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“Descolonizar o nosso corpo”: ginecologia natural e a produção de conhecimento sobre corpo, sexualidade e processos reprodutivos femininos no Brasil

“Decolonizing our body”: natural gynecology and the production of knowledge about female body, sexuality and reproductive processes in Brazil

“Descolonizar nuestro cuerpo”: ginecología natural y la producción de conocimiento acerca de cuerpo, sexualidad y procesos reproductivos en Brasil

Resumo

Recentemente, popularizaram-se grupos de mulheres na internet e em encontros presenciais com o objetivo de compartilhar informações sobre sexualidade, reprodução, corpo feminino e seus processos de tratamento e cura. Esse ideário, em geral intitulado de “Ginecologia Natural”, parte da crítica à medicalização - que teria retirado das mulheres a autonomia sobre si, mantendo-as suscetíveis ao controle sobre seus corpos. Assim, os grupos valorizam aspectos associados ao feminino, mantendo inquestionado, contudo, o primado da diferença entre os gêneros e a noção de uma “natureza feminina” ancorada em um corpo biológico. A partir de uma pesquisa documental de manuais e materiais de referência sobre Ginecologia Natural coletados em dois grupos, este artigo reflete acerca da relação entre os movimentos de mulheres e o ideário da Ginecologia Natural, analisando as concepções sobre corpo, processos reprodutivos, e sexualidade femininos do ideário.

Palavras-chave:
ginecologia natural; corpo; natureza; medicalização; gênero.

Abstract

Recently, women’s groups have become popularized on the internet and in face-toface meetings in order to share information about sexuality, reproduction, the female body, and their treatment and healing processes. This ideology, generally called “Natural Gynecology”, is based on the criticism of medicalization - which would have removed from women their autonomy over themselves, keeping them susceptible to control over their bodies. Thus, the groups seek to attribute positive values associated with the feminine, keeping unquestioned, however, the primacy of the difference between genders and the notion of a “feminine nature” anchored in a biological body. Based on a documentary analysis of manuals and reference materials collected in two groups of Natural Gynecology, this article examines the relationship between the women’s movements and the Natural Gynecology ideology, analyzing thoughts on the female body, reproductive processes, and sexuality.

Keywords:
natural gynecology; body; nature; medicalization; gender

Resumen

Recientemente, se han vuelto populares grupos de mujeres en internet y en reuniones presenciales para compartir información sobre sexualidad, reproducción, cuerpo femenino y sus procesos de tratamiento y curación. Este ideario, generalmente intitulado “Ginecología natural”, parte de la crítica a la medicalización, que habría quitado la autonomía de las mujeres sobre sí mismas, manteniéndolas susceptibles al control sobre sus cuerpos. Así, los grupos valoran aspectos asociados al femenino, manteniendo incuestionable, sin embargo, la primacía de la diferencia entre géneros y la noción de una “naturaleza femenina” anclada en un cuerpo biológico. A partir de una investigación documental de manuales y materiales de referencia sobre Ginecología Natural recopilados en dos grupos, este artículo reflexiona sobre la relación entre los movimientos de mujeres y el ideario de la Ginecología Natural, analizando sus concepciones sobre cuerpo, procesos reproductivos y sexualidad femenina.

Palabras clave:
ginecología natural; cuerpo; naturaleza; medicalización; género

Introdução

É possível observar em anos recentes, sobretudo na última década, o crescimento de redes de discussão, principalmente em ambiente digital, que buscam compartilhar práticas terapêuticas com o intuito de resgatar a saúde da mulher, superar possíveis problemas que acometem o corpo feminino e promover novas formas de vivenciá-lo. Esse “resgate” se propõe a valorizar a autonomia das mulheres sobre seus corpos, processos reprodutivos, sexualidade e saúde, a partir do estímulo ao conhecimento da anatomia e fisiologia femininas. Essas redes buscam também produzir um conhecimento do qual as mulheres teriam sido historicamente destituídas e privadas ao longo do tempo. Tais espaços de discussão frequentemente referem-se a uma “Ginecologia Natural”, embora seja possível identificar outros termos ligados ao mesmo fenômeno, como “Ginecosofia” ou “Ginecologia Feminista”.

São frequentes, nesse meio, críticas à medicina convencional, considerada um saber “masculino”, bem como a uma dita “colonização” do corpo feminino, que teria sido promovida pela ciência médica ao longo de seu desenvolvimento. Esse ideário preconiza, assim, a necessidade de que as mulheres se reapropriem dos seus corpos em uma espécie de autogestão da saúde.

Ainda são escassos os trabalhos publicados sobre a Ginecologia Natural. Entre as estudiosas do tema, Calafell Sala (2019)CALAFELL SALA, Núria. 2019. “La ginecología natural en América Latina: un movimiento sociocultural del presente”. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro). Dezembro de 2019. no 33, p. 59-78. situa a emergência da Ginecologia Natural como um movimento sociocultural e político, aproximadamente no ano de 2008, na América Latina. Para essa autora, trata-se de um estudo do “presente” em constante crescimento no meio social e acadêmico. No entanto, cabe considerar que os grupos de Ginecologia Natural estão ligados também a ideários mais amplos, que vêm ganhando força nas últimas décadas, a exemplo do ideário da humanização do parto e do nascimento ditos “naturais” - que, por sua vez, provém, como observa Tornquist (2002)TORNQUIST, Carmen Susana. 2002. “Armadilhas da Nova Era: natureza e maternidade no ideário da humanização do parto”. Revista Estudos Feministas . Julho de 2002. Vol. 10, nº 2, p. 483-492., de um universo neo-espiritualista, com raízes na contracultura e no pensamento libertário/individualista das décadas de 1960 e 1970.

Outro aspecto importante diz respeito à popularização mais recente dos discursos públicos em redes sociais a respeito da Ginecologia Natural entre mulheres brasileiras, sobretudo jovens de classes médias em contextos urbanos. Dessa forma, a Ginecologia Natural parece ir ao encontro do chamado “ciberativismo menstrual” (Ramírez Morales, 2019)RAMÍREZ MORALES, María del Rosario. 2019. “Ciberactivismo menstrual: feminismo en las redes sociales”. Paakat: rev. tecnol. soc.. Vol. 9, nº 17, p. 1-18., na medida em que estes utilizam a internet para promover uma articulação política que visa garantir a autonomia dos corpos ditos femininos e menstruantes, e também dialoga com as “pedagogias menstruais” (Felitti; Rohatsch, 2018)FELITTI, Karina; ROHATSCH, Magdalena. 2018. “Pedagogías de la menarquía: espiritualidad, género y poder”. Sociedad y Religión. Vol. 28, No 50, p. 135-160., que buscam o compartilhamento de informações sobre o ciclo menstrual alinhadas a uma espiritualidade característica da cultura Nova Era1 1 O pensamento libertário característico da chamada Nova Era, de acordo com Salem (1991), se posiciona contra os constrangimentos sociais e se opõe às pretensões universalizantes das normas. O poder é visto como mal em si mesmo e, como alternativa, propõe-se um modelo em que os aspectos afetivos e emocionais da vida social suplantam as leis oficiais. . Essa visão se assemelha àquela citada por Tornquist (2002)TORNQUIST, Carmen Susana. 2002. “Armadilhas da Nova Era: natureza e maternidade no ideário da humanização do parto”. Revista Estudos Feministas . Julho de 2002. Vol. 10, nº 2, p. 483-492. a respeito do movimento pela humanização do parto.

