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Rebelião das mães. Ética do cuidado em coletivo face à necropolítica no encarceramento de adolescentes

Mother’s rebellion. Collective care ethics facing necropolitics of teenage imprisonment

Rebelión de las madres. Ética del cuidado en colectivo frente a la necropolítica en el encarcelamiento de adolescentes

Resumo

Este artigo analisa as práticas e os afetos implicados nas atividades de negociação e denúncia protagonizadas por mães ante o poder necropolítico operado no encarceramento de adolescentes nas unidades de internação do Sistema Socioeducativo em Fortaleza, capital do Ceará. Analiso os modos de construção de vínculos coletivos e de pertença ao Grupo, não como unidade fechada e fixa, mas sim como convergência cuja dinâmica é porosa à influência de outros sujeitos e à ação de suas participantes e a expressão pública de uma ética com centralidade no cuidado por meio do protesto. Tomando como eixo de análise o cuidado em contextos sob o poder necropolítico, explicito como violência, gênero, raça e Estado se coproduzem na conformação de lugares sociais de mães em “luta”.

Palavras-chave:
necropolítica; cuidado; mães; gênero; encarceramento

Abstract

This article analyzes the practices and affections involved in negotiation and denunciation activities carried out by mothers in the face of the necropolitical power operated in the incarceration of adolescents in Fortaleza, capital of Ceará. I analyze the ways of building collective bonds and belonging to the Group, not as a closed and fixed unit, but as a convergence whose dynamics are porous to the influence of other subjects and the action of its participants and the public expression of an ethics with a central focus on care through protest. Regarding care as an axis to this analysis, under the necropolitical power, this paper evidences how violence, gender, race and State are coproduced in the conformation of social places of mother’s “fight”.

Key words:
necropolitics; care; motherhood; gender; incarceration

Resumen

Este artículo analisa las prácticas y los afectos implicados en las actividades de negociación y denuncia protagonizadas por madres ante el poder necropolítico que se opera en el encarcelamiento de adolescentes en las unidades de internación del Sistema Socioeducativo en Fortaleza, capital de Ceará. Analiso los modos de construcción de vínculos colectivos y de pertenencia al Grupo, no como una unidad cerrada y fija sino una convergencia cuja dinámica es porosa a la influencia de otros sujetos y a la acción de sus participantes, además de la expresión pública de una ética del cuidado por medio de la protesta. Adopto el cuidado en contextos bajo el poder necropolítico como eje de análisis y explicito como violencia, género, raza y Estado se coproducen en la conformación de lugares sociales de madres en “lucha”.

Palabras clave:
necropolítica; cuidado; madres; encarcelamiento; género

Em uma manhã de janeiro de 2016, entrei pela primeira vez em uma unidade de internação de adolescentes. Adentrei esse espaço na qualidade de integrante da equipe de uma organização não-governamental que há muitos anos se dedica ao monitoramento das unidades socioeducativas de internação em relação às normas legais1 1 O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA Ceará) é uma organização não-governamental fundada em 1994 que, desde 2008, entre outros campos de atuação, vem monitorando e realizando incidências políticas com relação ao Sistema Socioeducativo, em especial as unidades de internação, no Ceará. Em janeiro de 2016, passei a compor como advogada a equipe da organização. . Paredes muito altas e brancas recém-pintadas após uma grande rebelião, restos de comida pelos corredores, pátios vazios e pelo menos sete meninos presos em cada um dos cubículos que continham apenas dois blocos de concreto que serviam de cama. Parávamos, na frente das grades das celas, para nos apresentar e fazer perguntas aos adolescentes e também responder dúvidas ou tomar nota de suas demandas.

Em uma delas, meu colega reconheceu um adolescente e me apresentou a ele: era Ricardo, filho de Ana2 2 Ricardo e Ana são nomes fictícios. Apesar de as interlocutoras da pesquisa participarem de manifestações, audiências públicas, reuniões com gestores e conformarem um ator social relevante entre muitas organizações da sociedade civil em Fortaleza, decidi utilizar nomes ficcionais para evitar riscos à segurança das participantes em um contexto de altos níveis de violência e também para proteger sua privacidade já que compartilharam informações íntimas comigo. , “uma das mulheres mais ativas do grupo de mães”, segundo meu colega. Ricardo se aproximou das grades, enquanto seus colegas permaneciam sentados ao fundo da cela. Ele sorria um tanto desconcertado, enquanto meu colega o cumprimentava e mencionava sua mãe.

Desde 2013, o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA Ceará) tinha decidido aproveitar a aglomeração de familiares no entorno das unidades de internação nos dias de visita, para divulgar a organização e convidar para encontros entre familiares e profissionais em sua sede. Durante um desses momentos de visita, Ana conheceu uma profissional do CEDECA e passou a frequentar as reuniões do grupo.

Pouco mais de um mês depois desse encontro com Ricardo, em uma noite no final de fevereiro de 2016, fui avisada de que ele tinha sido morto. Ana contou, por telefone a uma colega, que Ricardo tinha fugido da unidade com outros adolescentes uma semana antes e aparecido inesperadamente em sua casa. Na noite de sua morte, saiu de casa após falar com alguém pelo Facebook e foi atingido por um tiro logo depois.

No dia seguinte, no velório de seu filho, finalmente conheci Ana. Fui acompanhada de toda a equipe da organização que trabalhava diretamente com a temática do Sistema Socioeducativo. No velório, as pessoas mais próximas de Ana eram sua mãe, com quem tinha compartilhado a criação de Ricardo, e seu filho mais novo, que alternava entre estar perto da mãe e do pai. Ana falou algumas palavras para todos os presentes e, desse momento, recordo quando ela disse: “o Estado matou meu filho”. Entendi que mesmo que a morte dele não tivesse sido causada por agentes públicos, as sucessivas internações foram lhe aproximando da possibilidade da morte.

Essas cenas são memórias das minhas primeiras vivências com o Sistema Socioeducativo, que passava por uma conjuntura então enquadrada como “de crise” pelas organizações não-governamentais de direitos humanos. Em 2015, se tornaram mais frequentes as manchetes sobre rebeliões e fugas das unidades de internação, como essas: “Em Fortaleza, 68 jovens fogem do Centro Educacional São Miguel”3 3 EM Fortaleza, 68 jovens fogem do Centro Educacional São Miguel. Portal G1, Fortaleza, 29 ago. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2015/08/em-fortaleza-72-jovens-fogem-do-centro-educacional-sao-miguel.html. Acesso em: 04 dez. 2020. ; “Jovens fazem rebelião em centro para menores no Ceará; é a 5ª em sete dias”4 4 JOVENS fazem rebelião em centro para menores no Ceará; é a 5ª em sete dias. Portal G1, Fortaleza, 17 out. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2015/10/jovens-fazem--rebeliao-em-centro-para-menores-no-ceara-e-5-em-sete-dias.html. Acesso em: 04 dez. 2020. ; “Jovem baleado durante rebelião nos centros educacionais morre no Ceará”5 5 JOVEM baleado durante rebelião nos centros educacionais morre no Ceará. Portal G1, Fortaleza, 07 nov. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2015/11/jovem-baleado-durante-rebeliao-nos-centros-educacionais-morre-no-ceara.html. Acesso em: 04 dez. 2020. . Esse jovem tinha 17 anos e a sua morte, durante a repressão policial a uma rebelião, foi caracterizada por organizações de defesa dos direitos de crianças e adolescentes como a culminância de uma crise6 6 Lucas de Magalhães Freire destaca que a palavra crise não tem uma definição única ou a priori, isto é, são necessários uma série de discursos, documentos, normativas, declarações etc. para conformar uma apreensão das experiências vivenciadas em um enquadramento de crise. Em sua perspectiva, “a decretação de uma crise legitima uma série de ações e determinações administrativas, implicando a crise enquanto parte de um modo de governo - ou, mais especificamente, uma crise que é capaz de direcionar projetos variados de intervenção, reforma e reorganização na medida em que representa um ponto crítico de uma forma de gestão pública que é marcada historicamente pela escassez” (Freire, 2019: 49). Ao mesmo tempo, enquadrar acontecimentos como parte de uma crise coloca a demanda de que algo seja feito em curto prazo. Parece ter sido esse o objetivo das organizações de direitos humanos ao enquadrar os acontecimentos de 2015 a 2017 como crise: demandar mudanças na intervenção estatal nas unidades de internação. marcada pela frequência e intensidade cada vez maiores de rebeliões, fugas, superlotação, escassez de alimentação, de água, de roupas, colchões e relatos de tortura, conforme as notas e relatórios divulgados por essas organizações. Muitas vezes a palavra “colapso” foi utilizada por juízes7 7 “Sistema socioeducacional do Ceará está em colapso”, reconhece juiz da Infância. TJCE, Fortaleza, 11 mar. 2016. Disponível em: https://www.tjce.jus.br/noticias-cij/sistema-socioe- ducacional-do-ceara-esta-em-colapso-reconhece-juiz-da-infancia/. Acesso em: 04 dez. 2020. , parlamentares e pelas organizações de direitos humanos8 8 Nota Pública sobre o colapso do sistema socioeducativo e a morte do adolescente Márcio Ferreira do Nascimento”. CEDECA Ceará, Fortaleza, 07 nov. 2015. Disponível em: http:// cedecaceara.org.br/site/index.php/2015/11/07/nota-publica-sobre-o-colapso-do-sistema-socioeducativo-cearense-e-a-morte-do-adolescente-marcio-ferreira-do-nascimento/. Acesso em: 04 dez. 2020. .

