras hierarquias raciais e formas de racismo (Wade, 2009WADE, Peter. 2009. Race and Sex in Latin America. London: Pluto Press .). É esta convivência que explica que, ainda que às vezes se reconheça a existência do racismo, seja tão difícil identificá-lo e aceitar a sua presença entre nós. Estas poderosas narrativas de construção nacional, que descrevem as sociedades como fundamentalmente mestiças, obstaculizaram o reconhecimento do racismo e submeteram aqueles que destacam a sua presença a uma deslegitimação moral, acusando-os de racistas. Por outra parte, um discurso em que se projeta a mistura racial como fundamentalmente antagônica ao racismo faz com que formas reconhecidas de racismo sejam percebidas como um problema em vias de ser resolvido.

Na América Latina o racismo não é percebido da mesma maneira que nos Estados Unidos, porque não se refere a fronteiras fixas entre grupos raciais nem a marcas ancestrais detectadas pelo sistema institucional da “gota de sangue”. Na América Latina, o racismo se exerce em relação à aparência, aos traços físicos, à fisionomia, aos gestos, ao sotaque. A raça é lida pelas marcas que deixa nos corpos e não em função da genealogia e da origem, como nos Estados Unidos (Segato, 2007SEGATO, Rita Laura. 2007. La Nación y sus Otros. Raza, etnicidad y diversidad religiosa en tiempos de políticas de la identidad. Buenos Aires: Prometeo.). Na América Latina, a racialização é transversal às fronteiras de classe e incorpora as diferenças socioeconômicas mediante um ordenamento pigmentocrático. O racismo “latino-americano” está ligado ao classismo porque as classes têm cores de pele distintas, no sentido de que, como tendência geral, as pessoas e famílias com maior capital (social, cultural, escolar, econômico, simbólico etc) têm a tez mais “clara” e, inversamente, as de menor capital têm a tez mais “escura” (Urrea Giraldo, Viáfara López e Viveros Vigoya, 2014URREA GIRALDO, Fernando, VIÁFARA LÓPEZ, Carlos & VIVEROS VIGOYA, Mara. 2014. “From whitened miscegenation to tri-ethnic multiculturalism. Race and ethnicity in Colombia.” In: TELLES, E. (Ed.). Pigmentocracies. Ethnicity, Race, and Color in Latin America. NC: University of North Carolina Press, Chapel Hill. p. 81-125.). Por outra parte, na Colômbia cada região produziu sua forma própria de criar alteridades e mencionar as especificidades das culturas locais tem sido uma maneira de falar de raça sem nomeá-la, já que as regiões, por razões históricas, foram construídas a partir de relações sociais de raça (Wade, 1993WADE, Peter. 1993. Blackness and Race Mixture in Colombia. The Dynamics of Racial Identity in Colombia. Baltimore: Johns Hopkins University Press.).

Estas considerações sobre as formas de alteridade e desigualdade histórica, próprias do contexto latino-americano e colombiano, explicam que as formas de racialização e as formas de ativismo antirracista sejam também específicas e distintas de outros contextos nacionais. Assim, na América Latina, o racismo é minimizado, negado, visto como algo anacrônico ou “extraordinário”. Está tão naturalizado que é muitas vezes inconsciente, ao ponto que a aplicação deste conceito costuma limitar-se a fatos que ocorrem nos Estados Unidos ou que ocorreram antes na Europa, na Alemanha nazista, na África do Sul, ou em nossa região, porém em períodos históricos anteriores, coloniais (Pisano, 2014PISANO, Pietro. 2014. “Movilidad social e identidad “negra” en la segunda mitad del siglo xx”. Anuario Colombiano de Historia Social y de la Cultura. Enero de 2014. Vol. 41, nº 1, p. 179-199.). Não é percebido em expressões verbais tão muito arraigadas em nossas culturas como aquela em que se diz “se le subió el indio” como sinônimo de “se mostrou rude, tosco”1 1 [Nota do tradutor]: no sentido de ‘selvagem’, ‘não-civilizado’. Agradeço à professora Angela Facundo por sua generosidade em me explicar sobre os sentidos culturais implícitos nessa expressão. ou “merienda de negros” para se referir a uma situação de desordem e confusão. No máximo se torna visível quando existem ações explícitas ou violentas de discriminação racial (Viveros Vigoya, 2007VIVEROS VIGOYA, Mara. 2007. “Discriminación racial, intervención social y subjetividad. Reflexiones a partir de un estudio de caso en Bogotá”. Revista de Estudios Sociales. Agosto de 2007. N° 27, p. 106-121.).