É no seio do movimento feminista que podemos resgatar as influências do ideário da Ginecologia Natural. Trata-se, no entanto, de uma corrente que difere do feminismo liberal da década de 1970, que buscava desvincular o conceito de sexo biológico do gênero. O feminismo liberal, conforme analisa Schiebinger (2001)SCHIEBINGER, Londa. 2001. O feminismo mudou a ciência? Bauru: EDUSC, 2001., postula que as mulheres são, em princípio, iguais aos homens, devendo se preparar para vencer em um mundo essencialmente masculino. Dessa forma, acredita-se que a igualdade deveria ser alcançada a partir da adaptação das mulheres às características usualmente associadas ao masculino, tanto em um nível biológico quanto cultural. Ainda segundo a autora, o avanço do feminismo liberal encontrou alguns “becos sem saída”, pois visava estender os direitos dos homens às mulheres, eventualmente sem considerar a existência de diferenças de gênero ou a necessidade de mudanças estruturais.

Algumas feministas, por outro lado, acreditam não ser possível ignorar a influência dos fatores biológicos na constituição do gênero, e argumentam que processos fisiológicos relacionados ao corpo biológico feminino, como a menstruação, o aborto, a gravidez, a amamentação, dentre outras, impactam de modo significativo e particular a vida das mulheres (Lupton, 2003)LUPTON, Deborah. 2003. The body in medicine. In: LUPTON, Deborah. Medicine as culture: illness, desease and body in wester societies. Londres: SAGE Publications, p. 22-53..

A noção de um corpo feminino universal, que difere fundamentalmente do masculino, permeia o chamado “feminismo da diferença” (Sorj, 1992SORJ, Bila. 1992. “O feminismo como metáfora da natureza”. Revista Estudos Feministas . Julho./dezembro de 1992. Vol. 0, nº 0, p. 143-150.; Rohden, 1996)ROHDEN, Fabíola. 1996. “Feminismo do sagrado: uma reencenação romântica da diferença”. Revista Estudos Feministas . Janeiro de 1996, nº 4, p. 96-17., que, assim como o ecofeminismo, sobre o qual falaremos adiante, promove a valorização da mulher como salvadora ecológica, atribuindo maior proximidade do feminino com a “natureza”. Trata-se de um movimento que busca o enfrentamento das desigualdades entre homens e mulheres a partir da manutenção da diferença entre os sexos e de uma inversão hierárquica que visa positivar valores associados ao feminino.

A Ginecologia Natural se apresenta inserida na lógica do feminismo da diferença, visto que a anatomia encontra papel importante na definição do “ser mulher”. A ênfase no biológico, na diferença sexual, e o valor atribuído a uma dita “natureza” parecem ser os pilares desse pensamento. O enfoque no “retorno à natureza”, que se materializa em comparações com fêmeas mamíferas do reino animal e referências a um suposto instinto feminino, contrasta com a crítica mais contundente ao determinismo biológico realizada por estudos de gênero e movimentos feministas de meados do século XX até os dias atuais no sentido da justificação das desigualdades de gênero (Alzuguir; Nucci, 2015)ALZUGUIR, Fernanda; NUCCI, Marina. 2015. “Maternidade mamífera? Concepções sobre natureza e ciência em uma rede social de mães”. Mediações - Revista de Ciências Sociais. Setembro de 2015. Vol. 20, no 1, p. 217-238..

Além disso, o discurso da Ginecologia Natural se apresenta a partir de um aspecto místico, que se inspira em crenças oriundas de culturas pré-cristãs e se propõe a exaltar características consideradas essencialmente femininas, visando a libertação dos ideais cristãos. Esse teor discursivo se associa à corrente denominada de “neopaganismo” e integra um movimento neo-espiritualista de “orientalização do Ocidente”, que consiste na integração no Ocidente de valores característicos do Oriente, conforme a análise de Campbell (1997)CAMPBELL, Colin. 1997. “A orientalização do ocidente: reflexões sobre uma nova teodicéia para um novo milênio”. Religião e Sociedade. Vol. 18, no 1, p.5-22.. Outro aspecto marcante da Ginecologia Natural, a crítica à medicalização também encontra alguns paradoxos, uma vez que certos materiais da pesquisa sugerem uma reapropriação de instrumentos que surgiram da própria medicina, como o espéculo ginecológico. Cabe, portanto, questionar se de fato trata-se de um processo de desmedicalização ou de remedicalização sob nova ótica (Russo et al., 2019)RUSSO, Jane et al. 2019. “Escalando vulcões: a releitura da dor no parto humanizado”. Mana. Estudos de Antropologia Social. Setembro de 2019. Vol. 25, nº 2. p. 2519-550..

Por conseguinte, é importante problematizar as abordagens da Ginecologia Natural em relação ao uso de conceitos que são geralmente apresentados como dados, naturalizados e inquestionados como “gênero”, “natureza”, “corpo”, “feminino”, “saúde”, dentre outros. Essas concepções devem ser situadas histórica e culturalmente. Cabe ressaltar que não se trata de desmerecer a relevância política do movimento em sua crítica à medicalização do corpo feminino, mas de identificar possíveis armadilhas que possam advir desses discursos e seus impactos sobre a sociedade, a partir das contribuições dos estudos socioantropológicos contemporâneos sobre gênero, corpo e sexualidade.

Foi a partir da observação desses grupos na internet, principalmente na rede social Facebook, e entre pares, que surgiu o interesse no desenvolvimento de pesquisa de mestrado em Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Este artigo é um recorte desta pesquisa, que objetivou analisar concepções de corpo feminino em dois grupos brasileiros de Ginecologia Natural, a partir da análise de livros, cartilhas e manuais indicados pelas organizadoras dos grupos.

O intuito deste artigo é refletir sobre a produção de um conhecimento empírico acerca do corpo feminino, sexualidade e processos reprodutivos pela Ginecologia Natural na atualidade, sobretudo no contexto brasileiro. Esse ideário pretende um conhecimento visto por suas adeptas como contra-hegemônico, pois se basearia em uma posição de resistência frente às abordagens médicas convencionais à saúde da mulher. Com isso, as adeptas da Ginecologia Natural procuram promover uma maior autonomia das mulheres sobre seus corpos, o que está intimamente ligado a uma reapropriação e ressignificação de instrumentos e simbolismos utilizados pela medicina, associando-os a representações de poder. Para compreender essas abordagens é fundamental contextualizá-las historicamente, relacionando-as a experiências similares, ligadas a movimentos feministas de décadas anteriores.

Organizamos este artigo da seguinte forma: primeiro, apresentaremos as condições de produção do contexto empírico de análise a partir de uma etapa exploratória da pesquisa. Em seguida, faremos uma breve contextualização histórica de coletivos e organizações feministas que influenciaram os movimentos atuais de Ginecologia Natural no Brasil. Por fim, nos deteremos em dois temas centrais que permeiam o pensamento dos grupos em foco no que se refere aos corpos femininos: “Medicalização e resistência” e “autonomia e poder”.

Metodologia

A metodologia deste trabalho consistiu em pesquisa documental de textos, manuais e materiais considerados, pelas integrantes dos grupos que serão abaixo especificados, como sendo de referência para a prática da Ginecologia Natural. Para discussão aqui proposta selecionamos sete materiais. Os documentos foram coletados em dois grupos de Ginecologia Natural a partir de uma etapa exploratória inicial realizada através da pesquisa de informações disponibilizadas nos grupos na rede social Facebook e na observação participante de três eventos divulgados na mesma rede.