Desde o início do trabalho no CEDECA, chamou-me atenção a iniciativa de reunir familiares dos adolescentes encarcerados. Enquanto advogada da organização, estava ativamente inserida na produção de textos escritos e orais em nome do CEDECA, manejando uma gramática baseada no confronto entre o observado e o informado por adolescentes, familiares e, eventualmente, profissionais do sistema em contraponto com o texto das leis e resoluções. Interessou-me o deslocamento dessa gramática para investigar como essa conjuntura era significada pelas mães e avós na relação com os adolescentes, com seus familiares e com as outras mães e avós com quem construíam um vínculo de pertencimento em grupo.

Decidi, então, centrar minha pesquisa de mestrado realizada na Escuela de Estudios de Género da Universidad Nacional de Colombia no diálogo dos conceitos de trabalho e de ética do cuidado com a experiência da maternidade de mulheres negras diante do encarceramento de seus filhos na cidade de Fortaleza. Fiz a opção metodológica pela reconstrução de relatos biográficos por meio de entrevistas em profundidade com participantes do Grupo de Mães e Familiares do Socioeducativo do Ceará9 9 “Grupo de Mães e Familiares do Socioeducativo de Ceará” é um dos termos utilizados como assinatura em faixas com as quais o coletivo tem demarcado sua presença em protestos públicos. No entanto, não há uma referência unívoca ao coletivo. Em uma das faixas usadas em protestos, por exemplo, vê-se a assinatura “Mães e Familiares do Sistema Socioeducativo - Ceará”. Nos relatos, minhas interlocutoras se referem ao coletivo como “mães do socioeducativo”, “mães e familiares do socioeducativo”, “grupo de mães” e inclusive “mães do CEDECA”. Mais recentemente com o encarceramento de muitos dos jovens no Sistema Penitenciário e o acirramento da crise desse sistema no Ceará sobretudo desde janeiro de 2019, o Grupo tem passado a incluir em suas discussões as questões relativas ao encarceramento de adultos e se auto denominar como Grupo de Mães e Familiares Vozes do Socioeducativo e Prisional. (Ribeiro, 2019RIBEIRO, D. de S. 2019. Madres Rebeladas: trabajo y ética del cuidado de mujeres negras frente a la necropolítica en Fortaleza, Brasil. Universidad Nacional de Colombia.). Apresentei minhas intenções de pesquisa para cinco participantes do grupo considerando a intensidade do seu envolvimento com as atividades coletivas. No entanto, também utilizei outras fontes de informação: o trabalho de conclusão da graduação em Pedagogia de Luisa, uma das interlocutoras da pesquisa, e dois vídeos que registram protestos protagonizados pelo Grupo de Mães do Socioeducativo.

Para refletir sobre as experiências relatadas, referenciei-me no conceito de necropolítica de autoria de Achille Mbembe (2012MBEMBE, A. 2012. Necropolítica: una revisión crítica. In H. C. Mac Gregor (Ed.), Estética y violencia: necropolítica, militarización y vidas lloradas (pp. 130-139). Mexico City: MUAC., 2016MBEMBE, A. 2016. Necropolítica, Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 122-151, dez.) e reflexões sobre o trabalho e a ética do cuidado em textos de Joan Tronto e Berenice Fisher (Fisher & Tronto, 1990FISHER, B., and Tronto, J. 1990. Toward a Feminist Theory of Caring. In E. K. Abel & M. K. Nelson (Eds.), Circles of Care: Work and Identity in Women’s Lives (pp. 35-62). Albany: SUNY Press. https://doi.org/10.1086/591090
https://doi.org/10.1086/591090...
; Tronto, 2015TRONTO, J. C. 2015. Who Cares?: How to Reshape a Democratic Politics (1st ed.). Ithaca and London: Cornell University Press. Retrieved from http://www.jstor.org.ezproxy.unal.edu.co/stable/10.7591/j.ctt18kr598
http://www.jstor.org.ezproxy.unal.edu.co...
) e Pascale Molinier e Patricia Paperman (Molinier, 2012MOLINIER, P. 2012. El trabajo de cuidado y la subalternidad. Catedra Inaugural Posgrados En Estudios de Género 1 de Marzo de 2012.; Molinier & Paperman, 2015MOLINIER, P., and Paperman, P. 2015. Descompartimentar a noção de cuidado? Revista Brasileira de Ciência Política, 18(Set-dez), 43-57.). Em síntese, pergunto-me em que condições se realiza o trabalho de cuidado e qual projeto ético é gestado e expresso por um coletivo de mulheres cuja maternidade foi atravessada pelo encarceramento e/ou morte de seus filhos como expressão do poder necropolítico.

Neste texto, resgato nos relatos de minhas interlocutoras o processo de formação do Grupo e passo a analisar as estratégias discursivas para reivindicar justiça, registradas em um vídeo sobre uma manifestação na rua protagonizada pelo Grupo de Mães em frente à sede do governo do estado. Com isso, trato de analisar a expressão pública de uma ética com centralidade no cuidado por meio do protesto e a interpelação do Estado como figura antagônica central ao exercício da maternagem.

Convergência de afetos em coletivo

As trajetórias pessoais de minhas interlocutoras se entrecruzaram nos espaços de espera das Unidades de Internação e permaneceram vinculadas no pertencimento coletivo ao Grupo de Mães do Socioeducativo. A formação do grupo é resultado da convergência de dois processos relacionados a diferentes atores. Em 2013, organizações que se congregavam no Fórum DCA Ceará10 10 Fórum Permanente de ONGs de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes do Ceará. , com destaque para o CEDECA Ceará, decidiram aproveitar a aglomeração de familiares no entorno das unidades de internação nos dias de visita para divulgar a organização e convidar para encontros entre familiares e profissionais na sede da organização.