Na América Latina circulam atualmente discursos sobre o “racismo reverso”, e as vítimas do racismo são apontadas como racistas por enfatizar “demais” o tema racial. Frequentemente se reduz e deslegitima a posição moral e psicológica daqueles que denunciam o racismo, acusando-os de complexados, ressentidos, hipersensíveis, paranoicos, vingativos, violentos e instáveis. A negação do racismo produz sensações de desorientação, insegurança, confusão e dúvida nas vítimas, nas testemunhas e em quem o denuncia. Além disso, percebe-se a luta contra o racismo como uma agenda política distrativa, anglocêntrica e divisora das lutas de classe e de gênero. Nesse contexto, a vivência do racismo deve ser “demonstrada” diante da presunção de ser inventada, exagerada ou o produto de uma distorção subjetiva (Wade & Moreno Figueroa, no prelo).

Frequentemente, os termos “racismo/racial/raça” são evitados por sua carga histórica e substituídos por vocábulos relacionados com categorias étnicas ou referidas à diversidade cultural. Quando se admite, o racismo é geralmente examinado como uma ideologia que promove atos individuais associados à injúria, à repulsa e à humilhação, mas poucas vezes se percebe ou se denuncia sua dimensão estrutural. Por outro lado, assume-se que os povos indígenas sofrem menos racismo que as populações negras e que a discriminação racial afeta majoritariamente as populações afrodescendentes. Isso reduz a possibilidade de criar alianças e de encontrar elementos comuns em seus processos de exclusão racial. Se encobre o fato de que o racismo atravessa toda a organização social e que, portanto, as pessoas que se reconhecem como mestiças (ou brancas) também estão afetadas por esse ordenamento racial e que seu privilégio se sustém sobre a opressão dos grupos racializados. No caso de pessoas mestiças, a situação e a implicação com o racismo são ainda mais confusas e ambivalentes, dada a complexidade da classificação e leitura de sua raça. Assim, em função dessa categorização, as pessoas mestiças podem se encontrar em circunstâncias nas quais podem ser lidas como vítimas ou, pelo contrário, como perpetradoras de atos racistas.

II. A pluralidade de orientações do antirracismo na América Latina

A partir do panorama descrito para o racismo na América Latina, como se pode entender o antirracismo na América Latina e como ele se manifesta? Essas duas perguntas foram exploradas em uma investigação (LAPORA2 2 LAPORA - El Antirracismo Latino-Americano em Tempos ‘Pós-Raciais’. Projeto de investigação dedicado a práticas e ideologias antirracistas no Equador, Brasil, Colômbia e México (https://www.lapora.sociology.cam.ac.uk/es). ) - dirigida por Monica Moreno Figueroa e Peter Wade e na qual participei como co-pesquisadora sobre vinte estudos de caso de uma série de organizações indígenas e negras ou de pessoas individuais que trabalham e lutam contra o racismo no Brasil, na Colômbia, no Equador e no México, e sobre as estratégias que utilizam para levar adiante este trabalho. Poderíamos caracterizar estas estratégias como orientadas em duas direções: a primeira, o desejo de desafiar algo que a organização ou a pessoa identifica como “racismo” ou, mais frequentemente, como “discriminação racial”. A segunda, a intenção de vincular o trabalho e o assunto do racismo à realização de objetivos mais amplos: acesso a direitos territoriais ou resistência à desterritorialização, maior segurança, maior acesso à justiça, defesa do direito à vida, autonomia. Essa última orientação foi impulsionada principalmente por ativistas indígenas, ou em alguns casos negros, que se mostraram cautelosos na hora de colocar o racismo na frente e no centro de suas demandas. E isso por diversas razões: uma forma de abordar e de compreender os problemas que privilegiam as problemáticas de classe ou etnicidade; ou os custos simbólicos que implicam assumir que se é objeto de discriminação racial em uma sociedade que minimiza o racismo. Com base nessas considerações, a equipe de investigação chegou ao conceito de “gramáticas alternativas do antirracismo” para dar conta das ações e dos discursos nos quais a desigualdade racial e o racismo não são explícitos ou centrais, mas tampouco ausentes, e cujos efeitos são antirracistas; porque desafiam a distribuição racializada de poder e do valor, material e simbólico.

