Acessibilidade / Reportar erro

“Há Sobreviventes”: contando uma história de morte súbita1 1 Este artigo foi originalmente publicado com o título “There Are Survivors”: Telling a Story of Sudden Death na The Sociological Quarterly, 34(4), 711-730, em 1993. O texto original está disponível em http://www.jstor.org/stable/4121376. Acesso em 29 de outubro de 2021.

“Hay supervivientes”: contar una historia de muerte súbita

“There Are Survivors”: Telling a Story of Sudden Death

Resumo

Este artigo é uma narrativa pessoal de um drama familiar representado na sequência da morte do meu irmão, decorrente de um acidente de avião. Histórias “verdadeiras” como essa se encaixam no espaço entre ficção e ciências sociais, juntando escrita etnográfica e literária, e compreensão autobiográfica e sociológica. Meu objetivo é reposicionar os leitores em relação aos outros autores de textos de ciências sociais, reconhecendo o potencial para leituras opcionais e encorajando os leitores a “experienciarem uma experiência” que pode revelar não apenas como foi para mim, mas como poderia ser ou foi também para eles alguma vez. Esta forma experimental permite a pesquisadores e leitores reconhecerem e darem voz às suas próprias experiências emocionais e incentiva sujeitos etnográficos (coautores) a reivindicarem e escreverem suas próprias vidas.

Palavras-chave:
autoetnografia; escrita etnográfica; experiência; narrativa pessoal; morte súbita

Abstract:

This article is a personal narrative of a family drama enacted in the aftermath of my brother’s death in an airplane crash. “True” stories such as this fit in the space between fiction and social science, joining ethnographic and literary writing, and auto-biographical and sociological understanding. My goal is to reposition readers vis a vis authors of texts os social science by acknowledging potential for optional readings and encouraging readers to “experience and experience” that can reveal not only how it was for me, but how it could be or once was for them. This experimental form permits researchers and readers to acknowledge and give voice to their own emotional experiences and encourages ethnographic subjects (co-authors) to reclaim and white their own lives.

Keywords:
autoethnography; ethnographic writing; experience; personal narrative; sudden death

Resumen:

Este artículo es la narración personal del drama familiar ocurrido tras la muerte de mi hermano en un accidente aéreo. Historias “verdaderas” como esta se encajan en el limite de la ficción y las ciencias sociales, uniendo escritura etnográfica y literaria, y la comprensión autobiográfica y sociológica. Mi objetivo es reposicionar a los lectores en relación con los demás autores de textos de ciencias sociales, reconociendo el potencial de la lectura opcional y animar a los lectores a “experimentar una experiencia” que pueda revelar no solo cómo fue para mí, sino también como podría haber sido para ellos. Esta forma experimental permite a los investigadores y lectores reconocer y expresar sus propias experiencias emocionales y anima a los sujetos etnográficos (coautores) a reclamar y escribir sus propias vidas.

Palabras clave:
autoetnografía; escritura etnográfica; experiencia; narrativa personal; muerte súbita

Eu cresci em uma pequena cidade de três mil pessoas localizada no sopé da Virgínia, o mesmo lugar em que meus pais nasceram e foram criados. Depois de frequentar a escola primária em um uma escola de vilarejo, ambos os meus pais tiveram empregos assalariados. Minha mãe costurava bolsos em calças; meu pai trabalhava em uma fazenda e, lá, bombeava gás. Depois do casamento, meu pai começou uma pequena empresa de construção. Embora ele nunca tenha compreendido as “abstrações” de uma calculadora, ele podia descobrir, intuitivamente, quanto custava uma nova casa ou uma extensão da casa imediatamente. Como gerente do escritório, minha mãe organizava o negócio e mantinha os livros de contas atualizados, embora ela nunca tenha entendido totalmente como os impostos funcionavam ou como as planilhas eram balanceadas. No final da próspera década de 1960, sua empresa de construção foi considerada a melhor na área, e passamos do nível de quase pobreza a sermos capazes de pagar muitos dos luxos da vida. Ainda assim, vivíamos de forma semelhante às famílias da classe trabalhadora que nos cercavam - nós comprávamos as mesmas coisas, apenas em maior quantidade e modelos mais recentes, e nossas conversas e histórias eram sobre eventos próximos de casa, alegrias do dia a dia e tragédias da vida real.

Art, meu irmão mais velho, nasceu em 1937. Treze anos mais velho que eu, ele era mais parecido com um tio carinhoso e confiável do que um irmão. Judy pesava apenas um quilo e trinta e seis gramas quando nasceu, em 1948. Ela parecia frágil quando criança e era facilmente levada às lágrimas. Eu via sua sensibilidade como sua característica mais marcante e a mais problemática. Ela e eu dormíamos no mesmo quarto e discutíamos sem parar sobre quando apagar a luz, quem usou as roupas da outra sem pedir e de quem era a vez de secar a louça. Lidar com uma irmã mais jovem, competitiva e menos sensível, que tirava notas altas e era uma atleta melhor do que ela não deve ter sido fácil. Eu nasci em 1950, depois Rex, em 1952.

Rex e eu tínhamos um relacionamento intenso e complexo quando crianças.

Ele e eu brigávamos quase todos os dias, mas, em contraste com minha constante irritação verbal com minha irmã, nossas brigas eram físicas e de curta duração. Eu costumava me sentar em cima dele, segurando seus braços abertos acima de sua cabeça. Ele se contorcia quando meu rosto se aproximava e eu o ameaça com a saliva pendurada em meus lábios, sugando-a um pouco antes de deixá-la cair. Embora ele tenha ameaçado todos os tipos de retribuição, terminamos a maioria dos episódios rindo. Ele poderia ter revidado durante a adolescência, mas ele não o fez. Tudo o que ele sempre fez foi vencer na queda de braço algumas vezes, apenas para me mostrar.

Então, eu tentava enganá-lo. Frequentemente eu “pegava emprestada” sua bicicleta quando ele não estava olhando. Meus pais não achavam que uma garota precisava ter uma. Finalmente, exasperado, Rex guardou sua bicicleta com um cadeado. Funcionou bem, até que um dia descobri que a fechadura não estava completamente fechada e saí à tarde. Convenci Rex de que havia arrombado a fechadura e ele nunca mais a usou. Quando ele se ofereceu para me emprestar a bicicleta ocasionalmente depois disso, parei de roubá-la.

Eu era mais intelectual do que Rex, mas isso nunca pareceu incomodá-lo. Embora ele tenha me acompanhado por dois anos na escola, conseguiu se destacar, às vezes como atleta, às vezes como um piadista ou músico. As pessoas adoravam sua perspectiva de bom senso para a vida, seu charme, sua boa índole e capacidade aparentemente inconsciente de se divertir, não importava o que acontecia.