A aproximação ao primeiro grupo, que recebeu o nome fictício de Grupo Calêndula, ocorreu a partir de uma roda de conversa sobre práticas em Ginecologia Natural, realizada em uma cidade do interior do Rio de Janeiro. Após a realização do evento, a organizadora enviou por e-mail às participantes arquivos e links que considerava referência para seus estudos. O segundo grupo, chamado de Grupo Artemísia, ocorreu em dois momentos. No primeiro, foi realizada uma roda de conversa em um hotel de luxo na zona sul carioca, onde foram expostas publicações de referência sobre Ginecologia Natural. O segundo momento foi em um retiro com duração de dois dias em uma cidade próxima ao Rio de Janeiro. Os documentos incluídos na análise foram aqueles que abordavam o corpo feminino na ótica da Ginecologia Natural. Também foram selecionados arquivos que favorecessem a contextualização histórica desses grupos. Foram excluídos textos com foco em outros assuntos mais específicos, como alimentação, pompoarismo, assim como documentos repetidos.

Trata-se de um material heterogêneo e que oferece diferentes perspectivas. Isso ocorre uma vez que alguns dos documentos foram produzidos por profissionais de saúde, outros por escritoras e ativistas feministas, além de terem origem em diferentes países, como Chile, Estados Unidos, Suíça e Brasil. Algumas publicações são informais, digitalizadas pelas organizadoras dos grupos, carecendo de informações como ano ou local.

Além de textos, alguns materiais são compostos também por imagens, que foram consideradas em nossa análise como documentos e incorporadas às nossas reflexões. Assim, os registros escritos e imagens selecionados configuraram um acervo (livros, manuais, artigos, fanzines, cartilhas) que traduz concepções e valores alinhados à perspectiva da Ginecologia Natural. Nesse sentido, a opção pela seleção de materiais de referência, previamente divulgados pelas participantes de dois grupos brasileiros - em redes sociais e nos encontros presenciais -, fundamenta também sua relevância como fonte primária de análise dos sentidos que configuram o ideário do referido movimento.

Para melhor visualização, os materiais analisados neste artigo constam na Tabela 1.

Tabela 1
elaborada pelas autoras

Embora a principal metodologia deste estudo tenha sido a análise documental, para fins de contextualização do material coletado, algumas informações oriundas da observação participante realizada na etapa exploratória foram cotejadas de forma complementar.

O trabalho foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Antes da realização da pesquisa, fizemos contato com as organizadoras dos dois grupos da rede social Facebook, informando o interesse em participar dos encontros presenciais pra realizar uma pesquisa. Também foi solicitada a autorização escrita da organizadora do grupo Artemísia para a utilização de informações compartilhadas no retiro prático. No caso das rodas de conversa, as informações coletadas são consideradas de acesso público, conforme a resolução 510/2016 (Conselho Nacional de Saúde, 2016CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. (07.04.2016). RESOLUÇÃO Nº 510, DE 07 DE ABRIL DE 2016. [online]. Ministério da Saúde (Brasil). Disponível em: Disponível em: http:// conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf . [Acesso em 27.02.2021]
http:// conselho.saude.gov.br/resolucoes...
), não sendo necessária a autorização por escrito. No entanto, as organizadoras de ambos os grupos foram informadas sobre a pesquisa e concordaram com a participação.

Feminismos e a emergência da Ginecologia Natural

Para contextualizar os grupos analisados é importante considerar a influência de movimentos feministas de décadas anteriores, especialmente dos Estados Unidos, Suíça e Brasil. Em geral utilizamos a divisão em “ondas” para abordar os movimentos feministas. Considera-se como primeira onda, as manifestações que ocorreram entre fins do século XIX e a Primeira Guerra Mundial (Gomes; Sorj, 2014)GOMES, Carla; SORJ, Bila. 2014. “Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil”. Revista Sociedade & Estado. Agosto de 2014. Vol. 29, nº 2, p. 433-447.. A luta, nesse momento era pela garantia de direitos às mulheres, como o voto (Pinto, 2010)PINTO, Céli. 2010. “Feminismo, história e poder”. Revista de Sociologia e Política. Junho de 2010. Vol. 18, nº 36, p. 15-23..

A chamada “segunda onda” do feminismo se caracterizou pelas reivindicações por uma nova forma de relacionamento entre os sexos e por liberdade e autonomia das mulheres sobre seus corpos (Pinto, 2010PINTO, Céli. 2010. “Feminismo, história e poder”. Revista de Sociologia e Política. Junho de 2010. Vol. 18, nº 36, p. 15-23.; Gomes; Sorj, 2014)GOMES, Carla; SORJ, Bila. 2014. “Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil”. Revista Sociedade & Estado. Agosto de 2014. Vol. 29, nº 2, p. 433-447.. Alguns autores teorizam sobre uma “terceira onda”, que teria se originado da anterior, apresentando algumas das ideias já conhecidas como a crítica à indústria da beleza, abuso sexual e o questionamento das estruturas de poder. O termo foi utilizado pela primeira vez em 1992 por Rebecca Walker, filha da ativista e escritora feminista Alice Walker (Bobel, 2010)BOBEL, Chris. 2010. New blood: third-wave feminism and the politics of menstruation. New Jersey: Rutgers University Press.. Essa nova etapa teria como característica a ampliação das discussões da chamada segunda onda, incluindo uma proposta de “descolonização” a partir dos estudos pautados pela chamada perspectiva pós-colonial ou decolonial. De acordo com Bobel:

A referência à descolonização não se refere somente às mulheres reivindicarem sua agência, mas também sobre o próprio feminismo superar o racismo, o classismo e o heterossexismo, que muitos adeptos da terceira onda atribuem à segunda onda (2010: 15BOBEL, Chris. 2010. New blood: third-wave feminism and the politics of menstruation. New Jersey: Rutgers University Press.).

Assim, colocam-se em questão outras oposições binárias além daquela que já permeava os movimentos anteriores, entre homens e mulheres. Passa-se a discutir as diferenças entre mulheres negras e brancas ou do hemisfério sul e norte (Gomes; Sorj, 2014)GOMES, Carla; SORJ, Bila. 2014. “Corpo, geração e identidade: a Marcha das vadias no Brasil”. Revista Sociedade & Estado. Agosto de 2014. Vol. 29, nº 2, p. 433-447.. Embora a análise de Bobel (2010)BOBEL, Chris. 2010. New blood: third-wave feminism and the politics of menstruation. New Jersey: Rutgers University Press. considere a incorporação de uma discussão pautada na ideia de descolonização e nos determinantes de raça, classe e gênero na análise feminista, muitas feministas negras consideram não ter sido contempladas nas chamadas “ondas” do movimento. Conforme observado por Figueiredo (2020)FIGUEIREDO, Angela. 2020. “Epistemologia insubmissa feminista negra decolonial”. Tempo e Argumento, Janeiro/abril de 2020. Vol. 12, nº 29, p. 1-24., um grupo de mulheres de Salvador - BA se autodefine como “maré feminista negra”, com o intuito de romper com a noção de “ondas”. A autora argumenta que os feminismos negros contemporâneos buscam produzir novas epistemologias, que superam a hegemonia eurocêntrica. Esse conhecimento é produzido com base em ideias decoloniais e visa subverter a pretensa “neutralidade científica”, incluindo as experiências dos sujeitos subalternizados em suas análises.