Certas organizações indígenas apontaram por exemplo que “raça” era um conceito antiquado, ou que o racismo era um problema de cor de pele e, portanto, mais relevante para as pessoas negras do que para eles, especialmente porque aqueles que apresentaram a questão tinham uma aparência não muito diferente à de pessoas mestiças ou brancas. Não obstante, nas entrevistas mostraram-se conscientes, em maior ou menor grau, das relações existentes entre injustiça, desterritorialização, violência e racismo. Isso vem mudando mais recentemente, como ilustrado no ocorrido em 16 de setembro de 2020. O povo Misak do Cauca realizou um julgamento simbólico do espanhol Sebastián de Belalcázar, intitulado pela história oficial como o fundador de Cali e de Popayán. Após declará-lo culpado de delitos como genocídio, desapropriação e grilagem de terras, desaparecimento físico e cultural dos povos que faziam parte da Confederação Pubenence, derrubaram e decapitaram sua estátua e exigiram do Estado reparação histórica “em tempos de racismo, discriminação, feminicídios, corrupção e assassinato de líderes sociais”.

Algumas vezes, as menções alusivas à classe evocaram ao mesmo tempo a diferença racial, seja como uma presença fantasmal ou visceral. Como uma presença fantasmal que coloca em primeiro plano a história, não como uma acumulação de experiências anteriores, mas como pegadas que permanecem mesmo quando se tenta apagá-las. Ou como uma presença visceral, que diante de um evento percebido como racista, desperta emoções que vinculam pobreza, falta de poder e prestígio à condição racializada. Outras vezes, encontramos situações como as que vivem as mães brasileiras de vítimas da brutalidade policial, que exigem explicações, justiça e reparação da parte do Estado e involucram simultaneamente o racismo, o classismo e o sexismo, sem necessariamente nomeá-los. Assim, quando as mães da Rede Contra a Violência no Rio de Janeiro afirmam que superaram o medo das elites e das forças repressivas porque lutam “como mães” e “com o útero”, seus sentimentos de sofrer injustiça e desigualdade derivam de suas claras percepções a respeito de sua vulnerabilidade e da de seus filhos frente a violência policial, por serem pessoas e mulheres negras e pobres. Dito de outra forma, numerosas situações como as mencionadas durante a investigação nos mostram que, na América Latina, a classe e o gênero também são modalidades através das quais se vive a raça.

Giro para o antirracismo

O “giro multicultural” oficial abriu espaço na América Latina para nomear e reconhecer a diversidade cultural e os direitos das populações indígenas, e em menor medida, negras (Hooker, 2009HOOKER, Juliet. 2009. Race and the politics of solidarity. Oxford: Oxford University Press.; Paschel, 2016PASCHEL, Tianna S. 2016. Becoming black political subjects: movements and ethno-racial rights in Colombia and Brazil. Princeton: Princeton University Press.); no entanto, prestou menos atenção às questões de racismo e desigualdade racial, exceto no Brasil. As organizações indígenas propuseram suas demandas em termos de direitos étnicos à terra, à etnoeducação e à autonomia política e legal. Os movimentos sociais negros, que nas décadas passadas haviam denunciado o impacto do racismo, enfocaram a titulação de terras e o reconhecimento cultural, abandonando as problemáticas (laborais, educativas, de saúde e moradia) da população urbana, exceto, novamente, no Brasil (Sansone, 2003SANSONE, Livio. 2003. Blackness without Ethnicity: Constructing Race in Brazil. New York: Palgrave Macmillan .). Contudo, há aproximadamente dez anos, observa-se um renovado interesse público no restante dos outros países latinoamericanos pelo racismo, dando lugar a políticas e programas liderados pelo Estado, por ONG e organizações sociais que começam a ter repercussão no trabalho antirracista.