Entre as cinco mulheres entrevistada na pesquisa, Ana11 11 Apesar de o Grupo realizar ações coletivas na esfera pública e ser um ator social relevante entre as várias organizações da sociedade civil em Fortaleza, decidi utilizar nomes ficcionais para evitar riscos à segurança das participantes em um contexto de altos níveis de violência e também para proteger sua privacidade já que compartilharam informações íntimas comigo. foi uma das primeiras a frequentar as reuniões organizadas pelo CEDECA. Ela trabalhava como costureira e era mãe de dois meninos - Ricardo e seu irmão mais novo. Ricardo já tinha cumprido algumas internações provisórias12 12 A Internação Provisória deve durar no máximo 45 dias e pode ser imposta logo depois que um adolescente é apreendido em flagrante e deve se restringir a atos infracionais que impliquem violência ou grave ameaça. e estava cumprindo sua primeira internação determinada por sentença, quando Ana teve contato com as profissionais do CEDECA. Nos encontros que Ana passou a frequentar, as mulheres trocavam telefones e se informavam sobre o que estava acontecendo nas unidades, especialmente quando alguém tinha notícias de uma rebelião ou da entrada da polícia.

A participação no Grupo permitiu à Ana conhecer outras mães e familiares de adolescentes que se dedicavam à luta por direitos em outras partes do país. Ela passou a frequentar audiências públicas para falar sobre as violências e negligências ocorridas nos centros. Na sua narrativa sobre os momentos iniciais do Grupo, ele aparece como um espaço para o testemunho diante das profissionais do CEDECA e um canal para o acesso a “autoridades” do Sistema de Justiça, sobretudo vinculados ao Poder Judiciário.

Em paralelo ao processo impulsionado pelo CEDECA, Luisa, em meados de 2015, começou a estudar em sua graduação em Pedagogia os “direitos das crianças e adolescentes”. Alguns anos antes, José, irmão adotivo que se tornou seu filho quando sua mãe morreu, havia sido detido pela primeira vez. Seus estudos a estavam fazendo perceber, significar e politizar a sua experiência a partir do confronto entre o vivido e os saberes disciplinares que adquiria na graduação, reposicionando assim seu contexto de enunciação.

Aí aconteceu que o José [in]fracionou de novo e foi pro São Francisco. Era o período das rebeliões, de 2014 e 2015, cheguei nesse ano, e aí, no São Francisco, outras mães… a gente não entrava. Naquelas rebeliões, ficava lá fora e passava o dia inteiro. Tinha muita bala de borracha, e eu tava lá como toda e qualquer mãezinha que vai lá e só chora e grita e fica aflita. E eu estava lá. Nesse período foi quando começou de fato a cadeira do ECA, e aí eu comecei a entender o que que era o ECA, o que que era o direito da criança e do adolescente… sendo professora, meu desejo era me tornar pedagoga e tudo. Aí eu fui estruturando o meu pensamento, o meu comportamento, porque até ali, eu tava no lugar da mãe da dor, não tinha politicamente nada na minha mente, entendeu, nada assim… e aí as cadeiras, a faculdade me fez estar onde hoje eu estou e quem eu hoje sou (Luisa, 40 años).

A gramática de direitos com que tem contato no seu processo de educação formal passa a transformar sua experiência de Estado (Das e Poole, 2008DAS, V. And Poole, D. 2008. “El estado y sus márgenes. Etnografías comparadas”. Cuadernos de Antropología Social, núm. 27, p. 19-52.): de “mãe da dor” ela transita para a mãe que formula demandas e responsabiliza “o Estado”. Após a morte do adolescente que mencionei anteriormente, quando os adolescentes foram transferidos para a estrutura de um presídio então inativo, Luisa relata que procurou a gestora da Unidade e argumentou: “Se os meninos estão sob o poder do Estado - então eu já fui inclusive com esse discurso - o Estado é quem tem que garantir a nossa ida para Itaitinga”. Luisa demarca e enfatiza as transformações no seu discurso.

Por outro lado, a organização da logística do trajeto de Fortaleza a Itaitinga, onde fica o Presídio Militar, fez que, por motivos bastante pragmáticos, as mulheres se organizassem: “então nós já íamos combinando quem ia com quem, quem pode se encontrar onde…” (Luisa, 40 anos), além de compartilharem informações sobre o que estava acontecendo com seus filhos. Decidiram criar um grupo de WhatsApp quando se iniciou um novo ciclo de rebeliões no presídio e as visitas eram inesperadamente proibidas de entrar: “nós precisamos ter um contato porque quem vem, [quando] chegar e não tiver visita, já avisa às demais” (Luisa, 40 anos). Pouco tempo depois, “o [Presídio] Militar quebrou”. Depois de uma série de rebeliões, os adolescentes foram redistribuídos nas unidades de internação de Fortaleza.

Numa conjuntura enquadrada como crise e frequentemente noticiada, gestores vinculados às políticas para “jovens” e para “mulheres” se aproximaram pessoalmente da gestão do Presídio Militar, gerando ambiguidades na experiência de Estado de algumas das familiares. Além de negociar diretamente com elas a gestão do comportamento dos adolescentes13 13 Luisa menciona, por exemplo, o episódio em que ela e outra mãe negociaram sua entrada nas alas do Presídio Militar: as mães queriam saber o que estava acontecendo com seus filhos e os gestores queriam que eles se “acalmassem” e parassem de bater grade. Os gestores permitiram a entrada de Luisa e outra mãe com a condição de que elas dissessem aos adolescentes que eles estavam se organizando para a realização da visita familiar. , esses gestores propuseram a Luisa e outras mulheres que organizassem uma associação: “Eu não sei se foi para o governo mesmo ou se foi a necessidade, o que existia dentro deles de militante, de ativista que impulsionaram essa possível ação, de nos possibilitar isso” (Luisa, 40 anos).

A partir do momento em que Luisa conhece a mãe de Ana durante uma visita ao Centro Educacional Patativa do Assaré, as pontes entre os dois processos começam a ser estendidas. As iniciativas dos dois processos coletivos aproximaram-se e algumas atividades foram realizadas em conjunto, surgindo tensões ao redor das alianças até então estabelecidas. Com a politização da relação de cuidado e dos antagonismos que o ativismo político acarreta, aqueles gestores que se apresentaram como apoio passaram a ser vistos como antagonistas identificados com o governo: “Como que eu vou lutar com o próprio que me faz mal diretamente?” (Maria, 44 anos14 14 Maria é uma das participantes do Grupo de Mães. Trabalhava como segurança privada e é mãe de três filhos, um dos quais passou por algumas internações no Sistema Socioeducativo. )

Maria também estava entre as mães que tiveram seus filhos encarcerados no Presídio Militar e participaram das reuniões com a presença dos gestores. Já Conceição conheceu Luisa após a desativação do Presídio Militar, quando seus filhos se encontravam no Centro Educacional Patativa do Assaré. Posteriormente, o filho de Luisa foi transferido para o Centro Educacional São Miguel, em cujos corredores ela conheceu Cacá, que estava sendo impedida de ver o neto no dia do aniversário dele.

Portanto, a convergência para uma existência coletiva surge a partir das necessidades práticas frente a violência do encarceramento de seus filhos: denunciá-la, ter acesso às autoridades e compartilhar informações sobre o que estava acontecendo nas unidades. Ao longo da vivência coletiva, fazem do grupo um espaço de gestão do luto. O WhatsApp15 15 O tempo empregado na utilização do aplicativo para comunicar-se com as demais é de tanta importância que nos relatos se confundem as menções ao Grupo enquanto instância congregação das mães e demais familiares com o “grupo” de WhatsApp enquanto comunicação coletiva. permite a ampliação da presença do grupo no cotidiano das mulheres com dificuldade de locomoção devido ao trabalho doméstico e/ou emprego. Isso ocorre sem a necessidade de narrar a violência repetidamente, pois existem lugares de enunciação e vivência comuns.

Em um movimento complexo de aproximação e distanciamento, a dor é gerida. Ou seja, às vezes é necessário afastar-se para não “contaminar-se” da violência que gerou sua própria constituição, até que se esteja pronta para voltar outra vez e lidar com sua dor e a dos outros. O grupo também se presta a administrar o cansaço diante das condições opressivas de exercício dessas maternidades, atualizando a ordem de gênero da maternidade.

