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FARIAS, Juliana. Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2020. 320p.

FARIAS, Juliana. . Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro.1. ed.Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2020. 320p.

A obra “Governo de mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro”, de Juliana Farias, defendida como tese de doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 2014, e agora publicada em livro pela editora Papéis Selvagens (2020FARIAS, Juliana Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2020. 320p.), aparece como um passo fundamental das etnografias acerca da violência de Estado no Brasil. As duas principais características deste avanço se dão através do estatuto metodológico dado por Farias ao “outro” e ao “objeto” de seu trabalho pesquisa e, por consequência da inovação anterior, a perspectivação da lógica de Estado tornada possível por sua postura.

O livro de Farias, como aponta sua introdução, se relaciona de maneira crítica com uma tradição de trabalhos acadêmicos sobre favelas. Tal tradição tem como marca o interesse da descrição sobre os “outros periféricos” como objetos de estudos específicos, grupos sociais circunscritos a serem estudados em suas especificidades internas e nas suas alteridades frente aos pesquisadores, numa reprodução da dicotomia desigual, tradicionalmente carioca, entre favela e asfalto. A partir de uma crítica ao que Farias chama de “favelologia” (Farias, 2020: 264, nota 228FARIAS, Juliana Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2020. 320p.) a autora realiza em seu trabalho uma torção de sentido logo nas primeiras páginas do livro: seus interlocutores - majoritariamente coletivos de familiares vítimas da violência de Estado no Rio de Janeiro - se tornam aliados táticos para lançar luz sobre uma lógica estatal que não lhe seria acessível dentro do cotidiano branco, de classe média e universitário de sua origem. A relação de diferença entre pesquisadora e pesquisadas se torna assim uma tentativa de aliança em que, em suas palavras, o “outro é o Estado” (: 52). Esta inovação metodológica é também notada nas duas peças adicionadas ao livro e que complementam o texto original da tese: um prefácio escrito por Adriana Vianna e um posfácio escrito pela própria autora. Se, no texto em prefácio, destaca-se o papel da etnografia em compor o tecido das lutas contra a violência de Estado (: 23), no texto que fecha a obra, Farias escreve uma longa “prestação de contas” (: 263) sobre as ausências bibliográficas do texto anterior - principalmente as que tratam sobre genocídio negro e racismo no Brasil, de fato, ausentes da argumentação da tese -, para, por fim, reafirmar o papel de seu trabalho de antropóloga como um compro- misso contra a violência de Estado e não apenas um estudo sobre suas vítimas (: 289).

Ao dispor das suas relações de campo como possibilidade de perspectivar a lógica estatal, Farias produz uma inovadora inversão metodológica no que se refere à tradição dos estudos sobre favelas cariocas e sobre outras periferias urbanas do país. Os resultados destes avanços, para além do refinamento metodológico, se dão através da descrição de um Estado em suas visibilidades, invisibilidades, gramáticas e marcas produzidas nas suas formas de relação com vidas e mortes faveladas. Farias busca, assim, elicitar os efeitos do Estado a partir de suas “formas menos ‘arrumadas’ de arranjos e imbricações que compõem tal engrenagem - formas mais ‘borradas’” ( :234).

Para dar acesso a esta perspectiva borrada da ação do Estado, a autora se utiliza de uma farta variedade de materiais que compõem a etnografia: diários de campo editados no formato de cenas, trechos de documentários, documentos forenses e notícias de jornal costuram a trama que nos conduz pelas engrenagens estatais. Esta variedade, contudo, tem seus limites. O mais evidente deles se dá pela utilização de letras de músicas nas aberturas de capítulos e subcapítulos de sua argumentação. Apesar de uma ligação estética com o texto em si - são, em sua maioria, MC’s cariocas e advindos de favelas - e uma citação rápida à música Lágrimas de Sangue, epígrafe do capítulo final do livro e que se refere a resistência daqueles que vem à terra “apenas para ver pistola fuzil e granada” (: 249), a autora não dá o mesmo tratamento metodológico refinado a estas citações como dá à sua própria presença em campo (: 49) e à utilização de fontes documentais (: 50). Aumentaria a potência de sua argumentação saber em que exatamente as letras de músicas expostas em epígrafes, por serem tantas e com letras tão fortes, nos auxiliam para a compreensão das engrenagens estatais de gestão da morte de favelados, objeto central de sua etnografia.