No interior do feminismo da segunda onda, localiza-se uma vertente que mescla a luta das mulheres à defesa do meio ambiente, cunhada por Françoise D’eaubonne de “ecofeminismo” (Flores; Trevizan, 2015)FLORES, Bárbara; TREVIZAN, Salvador. 2015. “Ecofeminismo e comunidade sustentável”. Revista Estudos Feministas. Janeiro/abril de 2015. Vol. 23, nº 1, p. 11-34., e que encontra forte aproximação com o ideário da Ginecologia Natural. De acordo com o ecofeminismo, a organização do sistema patriarcal seria responsável, tanto pela dominação e destruição dos recursos naturais, quanto pela opressão sofrida pelas mulheres. A solução para essas questões seria a libertação de todas as formas de dominação, o que se aproxima da lógica libertária descrita por Salem (1991)SALEM, Tania. 1991. “O “individualismo libertário” no imaginário social dos anos 60”. Physis. Vol. 1, nº 2, p. 59-75.. Sorj (1992)SORJ, Bila. 1992. “O feminismo como metáfora da natureza”. Revista Estudos Feministas . Julho./dezembro de 1992. Vol. 0, nº 0, p. 143-150. destaca que o ideal ecofeminista também faz críticas à ciência, sobretudo no tocante às questões de saúde reprodutiva, acusando-a de desenvolver métodos de controle sobre o corpo feminino sem considerar males à saúde e ao ambiente.

Outra especificidade dos movimentos feministas que também nos interessa de perto diz respeito aos grupos que lutavam pela saúde das mulheres. Esse é o caso do Boston Women’s Health Book Collective (BWHBC), atuante nos Estados Unidos desde a década de 1970 até o início da década de 1990. Para Bobel (2008)BOBEL, Chris. 2008. “From convenience to hazard: a short history of the emergence of menstrual activism movement”. Health Care for Women International. Julho de 2008. Vol. 29, no 7, p. 738-754., esse movimento partia do pressuposto de que as mulheres não tinham controle sobre seus corpos e sua saúde, devido à existência de um sistema médico dominante. O coletivo começou com reuniões entre mulheres para compartilhar suas experiências com médicos e o conhecimento sobre o funcionamento do corpo feminino.

Ao constatar a falta de informação e a predominância das experiências negativas com a medicina, o BWHBC se engajou na produção de uma coletânea, intitulada “Women and Their Bodies”, com sua versão inicial em forma de panfleto publicada em 1970. Três anos depois, essa coletânea se tornaria a obra mais importante produzida pelo coletivo, o “Our Bodies, Ourselves”, abordando temas relacionados à saúde feminina que não se encontravam disponíveis em outras fontes de informação, como “[...] orgasmo, o clitóris, a pílula, aborto” (Bobel, 2008: 741BOBEL, Chris. 2008. “From convenience to hazard: a short history of the emergence of menstrual activism movement”. Health Care for Women International. Julho de 2008. Vol. 29, no 7, p. 738-754.). Apesar de seu alcance mais local, Bobel (2008)BOBEL, Chris. 2008. “From convenience to hazard: a short history of the emergence of menstrual activism movement”. Health Care for Women International. Julho de 2008. Vol. 29, no 7, p. 738-754. argumenta que a relevância desses movimentos é transnacional, pois sua história tem o potencial de influenciar ativismos contemporâneos, de interesses similares, independentemente do local.

Outro coletivo de mulheres que influenciou o movimento da Ginecologia Natural foi o Dispensaire des Femmes, fundado em 1978, em Genebra, na Suíça (Uzodinma, 1988)UZODINMA, Minta. 1988. “Natural healing in gynecology: a manual for women by Rina Nissim”. Journal of Nurse-Midwifery. Março de 1988. Vol. 33, nº 2, p. 84-85.. Trata-se de uma organização inspirada no movimento de mulheres norte-americano, também dedicada à saúde feminina. Antes de fundar o coletivo, a enfermeira suíça Rina Nissim passou anos trabalhando pela saúde da mulher em outros países, como Estados Unidos, Costa Rica e países da Europa (Uzodinma, 1988). O Dispensaire des Femmes, que encerrou suas atividades em 1987 (Queré, 2017)QUERÉ, Lucile. (10.07.2017). Le Dispensaire des femmes de Genève, une forme d’institutionnalisation du self-help. [online]. Disponível em: Disponível em: https://efigies-ateliers. hypotheses.org/2711 . [Acesso em 12.02.2020.].
https://efigies-ateliers. hypotheses.org...
, buscava a institucionalização da chamada autoajuda e se alinhava ao Movimento de Libertação das Mulheres de Genebra, e aos grupos feministas norte-americanos.

Esse coletivo visava a desmedicalização dos cuidados com a saúde, limitando o poder médico sobre o corpo feminino (Queré, 2017)QUERÉ, Lucile. (10.07.2017). Le Dispensaire des femmes de Genève, une forme d’institutionnalisation du self-help. [online]. Disponível em: Disponível em: https://efigies-ateliers. hypotheses.org/2711 . [Acesso em 12.02.2020.].
https://efigies-ateliers. hypotheses.org...
. A noção de autoajuda defendida por Nissim, importada dos Estados Unidos, partia do conhecimento do corpo e dos tratamentos ditos “naturais”, que priorizavam o uso de ervas e consideravam aspectos psicológicos e emocionais, tanto de quem prescrevia, quanto de quem utilizava as preparações (Uzodinma, 1988)UZODINMA, Minta. 1988. “Natural healing in gynecology: a manual for women by Rina Nissim”. Journal of Nurse-Midwifery. Março de 1988. Vol. 33, nº 2, p. 84-85.. Nissim faz referência direta à expressão “Ginecologia Natural” em sua principal obra, publicada pela primeira vez em francês com o título: “Mamamelis: manuel de gynécologie naturopathique à l’usage des femmes”, atualmente em sua 5ª edição (Editions Mamamelis, 2020EDITIONS MAMAMELIS. Mamamélis. [online] 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.mamamelis.com/lecatalogue/mamamelis/index.html . [Acesso em 14.02.2020]
http://www.mamamelis.com/lecatalogue/mam...
), e que influenciou importantes políticas públicas de saúde no Brasil, como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Brasil, 2004BRASIL, Ministério da Saúde. 2004. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes. 1ª ed. Brasília: Ministério da Saúde.), que incluiu o manual em suas referências bibliográficas.

Uma importante referência do movimento pela saúde das mulheres no Brasil é o Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, fundado em São Paulo, em funcionamento até hoje. Segundo Diniz (1999)DINIZ, Simone. 1999. “A atenção integral e a caixa de Pandora: notas sobre a experiência do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde”. In: GRIFFIN, K.; HAWKER COSTA, S. (eds.). Questões de saúde reprodutiva. 1ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 377-394., o Coletivo concentrou esforços na construção de políticas públicas para as mulheres, principalmente a partir do diálogo com órgãos governamentais, como Secretarias e Ministério da Saúde, e na participação de suas integrantes em Comitês de Mortalidade Materna. Ainda segundo Diniz, desde 1985 o Coletivo realiza: “[...] um trabalho de atenção primária à saúde da mulher com essa perspectiva feminista e humanizada, tendo atendido, desde então, mais de quatro mil mulheres, inspirado pela experiência europeia, sobretudo do Dispensaire des Femmes, de Genebra” (Diniz, 1999: 378DINIZ, Simone. 1999. “A atenção integral e a caixa de Pandora: notas sobre a experiência do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde”. In: GRIFFIN, K.; HAWKER COSTA, S. (eds.). Questões de saúde reprodutiva. 1ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, p. 377-394.).