A existência coletiva transforma a presença das mães nas unidades de internação. Ao tempo que se tornam vigilantes das condições de existência nestes centros, pontes entre o interior e o exterior, não só das demandas dos seus filhos como as dos demais adolescentes, são perseguidas, intimidadas, levadas ao cansaço. No contexto das unidades, a opção é sempre mais complexa do que silenciar ou falar. Trata-se de calcular o que falar e para quem.

O grupo também promove o domínio dos mecanismos de documentação do Estado em campos disciplinares. Neste sentido, saber que determinados documentos são obrigatórios, reclamar o acesso aos mesmos e identificar que não obedecem aos ritos dos próprios campos disciplinares, permite uma intervenção no sentido de limitar a ação do Estado através da revelação de suas próprias contradições, especialmente na busca de instâncias externas às “instituições totais”.

Cenas públicas de mães em luta

Um vídeo, publicado na página de uma produtora audiovisual independente de Fortaleza, começa com uma tela preta que diz: “Manifestação contra a violência do Estado que mata a juventude. 30/06. Palácio da Abolição. Fortaleza/CE”. As cenas gravadas se passaram em 30 de junho de 2016 em frente à sede do governo do Ceará. A câmera foca as costas de alguém que anda vestida com uma jaqueta vermelha e detalhes de listras pretas e brancas. No fundo da cena, há policiais com capacetes e escudos que guardam a entrada do prédio: alguns observam a figura que caminha; outros olham para o lado oposto ao da câmera, como se a evitassem; um policial também registra a cena em um gesto de comunicação de que também está documentando o seu ponto de vista.

Logo a câmera mostra o rosto da figura: a face pintada de branco, os olhos pintados de preto, uma mancha vermelha na boca. É uma palhaça um tanto taciturna caminhando em frente ao “Palácio do Governador”. Em seguida, o som de tambores é ouvido junto com a imagem de meninos e meninas que tocam os instrumentos feitos de lata. Ainda acompanhada pelo som da batucada, a câmera passa por pessoas alinhadas segurando cruzes de madeira. Atrás delas, há mais policiais também alinhados em frente à entrada do palácio. Uma grade móvel separa o espaço dos policiais do espaço dos manifestantes. Ao passar por uma das pessoas com as cruzes, a câmera para e captura o movimento que ela faz de virar a cruz de cabeça para baixo. Enquanto Maria aparece segurando uma cruz e olhando séria para a frente, uma meia na cabeça escondendo seus longos cabelos crespos, uma voz é ouvida anunciando que lá estavam vários movimentos de defesa da infância, movimento do sistema prisional, movimento das mulheres, movimento negro, todos juntos por uma pauta extremamente importante: “os jovens querem viver, contra a violência estatal, pelo direito à vida, estamos cansados de ver os adolescentes serem exterminados pela mão do Estado, pela mão do Estado que na verdade deveria estar garantindo os nossos direitos, mas está exterminando nossa juventude”.

No vídeo, uma sirene de polícia é ouvida e três pessoas encenam policiais que hostilizam os presentes na manifestação. Em vez de capacetes, mictórios. Há também uma réplica de uma cela vazia no meio da rua. Eles gritam ordens para que “circulem”: “Bora, bando de arrombado”. Dois grupos assistem à cena: os manifestantes de rua e os policiais “reais”. De dentro do grupo de manifestantes, quatro pessoas saem com as mãos na cabeça e são colocadas em fila pelos policiais fictícios. São Luisa, duas outras mães do Socioeducativo e uma jovem, todas vestidas com camisas masculinas, shorts e meias na cabeça. Outras pessoas são arrancadas do público e trazidas para a fila. Entre elas, Maria. Os “policiais” estão sempre gritando com as pessoas em fila: “Cala a boca, anda, de joelhos.” Os personagens enfileirados tentam negociar, dizem que não fizeram nada, mas os gritos dos “policiais” impedem que sejam ouvidos. Os policiais fictícios se voltam para os outros manifestantes: “e aí, população, vamos fazer a limpeza, a escória da sociedade está na nossa mão, eles vão cair tudo para a ‘engorda’”.

Os personagens detidos são levados a caminhar entre os demais manifestantes que passam a fazer parte da cena dando-lhes golpes na cabeça aos gritos de “ladrão”. No final da fila, uma advogada faz sua própria personagem dizendo: “eles têm direitos”, ao que alguém responde: “Negócio de direito aqui não”. Os detidos são colocados na cela. Há muitas pessoas para pouco espaço e pedidos de “água, orientador” são ouvidos. Alguém preso grita: “vai estourar”. E os personagens saem correndo desmontando as grades. Os policiais “de mentira” atiram balões com um líquido vermelho e a voz de Luisa é ouvida no microfone:

Isso aqui foi tudo pensado de acordo com a fala dos nossos filhos. É isso que eles passam dentro do centro socioeducativo, onde esse centro abriga esse menino, de uma certa maneira recebe esse menino para que ele seja ressocializado. Enquanto mãe a gente se pergunta: o que é ressocializar? (Luisa, 40 anos)

Luisa não responde à pergunta, mas pergunta ao governo/Estado16 16 Nos discursos públicos das Mães do Socioeducativo, “governo” e “Estado” são frequentemente tratados como sinônimos, embora outras vezes o “governo” apareça na figura do “Governador Camilo Santana”, eleito para governar o Poder Executivo no Ceará de 2014 a 2018 e reeleito para o período de 2019 a 2022. A natureza do relacionamento com o Estado/governo em apresentações públicas será analisada mais adiante neste tópico. : o que vai mudar? O que vai acontecer? Ela relata que conhece os planos do “governo” para a criação de um novo órgão de administração, mas enfatiza a urgência da ação porque “essa criança” passa pelo mesmo tipo de violência na “periferia” e no “centro” e o resultado disso será mais violência. Passa a palavra para outra mãe.

Maria assume o microfone para dizer que a “luta” delas, as mães, não é apenas pela água ou por alimentos de qualidade. Ela denuncia que a imagem produzida pela imprensa do sistema socioeducativo é “maquiada”: “a imprensa diz que meu filho recebe Toddynho, a imprensa diz que meu filho recebeu iogurte da Danone”. A citação nominal às marcas de alimentos que supostamente seriam fornecidos aos adolescentes encarcerados destaca a disparidade entre um ambiente doméstico economicamente seguro, em que esses produtos estão presentes, e a realidade que a encenação acabara de representar na rua.

Após seu discurso, Maria localiza seu lugar de enunciação: “Isso, minha gente, não é apenas uma mãe de um marginal que está falando aqui. É a mãe de um adolescente que está nas mãos do governo”. A vergonha é constantemente mobilizada para silenciar mulheres classificadas como “mãe de marginal” e Maria não nega o desconforto desse lugar social17 17 Um pouco mais adiante em seu discurso afirma que: “não é orgulho para mim como mãe estar aqui, mas não posso me calar diante da omissão do Estado”. . No entanto, a tortura, a comida apodrecida, a falta de visitas: tudo isso deveria envergonhar ao Estado, não a ela.

“A maquiagem tem que ser tirada.” Com essa frase, Maria tira a meia da cabeça e revela os cabelos compridos. “Deixo de ser adolescente para ser a mãe de um deles. E por ele eu luto, eu corro atrás, eu piso nesse chão quente. E se for preciso eu sento, porque assim meu filho passou uma hora dentro de um centro, sentado […] numa quadra quente. Nu, ainda mais”. Maria senta-se de pernas cruzadas na avenida e outras pessoas vêm acompanhá-la no gesto. Ela desafia diretamente o “Senhor Governador” a remover as “máscaras”, deixar seu escritório e ir ao encontro das mães e pessoas que estão nas ruas.