Rex se preocupava comigo. Eu sabia porque o testei. Eu costumava lavar meu cabelo em uma bacia no banheiro. Uma vez, quando ele entrou na sala, eu fiquei perfeitamente imóvel, minha cabeça apaticamente na água e não respondi à sua conversa. Quando ele olhou embaixo do meu cabelo para ver se eu estava respirando, abri os olhos e disse: “Bu”. Eu nunca contei que eu sabia que ele pensou que eu estava morta. Fiquei triste quando vi sua expressão preocupada e nunca fiz nada assim de novo.

Lembro-me de quando Rex acidentalmente deixou meu olho roxo com um taco de beisebol. Ele chorou quando viu que tinha me machucado. Eu sabia que me importava com ele também, porque me certifiquei de que minha mãe entendeu que tinha sido um acidente para que ela não o punisse. E eu me senti pior por ele chorar por me machucar do que por causa do meu olho roxo.

Uma vez eu até arrisquei uma surra por me recusar a encontrar uma chibata para meu pai que, em um momento de angústia, queria espancar Rex por nadar em um lago no meio do inverno. Rex e eu podíamos contar com a proteção um do outro.

O acidente

Em 1982, aos 29 anos, Rex morreu a caminho de me visitar na Flórida. Ele era um passageiro a bordo do avião da Air Florida que caiu no Rio Potomac, na decolagem do Aeroporto Nacional de Washington. A história que conto aqui descreve as consequências do acidente enquanto minha família e amigos de Luray, cidade onde nasci e onde Rex morava, reagiam e lidavam com essa tragédia inesperada.

*****

Quando adultos, Rex e eu nos tornamos grandes amigos. A última vez que o vi, algumas semanas antes, na casa dos meus pais no Natal, ele e eu tínhamos passado apenas alguns minutos juntos acertando os presentes de meus pais e planejando sua viagem para Tampa.

“Gosto quando você escolhe os presentes”, disse ele. “Vamos fazer isso de novo no ano que vem. Mal posso esperar para ver você em Tampa”.

“Sim”, respondi. “Vou conseguir sua passagem de avião. Sei como conseguir as melhores tarifas”.

“Eu digo a todos os meus amigos que você é professora”, Rex disse com orgulho. “Vai ser divertido ir à sua classe”. De repente, fico nervosa por ser avaliada por meu irmão.

O voo de Rex estava programado para chegar hoje, sexta-feira, 13 de janeiro de 1982. Embora eu fosse encontrá-lo às 16:30, seu avião só estava pronto para decolar de Washington às 15:45, quando liguei para companhia aérea. Como convidei vários amigos para jantar, fiquei feliz com o tempo extra.

“Ei, o que está fazendo?”, meu irmão mais velho, Art, pergunta quando eu atendo o telefone que está tocando. Eu fico surpresa ao ouvi-lo e, apesar da leveza de suas palavras, detecto preocupação em sua voz. Rapidamente, ele pergunta:

“Rex já chegou”?

“Não, o avião dele atrasou. Por quê”? Já me sinto alarmada.

“Oh, alguém ligou para a mamãe e disse que um avião caiu, e ela acha que eles disseram algo sobre Tampa. Só quero tranquilizá-la de que Rex está bem. Você sabe como ela se preocupa”.

Embora ele tenha dito isso com indiferença, fico tensa porque sinto o quanto ele está “dando duro” para normalizar essa conversa. Então eu falo de dentro de uma névoa entorpecida: “para onde eles disseram que o avião estava indo”?

“Bem, ela pensou que eles disseram que estava vindo de Tampa para Washington”.

“Então não pode ser isso”, eu respondo muito rapidamente, a adrenalina agora começando a bombear. Nós respiramos.

No silêncio, meu irmão diz: “Mas houve confusão porque eles disseram que era Vôo 90”.

“Esse é o número do vôo dele, mas mamãe provavelmente errou o número”.

Sim, essa é a explicação, eu me asseguro.

“Não”, diz ele. “Acabei de ouvir o número no rádio”.

“Eles disseram Air Florida”?

“Não sei, só que ele caiu no rio Potomac”.

“Oh, Deus, vou ligar para a companhia aérea e já te ligo de volta”.

Flashes de relâmpagos passam por trás dos meus olhos. Minha respiração acelera, estou sufocando. Enquanto disco, minhas mãos tremem e digo em voz alta continuamente: “Não, por favor, Deus”. Golpeada pela trivialidade das minhas preocupações diárias, lembro-me de como me senti apressada para me preparar para a chegada de Rex e como isso parecia importante. Agora, se ele só estiver vivo, nada mais vai importar. Claro que ele está, eu me repreendo. Acalme-se.

Mamãe confundiu tudo. Mas então como Art ouviu o mesmo número de vôo?

Recebo um sinal de ocupado algumas vezes antes de um agente da Air Florida responder, “Air Florida, posso ajudar?”. A saudação familiar me conforta. Veja, não há nada de errado, eu me tranquilizo. “Sim, eu quero informações sobre um horário de chegada”. “Certamente. Qual é o número do vôo”? ele pergunta alegremente.

“Voo 90”. Agora, sua voz adquire uma qualidade profissional, então ele responde rapidamente: “Não podemos dar informações sobre esse voo”.

“O que você quer dizer com não pode dar informações sobre esse vôo”?

“Não podemos dar informações sobre esse voo”, repete.

Meu coração bate forte quando pergunto calmamente: “Um avião da Air Florida caiu hoje”?

“Sim.”

“Estava indo de Washington para Tampa”?

“Sim”, diz ele, parecendo aliviado por responder às minhas perguntas.

“Quantos voos vocês têm indo de Washington para Tampa hoje”?

“Dois”.

“Quando eles foram programados”?

“Um esta manhã. Um esta tarde”.

“Será que o desta manhã conseguiu”?

“Sim”.

“Muito obrigada”, digo baixinho e desligo o telefone, meu coração batendo forte.

Art atende ao primeiro toque. “Houve uma explosão”, digo. “E parece que foi o avião do Rex”.

“Eles estão dizendo agora que há sobreviventes”, diz meu irmão, e eu sinto esperança. Ele continua: “Vou para a casa da mamãe e do papai. Eles estão muito chateados. Vão ficar mais chateados”.

“Ok, sim, vá. Manteremos contato”.

Agora estou sozinha, em estado de choque, a adrenalina correndo pelo meu corpo. Entorpecida por fora, minhas entranhas estão superestimuladas. Eu rolo lentamente pelo espaço em branco. “Por favor, Deus, não,” eu ouço meu intestino gemendo profundamente. Eu me movo rapidamente para ligar a televisão. “Voo 90 cai”, soa em meus ouvidos. “Há sobreviventes na água sendo resgatados. Veja, outra cabeça.” Este não é um filme ou um replay instantâneo. Sento-me, meus braços em volta do meu corpo, e balanço para frente e para trás a trinta centímetros da TV, respirando profundamente e gemendo.