A equipe do LAPORA atribui esta reorientação ao tema do racismo a três fatores: às deficiências políticas e à falta de autonomia do projeto estatal multicultural (Hale, 2002HALE, Charles R. 2002. “Does multiculturalism menace? Governance, cultural rights and the politics of identity in Guatemala”. Journal of Latin American Studies. Ago.. Vol. 34, n° 3, p. 485-524.; Rahier, 2012RAHIER, Jean (ed.). 2012. Black social movements in Latin America: from monocultural mestizaje to multiculturalism. New York: Palgrave Macmillan.); à regressão dos processos e das conquistas sociais e políticas obtidas no marco do multiculturalismo; à exacerbação das desigualdades sociais e raciais e da violência, como efeito da política neoliberal e seus modelos de desenvolvimento econômico extrativista, de seguridade e defesa (Escobar, 2008ESCOBAR, Arturo. 2008. Territories of difference: place, movements, life, redes. Durham, NC: Duke University Press.; Martínez Novo, 2018MARTÍNEZ NOVO, Carmen. 2018. “Ventriloquism, racism and the politics of decoloniality in Ecuador”. Cultural Studies. Marzo de 2018. Vol. 32, N°. 3, p. 389-413. Disponible en https://doi.org/10.1080/09502386.2017.1420091
https://doi.org/10.1080/09502386.2017.14...
).

Junto a isso, os Estados latino-americanos têm adaptado suas políticas e programas à crescente presença do discurso do racismo, que já estava vigente no Brasil desde o início do novo milênio, vinculado às lutas travadas contra o racismo sistêmico na educação e aos debates em torno das ações afirmativas (Segato, 2006SEGATO, Rita Laura. 2006. “Racismo, discriminación y acciones afirmativas: herramientas conceptuales”. En: ANSIÓN, Juan y TUBINO, Fidel (eds.). Educar en ciudadanía intercultural. Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú. p. 63-90.). Na Colômbia, o Estado apoiou campanhas contra o racismo e em 2011 aprovou uma lei contra o racismo e a discriminação. O Equador aprovou entre 2008-2009 leis que proíbem o racismo e políticas de ação afirmativa para o emprego de indígenas e afrodescendentes nas instituições estatais; e em muitos países da região aumentou-se o número de instituições especializadas que se ocupam de temas de discriminação racial e implementam medidas para cumprir as determinações da Década Internacional das Nações Unidas para os Afrodescendentes (2015-2024). Por sua parte, no México, o presidente López Obrador se referiu explicitamente à luta contra o racismo em seu primeiro discurso, como o primeiro dos 100 compromissos de seu novo governo, em 2018.

Mesmo com todos esses avanços, é importante destacar que em quase todos os casos o racismo tem sido entendido mais como um conjunto de atitudes e comportamentos discriminatórios e de estigmatização do que como um processo estrutural. Nesse sentido, quase nenhuma das propostas descritas tem buscado desafiar as desigualdades historicamente acumuladas, estruturais e racializadas da sociedade em seu conjunto.

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Com base na análise dos resultados da investigação mencionada, se pode afirmar que o panorama atual do antirracismo na América Latina inclui ações ligadas tanto a gramáticas explícitas de antirracismo como a gramáticas alternativas de antirracismo. Examinar ambas as modalidades e suas diversas possibilidades e limitações enriqueceu e complicou o que se pode entender e mobilizar como antirracista ou não. Assim, encontramos que o antirracismo radical pode estar presente em ações que não colocam no centro o tema do racismo; e, pelo contrário, algumas ações que nomeiam explicitamente o racismo podem ser reformistas e ter unicamente um alcance simbólico. Em todos os casos, a modalidade menos frequente é a que se orienta a reduzir as desigualdades raciais estruturais, como no caso das ações afirmativas. Ao mesmo tempo, têm sido desenvolvidas distintas e valiosas iniciativas no âmbito midiático, legal e cultural em torno do corpo, do território, da mobilidade social e da reparação legal, que tendem a focar mais nos indivíduos e a ter um efeito mais simbólico do que prático. Essa diversidade de achados convida a assumir a importância do reconhecimento da heterogeneidade das lutas antirracistas que estão sendo travadas na região.