Estes materiais e esta metodologia dão fruto assim a um livro dividido em duas partes complementares da gestão estatal das mortes: uma visível e pública, por um lado; outra privada, íntima e tendendo à invisibilidade, por outro; cada uma das partes com dois capítulos cada. Em comum, entre os dois regimes de iluminação, há a morte produzida pelo Estado como elemento disparador. É ao caráter propulsor das execuções produzidas contra a vida pobre carioca que se dedica o primeiro capítulo do livro: “Execuções e chacinas em pauta”. Neste primeiro capítulo aparece pela primeira vez a dualidade entre visibilidade e invisibilidade que Farias nos apresenta em sua etnografia. É neste binômio que a autora descreve como a tradução das violências para transmissões internacionais, a amplificação das imagens das favelas e peças como charges de redes sociais se unem no aspecto público e espetacular deste tipo de extermínio.

Contudo, é em seu segundo capítulo: “Discutindo um enquadramento de morte por dentro do Estado” que autora apresenta o auto de resistência como tecnologia principal para o governo das mortes nas favelas do Rio de Janeiro. A descrição desta peça burocrática nos mostrará a articulação fundamental entre os aspectos públicos e privados das mortes produzidas pela violência do Estado carioca, de modo que acessamos de maneira nítida as engrenagens da gestão de mortes que a autora pretende nos apresentar.

É assim que, num primeiro momento do texto, a discussão acerca dos autos de resistência conecta as manifestações públicas contra a violência policial, os documentários de circuito internacional e as discussões parlamentares e ministeriais acerca das gramáticas oficiais para descrever as mortes produzidas pela polícia, revelando “detalhes ao mesmo tempo gramaticais e políticos nesse debate público sobre um enquadramento que, desde o período ditatorial no Brasil, habita o conjunto de recursos acionáveis dentro da engrenagem de gestão das mortes dos moradores de favelas.” (: 149); e, num segundo passo da etnografia, tal peça burocrática passa a ser analisada a partir das perspectivas de quem “vivencia o auto de resistência” (: 137), vivência esta que terá no léxico familiar seu ponto privilegiado de experimentação.

É assim que no capítulo terceiro: “Imbricação ‘Estado-família’: capilaridades extremas da gestão”, a perspectiva do Estado “pouco visível” feita por Farias aparece na sua análise das relações entre Estado e Família como entes sociais coproduzidos. É ao focalizar estas duas formas de socialidade que a etnografia nos mostra uma lógica de estado a partir em que “A força do campo magnético que propiciou esse tipo de aproximação de ambos os polos [...] decorre da possibilidade de a família de Emanuel, naquela situação, se apropriar da autorização conferida pelo defensor, de falar em seu nome, de falar em nome do Estado.” (: 177). Esta forma de imbricação entre Família e Estado enquanto sociabilidade desencadeada pelo evento da morte de um sujeito periférico pela ação da polícia é o ponto em que o “Estado-ideia” proposto por Phillip Abrams (2006ABRAMS, Philip. 2006. Notes on the Difficulty of Studying the State. In: A. Sharma & A. Gupta (org.). The Anthropology of the State: A Reader. Oxford: Blackwell Publishing. pp. 112-130) dá lugar a uma trama fina de compromissos, saberes e operações gramaticais que tentarão, na medida do possível, por um lado produzir justiça aos familiares da vítima e, por outro, gerir a situação desencadeada pela violência do Estado dentro dos limites da própria lógica estatal.