Neste ponto do vídeo, vislumbro o coordenador de “direitos humanos” do gabinete do Governador saindo do prédio, passando pela polícia, através das grades que definem a área proibida e a área permitida para manifestantes, e deixando a cena sem nenhum gesto na direção das manifestantes. Maria, de costas para o prédio, ignora a presença fugaz desse coordenador e continua seu discurso sentada na rua: “Queremos ser ouvidos por alguém que possa fazer algo diferente”. Maria declara que votou no governador e é por isso que exige que ele a ouça. O vídeo termina com uma artista, vestida com roupas masculinas, cantando uma paródia de uma música chamada “Baile de Favela” no megafone. Na versão do protesto, a música fala sobre a “guerra às drogas” territorializada nas favelas e a seletividade criminosa que persegue os “menores”. Sempre com os policiais atentos entre o prédio e as manifestantes.

O protesto foi preparado entre organizações que defendem os direitos de crianças e adolescentes, as Mães do Socioeducativo e algumas mães das vítimas da Chacina do Curió18 18 No dia 11 de novembro de 2015, 11 pessoas foram assassinadas e outras tantas torturadas na região da Grande Messejana em Fortaleza após a morte de um policial. Cerca de 40 policiais figuram como réus nos processos criminais referentes ao massacre que ficou conhecido como Chacina do Curió. As Mães do Curió, desde então, tem se engajado em torno do processo criminal e em ações para promover a memória das vítimas. . O protesto foi, portanto, o resultado da aliança entre diferentes sujeitos coletivos que negociaram as condições para a sua realização. No entanto, o destaque que as Mães Socioeducativas assumiram na manifestação é significativo, de maneira que outras pessoas presentes são postas em um lugar de solidariedade com a sua “luta”.

Maria, na entrevista que realizamos para a pesquisa, referiu-se ao momento de organizar e conduzir o protesto como algo que lhe gerou bem-estar, apesar dos problemas de saúde que ela estava enfrentando: “Eu não estava muito bem de saúde, é que eu estava no início de uma hemorragia, mas para mim foi tranquilo. Acho que eu estava tão bem com aquilo que estava acontecendo que já reagi muito bem” (Maria, 44 anos), o que pode ser visto como uma dimensão dos afetos envolvidos no aparecimento na esfera pública como uma espécie de reparação simbólica não oficial.

A encenação realizada pelas Mães, com o apoio de uma arte-educadora, denuncia a violência do Estado, representando-a por meio de sua imitação. A “díade mãe-filho” (Vianna & Farias, 2011: 111VIANNA, A.; Farias, J. 2011. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu , (37), 79-116.) toma lugar não apenas como um ato de fala, mas também se corporifica na performance teatral das mulheres. Segundo Butler (2017: 175BUTLER, J. 2017. Cuerpos aliados y lucha política: Hacia una teoría performativa de la asamblea. Bogotá: Paidós.), “a prisão permanece o caso limite da esfera pública, marcando o poder do Estado de controlar quem pode passar para o público e quem deve sair dele”. Nesse sentido, um pólo da “díade mãe-filho” é impedido de aparecer na esfera pública. Porém, suas mães optaram por demonstrar justamente as rebeliões, eventos que, segundo Araújo (2018ARAÚJO, F. C. 2018. “Juventude Rebelada”: una análise sobre o cárcere juvenil no Ceará. Águas de Lindoia.), conseguiram romper com a opacidade do que acontece dentro dos muros das unidades de internação e gerar alguma visibilidade das condições de existência nas prisões de adolescentes na esfera pública, devido ao seu número e magnitude (Araújo, 2018ARAÚJO, F. C. 2018. “Juventude Rebelada”: una análise sobre o cárcere juvenil no Ceará. Águas de Lindoia.).

Nesse sentido, a gramática de gênero expressa nessa díade permite denunciar a estreita correlação entre o Estado, a violência contra a população negra e os habitantes das favelas. Como Vianna & Lowenkron elucidam, gênero e Estado se coproduzem nesse antagonismo. “São elas, as ‘mães’, o sujeito político, moral e afetivo que pode contrapor-se ao ‘Estado que mata’, em uma batalha política totalmente atravessada por representações e relações de gênero” (Vianna & Lowenkron, 2017: 26VIANNA, A.; Lowenkron, L. 2017. O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens. Cadernos Pagu , Dossiê Gên(51).).

No contexto da pesquisa, trata-se de denunciar o Estado que tortura, maltrata e expõe à morte. A citação de Vianna & Lowenkron refere-se ao movimento de “familiares de vítimas” fatais da ação de agentes públicos no Rio de Janeiro. Embora, em muitos aspectos, os resultados a que as autoras chegam sejam semelhantes aos que encontro com as Mães do Socioeducativo, em outros pontos as condições e declarações desses dois movimentos diferem. Por exemplo, em Vianna & Farias (2011VIANNA, A.; Farias, J. 2011. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu , (37), 79-116.), a “mãe do traficante” aparece como um oposto simbólico da “mãe da vítima” que criou seu filho para ser trabalhador. Nessa oposição, a “mãe de traficante” não tem legitimidade e possibilidade de exigir justiça e chorar publicamente sua dor. Cientes do estigma de “mãe de marginal” que mancha sua autoridade moral, as Mães do Socioeducativo demonstram, na performance, o processo político de fabricação dessa “identidade criminal” por meio da interpelação violenta dos aparelhos punitivos. É, por exemplo, o que Luisa destaca quando diz que “esse menino” passa pelo mesmo tipo de violência na “rua” e nos “centros” em vez de ter acesso à prometida ressocialização. Por outro lado, em seu rápido ato de fala, Maria enfrenta o lugar estigmatizado que ocupa e não nega o desconforto dessa situação “para mim, como mãe, não é um orgulho estar aqui”. No entanto, suas dores diante dos danos causados pela ação ou omissão do “Estado” contra o filho a implicam eticamente a representá-lo na cena pública. A vergonha entra no jogo dos discursos de coprodução de gênero e do Estado no ato da fala de recusar o silêncio e alegar que o “Estado” é quem deve ter vergonha de todos os danos causados. Se é verdade que “as emoções ‘importam’ para a política; as emoções nos mostram como o poder molda a própria superfície dos corpos e dos mundos” (Ahmed, 2015: 38), a vergonha é mobilizada por Maria para fazê-la migrar de seu corpo para o do “Estado” numa construção de corporalidades antagônicas em meio a um exercício macropolítico de reivindicação.

Como na investigação de Vianna & Farias (2011VIANNA, A.; Farias, J. 2011. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu , (37), 79-116.), Luisa, ao perguntar “E então, Estado? E então, governo?”, refere-se ao Estado como uma ideia, ou seja, “como uma entidade que tem concretude não apenas em suas formas institucionais, em sua dimensão de administração e governamentalidade, mas como uma entidade simbólica que atravessa e ordena o cotidiano das pessoas: aquele que faz; que deve fazer; que pode realizar ou escolher não realizar” (Vianna & Farias, 2011: 93VIANNA, A.; Farias, J. 2011. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu , (37), 79-116.). As autoras ainda chamam a atenção para a masculinização dessa idéia-entidade do “Estado” diante da figura feminina das mães.

Vianna & Lowenkron adicionam um terceiro pólo, também masculino, em uma relação que se triangula. Uma tríade é traçada entre um pólo de proteção (filhos), um pólo de ameaça (Estado) e um vetor feminino (mães) que os articula. Essa tríade acaba fazendo desaparecer na cena pública “outros femininos que não o materno, bem como outra filiação que não a masculina” (Vianna & Lowenkron, 2017: 27VIANNA, A.; Lowenkron, L. 2017. O duplo fazer do gênero e do Estado: interconexões, materialidades e linguagens. Cadernos Pagu , Dossiê Gên(51).). No protesto analisado nesta seção, o Estado condensa ações diferentes: os policiais que gritam, ameaçam e batem; os orientadores que negligenciam as necessidades básicas dos adolescentes detidos; e o governador que aparece como fiador ou como um personagem omisso diante da violência representada contra os adolescentes.