Este ano, à raiz das manifestações e dos protestos que suscitou o assassinato de George Floyd, se multiplicaram as declarações e os escritos sobre a violência policial e contra o racismo, e se reatualizaram casos de denúncia de violência e racismos locais. Esse tipo de denúncia tem sido incorporado na agenda política de muitos movimentos sociais e tem convocado pessoas de diversas origens étnicas em torno de uma consciência crescente de que o combate contra o racismo não é unicamente um assunto de suas vítimas, mas sim um problema sistêmico, expressão que começou a ser utilizada recentemente de forma generalizada. Igualmente, começou-se a falar da necessidade de uma mudança radical para encarar um futuro melhor em uma sociedade na qual a palavra de ordem “Vidas Negras e Indígenas Importam” se faça realidade.

A seguir, gostaria de apresentar algumas ideias surgidas dos vários momentos de tensão que vivi em relação ao racismo e ao antirracismo, em diferentes situações, seja como pesquisadora, docente ou como habitante de um país em que o mundo universitário está conformado e dirigido majoritariamente por homens brancos. Um mundo no qual a minha situação de mulher negra educada me tem feito viver constantemente a situação de ser uma outsider within (Collins, 1986COLLINS, Patricia Hill. 1986. “Learning from the outsider within: the sociological significance of black feminist thought”. Social Problems, v.33, n. 6, “Special theory issue”, p.14-32, Oct.-Dec. University of California Press.), ou seja, uma pessoa que tem uma relação particular de conhecimento/poder que possibilita alcançar o conhecimento sobre um grupo dominante sem obter o pleno poder que é outorgado aos membros desse grupo. Dado o caráter minoritário de minha experiência e posição dentro da Universidade, tenho sido constantemente confrontada com a necessidade de defender a legitimidade dos temas sobre os quais trabalho e de minhas posturas no campo acadêmico. Esta é uma carga adicional que não têm meus colegas, cujos marcadores de raça e gênero os eximem desta obrigação. Não obstante, depois de um bom número de anos na universidade como docente e pesquisadora, acessei também certos privilégios que me fizeram compreender, a partir de uma perspectiva complexa da interseccionalidade, que nem sempre uma mulher negra experimentará maiores desvantagens que pessoas de outros grupos e que é importante dissociar o privilégio epistêmico, político e moral de propriedades de gênero e raça entendidas de forma essencialista.

Por isso, cada vez mais me parece mais importante colocar em primeiro plano de qualquer projeto de pesquisa ou tarefa coletiva uma reflexão sobre o efeito das lógicas sociais e das dinâmicas de poder do mundo acadêmico sobre estas. Talvez isso ajude a minar as hierarquias que se instalam e reproduzem tão facilmente no fazer acadêmico, apesar de nossas melhores intenções.

III. Lugar de fala e posicionalidade

Éric Fassin e eu aceitamos a possibilidade de estabelecer essa conversa com o desejo de colocar em diálogo os desafios que hoje enfrenta o trabalho acadêmico antirracista em função do lugar de fala que se assume. Aceitar fazer parte desta conversa foi mais do que assentir em constatar nossas diferenças de posicionalidade, mantendo o requerimento implícito de um certo desapego de suas implicações pessoais e emocionais; para mim, significou estar atenta e ao mesmo tempo estar exposta a um regime de autorização discursiva que nos afeta e que põe em evidência os desacordos que podem surgir de nossos diferentes lugares de enunciação. Somos conscientes, além disso, de que nunca poderemos escapar de nossos posicionamentos em um mundo diferenciado e desigual como é o âmbito acadêmico3 3 Ver Nota Editorial. . Para contribuir com esta conversa, realizarei um breve exercício reflexivo sobre três experiências vividas em momentos distintos de minha trajetória acadêmica. A primeira se refere a uma pesquisa que realizei há mais de 20 anos em Quibdó, a capital do departamento colombiano com maior porcentagem de população afrodescendente. Lá explorei os imaginários e os estereótipos existentes sobre a sexualidade masculina negra na Colômbia e as respostas dos próprios homens negros frente a esses estereótipos que os apresentam como seres dionisíacos, interessados fundamentalmente no deleite dos sentidos, através do consumo de álcool, da dança e do prazer sexual. Para minha surpresa, alguns dos homens que participaram dessa pesquisa não buscavam combater ou resistir a esses estereótipos, mas, pelo contrário, transformá-los em um valor positivo. Quis compreender suas razões para fazê-lo: o faziam como uma forma de resistir ao racismo? Estavam reelaborando concepções racistas? Ou simplesmente estavam sendo cúmplices do modelo hegemônico de masculinidade?