Conforme o site do Coletivo, a experiência de uma de suas fundadoras, Ma ria José de Oliveira Araújo, em Genebra, fez com que ela propusesse a criação de um ambulatório que buscava, de forma semelhante à proposta do Dispensaire des Femmes, a criação de “novos paradigmas de atendimento às mulheres” (Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, s/dCOLETIVO FEMINISTA SEXUALIDADE E SAÚDE. s/d. Quem somos. [online]. Disponível em: Disponível em: https://www.mulheres.org.br/coletivo-feminista/ . [Acesso em 27.02.2021]
https://www.mulheres.org.br/coletivo-fem...
). Para tanto, o Coletivo oferece, além da clínica, algumas publicações que divulgam de modo didático informações sobre o funcionamento do corpo feminino, como a apostila “Fique Amiga Dela2 2 O “dela” no título da apostila faz referência à vagina e à necessidade de que a mulher reestabeleça uma aproximação com esse órgão, a qual, segundo essa ótica, vem sendo sistematicamente negada às mulheres. Cabe observar que, nesse processo de valorização do corpo feminino, os órgãos mais diretamente vinculados aos processos reprodutivos e sexualidade são ressignificados. ” (Diniz, 2003)DINIZ, Simone. 2003. Fique amiga dela: dicas para entender a linguagem de suas partes mimosas. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde., bastante utilizada pela Ginecologia Natural, e da qual falaremos mais adiante.

Também é importante citar movimentos contemporâneos, que em muito se assemelham com o ideário da Ginecologia Natural. É o caso do “ciberativismo menstrual”, por exemplo, que, segundo Ramírez Morales (2019)RAMÍREZ MORALES, María del Rosario. 2019. “Ciberactivismo menstrual: feminismo en las redes sociales”. Paakat: rev. tecnol. soc.. Vol. 9, nº 17, p. 1-18., utilizam as redes sociais para promover a despatologização e valorização da menstruação. Esses grupos buscam narrativas vistas como contra-hegemônicas, por se distanciarem da visão biomédica dominante, ao mesmo tempo em que valorizam o autoconhecimento, questionando os tabus menstruais. Trata-se de uma forma de organização política a partir da sociedade civil, que tem na internet um meio de atingir seus objetivos. Da mesma forma, é possível relacionar a Ginecologia Natural às chamadas “pedagogias menstruais”, descritas por Felitti e Rohatsch (2018)FELITTI, Karina; ROHATSCH, Magdalena. 2018. “Pedagogías de la menarquía: espiritualidad, género y poder”. Sociedad y Religión. Vol. 28, No 50, p. 135-160. a partir do exemplo argentino. Segundo elas, empresas de produtos direcionados às mulheres, entidades governamentais e a sociedade civil vêm se empenhando, nos últimos anos, em produzir conteúdo educativo sobre menstruação.

“Descolonizar o nosso corpo”: medicalização e resistência

O “Manual Introductorio a la Ginecología Natural”, de autoria da escritora e parteira tradicional chilena Pabla Pérez San Martín (s/d)PÉREZ SAN MARTÍN, Pabla. s/d. Manual introductorio a la ginecología natural. Chile: La Picadora de Papel. corresponde à primeira edição em formato de fanzine de um manual, posteriormente publicado em livro, traduzido para o português, com novas observações da autora. Suas obras são importantes referências para a Ginecologia Natural, recomendadas pelos dois grupos analisados por nós.

Já nas primeiras páginas do fanzine, há a representação gráfica (Figura 1) de duas serpentes entrelaçadas, formando uma imagem semelhante ao “Caduceu de Hermes”, frequentemente confundido com o símbolo da medicina, quando, de acordo com Prates (2002)PRATES, Paulo. 2002. “Do bastão de Esculápio ao caduceu de Mercúrio”. Arquivos Brasileiros de Cardiologia. Outubro de 2002. Vol. 79, nº 4, p. 434-436. simboliza o comércio. O verdadeiro símbolo da ciência médica seria, então, o “Bastão de Esculápio”, representado por um bastão com uma serpente enrolada. A confusão entre os símbolos ocorre, ainda de acordo com Prates (2002)PRATES, Paulo. 2002. “Do bastão de Esculápio ao caduceu de Mercúrio”. Arquivos Brasileiros de Cardiologia. Outubro de 2002. Vol. 79, nº 4, p. 434-436., devido, dentre outros fatores, à associação da serpente com a cura e do caduceu à alquimia na Idade Média.

Figura 1:
Manual Introductoria a la Ginecología Natura. Fonte: Pabla Pérez San Martín.

Na imagem, encontram-se ainda dois corpos femininos. Inicialmente, as sociamos a imagem ao símbolo da medicina, interpretando que os corpos das mulheres estavam sendo penetrados pelas serpentes. Outro detalhe que levou a essa interpretação inicial foi a presença de um poema junto à imagem, que indica uma das principais ideias da publicação, e que está presente na maior parte das discussões da Ginecologia Natural: a crítica à intervenção médica sobre o corpo e a sexualidade das mulheres. Outro fato que chama atenção em alguns materiais é a menção à serpente como mito da criação da vida e do “eterno retorno”, que representa uma espécie de natureza cíclica das coisas, ligada aos aspectos ditos “femininos” do universo (Pérez San Martín, s/dPÉREZ SAN MARTÍN, Pabla. s/d. Manual introductorio a la ginecología natural. Chile: La Picadora de Papel.). No livro “Lua Vermelha” (Gray, 2017: 96GRAY, Miranda. 2017. Lua Vermelha: as energias criativas do ciclo menstrual como fonte de empoderamento sexual, espiritual e emocional. 1ª ed. São Paulo: Pensamento.), a serpente aparece como expressão das “Deusas padroeiras do aprendizado, do oráculo, da cura, da sabedoria e da inspiração”. Já o livro “Seu sangue é ouro” (Owen, 1994)OWEN, Lara. 1994. Seu sangue é ouro: resgatando o poder da menstruação. 1ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos. considera esse animal como símbolo de poder, morte, renascimento e sexualidade. O mito da serpente, que parece ter grande importância no ideário tratado aqui, exprime o retorno a uma espécie de conhecimento/poder, que seria essencialmente feminino. Esse poder teria sido retirado à força das mulheres, ao mesmo tempo em que a serpente era demonizada a partir do mito bíblico, no qual o animal surge como a tentação de Eva, a primeira mulher (Pérez San Martín, s/dPÉREZ SAN MARTÍN, Pabla. s/d. Manual introductorio a la ginecología natural. Chile: La Picadora de Papel.).

A serpente representa, portanto, tudo aquilo que teria sido retirado das mulheres a partir do domínio masculino. Essas reflexões nos levaram a uma reinterpretação da imagem em que as serpentes não mais penetram os corpos femininos, mas se projetam a partir deles, especificamente da vagina. Segundo essa interpretação, a sexualidade, o conhecimento e o poder, que teriam sido “roubados” das mulheres, não estariam completamente perdidos e deveriam ser resgatados. É interessante notar que essa visão se opõe à conhecida interpretação bíblica que associa a serpente, ao mesmo tempo, ao feminino e à fonte de todo o pecado do mundo.

O que o texto e a imagem também parecem evidenciar é a insatisfação das mulheres adeptas do ideário da Ginecologia Natural com o excesso de intervenções e controle médicos sobre o corpo feminino. Pode-se dizer que a medicalização atua em uma dimensão biopolítica, visto que a dominação é exercida sobre o corpo biológico a partir do discurso da autoridade. Embora não citem explicitamente autores como Foucault (2014)FOUCAULT, Michel. 2014. Direito de morte e poder sobre a vida. In: FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. 1ª ed. São Paulo: Paz & Terra, p. 145-175. e Conrad (1992CONRAD, Peter. 1992. “Medicalization and social control”. Annual Review Of Sociology. Agosto de 1992. Vol. 18, p. 209-232.; 2007CONRAD, Peter. 2007. “Medicalization: contexts, characteristics and changes”. In: CONRAD, Peter The medicalization of society: os the transformation of human conditions into treatable disorders. 1ª ed. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, p. 3-19.), o material reconhece os mecanismos de poder analisados por eles, e, a partir disso, busca promover a positivação dos valores associados ao corpo feminino.