Esta maneira de tratar a coprodução entre Estado e Família nos processos desencadeados pela violência e pela desigualdade se distancia assim de leituras que apontam o encapsulamento do primeiro em relação à segunda. Se, numa certa leitura, a relação entre membros do judiciário com as famílias de vítimas da violência do Estado pode ser vista como uma colonização estatal que transforma o luto e protesto familiar em dinâmicas de amparos materiais mínimos que administram o conflito, Farias argumenta em sua etnografia, que tal relação produz outras formas de tensão que fazem dos grupos familiares “unidades administrativas, no sentido trabalhado por Vianna (2002VIANNA, Adriana. 2002. Limites da Menoridade: Tutela, Família e Autoridade em Julgamento. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 334p.) e Lugones (2012LUGONES, Maria Gabriela. 2012. Obrando en Autos, Obrando em Vidas: Formas y Fórmulas de Protección Judicial en los Tribunales Prevencionales de Menores de Córdoba, Argentina, a Comienzos del Siglo XXI. Rio de Janeiro: e-Papers/Laced/ Museu Nacional.), ou seja, enxergando-as em conexão com formas de gestão de populações, com formas de gestão de territórios”. Entre a colonização estatal da Família, e o acesso de grupos e léxicos familiares às lógicas do Estado, Farias nos demonstra uma relação conflitiva entre formas distintas de administrar conflitos desiguais, de reagir às violências de Estado e de produzir ferramentas de luta a partir de negociações cotidianas.

O capítulo quatro “Registros de morte em atos e papéis: obscuridades oficiais” se dedica então às marcas produzidas pelo Estado em sua relação com as vidas faveladas. Passo final do argumento das engrenagens das mortes, Farias demonstra assim como se produzem certas lógicas públicas e discursivas que produzem no corpo e nas representações burocráticas do corpo, marcas indeléveis da violência de Estado. Para isto, a autora se vale de uma descrição minuciosa da “zona de tatuagem”, borrão de vestígios de pólvora usualmente indicado para comprovar execuções sumárias, uma vez que tais marcas só seriam possíveis a partir de um disparo com a arma muito próxima à vítima.

É ao refletir sobre este tipo marca comum às vítimas do extermínio do Estado que Juliana faz uma criativa conexão com o texto de “Na Colonia Penal” de Franz Kafka e apresenta um universo real em que, como na ficção kafkiana, a desigualdade é ativada por uma relação inescapável com a violência de Estado e com a sua subsequente transformação em burocracia. Esta ativação, no caso das vidas faveladas, se dá primordialmente pela execução sumária e pela ortopedia gramatical posterior que transformará a morte em discurso burocrático, caso da zona de tatuagem, e que se tonará “um carimbo do Estado no corpo do favelado” (: 221).

Por fim, a obra de Juliana Farias é também uma contribuição fundamental para o debate sobre engajamentos políticos dentro do trabalho etnográfico e antropológico. Desviando de qualquer pretensão de neutralidade, a autora faz de sua posição um gesto franco e aberto sobre sua perspectiva enquanto antropóloga com objetivos comuns aos seus interlocutores de pesquisa e enquanto intelectual engajada em um objetivo claro e evidente contra a violência de Estado nas favelas cariocas. O término da leitura de “O Governo de Mortes” não deixa dúvidas do êxito de Juliana em contribuir para produzir uma antropologia que visa iluminar e combater as engrenagens do extermínio.

Referencias Bibliográficas

  • ABRAMS, Philip. 2006. Notes on the Difficulty of Studying the State. In: A. Sharma & A. Gupta (org.). The Anthropology of the State: A Reader. Oxford: Blackwell Publishing. pp. 112-130
  • FARIAS, Juliana Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro. 1. ed. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2020. 320p.
  • LUGONES, Maria Gabriela. 2012. Obrando en Autos, Obrando em Vidas: Formas y Fórmulas de Protección Judicial en los Tribunales Prevencionales de Menores de Córdoba, Argentina, a Comienzos del Siglo XXI. Rio de Janeiro: e-Papers/Laced/ Museu Nacional.
  • VIANNA, Adriana. 2002. Limites da Menoridade: Tutela, Família e Autoridade em Julgamento. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 334p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020
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