A posteriori, me dei conta que formular essas perguntas com certa liberdade não teria sido possível se eles não tivessem me percebido e eu não tivesse me apresentado como uma figura “familiar” - como uma “irmã de raça”, como me disseram algumas vezes - e ao mesmo tempo como uma “estranha”, acadêmica e feminista e, como tal, questionadora potencial dos privilégios masculinos. Como figura familiar, logrei que alguns deles compartilhassem comigo suas percepções sobre o que significa ser um homem negro em Quibdó e sobre os estereótipos sexuais que existem sobre eles. Em alguns casos expressaram vivê-los como uma vantagem que compensava um lugar social desvalorizado e, em outros, como uma imposição que os impede de expressar sua individualidade. Como figura estranha, encontrei resistências, particularmente daqueles que ocupavam posições de liderança nos movimentos políticos negros que se desenvolveram nessa região em finais da década de 1990. Para alguns deles, o feminismo era uma proposta “sem enraizamento na história local” e, para outros, era uma ideologia divisora das lutas do povo afrocolombiano e por isso não aceitaram participar da pesquisa. No entanto, outros, mesmo que nem sempre compreendessem a pertinência do meu trabalho, abriram as portas de sua cidade e de suas organizações e me ofereceram contatos e conversas com outros homens porque me perceberam como uma irmã, um pouco excêntrica, mas ao fim e ao cabo, irmã. Inclusive aceitaram algumas de minhas críticas ao sexismo de algumas organizações políticas como uma crítica “casa adentro”, para utilizar o conceito do líder afroequatoriano Juan García. Ou seja, como uma crítica que podia ser acolhida porque não desconhecia as aspirações e os critérios culturais do povo negro chocoano. Esta experiência me ensinou a importância de entender os contextos específicos nos quais se manifestam os privilégios e as desvantagens e o seu caráter relacional.

A segunda experiência que vou mencionar teve lugar em Cali, minha cidade natal, em uma oficina sobre interseccionalidade que compartilhei com uma colega afro-caribenha em um espaço associativo afro no ano de 2011. Depois da oficina, que acabou sendo uma experiência muito estimulante e gratificante para mim - pelo interesse que suscitou nas mulheres que participavam e pelas cumplicidades geradas entre nós -, elas me convidaram a compartilhar uma comida que todas ajudamos a preparar. Em algum momento da conversa muito animada que estávamos tendo, algumas delas começaram a contar suas próprias experiências de racismo ou de assédio sexual quando trabalhavam como empregadas domésticas, ou fazendo referência a experiência de suas mães neste mesmo ofício. Observando o meu silêncio, uma delas perguntou sobre o que faziam meus pais. A pergunta me pegou de surpresa e senti a distância que se foi criando entre nós quando respondi, um pouco sem jeito, que meus pais já não eram vivos mas que minha mãe tinha sido assistente social e meu pai, médico. Houve um momento de silêncio incômodo que se rompeu quando a mais velha delas, e organizadora do espaço, disse que “menos mal que nem todas tivemos que sofrer o mesmo” e “que também era ne- cessário amigas da associação”, como eu. Desde de uma posição de autoridade, me assignou o lugar de “amiga da associação”, evidenciando os limites da sororidade horizontal que havíamos experimentado por um momento como mulheres negras e, ao mesmo tempo, assinalou a importância que havia em assumir a responsabilidade junto a associação que me brindavam certos privilégios de classe. Essa noite compreendi que não há uma experiência unificada, ou uma experiência “verdadeira” de ser mulher negra e que a importância da raça, da classe e do gênero varia segundo o contexto em que se dão essas relações.