Existem ausências importantes nos pólos masculinos dessa tríade representada na rua: os filhos estão ausentes porque estão encarcerados e o governador, identificado por Maria como o “peixe grande”, está trancado em seu escritório. O pólo dos filhos é representado na performance das mães, enquanto a presença do governador é exigida por Maria: ela exige que ele saia do escritório e vá encontrar as mães que estão do lado de fora debaixo do sol.

É significativo que a verdade seja tão fortemente reivindicada em suas narrativas. Maria, tirando a meia da cabeça enquanto fala sobre a necessidade de remover as máscaras, mostra coragem para rearticular uma história que vem sendo contada de cima, o que não significa negar completamente as idéias hegemônicas. Ela conta isso de dentro, em um processo de “de-matar” a si e a seu filho (Rocha, 2014ROCHA, L. de O. 2014. Outraged Mothering: Black Women, Racial Violence, and the Power of Emotions in Rio de Janeiro’s African Diaspora. The University of Texas at Austin.; 2016ROCHA, L. de O. 2016. De-matar: Maternidade Negra como Ação Política na “Pátria Mãe” (Gentil?). In O. Pinho & J. Vargas (Eds.), Antinegritude: O impossível sujeito negro na formaçao social brasileira (pp. 177-198). Belo Horizonte: EDUFRB; Fino Traço.). Luciane Rocha propõe o conceito de “de-matar” para definir “os atos de coragem performados por mães cujo filho está desde já condenado à morte pela sociedade de mercado como forma de garantir a continuidade da maternidade” (Rocha, 2014: 129ROCHA, L. de O. 2014. Outraged Mothering: Black Women, Racial Violence, and the Power of Emotions in Rio de Janeiro’s African Diaspora. The University of Texas at Austin.).

Segundo a autora, os filhos e filhas de mulheres negras são objetos sistematicamente suscetíveis à violência (como vítimas e agressores), resultado da impossível integração negra na sociedade brasileira. Com esse conceito, a autora busca tornar visível a contribuição social, cultural e emocional das mulheres negras à resistência para transcender o massacre dos corpos negros no país (Rocha, 2016ROCHA, L. de O. 2016. De-matar: Maternidade Negra como Ação Política na “Pátria Mãe” (Gentil?). In O. Pinho & J. Vargas (Eds.), Antinegritude: O impossível sujeito negro na formaçao social brasileira (pp. 177-198). Belo Horizonte: EDUFRB; Fino Traço.). Os atos de de-matar “incluem a operacionalização de idéias hegemônicas de respeitabilidade, masculinidade e negritude, e a queixa de mães negras sobre o perigo da delinquência e da violência contra e entre a população negra como forma de garantir a continuidade de sua maternidade” (Rocha, 2014: 129ROCHA, L. de O. 2014. Outraged Mothering: Black Women, Racial Violence, and the Power of Emotions in Rio de Janeiro’s African Diaspora. The University of Texas at Austin.).

Nomear é um exercício de poder. A esfera pública é usada para renomear a experiência da prisão a partir do local de enunciação da mãe. No entanto, como afirma Efrem Filho (2017: 11EFREM FILHO, R. 2017. A reivindicação da violência: gênero, sexualidade e a constituição da vítima. Cadernos Pagu . Vol. 50, p. 1-54.), “a violência não é óbvia”. O reconhecimento ou não da violência é o produto da disputa de narrativas sobre os fatos e as personagens dessas narrativas conflitantes. Segundo o autor, “a violência não é óbvia porque as ‘vítimas’ não são óbvias” (Efrem Filho, 2017: 18EFREM FILHO, R. 2017. A reivindicação da violência: gênero, sexualidade e a constituição da vítima. Cadernos Pagu . Vol. 50, p. 1-54.). Nesse sentido, os adolescentes “infratores” são “vítimas” menos óbvias, porque são constantemente fabricados como inimigos - “bandido bom é bandido morto”19 19 A origem dessa frase é rastreada por Michel Misse (2008) que a atribui a um integrante dos primeiros grupos paramilitares registrados no Brasil, os Esquadrões da Morte em atividade a partir dos anos 1950 no Rio de Janeiro. A frase foi o slogan de campanha eleitoral de um se seus integrantes anos depois e atualmente tem uma ampla ressonância na sociedade brasileira. Uma investigação realizada em 2016, com 3.265 pessoas com 16 anos ou mais de idade em 217 municípios de todos os tamanhos, constatou que 57% da população concorda com a frase “bom bandido é morto bandido” (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017: 125). - e o único responsável pelos danos causados a si mesmos. Nos termos de Butler (2006BUTLER, J. 2006. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Espacios del saber (Vol. 1 ed).; 2010BUTLER, J. 2010. Marcos De Guerra. Las vidas lloradas. México, D.F.: Paidós.), não são considerados dignos de luto.

Nesse sentido, em uma performance pública, as mães emprestam seus corpos a seus filhos para tornar reconhecíveis os danos contra eles, ou seja, representar as necropráticas de uma maneira que sejam reconhecíveis como violência. Em uma interpretação da teoria performativa do gênero de Judith Butler, Souza afirma que “alguns corpos são mais ‘reais’ que outros, não porque realmente são, mas porque a ontologia é definida pelas relações de poder” (Souza, 2015: 209SOUZA, B. M. de. 2015. Mulheres de Fibra: Narrativas e o ato de narrar entre usuárias e trabalhadoras de um serviço de atenção a vítimas de violência na periferia de São Paulo. Universidade Estadual de Campinas.). Uma certa gramática de gênero confere autoridade moral às mães. Dessa maneira, as Mães do Socioeducativo mobilizam essa autoridade moral para tornar reconhecível a violência contra seus filhos, inscrevendo-a em seus próprios corpos.

Na “reivindicação” da violência20 20 Expressão tomada de Efrem Filho (2017). , o corpo se presta à materialização do testemunho. Ao realizar seus filhos com o próprio corpo, a noção de corpo-testemunha, levantada por Souza (2015SOUZA, B. M. de. 2015. Mulheres de Fibra: Narrativas e o ato de narrar entre usuárias e trabalhadoras de um serviço de atenção a vítimas de violência na periferia de São Paulo. Universidade Estadual de Campinas.), é levada ao extremo. Através dos corpos das mães, pode-se reconhecer como violência os danos causados aos corpos dos filhos, ao mesmo tempo que se permite olhar para os filhos desde o ponto de vista das mães. Como disse uma outra mãe em um protesto também registrado em vídeo, “ainda que na cabeça deles eles sejam a escória da humanidade, para mim, eles são meus filhos”.

Durante nossas entrevistas, o corpo-testemunha foi, por diversas vezes, evocado para narrar as dores: “nessa época fiquei muito magra porque Jorge só me ligava chorando..”.21 21 Conceição refere-se a um período em que ela enviou o filho Jorge para morar com um parente no sul do país após ser capturado pela polícia duas vezes em seu bairro. (Conceição, 49 anos). O corpo também é uma superfície de premonição, que, segundo Vianna & Farias (2011: 107VIANNA, A.; Farias, J. 2011. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu , (37), 79-116.), “fala da relação entre o tempo e a ação social”. No caso de Conceição, a dor na barriga representava a antecipação do sofrimento e a enxaqueca, a impotência ante a morte do filho.

Quando via o telefone de Jorge e o nome daquele menino, já me dava uma dor no estômago, aquela coisa ruim, que eu digo: “Eu sabia que Jorge ia fazer alguma besteira”. (Conceição, 49 anos)

Então, no dia 15 [do dia em que o filho foi morto] eu acordei com enxaqueca, dor de cabeça, mas por quê? Porque de noite eu passei a noite me acordando e toda vez que eu me acordava eu me engasgava. (Conceição, 49 anos)

O corpo-testemunha também é evocado para dar a dimensão da gravidade do sofrimento e as consequências da violência: desmaios, doenças que surgiram após o encarceramento do filho, “crise de nervos”, choro, gritos, falta de apetite, insônia, sangramentos uterinos… No corpo, o sintoma prova a violência.