Meus olhos estão colados no resgate das vítimas do Potomac, e procuro freneticamente por Rex. “Ele tem que estar lá”, eu digo em voz alta. Atordoada, estou consciente de mim mesma observando a TV como parte da cena. A realidade se torna nebulosa, com mais multicamadas e menos limites do que o normal.

Um carro se aproxima e eu sei pelo som familiar que é Gene, meu companheiro, e Beth, sua filha, voltando das compras. Quando eu corro para a porta, a névoa em minha frente se dissipa de repente e a cena em câmera lenta em que estou passa a acelerar rapidamente. “O que há de errado, querida”? Gene pergunta enquanto ele passa pela porta, joga seus pacotes no chão e me abraça.

Silenciosamente e desesperadamente, eu digo: “O avião do meu irmão caiu”.

“Oh, meu Deus”, diz ele calmamente. Faça alguma coisa, eu quero gritar. Faça ficar tudo bem. Mas eu não digo nada. Seu corpo estremece; seu abraço se aperta. É bom ser abraçada e contar para alguém. Não apenas alguém. Gene, minha âncora. Ele saberá o que fazer e como pensar sobre o que aconteceu. Meu corpo cai contra o dele. “Oh, meu Deus”, diz ele novamente.

“Não parece real”, eu digo.

“A morte nunca parece”, ele responde. “Mas ela é”. Morte? Por que ele está falando sobre a morte? É apenas um acidente. Eu choro baixinho.

Então, como um tiro, lembro-me: “A TV. Tenho que voltar à TV. Há sobreviventes”, e eu me liberto de seu abraço. Isso mesmo, ele não sabe que há sobreviventes. É por isso que ele está falando sobre a morte. “Vou ver Rex sendo puxado do rio”, eu digo alto, os punhos cerrados no ar. “Então eu saberei que ele está bem. Ele tinha que conseguir. Ele é durão. Existem sobreviventes”, repito.

Beth e Gene não assistem aos replays instantâneos das pessoas se debatendo na água gelada. Por que eles se sentam em silêncio à mesa da cozinha? Eles deveriam estar me ajudando a procurar Rex. Eles não devem acreditar em mim. Mas eles não o conhecem como eu. Ele pode se safar de qualquer coisa. A qualquer minuto sua cabeça aparecerá. Eu continuo balançando para frente e para trás com minhas mãos entrelaçadas, eventualmente colocando meu rosto contra a tela da televisão para obter uma visão mais próxima. Mas não consigo encontrar meu irmão nos pontos e nas linhas, como de Monet. Esperança e desespero alternados - esperança quando um novo sobrevivente é avistado, desespero quando não é Rex. Deve haver mais sobreviventes. “Rex, saia da porra da água”, eu grito.

Os locutores falam sobre o herói que acabou de morrer salvando outros. “Deve ser Rex”, eu digo, sentindo orgulho. “Ele faria isso. É assim que ele era”. Era? Por que estou usando o pretérito? “Ele não está morto”, eu digo. “Eu sei que ele não está”. Mas, se ele tem que estar morto, eu quero que ele seja o herói. Mas então ficarei com raiva porque ele poderia ter se salvado e não o fez. Por que Gene e Beth não estão me respondendo? Eles ficam sentados, em silêncio, tristes, me olhando. Ele não está morto. Parem de agir como se ele estivesse morto. Claro, ele não está morto. Não meu irmão.

Nancy, uma amiga que vinha jantar, soube do acidente de avião e ligou para dar-me notícias atualizadas de seus canais a cabo. Suas ligações me distraem de ficar assistindo o que agora são os mesmos replays instantâneos das mesmas pessoas sendo retiradas do mesmo rio. Doze pessoas sobreviveram. Então eles anunciam sete. Então, há cinco. E um herói morto.

Até eu posso ver que não há razão agora para me acorrentar à TV. Em vez disso, eu ando e tagarelo: “Ok, vamos ver. Ele tem cinco chances em setenta e nove, o número de pessoas no avião. É cerca de 1/16 da possibilidade de ele ter sobrevivido. Não muito. Mas eles pensam que todos os sobreviventes estavam sentados na cauda. Ele era, quero dizer, é, um fumante. Então ele estava provavelmente atrás, o que torna suas chances ainda maiores. Mas então eles dizem que acham que uma das sobreviventes é uma aeromoça, então suas chances são de quatro em setenta e oito”. Quando todo o resto falha, tente probabilidade. Gene e Beth me encaram, ainda sem falar. Quando eu desmorono, Gene vem para me segurar. Mas logo estou de pé, movendo-me, calculando freneticamente, como uma mulher louca.

É anunciado na TV que parentes que estão esperando no Aeroporto Internacional de Tampa foram levados para uma sala especial. Eles sugerem que outros parentes se dirijam até lá para terem informação sobre datas e aconselhamento. “Você quer ir”? pergunta Gene. “Eu te levo”.

Meu impulso de ir dura pouco. “Não, de que adianta? Estamos conseguindo informações atualizadas aqui. Por que eu quero estar perto de outras pessoas chateadas que eu não conheço? O que o aconselhamento pode fazer? Eu quero estar aqui com você, e onde posso falar com Art”.

A cada meia hora, estou ao telefone com o Art. Leva pelo menos 10 tentativas para passar os circuitos ocupados. As linhas Tampa-Virgínia estão sendo sobrecarregadas por todas as pessoas em luto se acalmando, buscando informações e se recusando a acreditar que seus piores medos são verdade. Assim como nós.

Art está com nossos pais, que, diz ele, “estão um desastre”. A notícia está se espalhando por Luray, e o telefone está constantemente ocupado com pessoas que querem saber “É verdade?” e “Quais são as novidades?”.

Meu irmão e eu não sucumbimos enquanto compartilhamos informações, sobre as quais há praticamente nada, e o que está disponível fica cada vez pior. E pior. Nossos espíritos caem toda vez que conversamos, “mas ainda tenho esperança”, digo. “Eu sei que ele está vivo”.

Art responde: “Não parece bom, Susie (a forma como ele me chama)”. Ele também dizendo isso, não. Ele não é de desistir. Eu escondo minha raiva, e uma voz interior diz: Ele provavelmente está certo. Você mesma deve estar preparada para isso. Não, não, outras vozes gritam, e eu as ouço em vez disso.

Às vezes tenho vontade de rir quando observo essa cena horrível e surreal, que funciona como um programa de suspense na TV. Então eu deixo de ser uma observadora para me transformar em uma participante da tragédia, e eu soluço.