A valorização do corpo feminino se justifica a partir da ideia de que ele teria sido historicamente encarado como indigno ou sujo, visão legitimada por valores religiosos, que associavam a mulher ao pecado. Há, portanto, um esforço dos grupos de Ginecologia Natural em desconstruir essa visão. Isso ocorre, por exemplo, quando um trecho do “Manual de Introdução à Ginecologia Natural” desaconselha o uso de desodorantes vaginais. A autora afirma que além de promover um desequilíbrio no pH vaginal, esses produtos sustentam uma ideologia “falocrática” que considera que a vagina cheira mal. A mesma observação sobre o mito do mau cheiro da vagina foi feita pela organizadora do grupo Calêndula, que criticou o uso de sabonetes íntimos e desodorantes vaginais. Nesse encontro, uma participante revelou utilizar sabonete íntimo por recomendação médica e foi prontamente respondida pela organizadora da seguinte forma: “quem é o médico na fila do pão?”. Dessa forma, a organizadora questiona a hegemonia do saber médico em relação ao corpo feminino, comumente aceito como verdade. A partir da positivação do corpo feminino, os grupos, assim como os textos indicados por eles, propõem o compartilhamento de um conhecimento empírico baseado em experiências práticas, visando resgatar a autonomia das mulheres sobre seus corpos.

Para além da promoção da autonomia a partir da prática, destacam-se as referências a um processo de “descolonização” do corpo, presentes, sobretudo nos escritos da chilena Pabla Pérez San Martín. De acordo com Calafell Sala (2019)CALAFELL SALA, Núria. 2019. “La ginecología natural en América Latina: un movimiento sociocultural del presente”. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro). Dezembro de 2019. no 33, p. 59-78., os movimentos de Ginecologia Natural na América Latina apresentam algumas idiossincrasias, que incorporam saberes e epistemologias de mulheres originárias desses territórios latino-americanos, vistos como expropriados pela biomedicina, a partir de uma releitura contemporânea.

O sangue menstrual apresenta considerável importância nesse movimento, na medida em que, segundo Calafell Sala (2020)CALAFELL SALA, Núria. 2020. “Menstruación decolonial”. Revista Estudos Feministas. Vol. 28, no 1, p. 1-13., reflete três níveis do exercício colonial. São eles: (i) poder, ao negar-se o valor político e público da menstruação, dificultando a construção de políticas públicas a ela direcionadas; (ii) saber, pela imposição do saber biomédico como único possível, negando outros saberes de origem popular e espiritual; (iii) gênero, ao definir o “tornar-se mulher” a partir da menarca, ao mesmo tempo em que estimula uma vivência a-menstrual para que as mulheres se integrem ao mundo construído pelo patriarcado. Dessa forma, a Ginecologia Natural, exemplificada pela visão de Pérez San Martín (2018)PÉREZ SAN MARTÍN, Pabla. 2018. Manual de introdução à Ginecologia Natural. 3ª ed. Bauti Produções., propõe o uso do corpo e do sangue menstrual como forma de resistência à colonialidade a partir de um movimento que, ao mesmo tempo em que é transnacional e tem raízes no norte global, incorpora saberes originários de cada região em que é difundido, gerando uma combinação entre tradição e modernidade. Além disso, a autora também reconhece a Ginecologia Natural como uma “oposição deslocada” (Calafell Sala, 2020: 4CALAFELL SALA, Núria. 2020. “Menstruación decolonial”. Revista Estudos Feministas. Vol. 28, no 1, p. 1-13.) ao pensamento único colonizador e ao neoliberalismo, os quais seriam responsáveis pela subjugação dos corpos ditos femininos.

Os grupos analisados neste artigo, que contam com a maioria das partici pantes do Brasil, não à toa, parecem sofrer grande influência dos movimentos de outros países latino-americanos destacados por Calafell Sala (2019)CALAFELL SALA, Núria. 2019. “La ginecología natural en América Latina: un movimiento sociocultural del presente”. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro). Dezembro de 2019. no 33, p. 59-78., o que é corroborado pelo uso de materiais provenientes de autoras latino-americanas como referência para o estudo e pelo uso de músicas em espanhol nos encontros em que participamos. Esse fato indica o caráter recente desta discussão no Brasil, embora a incorporação de saberes dos povos originários ao feminismo esteja mais desenvolvida em outros países da América do Sul.

‘Autogestão da saúde’: autonomia e poder

Como vimos, a valorização da autonomia e do conhecimento sobre o próprio corpo é um dos principais objetivos da Ginecologia Natural. Isso aparece em vários momentos dos encontros, nos quais as participantes aprendem, por exemplo, a produzir medicamentos caseiros para prevenir e tratar problemas ginecológicos. Além disso, estimula-se o conhecimento da anatomia e fisiologia de forma prática e experimental, através do uso de espelhos, exposição de imagens e esquemas representando o sistema reprodutivo feminino, e da realização do autoexame ginecológico com espéculo (semelhante ao Papanicolau, mas feito pela própria mulher, sem coleta de material para exame laboratorial). O objetivo do autoexame, de acordo com um fanzine dedicado a ele (Bruxaria Distro, s/dBRUXARIA DISTRO. s/d. Autoexame ginecológico: como fazer?), é conhecer e redescobrir a vagina, superando tabus, proibições e culpas a ela associados. A partir desse entendimento, o espéculo passa a ser ressignificado como instrumento de poder e luta, conforme ilustrado na Figura 2.

Figura 2:
Autoexame ginecológico: como fazer

A imagem reproduzida no fanzine foi publicada pela primeira vez em 1973 no “Sister, the Newspaper of the Los Angeles Women’s Center”. No desenho, a personagem da Mulher Maravilha toma o instrumento dos médicos e anuncia: “com meu espéculo eu sou forte, eu posso lutar”, simbolizando a transferência do poder do médico para a mulher, que agora pode conhecer e lidar com as necessidades de seu corpo (Haraway, 2018)HARAWAY, Donna. 2018. “Fetus: the virtual speculum in the new world order”. In: HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millenium.FemaleMan_Meets_OncoMouse: feminism and technoscience. 2ª ed. New York: Routledge, p. 173-212..

Segundo Haraway (2018)HARAWAY, Donna. 2018. “Fetus: the virtual speculum in the new world order”. In: HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millenium.FemaleMan_Meets_OncoMouse: feminism and technoscience. 2ª ed. New York: Routledge, p. 173-212., o uso do espéculo como símbolo feminista foi popular nos anos 1970 nos Estados Unidos. Esse instrumento, que permite ao médico examinar o corpo da mulher, aqui adquire outro significado. As feministas, então, passam a utilizar de forma ritualizada, um espéculo, um espelho e uma lanterna com a finalidade de “abrir” seu corpo à sua própria visão. Sendo assim, o espéculo representa um símbolo de poder, permitindo a auto-observação daquilo que antes se encontrava sob o domínio do médico: o colo do útero. Já o espelho utilizado no processo, representaria a visão narcísica do próprio corpo (Haraway, 2018HARAWAY, Donna. 2018. “Fetus: the virtual speculum in the new world order”. In: HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millenium.FemaleMan_Meets_OncoMouse: feminism and technoscience. 2ª ed. New York: Routledge, p. 173-212.).