Dessa maneira, o corpo que sai para a rua para testemunhar as necropráticas é um corpo que sofreu a dor causada pela necropolítica. Veena Das (2008DAS, V. 2011. “O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade”. Cadernos Pagu, (37), 9-41.) pergunta: “Como a perda não se articula através de um gesto dramático de desafio, mas sim de uma maneira em que se aprende a habitar o mundo, ou a habitá-lo novamente, em um gesto de luto?” (: 222) e afirma que “é nesse contexto que podemos identificar o olho, não como o órgão que vê, mas como o órgão que chora” (:idem). No caso das minhas interlocutoras, os dois modos de ação são articulados: seus olhos são os órgãos que choram mas que também veem e, além disso, fazem ver através do choro. Veena Das, sobre a articulação entre gênero e violência, afirma que:

A formação do sujeito como sujeito com determinado gênero é então modelada através de transações complexas entre a violência como o momento original e a maneira pela qual a violência se infiltra nas relações continuadas e se torna um tipo de atmosfera que não pode ser expulsa em direção a um “fora”. (Das, 2008: 222DAS, V. 2011. “O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade”. Cadernos Pagu, (37), 9-41.)

Desse modo, a violência molda identidades generificadas e racializadas. Ao deslocar-se, levando a dor para as ruas, as mães negras denunciam e desafiam essa violência constitutiva de seus próprios seres, ao mesmo tempo em que expressam um projeto ético-político baseado no cuidado. Embora a violência constituinte não possa ser eliminada, a vida se torna mais possível.

Considerações finais

O conceito de necropolítica se refere a figuras de soberania cujo projeto central é a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material dos corpos e populações julgados supérfluos ou descartáveis sob a ideia de inimigo em contextos em que o estado de exceção se torna o normal (Mbembe, 2012, p. 135MBEMBE, A. 2012. Necropolítica: una revisión crítica. In H. C. Mac Gregor (Ed.), Estética y violencia: necropolítica, militarización y vidas lloradas (pp. 130-139). Mexico City: MUAC.). Mbembe relaciona estas realidades com a noção de biopoder de Foucault, mas a considera insuficiente para explicar as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte e se dedica à pergunta sobre as condições práticas em que se exerce o direito de matar, deixar viver ou expor à morte (Mbembe, 2016: 146MBEMBE, A. 2016. Necropolítica, Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 122-151, dez.).

A necropolítica na cidade de Fortaleza erigiu os corpos jovens negros e periféricos como matáveis, isto é, sua morte é amplamente justificada e inclusive desejada (Misse, 2010MISSE, M. (2010). Crime, Sujeito e Sujeição Criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido.” Lua Nova: Revista de Cultura e Política, (79), 235-244.; 2014) e sua vida não é digna de luto (Butler, 2006BUTLER, J. 2006. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Espacios del saber (Vol. 1 ed).; 2010BUTLER, J. 2010. Marcos De Guerra. Las vidas lloradas. México, D.F.: Paidós.). Isto em nome da defesa das hierarquias coloniais sexistas, classistas e racistas (Bello & Parra, 2016). Sob a frase amplamente aceita “bandido bom é bandido morto”, que é acionada a cada morte violenta contra jovens, tem-se impedido o luto público pelos milhares de adolescentes assassinados em Fortaleza. A produção dessas mortes tem sido acelerada e exacerbada pela reconfiguração dos antagonismos e alianças armadas com a presença de facções oriundas do Rio de Janeiro e São Paulo em Fortaleza, além da ação da polícia que se une e se articula com a racionalidade violenta desses atores. A partir do lugar de mãe generalizado e racializado, as mulheres vivenciam essas transformações na dinâmica necropolítica, concentrando os afetos e as ações destinadas a evitar a morte e a processar o luto por essas perdas.

A ampliação do aparato punitivo para adolescentes amplia os limiares da morte contra seus corpos (Bello & Parra, 2016), ao mesmo tempo em que captura as maternidades das cuidadoras. A cada ano, cresce o número de adolescentes presos nesses espaços, caracterizados pela superlotação, condições insalubres, ausência de atividades educativas, tortura e morte. Mais do que um dispositivo de disciplina biopolítica, esses espaços funcionam segundo a lógica da vingança, da tortura e do extermínio (Misse, 2014). As rebeliões interpretadas como uma insurgência contra as péssimas condições de existência dessas unidades de internamento, principalmente no período de 2015 a 2017, conseguiram chamar a atenção do público, ao mesmo tempo em que se atualizavam as necropráticas na repressão às rebeliões e se criavam novas e grandes demandas de cuidados aos familiares.

Nesse contexto, a necropolítica condiciona as possibilidades de realização do cuidado, assim como o projeto ético-político gestado por mulheres negras e empobrecidas que se dedicam ao cuidado de sujeitos alvejados como inimigos, vidas que não são passíveis de luto público (Butler, 2010BUTLER, J. 2010. Marcos De Guerra. Las vidas lloradas. México, D.F.: Paidós.).

Segundo Molinier, o projeto de ética do cuidado refere-se à construção de uma “sociedade de cuidar”, consciente da vulnerabilidade constitutiva de todas as vidas e comprometida em criar as condições de reciprocidade e equidade na prestação e recebimento de cuidados (Molinier, 2012: 20). Relacionando a ética do cuidado com o projeto ético-político no qual minhas interlocutoras estão implicadas, encontro uma série de gestos para fazer a vida de seus filhos ser reconhecida como tal.

No protesto público, recurso utilizado pelo Grupo de Mães do Socioeducativo, para a “reivindicação da violência”, movimentam-se representações e relações de gênero significativas. Elas realizam uma operação complexa para reivindicar o reconhecimento dos danos causados a seus filhos como violência. É que, se em outros contextos, pode-se recorrer à autoidentificação como “mãe da vítima” como contraponto simbólico da “mãe do traficante” (Vianna & Farias, 2011VIANNA, A.; Farias, J. 2011. A guerra das mães: dor e política em situações de violência institucional. Cadernos Pagu , (37), 79-116.), essa operação não é possível neste contexto. É necessário demonstrar o processo político de fabricação dessa identidade através da violenta interpelação dos aparatos punitivos do Estado na “periferia” e nos “centros” e enfrentar o desconforto do lugar estigmatizado da “mãe de bandido” para aparecer na esfera pública como uma manifestação ética das dores que lhe foram causadas pela ação ou omissão do “Estado”.

No esforço de tornar reconhecível a violência contra os filhos, emprestam seu próprio corpo, dotado de certa autoridade moral como mães em uma determinada gramática de gênero. O corpo se presta à materialização do testemunho (Souza, 2015SOUZA, B. M. de. 2015. Mulheres de Fibra: Narrativas e o ato de narrar entre usuárias e trabalhadoras de um serviço de atenção a vítimas de violência na periferia de São Paulo. Universidade Estadual de Campinas.). Embora tal violência não possa ser expulsa para um “fora” (Das, 2008DAS, V. And Poole, D. 2008. “El estado y sus márgenes. Etnografías comparadas”. Cuadernos de Antropología Social, núm. 27, p. 19-52.), tanto os gestos cotidianos como os desafiadores dessas sujeitas são um trabalho de fazer vida.