“Ligue para as pessoas que convidamos para jantar e cancele”, instruo Gene, que quer ajudar. “Eu não quero falar com ninguém”.

Cada vez que o ouço dizer: “O avião do irmão de Carolyn caiu. Não parece bom”, eu choro de novo. Fico feliz pela simpatia sentida, mas também fico angustiada quando as palavras de Gene dão realidade para a experiência.

Quando eu finalmente me jogo, exausta, na mesa com Gene e Beth, nós nos olhamos em silêncio, e risos nervosos se alternam com os meus soluços e os toques reconfortantes de Gene. “Coma alguma coisa”, Gene me diz. “Você deve comer”. Ele está brincando? Vou vomitar se comer. Mas, de repente, sinto um desejo ardente pelo sabor forte e quente do uísque, que raramente bebo. Daquele dia em diante, toda vez que passei por forte estresse, eu quis beber um uísque.

“Estou com vontade de sair, ir ao shopping”, diz Beth. “Não estou fazendo nada útil. Mas eu vou ficar se você quiser”.

“Não, vá se distrair”, eu respondo, apreciando sua preocupação. Sinto-me mais próxima de Gene quando estamos sozinhos. Digo a ele que estou feliz por ele estar comigo. Gene adota uma abordagem racional: “O que você pode fazer? Está feito agora”. “Só sei que ele está vivo”, insisto.

Falo de meus pais e da agonia que devem estar passando. Eu penso em como é difícil a posição de Art. “Estou feliz por não estar lá. Mas sinto que deveria estar lá. Eu gostaria de estar lá”. Meus pensamentos confusos se misturam em câmera lenta. Finalmente coloquei o grande pote de ensopado mexicano que fiz no congelador. Algumas semanas depois, vou jogá-lo fora.

Beth nos traz dois livros de humor de gatos. “Precisamos de algumas risadas”, explica ela. Quando ela e Gene leem em voz alta e riem, eu sorrio, mas não ouço.

“Também estamos sentados olhando um para o outro”, diz Art ao ligar às dez horas da noite. “A companhia aérea vai me avisar quando for oficial”.

“Por que você está assumindo que ele está morto?”, eu pergunto.

“Porque Bev [nosso primo] foi para o Marriott Hotel em Washington, onde eles anunciaram a lista de sobreviventes. Ele não estava lá, Susie”, diz ele com reverência. Eu o ouvi certo? É difícil ouvir de dentro do nevoeiro, com meu coração batendo tão forte.

“Eu não me importo”, eu digo depois de uma pausa, desafiadoramente. “Eu não vou perder a esperança”.

“Eu não acho que haja qualquer esperança”, Art diz ainda mais suavemente, e desta vez eu sei que ele tem razão. Eu me sinto mais perto dele do que nunca em minha vida, e entendo que ele precisa que eu enfrente a realidade e o ajude a carregar o fardo.

Eu tento. “Sim, acho que você está certo. O que vamos fazer agora? Você contou para a mamãe e o papai?”

“Não. Eu quero esperar até receber o comunicado oficial”. Eu quero saber o porquê. Mas eu sei. Ele quer adiar o máximo possível. E ele espera um milagre, assim como eu.

“Ok, eu entendo”, eu digo, para apoiar sua decisão.

Art e eu conversamos várias vezes nas próximas horas, e decidimos ligar para Judy, nossa irmã, na manhã seguinte. “Por que fazê-la passar por uma noite de agonia?”. Eu racionalizo, sem reconhecer que eu não quero experimentar seu choque de luto agora, que será bruto e desassistido. Art concorda rapidamente e então tomamos outras decisões juntos. Nós expressamos nosso amor um pelo outro pela primeira vez. Compartilhar a morte de nosso irmão nos aproxima e nos torna cientes do que normalmente não dizemos.

Decido esperar um dia antes de ir para a casa dos meus pais. “Eu preciso estar com você agora”, eu digo para Gene. “Quando eu chegar em casa, terei que ficar junto com eles. Preciso desabar e sentir o seu amor”. Apesar do enfisema crônico de Gene, ele parece forte e feliz em me ajudar. Quando ele se oferece para vir comigo, eu digo: “Eu adoraria, mas é muito pesado para você”.

Durante a noite, o abraço apertado e o peito corpulento de Gene, em forma de barril devido aos esteróides que ele toma para combater seu enfisema, me consolam cada vez que choro. Nós fazemos amor à noite, calmamente, suavemente, pelo apego.

Quando o telefone toca às três da manhã, eu pulo, ainda esperando por boas notícias. Estou com raiva, sinto pena de mim mesma e choro de novo depois de descobrir que é um telefonema obsceno.

Art liga cedo na manhã seguinte e diz que a Air Florida finalmente ligou às três da manhã para nos contar oficialmente que Rex estava morto. “Tem sido horrível”, diz ele. “Eu fiquei acordado a noite toda esperando a ligação que eu sabia que viria. Mamãe e papai estavam cheios de esperança. Às três, papai entrou e me acordou - devo ter cochilado - e disse: ‘É o telefone’. Eu tinha instruído que os funcionários não falassem com ninguém além de mim, e eu não podia acreditar que não tinha ouvido o telefone. Eu atendi sabendo o que diriam. Mamãe e papai ficaram ao meu redor como crianças esperando a notícia. Eles sabiam pela minha voz. Todos começaram a soluçar. Então tia Florence entrou na sala e disse: ‘Ele está morto, não está?’ Todos nós choramos juntos”.

Sinto não ter compartilhado aquele momento, eu anseio pelo apego com minha família, e até com a dor - quero sentir o máximo de dor que puder. Rex vale meu sofrimento. Ao mesmo tempo, fico feliz por estar com Gene que me conforta.

Fico aliviada quando Art diz: “Liguei para Judy”. Será que meu alívio vem de não querer cuidar dela? Da falta de proximidade que tem caracterizado nosso relacionamento desde o início? Ou por que agora não tenho que ser a portadora dessas notícias?

“Como ela reagiu?”, que pergunta ridícula.

“Ela começou a soluçar e não conseguia falar. O marido dela atendeu”.

“Vou ligar para ela agora”, digo ao meu irmão. “Faremos planos para vir a Luray esta noite. Eu preciso ir hoje”.

“Eu entendo”, diz ele.

“Aguente firme, irmãozinho”, digo, usando meu nome de estimação, e então percebo que agora ele é meu único irmão vivo. “Eu estarei aí em breve. Então você pode se apoiar em mim. Eu sei que você está mantendo todos sãos”. Minhas palavras parecem forçadas e não tenho certeza se terei força.

“Obrigado”, diz ele. “Vai ser bom ter você aqui”.