É importante resgatar essa herança do feminismo norte americano dos anos 70, considerando suas influências sobre o movimento aqui analisado. As semelhanças entre ambos se revelam não somente com a reprodução da mesma imagem da época, mas no valor atribuído ao espéculo e ao autoexame no sentido da conquista da autonomia na gestão sobre o próprio corpo.

No retiro do grupo Artemísia, foi realizada uma oficina de autoexame com espéculo. A princípio, pensamos que a facilitadora apenas ensinaria o método sem que as participantes de fato fizessem o autoexame juntas. No entanto, o objetivo dessa etapa, que não à toa ocorreu no último momento das práticas, era que as mulheres se dividissem em duplas ou trios, para ajudar-se na realização do exame, enquanto a facilitadora corrigia possíveis erros. Nosso estranhamento inicial está ligado ao desconforto e falta de naturalidade em compartilhar a visualização do colo do útero com pessoas estranhas.

Quando o exame é feito no consultório médico, há um “ritual” que visa criar um distanciamento entre médico e paciente, como uma roupa especial e um pano que cobre as pernas para evitar contato visual durante o exame3 3 Em “O exame ginecológico visto do outro lado da mesa”, a médica Joni Magee se posiciona enquanto paciente e narra o “ritual” do exame de Papanicolau com bastante detalhes, fazendo com que a cena ora pareça cômica, ora assustadora: “Fui conduzida à sala de exame, posicionada e vestida segundo o ritual: os pés nos estribos, os joelhos recobertos por um tecido leve, o períneo livre e sem defesa” (Magee, 1988: 1124). . Já no retiro em questão, há outro tipo de “ritual”, em que não se busca um distanciamento. Pelo contrário, nesse momento, o grupo parecia unido, marcando oposição à frieza e hierarquia do exame médico. Durante os dias de prática e convivência, foram criados vínculos que permitiram uma aproximação entre as participantes. Além disso, os temas abordados durante as práticas, como os tabus do corpo feminino (medo/ culpa/vergonha) permitiram que o autoexame em grupo se tornasse confortável para todas. A curiosidade e vontade de acessar essa parte do corpo, até então restrita à visualização médica, era superior aos tabus existentes.

Assim, embora a organizadora do grupo fizesse questão de dizer que as práticas compartilhadas por ela não substituem cuidados médicos, há um enfoque no “faça-você-mesmo”. Essa característica também esteve presente nos movimentos norte-americanos de mulheres na década de 1970, como os movimentos de self-help e Women’s Health Movement, os quais se fundamentavam na percepção de que a dominação da medicina fazia com que as mulheres tivessem pouco controle sobre seus corpos e, consequentemente, sua saúde.

Também vale destacar outra publicação que utilizou a imagem da Mulher Maravilha com o espéculo, feita pelas acadêmicas Barbara Ehrenreich e Dierdre English em formato de panfleto, ainda em 1973. Conforme descrito por Haraway (2018)HARAWAY, Donna. 2018. “Fetus: the virtual speculum in the new world order”. In: HARAWAY, Donna. Modest_Witness@Second_Millenium.FemaleMan_Meets_OncoMouse: feminism and technoscience. 2ª ed. New York: Routledge, p. 173-212., as autoras argumentaram que a autoajuda não seria o caminho mais adequado para confrontar o sistema médico vigente. Para elas, a saúde perpassa questões de raça e classe. Por esse motivo, é preciso compreender que nem todas mulheres têm as mesmas necessidades de saúde e são tratadas da mesma forma pelo sistema. Para essas autoras, portanto, o movimento de mulheres deveria considerar a diversidade e não apenas priorizar a similaridade biológica.

Desse modo, os grupos de Ginecologia Natural, assim como os movimentos de mulheres de 70 nos Estados Unidos, enfatizam a busca da autonomia e conhecimento sobre o corpo. Esse tema também está presente na cartilha “Fique amiga dela”, material produzido pelo coletivo “Sexualidade e Saúde”, já citado anteriormente, cuja leitura foi indicada pelas organizadoras dos dois grupos analisados. O diferencial do coletivo, de acordo com a própria cartilha é a proposta de uma espécie de “medicina suave”, utilizando tratamentos “naturais e menos agressivos”. Além disso, segundo a cartilha (Diniz, 2003: 28DINIZ, Simone. 2003. Fique amiga dela: dicas para entender a linguagem de suas partes mimosas. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.): “A mulher/usuária é percebida como um indivíduo, o sujeito da ação de saúde, capaz de entender, decidir e cuidar do próprio corpo e da própria vida”. Dessa forma, os profissionais oferecem uma espécie de exame ginecológico conjunto, fornecendo para as mulheres as informações e práticas necessárias ao autoexame.

A cartilha também apresenta esquemas detalhados da anatomia feminina, destacando cada órgão e suas funções. É interessante notar que o primeiro órgão abordado é o clitóris, identificado como o principal responsável pelo prazer feminino. A página em que consta a representação gráfica e informações sobre o clitóris foi utilizada durante o encontro presencial do grupo Calêndula para discutir a importância do conhecimento da anatomia e fisiologia femininas. Nesse momento, inúmeras dúvidas surgiram entre as participantes. Embora elas aparentassem ter escolaridade alta e frequentassem médicos, desconheciam muitas das informações compartilhadas pela facilitadora e por outras participantes, como detalhes sobre o funcionamento do clitóris e os diferentes fluidos vaginais expelidos ao longo do ciclo. Esse fato nos dá pistas sobre que tipo de informação sobre o corpo é passada para as mulheres ao longo da vida, seja nas famílias, nas escolas ou pelos médicos, e de quais conhecimentos ficam de fora.

O clitóris também é mencionado no já citado “Manual de introdução à Ginecologia Natural” como órgão cuja única função é dar prazer à mulher. Por não participar diretamente do processo reprodutivo, o clitóris seria negligenciado na maioria dos espaços onde é discutida a anatomia feminina. A partir disso, cabe questionarmos quais fatores contribuem para definir o que é incluído ou excluído nos livros didáticos para estudo da anatomia feminina, e a forma com que esses assuntos são abordados. Sobre esse ponto, a análise de Martin (2006)MARTIN, Emily. 2006. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. 1ª ed. Rio de Janeiro: Garamond. de textos médicos de obstetrícia e ginecologia nos dá algumas pistas, ao abordar as metáforas culturais que processos como menstruação e menopausa expressam ao serem representados nos referidos textos como falhas no processo de produção, uma vez que o corpo feminino é compreendido como uma fábrica cujo produto final são bebês saudáveis. Vale lembrar que essa não é a única interpretação possível, embora a obra de Martin traga imensas contribuições sobre as representações e a própria construção do corpo feminino pela medicina.

Considerações finais: Uma ginecologia feminista a partir da prática

As reflexões compartilhadas neste trabalho se deram a partir da análise de um acervo coletado em uma etapa exploratória realizada de forma presencial em dois grupos de Ginecologia Natural. Esta etapa exploratória permitiu o contato com informações, usualmente compartilhadas em grupos de mulheres via internet, no momento em que se colocavam em prática. Para além da observação, a participação no processo também contribuiu para melhor compreensão do ideário dos grupos de Ginecologia Natural e, consequentemente, da análise do material consultado em relação aos significados e práticas sobre natureza e corpo feminino que configuram a cosmovisão dos grupos.