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  • 1
    O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA Ceará) é uma organização não-governamental fundada em 1994 que, desde 2008, entre outros campos de atuação, vem monitorando e realizando incidências políticas com relação ao Sistema Socioeducativo, em especial as unidades de internação, no Ceará. Em janeiro de 2016, passei a compor como advogada a equipe da organização.
  • 2
    Ricardo e Ana são nomes fictícios. Apesar de as interlocutoras da pesquisa participarem de manifestações, audiências públicas, reuniões com gestores e conformarem um ator social relevante entre muitas organizações da sociedade civil em Fortaleza, decidi utilizar nomes ficcionais para evitar riscos à segurança das participantes em um contexto de altos níveis de violência e também para proteger sua privacidade já que compartilharam informações íntimas comigo.
  • 3
    EM Fortaleza, 68 jovens fogem do Centro Educacional São Miguel. Portal G1, Fortaleza, 29 ago. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2015/08/em-fortaleza-72-jovens-fogem-do-centro-educacional-sao-miguel.html. Acesso em: 04 dez. 2020.
  • 4
    JOVENS fazem rebelião em centro para menores no Ceará; é a 5ª em sete dias. Portal G1, Fortaleza, 17 out. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2015/10/jovens-fazem--rebeliao-em-centro-para-menores-no-ceara-e-5-em-sete-dias.html. Acesso em: 04 dez. 2020.
  • 5
    JOVEM baleado durante rebelião nos centros educacionais morre no Ceará. Portal G1, Fortaleza, 07 nov. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2015/11/jovem-baleado-durante-rebeliao-nos-centros-educacionais-morre-no-ceara.html. Acesso em: 04 dez. 2020.
  • 6
    Lucas de Magalhães Freire destaca que a palavra crise não tem uma definição única ou a priori, isto é, são necessários uma série de discursos, documentos, normativas, declarações etc. para conformar uma apreensão das experiências vivenciadas em um enquadramento de crise. Em sua perspectiva, “a decretação de uma crise legitima uma série de ações e determinações administrativas, implicando a crise enquanto parte de um modo de governo - ou, mais especificamente, uma crise que é capaz de direcionar projetos variados de intervenção, reforma e reorganização na medida em que representa um ponto crítico de uma forma de gestão pública que é marcada historicamente pela escassez” (Freire, 2019: 49FREIRE, Lucas de Magalhães. 2019. A gestão da escassez: uma etnografia da administração de litígios de saúde em tempos de “crise”. Tese de doutorado em Antropologia Social, Museu Nacional, UFRJ.). Ao mesmo tempo, enquadrar acontecimentos como parte de uma crise coloca a demanda de que algo seja feito em curto prazo. Parece ter sido esse o objetivo das organizações de direitos humanos ao enquadrar os acontecimentos de 2015 a 2017 como crise: demandar mudanças na intervenção estatal nas unidades de internação.
  • 7
    “Sistema socioeducacional do Ceará está em colapso”, reconhece juiz da Infância. TJCE, Fortaleza, 11 mar. 2016. Disponível em: https://www.tjce.jus.br/noticias-cij/sistema-socioe- ducacional-do-ceara-esta-em-colapso-reconhece-juiz-da-infancia/. Acesso em: 04 dez. 2020.
  • 8
    Nota Pública sobre o colapso do sistema socioeducativo e a morte do adolescente Márcio Ferreira do Nascimento”. CEDECA Ceará, Fortaleza, 07 nov. 2015. Disponível em: http:// cedecaceara.org.br/site/index.php/2015/11/07/nota-publica-sobre-o-colapso-do-sistema-socioeducativo-cearense-e-a-morte-do-adolescente-marcio-ferreira-do-nascimento/. Acesso em: 04 dez. 2020.
  • 9
    “Grupo de Mães e Familiares do Socioeducativo de Ceará” é um dos termos utilizados como assinatura em faixas com as quais o coletivo tem demarcado sua presença em protestos públicos. No entanto, não há uma referência unívoca ao coletivo. Em uma das faixas usadas em protestos, por exemplo, vê-se a assinatura “Mães e Familiares do Sistema Socioeducativo - Ceará”. Nos relatos, minhas interlocutoras se referem ao coletivo como “mães do socioeducativo”, “mães e familiares do socioeducativo”, “grupo de mães” e inclusive “mães do CEDECA”. Mais recentemente com o encarceramento de muitos dos jovens no Sistema Penitenciário e o acirramento da crise desse sistema no Ceará sobretudo desde janeiro de 2019, o Grupo tem passado a incluir em suas discussões as questões relativas ao encarceramento de adultos e se auto denominar como Grupo de Mães e Familiares Vozes do Socioeducativo e Prisional.
  • 10
    Fórum Permanente de ONGs de Defesa de Direitos de Crianças e Adolescentes do Ceará.
  • 11
    Apesar de o Grupo realizar ações coletivas na esfera pública e ser um ator social relevante entre as várias organizações da sociedade civil em Fortaleza, decidi utilizar nomes ficcionais para evitar riscos à segurança das participantes em um contexto de altos níveis de violência e também para proteger sua privacidade já que compartilharam informações íntimas comigo.
  • 12
    A Internação Provisória deve durar no máximo 45 dias e pode ser imposta logo depois que um adolescente é apreendido em flagrante e deve se restringir a atos infracionais que impliquem violência ou grave ameaça.
  • 13
    Luisa menciona, por exemplo, o episódio em que ela e outra mãe negociaram sua entrada nas alas do Presídio Militar: as mães queriam saber o que estava acontecendo com seus filhos e os gestores queriam que eles se “acalmassem” e parassem de bater grade. Os gestores permitiram a entrada de Luisa e outra mãe com a condição de que elas dissessem aos adolescentes que eles estavam se organizando para a realização da visita familiar.
  • 14
    Maria é uma das participantes do Grupo de Mães. Trabalhava como segurança privada e é mãe de três filhos, um dos quais passou por algumas internações no Sistema Socioeducativo.
  • 15
    O tempo empregado na utilização do aplicativo para comunicar-se com as demais é de tanta importância que nos relatos se confundem as menções ao Grupo enquanto instância congregação das mães e demais familiares com o “grupo” de WhatsApp enquanto comunicação coletiva.
  • 16
    Nos discursos públicos das Mães do Socioeducativo, “governo” e “Estado” são frequentemente tratados como sinônimos, embora outras vezes o “governo” apareça na figura do “Governador Camilo Santana”, eleito para governar o Poder Executivo no Ceará de 2014 a 2018 e reeleito para o período de 2019 a 2022. A natureza do relacionamento com o Estado/governo em apresentações públicas será analisada mais adiante neste tópico.
  • 17
    Um pouco mais adiante em seu discurso afirma que: “não é orgulho para mim como mãe estar aqui, mas não posso me calar diante da omissão do Estado”.
  • 18
    No dia 11 de novembro de 2015, 11 pessoas foram assassinadas e outras tantas torturadas na região da Grande Messejana em Fortaleza após a morte de um policial. Cerca de 40 policiais figuram como réus nos processos criminais referentes ao massacre que ficou conhecido como Chacina do Curió. As Mães do Curió, desde então, tem se engajado em torno do processo criminal e em ações para promover a memória das vítimas.
  • 19
    A origem dessa frase é rastreada por Michel Misse (2008MISSE, M. 2008. Sobre a acumulação social da violência no Rio de Janeiro. Civitas, 8(3), 371-385.) que a atribui a um integrante dos primeiros grupos paramilitares registrados no Brasil, os Esquadrões da Morte em atividade a partir dos anos 1950 no Rio de Janeiro. A frase foi o slogan de campanha eleitoral de um se seus integrantes anos depois e atualmente tem uma ampla ressonância na sociedade brasileira. Uma investigação realizada em 2016, com 3.265 pessoas com 16 anos ou mais de idade em 217 municípios de todos os tamanhos, constatou que 57% da população concorda com a frase “bom bandido é morto bandido” (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017: 125FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 2017. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017. São Paulo.).
  • 20
    Expressão tomada de Efrem Filho (2017).
  • 21
    Conceição refere-se a um período em que ela enviou o filho Jorge para morar com um parente no sul do país após ser capturado pela polícia duas vezes em seu bairro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    21 Maio 2020
  • Aceito
    23 Out 2020
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