Quando ligo para minha irmã, estou entorpecida. Intercalando com soluços, ela fala de sua crença em Deus. Estou feliz que ela a tenha, mas não quero ouvir agora. Fazemos reservas aéreas para mais tarde naquele dia, conseguindo fazer uma conexão no mesmo avião de Atlanta para Washington.

Um repórter de jornal liga, identificando-se como correspondente de Washington. Pensando que é um oficial, respondo a perguntas irrelevantes: “quando você viu seu irmão pela última vez?”, “como ele era?”, “ele era maravilhoso, simplesmente maravilhoso”. O que mais eu poderia dizer? “Não posso mais falar”. O repórter não pressiona. “Como eles se atrevem”, digo a Gene ao desligar, e então gostaria de ter dito mais. Rex gostaria de estar no Washington Post.

Quando alguns dos meus colegas chegam com comida, ainda estou de roupão e não penteei meu cabelo ou escovei meus dentes. Ciente de que meu roupão às vezes expõe a curva de meu seio, eu puxo a faixa apertando-a apaticamente várias vezes. Finalmente, eu digo: “oh, que diferença faz mesmo?”, e deixo-o pendurar. Nada é sexual agora. Eu tenho dois uísques, mas não consigo comer. Ninguém fala do meu irmão. Estou feliz por eles terem vindo.

Por causa das condições meteorológicas, meu avião está decolando atrasado. Meu irmão acabou de ser morto nesta temperatura gelada - devo estar louca de entrar em um avião. Mas não tenho opções. Eu respiro fundo e passo pela aeromoça sorridente. Como ela poderia ser a mesma de sempre? Na decolagem, eu finjo ser meu irmão, o avião está caindo e eu imagino como deve ter sido isso para ele. Olhos fechados, eu sinto o avião mergulhando, então o estalo quando atinge a água. Depois, a escuridão. Deus, espero que ele não soubesse o que estava acontecendo.

O vôo da minha irmã é ainda mais tarde do que o meu. Quando fico nervosa esperando por ela no portão de embarque em Atlanta, corro até o portão dela e pergunto a hora de chegada. “Deve estar aqui em alguns minutos”, diz a mulher com indiferença.

“Meu irmão morreu ontem no vôo da Air Florida. Estou fazendo a conexão com minha irmã aqui para ir para casa”. De repente, tenho a atenção dela.

“Oh, que coisa, bem, não se preocupe. Se não vier em alguns minutos, tentaremos atrasar seu voo de partida”. Ouvir minhas palavras e ver a preocupação da comissária me fez chorar muito. Quando as pessoas mostram compaixão, sinto pena de mim mesma.

Estou aliviada ao ver minha irmã e seu marido entrando pela porta. Ela está chorando, e estou quase em lágrimas quando nos abraçamos. Momentaneamente, minha dor aumenta (ou escapa) com a dela. Ao mesmo tempo, sinto-me próxima dela, feliz por estar com a família. Corremos para a partida do vôo, segurando uma a outra.

Como será ver meus pais? Respiro fundo, minha cabeça gira e caminho para dentro de casa. Meu pai chora e se segura em mim. Já na minha função de cuidadora, não tenho lágrimas. O corpo da minha mãe está rígido em resposta ao meu abraço. “Vai ficar tudo bem”, eu digo. “Nós vamos conversar”.

“Não vai ficar tudo bem”, diz ela com raiva. “Ele está morto. Ele não vai voltar”. Estou silenciada pela verdade de sua resposta.

Eu ignoro os dois Pastores locais que não conheço e abraço Bárbara, minha cunhada, que sussurra em meu ouvido: “Eles encontraram o corpo dele”.

“Graças a Deus”, digo, sentindo um grande alívio e depois me perguntando por quê. “Quando?”

“Eles ligaram há uma hora”.

Art e eu nos abraçamos com força. A atmosfera parece de morte. Quando o xerife da cidade e o agente funerário param a caminho de Washington para identificar e trazer de volta o corpo do meu irmão, minha mãe soluça, “Traga meu filho para casa”. Então minha dor por ela, e por mim mesma, ameaça me dominar. Com medo, eu engasgo.

De sábado à noite até o funeral de segunda-feira, nossa casa ficou cheia de gente. O único momento de silêncio era à noite, quando eu falava com a mamãe, que estava deitada no sofá da sala de estar. Meu pai dormia ao lado dela em sua poltrona de descanso. Não queriam estar em seus quartos separados.

“Rex me trouxe uma rosa de botão em um vaso uma semana antes de ele morrer”, diz minha mãe. “Quando eu perguntei para que ocasião era, ele disse: ‘Porque eu te amo’.”

Repetidamente, ela descreve os detalhes da última vez que o viu. “Ele veio aqui, nesta sala, e me pediu uma alça para amarrar em torno de sua mala. Eu posso vê-lo agora ajoelhando-se no chão e amarrando-a. Então ele me abraçou como se não quisesse me soltar. ‘Eu não sei quando estarei de volta. Espere o dia de me ver’, disse ele”.

“Minha vida acabou”, ela soluça, acreditando e quase me convencendo.

Todas as noites eu a ouvia e fazia as mesmas perguntas para que ela pudesse contar sua história novamente. Além disso, gostei de imaginá-lo saindo de viagem e queria cada detalhe da última vez que ela o viu. Talvez ela se lembraria de algo novo, forneceria uma pista para a morte de Rex, algo que faria tudo fazer sentido. Finalmente, quando me arrisco, “também estou chateada”, eu não ganho nenhum conforto.

“A dor de uma mãe é pior, a pior que existe”, diz ela com amargura, sua auto-absorção não oferece lugar para minha dor. Em contraste, meu pai é caloroso e aberto em sua tristeza, recebendo meu amor. Nós nos abraçamos e choramos silenciosamente juntos, sentindo muito, mas dizendo pouco.

O único tempo que eu tinha para mim mesma era quando eu tomava banho. Adorava sentir a água quente correndo sobre meu corpo. Enquanto eu chorava e relaxava, a dor rompia minha dormência e um gemido do fundo do meu ser escapava. Espantada com a intensidade da dor, sufoquei-a. Eu não posso lidar com você agora. Eu seria algum dia capaz? Falei em voz alta com Rex, dizendo a ele o quanto eu já sentia falta dele. “Rex, me ajude a lidar com isso. Me ajude a confortar mamãe e papai”. Foi uma sensação de proximidade e paz.

“Estou me comunicando com o Rex”, digo à minha mãe, pensando que ela vai gostar que eu esteja sendo “religiosa”, embora isso não se encaixe em sua doutrina luterana.

“Que tipo de religião você tem? Você não pode falar com os mortos”, ela responde, e eu encolho os ombros.