A valorização de um modo de produção do conhecimento ancorado na prática constitui um dos pilares desse ideário, que, como vimos, se conecta com os movimentos feministas de gerações passadas, como o Boston Women’s Health Book Collective. A ideia de um corpo individual, cujo ciclo e funcionamento se manifestam de forma diferente em cada mulher, perpassa tanto os movimentos de saúde da mulher norte-americanos quanto os grupos atuais de Ginecologia Natural. Por esse motivo, a auto-observação se torna fundamental. Os grupos analisados parecem rejeitar a concepção biomédica, que frequentemente estabelece padrões de normalidade e categorizações para fenômenos fisiológicos.

A crítica ao conhecimento biomédico e aos processos de medicalização do corpo feminino também integra parte fundamental deste ideário. Essa crítica ocorre simultaneamente a uma proposta de “reapropriação” do corpo, que teria sido destituído do domínio das mulheres devido à dominação masculina. Ao mesmo tempo, é feito um paralelo entre a opressão das mulheres e a destruição dos recursos naturais pelo homem. As concepções e práticas sobre o corpo no âmbito da Ginecologia Natural estão ancoradas na naturalização do dimorfismo sexual (Laqueur, 2001)LAQUEUR, Thomas. 2001. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumará. e na substancialização de uma ideia de natureza feminina cujas bases vêm sendo problematizadas pela crítica feminista a partir de diversas autoras (ver, por exemplo, Sorj, 1992SORJ, Bila. 1992. “O feminismo como metáfora da natureza”. Revista Estudos Feministas . Julho./dezembro de 1992. Vol. 0, nº 0, p. 143-150.; Nicholson, 2000NICHOLSON, Linda. 2000. “Interpretando o gênero”. Revista Estudos Feministas . Janeiro de 2000. Vol. 8, nº 2, p. 10-41., entre outras).

A ideia de poder médico tal qual expressa pela literatura analisada evoca uma concepção de “imperialismo médico” ao qual se atribui um valor pejorativo de um poder autoritário, de cima para baixo, que “extrai”, “desapropria” e “usurpa” a autonomia dos sujeitos, (no caso, mulheres), acarretando, em uma perda do autocontrole e da capacidade de autogestão sobre seus corpos (Zorzanelli e Cruz, 2018)ZORZANELLI, Rafaela, CRUZ, Marcelo. 2018. “O conceito de medicalização em Michel Foucault na década de 1970”. Interface. Vol. 22, nº. 66, p. 721-731.. Essa visão da medicina vem sendo problematizada pela produção contemporânea do campo das ciências sociais e saúde, nacional e internacional, a partir do que Foucault denomina de “medicalização indefinida” (Foucault, 2011)FOUCAULT, Michel. 2011. “Crise da medicina ou crise da antimedicina?”. In: MOTTA, MB. (org.). Arte, epistemologia, filosofia e história da medicina. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, p. 374-393., ou seja, do reconhecimento da impossibilidade de se pensar, no contexto das sociedade ocidentais liberais urbanas, em espaços políticos ou em indivíduos totalmente isentos de alguma forma de presença de saber médico (Zorzanelli e Cruz, 2018ZORZANELLI, Rafaela, CRUZ, Marcelo. 2018. “O conceito de medicalização em Michel Foucault na década de 1970”. Interface. Vol. 22, nº. 66, p. 721-731.), tamanho o espraiamento da medicalização na vida social. Para Lupton (1997LUPTON, Deborah. 1997. “Foucault and the medicalisation critique”. In: PETERSEN, A.; BUNTON, R. (ed.). Foucault, health and medicine. London: Routledge, p. 94-110. apud Zorzanelli e Cruz, 2018ZORZANELLI, Rafaela, CRUZ, Marcelo. 2018. “O conceito de medicalização em Michel Foucault na década de 1970”. Interface. Vol. 22, nº. 66, p. 721-731.) um dos problemas do imperialismo médico é o de negligenciar o papel da agência dos sujeitos no processo de medicalização, a exemplo de grupos de pacientes que se unem em torno de determinada categoria diagnóstica para reivindicar direitos.

Vale também ressaltar que a participação nos grupos evidenciou a predominância de mulheres jovens escolarizadas de camadas médias4 4 Considerando que a declaração racial no Brasil é autodeterminada, entendemos não ser possível determinar esse aspecto em relação às participantes. No entanto, a observação nos grupos presenciais nos permite supor que se trata de maioria de mulheres brancas, sobretudo no grupo Artemísia, cujos encontros foram pagos. nos encontros presenciais. Levando em conta a perspectiva interseccional, precisamos, portanto, situar criticamente a produção desse conhecimento sobre o “corpo feminino”, chamando assim a atenção para essa denominação no singular, quando, em realidade, trata-se de um conhecimento produzido por um grupo de mulheres que compartilha um conjunto de experiências inevitavelmente afetadas por marcadores sociais como geração e classe social.

Por fim, outro aspecto importante visto na pesquisa: a reivindicação de um corpo descolonizado, que consiste em um ideal a ser alcançado pela Ginecologia Natural, um corpo cujo conhecimento foi ao longo de séculos expropriado das próprias mulheres pelo poder médico, as quais clamam por sua reapropriação e o seu autogoverno, através de uma autogestão, seja da saúde, dos processos reprodutivos ou do próprio corpo. A ideia de descolonização também está ligada à construção de novas epistemologias, desvinculadas da perspectiva colonial característica do hemisfério norte do globo. Não à toa, muitos referenciais utilizados pelos grupos têm sua origem na América Latina. Um dos maiores exemplos é a escritora chilena Pabla Pérez San Martín, amplamente citada nos dois grupos. Embora influências do movimento norte-americano e suíço sejam evidentes, as discussões atuais da Ginecologia Natural no Brasil parecem ser impulsionadas por referenciais latino-americanos, cujas particularidades residem em um sincretismo, que mescla tradições indígenas e religiosas à discussão feminista. A discussão sobre descolonização é ampla e extrapola os limites deste artigo. No entanto, consideramos que seu aprofundamento é uma trilha fecunda a ser percorrida em futuras pesquisas calcadas em uma perspectiva crítica sobre gênero, corpo, saúde e medicalização.

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Notas

  • 1
    O pensamento libertário característico da chamada Nova Era, de acordo com Salem (1991), se posiciona contra os constrangimentos sociais e se opõe às pretensões universalizantes das normas. O poder é visto como mal em si mesmo e, como alternativa, propõe-se um modelo em que os aspectos afetivos e emocionais da vida social suplantam as leis oficiais.
  • 2
    O “dela” no título da apostila faz referência à vagina e à necessidade de que a mulher reestabeleça uma aproximação com esse órgão, a qual, segundo essa ótica, vem sendo sistematicamente negada às mulheres. Cabe observar que, nesse processo de valorização do corpo feminino, os órgãos mais diretamente vinculados aos processos reprodutivos e sexualidade são ressignificados.
  • 3
    Em “O exame ginecológico visto do outro lado da mesa”, a médica Joni Magee se posiciona enquanto paciente e narra o “ritual” do exame de Papanicolau com bastante detalhes, fazendo com que a cena ora pareça cômica, ora assustadora: “Fui conduzida à sala de exame, posicionada e vestida segundo o ritual: os pés nos estribos, os joelhos recobertos por um tecido leve, o períneo livre e sem defesa” (Magee, 1988: 1124MAGEE, Joni. 1988. “O exame ginecológico visto do outro lado da mesa”. Femina. Vol. 6, no 12, p. 1124-1128.).
  • 4
    Considerando que a declaração racial no Brasil é autodeterminada, entendemos não ser possível determinar esse aspecto em relação às participantes. No entanto, a observação nos grupos presenciais nos permite supor que se trata de maioria de mulheres brancas, sobretudo no grupo Artemísia, cujos encontros foram pagos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    21 Abr 2021
  • Aceito
    13 Set 2021
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