A terceira experiência provém de um projeto de pesquisa cujo objeto mesmo era documentar as modalidades do antirracismo a partir de uma perspectiva interseccional. Nesse projeto participamos quatorze pessoas de diferentes países, idades, trajetórias acadêmicas e migratórias, pertencimento étnico-racial, gênero e posição social. Quatro poderíamos ser descritas como afrolatinoamericanas de diferentes cores, cinco como brancos mestiços latinoamericanos, também de diferentes cores, um como branco europeu, outra se reconhecia como indígena mexicana e outra como nipo-mexicana. Apenas um era falante nativo de inglês, nove éramos falantes nativos de espanhol, três de português e para uma delas, sua língua materna era o titsa qui’rhiú (zapoteco da Sierra Norte, variante Ixtlán). Com tal diversidade, soubemos desde o princípio que não seria tarefa fácil, mas não por isso menos interessante.

Poucas vezes tive a oportunidade de pensar e experimentar tanto o efeito do lugar de fala, seu caráter cambiante, a interdependência de nossas redes, capacidades, bagagens e trajetórias. A novidade nesse caso foi trabalhar com outras pesquisadoras negras, em um projeto dirigido por uma acadêmica negra residente na Europa. Isso diz, por um lado, sobre a maior presença de intelectuais negras no âmbito acadêmico e, por outro, da força que aporta pertencer a um coletivo de vozes diferentes e singulares, mas reunidas por uma experiência comum de racialização. Igualmente, a presença de uma mulher intelectual indígena na equipe de pesquisa fez com que fosse mais fácil e ao mesmo tempo mais urgente abordar e buscar transformar a relação problemática entre os grupos minorizados e o âmbito acadêmico. Também fez com que fosse mais audível - e tivesse maior legitimidade - nossa experiência como fonte de conhecimento; que nos colocássemos constantemente perguntas sobre quem e como se produz o conhecimento acadêmico; e que tentássemos colocar em prática uma “ética situada” (Abad Miguélez, 2016) no trabalho colaborativo, sem desconsiderar como classe, raça, gênero e herança cultural estiveram constantemente em jogo em nossas interações.

Em qualquer dos três casos que descrevi, minha experiência esteve emaranhada produtivamente em um campo de disputa sobre quais são as vozes legítimas ou não para falar de racismo, de antirracismo, de sexismo e de classismo, e sobre como se deve utilizar privilégio como contracara da responsabilidade em relação às perspectivas e às vozes de grupos sociais que foram invisibilizados e não foram escutados. Ao mesmo tempo, cada um desses processos me deu a oportunidade de aprender algo mais sobre a importância da relacionalidade, da complexidade e da contextualização na pesquisa e na experiência da interseccionalidade e nos desafios que enfrenta o trabalho antirracista.

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  • 1
    [Nota do tradutor]: no sentido de ‘selvagem’, ‘não-civilizado’. Agradeço à professora Angela Facundo por sua generosidade em me explicar sobre os sentidos culturais implícitos nessa expressão.
  • 2
    LAPORA - El Antirracismo Latino-Americano em Tempos ‘Pós-Raciais’. Projeto de investigação dedicado a práticas e ideologias antirracistas no Equador, Brasil, Colômbia e México (https://www.lapora.sociology.cam.ac.uk/es).
  • 3
    Ver Nota Editorial.
  • *
    Tradução: Matheus França (Universidade Federal de Goiás - UFG), e-mail: matheusgfranca@gmail.com. Revisão técnica: Silvia Aguião (AFRO - Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial - AFRO/CEBRAP e CLAM- Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos - CLAM/UERJ), e-mail: saguiao@gmail.com.
  • **
    Nota Editorial: Esse artigo é resultado do diálogo entre duas conferências apresentadas por Mara Viveros Vigoya e Eric Fassin durante a 32a Reunião da Associação Brasileira de Antropologia - RBA, realizada em formato virtual entre 30 de outubro e 6 de novembro de 2020. A publicação do artigo de Eric Fassin está prevista para o número 37 de Sexualidad, Salud y Sociedad, durante o primeiro quadrimestre de 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    04 Nov 2020
  • Aceito
    04 Dez 2020
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