As pessoas vieram. Trezentas a quatrocentos delas. Elas ocuparam meus pais e mostraram para mim o quão importante Rex tinha sido. Eu me tornei a recepcionista, deixando-as entrar, abraçando, ouvindo-as se maravilharem com como eu havia mudado e, em seguida, direcionando-as para os meus pais, que se sentaram lado a lado em suas poltronas de descanso. Oferecendo suas condolências, homens pareciam tristes e estoicamente seguravam a mão de meu pai e beijavam minha mãe. As mulheres eram mais propensas a chorar abertamente com minha mãe e muitas vezes com meu pai, às vezes caindo em soluços nos braços dos meus pais. Os mais velhos confortavam, enquanto os mais novos gaguejavam sem saber o que dizer. Isso viria com a experiência. Minha mãe chorava continuamente e meu pai enxugava lágrimas constantemente. Eu era a guia de olhos secos, que suspirava e temia, desmoronando no abraço dos meus pais.

Todos vieram trazendo comida. O cheiro era nauseante. Sabendo exatamente o que fazer, várias mulheres da comunidade assumiram nossa cozinha. Elas serviam grandes refeições para quem quer que estivesse lá, ignorando que ninguém comia muito. No final da semana, demoraria horas para jogar fora todos os alimentos não consumidos: feijões verdes cozidos com jarrete de presunto; todos os presuntos de Old Virginia - os verdadeiros, salgados, fortes e gordurosos -; saladas de gelatina verde e vermelha embutidas com nozes e coco, feitas em latas circulares com gotas de Miracle Whip preenchendo o buraco do meio; tortas de maçã feitas rapidamente com maçãs enlatadas com tiras de massa cruzada na parte superior e também muita canela; pães-de-ló, bolos de chocolate com cobertura de chocolate e bolos amarelos com glacê branco; grandes e fofos pães brancos de Wonder Bread; galões de chá doce em potes de picles que ainda tinham gosto e cheiro de picles. Anos depois eu encontraria recipientes de café instantâneo - do tamanho de uma família -, Coffee Mate e centenas de utensílios plásticos em embalagens ainda fechadas, nos armários.

Parte do papel do recepcionista era registrar quem trouxe o quê, para que os cartões de agradecimento pudessem ser enviados. Minha irmã e eu nos revezamos para manter registros. Às vezes eu queria gritar. Quanta perda de tempo e energia. Outras vezes, ficava feliz com a tarefa e respeitava o ritual de reconhecimento.

Misturados aos enlutados, vieram os floristas com as flores que pedimos que não fossem enviadas. Também chegaram doações para a igreja de meus pais. “O que podemos fazer?” todos perguntavam. Escreva algumas notas de agradecimento, eu queria dizer, mas não disse. Não era o trabalho deles. Então vá ajudar a jogar a comida fora, pensei, mas, de novo, não disse nada. A etiqueta adequada diz que você deve esperar até que as pessoas insistam - ou, melhor ainda, apenas façam alguma coisa. Eu nunca estive envolvida em um funeral antes, mas intuitivamente conhecia as regras. Eles eram uma extensão da etiqueta de cidade pequena em que vivi nos primeiros vinte e dois anos de minha vida.

Ajudei minha mãe a fazer uma lista de carregadores do caixão. “Eles deveriam ser seus melhores amigos”, ela instrui. “Não podem ser parentes. Eles têm que ser homens. Devem ser seis”. Esta não é a hora de argumentar pelas mulheres que carregam o caixão. Isso é pela minha mãe.

No domingo, ligo para o agente funerário e peço para ver o corpo de Rex. Pelo fato de o corpo ter estado na água e por Rex ter tido um ferimento grave na cabeça, não teríamos um caixão aberto no velório. “Você quer ir?”. Eu, hesitante, pergunto a minha mãe.

“Eu simplesmente não posso. Mas eu queria ter a corrente de ouro dele para que você pudesse colocá-la nele. A que eu dei para ele, que ele sempre usava, que ele estava usando no dia em que morreu”.

“Por que não coloco minha corrente de ouro em volta do pescoço dele? Aquela que você me deu”.

“Bom”, diz ela, sorrindo pela primeira vez.

A casa funerária. Que lugar. Que cheiro - flores intensas misturadas com colônia, desinfetantes e apenas uma pitada de fluido de embalsamamento. É o único contexto em que odeio o cheiro de flores. Tenho dificuldade em recuperar o fôlego ao entrar. Ainda assim, estou à frente de Art e da ex-mulher de Rex na sala contendo o caixão. Eu tenho que vê-lo.

Eu fico perto do caixão enquanto o diretor o abre. Eu não tenho medo de você. Eu te amo. Ali está ele. É ele? Eu tenho que ter certeza. Eu sei que é. Ouso esperar e sei que é impossível que eles tenham cometido um erro. Mas não se parece com ele. Seu rosto está inchado e seu nariz, por estar quebrado, está mais achatado e muito maior do que o normal. E aquela cor morta também não ajuda. Em seguida, o enorme corte em sua testa me encara por baixo das multicamadas de maquiagem pastosa. Eu engulo a seco, e é a MINHA cabeça batendo no banco da frente enquanto nós nos acidentamos.

Ele está envolto em poliéster, terno completo com gravata clipada, uma roupa que o teria deixado horrorizado. Eu sinto vontade de vesti-lo com as suas próprias roupas. Mas minha mãe orgulhosamente anunciou que ela disse ao agente funerário para colocá-lo em um novo terno azul. Ninguém mais vai vê-lo. Que diferença isso faz afinal?

Art está congelado a alguma distância atrás de mim. Em pouco tempo, ele sai. A ex-esposa de Rex, que também está atrás de mim, parece aliviada quando pergunto se posso passar um tempo a sós com Rex. Eu deslizo minhas mãos sobre a dureza de seu corpo, lembrando de seu ser e acrescentando à minha memória, agora, a sua morte. Eu acaricio seu rosto com amor e falo baixinho com ele. “Vou sentir saudades de você. Eu te amo”. Então eu coloco meu colar em volta do pescoço dele e digo: “Isto é para você. De mamãe e eu. Nós te amamos”. E vou embora.

“Você pode dizer se ele morreu de dor ou medo?”, eu pergunto ao agente funerário.

“Na verdade, não”, ele responde. “Quando uma pessoa morre, os músculos relaxam”. Depois eu percebi que ele tinha que dizer isso. Ele ia me dizer que meu irmão tinha o olhar mais amedrontado do mundo na cara?

“Como é enterrar amigos?”. Eu pergunto. Minha maneira de lidar agora é ser o pesquisador de campo racional. A do meu irmão é brincar com o diretor como sempre, até fazendo piadas de mortos.

Art e eu nos sentimos como se estivéssemos em uma conspiração, dirigindo este evento, muitas vezes por trás das cenas, para ter certeza de que as coisas correram o mais suavemente possível. Sempre que podemos, longe dos rituais, nos encontramos no corredor para planejar e antecipar problemas.

Eu o cobri quando Art estava com o agente funerário ou em ligações telefônicas - amigos preocupados, conhecidos e empresários que ouviram as notícias e precisavam de mais informações e funcionários da companhia aérea. “A companhia aérea está pagando por todo o funeral”, ele me diz. “Eles disseram ao agente funerário para fazer o que quiséssemos”.

Mesmo com o planejamento, não previmos o efeito que ver o caixão coberto pela bandeira teria na minha mãe no domingo à noite, quando nossa família foi à casa funerária para receber amigos. Silenciosamente, atravessamos o frio intenso e entramos na funerária. Quando minha mãe vê o caixão, ela grita: “Meu bebê. Oh, meu bebê está morto”. Ela cai no chão, enquanto o resto de nós permanece enraizado em nossos lugares. É como o ensaio de uma peça, e minha mãe bagunçou as falas. Em câmera lenta, finalmente a ajudamos a se levantar e a colocamos, ainda soluçando, em uma cadeira. Meu pai, outrora poderoso e imponente, parece indefeso, confuso, enquanto alguém se aproxima para tirar seu casaco.

Várias centenas de pessoas vieram prestar homenagens. Art e eu apertamos as mãos ou abraçamos cada um, agradecemos suas condolências, trocamos conversa fiada, sorrimos, às vezes até rimos. “É a vontade de Deus”. “Deus cuidará dele”, dizem para nos fazer nos sentir melhor. Eu concordo. As mesmas frases são pronunciadas continuamente. Não significam nada. Não há pontos de originalidade. Nós passamos cada pessoa para o resto da família sentada atrás de nós, os recepcionistas da empatia. Às vezes eu quero estar lá também, para ceder; outras vezes fico feliz com os efeitos entorpecentes de estar no controle. Há abraços, silêncio, conversas, calmas agora, e fungadas. Às vezes soluços. Em seguida, eles olham rapidamente para o caixão fechado, mãos para baixo e cruzadas na frente, e assinam o livro. É importante documentar que você veio; a família deve ter um registro, para saber quem e quantos vieram.

“Como você está”, eu pergunto a Art, quando há uma pausa na fila. “Quer um Valium? Eu tomei um. Ajudou. Sinto-me calma e distante, como se estivesse vendo isso na tela do cinema”. Eu quero ser protegida da minha dor.

“Não, eu vou fazer isso sozinho”, ele responde, totalmente sob controle e com medo de que mude qualquer coisa.

Eu quero que esse ritual acabe. Ainda assim, eu quero que as pessoas continuem vindo compartilhar sua dor com meus pais e mostrar seu amor por Rex. Quando termina, Art e eu dizemos ao mesmo tempo: “Nós passamos por mais isso”.

“O problema é amanhã”, diz meu irmão. Não. O pior vem depois de amanhã, quando nós dois tivermos que enfrentar o vazio da vida sem Rex.

No dia seguinte, segunda-feira, é o funeral. Preparamos um grande almoço para o Pastor, parentes e convidados de fora da cidade. Mais uma vez, as pessoas comem pouco. A procissão do funeral sai de nossa casa. Um policial da cidade, meu namorado da oitava série, bloqueia o trânsito para que possamos entrar na estrada principal. Agora ele se levanta, com postura rígida e chapéu colocado sobre o peito, chorando abertamente. Eu aceno e sinto lágrimas em meu rosto e amor pela pequena cidade em que fui criada. Eu respiro fundo e tomo outro Valium. Uma dormência maravilhosa se instala sobre mim. Como tenho medo do funeral.

O tempo gelado e ventoso parece apropriado agora.

Desta vez, meu irmão segura minha mãe e eu apoio meu pai enquanto entramos na porta lateral da funerária. Meu cunhado e minha irmã cuidam de tia Florence, que tem dificuldade para andar. A cortina é fechada antes de nos aproximarmos do caixão para que a multidão não possa ver nossa dor. Mas é impossível mantê-la escondida. Mamãe grita quando vê o caixão, e Art a segura com força enquanto ela começa a soluçar alto. O resto de nós chora suavemente, olhando para o caixão coberto pela bandeira americana, cercado pelas flores que as pessoas não deveriam ter enviado. Eu estou distante. Não é isso que eu quero. Eu beijo o caixão.

Quando a cortina é aberta, vejo que a casa funerária está lotada. Estou feliz que centenas de pessoas estejam no corredor e do lado de fora com a temperatura abaixo de zero, enquanto outras esperam em seus carros para ir ao cemitério. Rex está aqui, assistindo comigo, como Tom Sawyer. Como ele adora todas essas pessoas! Seu presunto! Você teria adorado toda a cobertura da mídia de sua morte. Eu sorrio. E pense, Rex, seu sortudo, você nunca terá que sofrer pela morte de entes queridos.

Embora a música me comova, eu a abaixo. Este não é o lugar para desmoronar. O Pastor dos meus pais faz algumas declarações abstratas sobre a vontade de Deus e sobre Rex. Eu luto contra a vontade de me levantar e perguntar ao Pastor se posso, por favor, dizer algo pessoal sobre meu irmão. Eu diria isso como um Pastor pentecostal e todos nós lamentaríamos juntos. Eu quero entrar em contato com o espírito do meu irmão. Por que este Pastor que mal conhecia Rex está comandando o show? Sento-me em silêncio, já que não posso arriscar perturbar o ritual ou meus pais. Quando o trabalho acabou, de repente eu pulo da minha cadeira e beijo dois amigos íntimos de Rex que estão ajudando a remover as flores mortas do carro funerário. Choramos abertamente e me sinto melhor.

A cortina está fechada novamente. O caixão é removido pelos seis homens que o carregam. A família é removida, conduzida para seus carros pelo agente funerário. Puf! Vamos aparecer magicamente no cemitério.

No cemitério, estamos sentados em frente ao mágico caixão e ao buraco recém-cavado no chão. Quando vejo a ex-mulher de Rex parada perto, eu pego sua mão e a levo para se sentar com a família. Eu não me importo se é apropriado. Rex iria querê-la aqui. Meu corpo treme violentamente por causa do frio e do vento, enquanto ela e eu nos abraçamos.

O serviço é breve e sem sentido. Depois que o Pastor lê a escritura, eu beijo o caixão. “Eu te amo”, digo, mais uma vez sentindo a tensão entre a liberdade de expressão e a expectativa ritualística. Mesmo que eu tenha medo de enfrentar o silêncio em casa, eu quero que isso acabe. Quando termina, as pessoas conversam como se tivessem acabado de sair de uma peça.

Muitas pessoas vêm para casa jantar conosco. Desta vez, eles comem com vontade e conversam, reafirmando os laços de parentesco. Continuo sem apetite e falo pouco. Assim que eles saem, minha mãe fica doente e não tem forças para andar. Nós a levamos pra deitar no sofá e somos cuidadosos com ela. Na manhã seguinte, quando ela não consegue se levantar, o médico a coloca no hospital e diz que está em choque grave.

Minha irmã e eu escrevemos centenas de notas de agradecimento, e lembro-me de nosso relacionamento na infância quando discutimos uma vez sobre quem devia fazer o quê. Então tentávamos tornar tudo melhor, ambas insistindo em fazer tudo.

Os amigos de Rex organizam uma festa. “Uma maneira melhor de lembrar dele”, nós dizemos. Mas não é o que nós queremos também. Queremos Rex. Ok, a piada acabou, Rex, saia do esconderijo. “Se o garoto apenas me mandasse um sinal de que ele está bem, eu me sentiria melhor”, disse um amigo. “Partiu tão de repente”. “Sim, tome uma bebida no céu e nos diga como é lá”. Mas nossa alegria continua recuando para uma conversa séria. Eu tomo um uísque e meu sentimento irrompe, com meus soluços me pegando de surpresa. “Estou cansada de oferecer apoio a todo o mundo, inclusive a mim mesma”, digo aos amigos de Rex que se reúnem ao meu redor. “Não sei por que sinto que tenho que ser tão forte”.

“Você não tem que ser. Extravase”, ouço, e sinto uma ligação com as pessoas que me abraçam.

“Socorro”, grita a minha tia Helen do quarto da casa de Rex, para onde nós fomos ver suas coisas. Ela aponta para a ondulação da cama, recua, pálida, como se tivesse visto um fantasma.

“Está tudo bem. É uma cama d’água”, eu garanto a ela. “Veja”, eu digo, empurrando o colchão. “Não é um fantasma”. O sorriso no meu rosto parece estranho.

Abrimos algumas das gavetas de Rex. Que invasão olhar para os itens pessoais alheios. “É com isso que Rex costumava fazer cócegas em suas namoradas”, meu irmão diz ao meu pai, que está examinando um vibrador. Meu pai sorri diabolicamente - fico feliz que o pensamento o agrade - e então ele respeitosamente o coloca de volta no lugar. Fechamos as gavetas sem atrapalhar qualquer outra coisa, pegamos pequenas lembranças de Rex e vamos embora. Fico aliviada quando Art diz que vai examinar as posses de Rex mais tarde e vender tudo em um leilão.

Durante meus últimos dias na casa dos meus pais, visitei minha mãe com frequência no hospital. “Estou em choque”, diz ela, quase com orgulho de sua postura calma e retraída. Estar doente mostrou o quanto Rex significava para ela; e, por um tempo, ela não teve que enfrentar sua partida. “Eles dizem que eu posso ficar aqui o tempo que eu quiser”, ela anuncia. “Eu não quero ir para casa e enfrentar o que aconteceu. Sinto-me segura no hospital”.

Agora, isso estaria acontecendo, alguns segundos após a decolagem. Lá está a ponte que o atingiu. Assim é como sua cabeça se projetou para frente. Estrondo. Eu deixei minha cabeça cair no assento na minha frente. A imagem vívida do corte na cabeça de Rex me ajuda a representar a cena.

Quando vejo Gene no aeroporto de Tampa, caio em seus braços, maravilhada com meu amor e o quanto necessito dele. Então eu estremeço quando sinto seu corpo frágil e ouço sua respiração difícil, percebendo que um dia irei vivenciar sua morte também. Eu o seguro com força. Ele e Rex têm sido as duas pessoas mais importantes do meu mundo.

Gene se dedica totalmente a mim durante os próximos dias e se esforça para aliviar minha dor, mas não consigo chorar nem falar sobre o que sinto. “Vamos ver o Ragtime no teatro. Tirará a morte da sua cabeça”, diz Gene. Quando vejo um caixão no filme, recuo e, então, choro até o final.

Quando chego em casa naquela noite, deito sozinha no sofá da sala, incapaz de dormir. Quando eu sinto o espírito de Rex, isso me assusta, e eu me retiro para o quarto, segurando meu travesseiro, para estar com Gene.

Essa seria a última vez que eu sentiria a presença de Rex tão fortemente. Eu sempre lamentei não ter ficado no sofá naquela noite. Talvez ele tivesse vindo se despedir. Isso realmente aconteceu?

*****

Não sonhei com Rex até mais de um ano após sua morte. No primeiro de uma série de sonhos, nós éramos crianças brincando em uma pilha de areia marrom do meu pai. Caminhões de carga com montes de areia fina de cor clara formavam ondas nos pontos em que se misturavam com outros montes de areia pesados e úmidos de tipo mais escura, melhor para a construção de castelos. Todas as crianças da vizinhança costumavam brincar de “rei da montanha” neste teatro do tamanho de uma quadra de basquete. Quando nos cansávamos daquele jogo, brincávamos de esconde-esconde ou “dirigíamos” nossos caminhões de brinquedo cheios de areia recolhida com nossas retroescavadeiras de mentira, fantasiando sobre os caminhões reais do meu pai e carregando equipamento.

No segundo sonho, somos mais velhos. Embora eu não me lembre do contexto - apenas um fundo escuro destacando nós dois -, estou ciente, ao olhar para Rex, de que ele irá morrer. Mas ele não sabe disso e age como se nada estivesse errado. Eu mantenho minha consciência em segredo porque eu sei que Rex pode perder o controle.

No terceiro sonho, chego à conclusão de que houve um erro. Rex não morreu. Ele apenas foi embora por um tempo. Agora ele está de volta e estamos conversando. Muito feliz, eu comecei a dizer a ele que eu pensei que ele tinha morrido. Mas eu paro no meio da frase porque me sinto confusa, sem saber se o acidente aconteceu ou não. Então eu concluo que o acidente ocorreu, Rex sobreviveu e apenas teve que passar um tempo no hospital. Agora ele está bem. Eufórica, começo a dizer-lhe novamente que pensei que ele tinha morrido, e novamente paro.

No quarto sonho, Rex já está morto, mas estamos juntos. Como ele pode estar morto e não saber é o que me pergunto. Talvez ele não esteja realmente morto. O que eu vou fazer? Eu não posso contar a ele. Como ele pode lidar com isso? Como eu posso? Eu começo a dizer a ele como me senti horrível quando pensei que ele tinha morrido no acidente. Eu acordo, percebendo que ele realmente está morto.

Pouco depois disso, finalmente digo a Rex em um sonho que ele está morto. Eu acordo gritando e chorando, e eu não sonho com ele novamente por um longo tempo. Em meus sonhos, como em minha vida, não há outro final.

Entre ficção e Ciências Sociais

Minha “etnografia experimental” (Marcus e Fischer, 1986MARCUS, George; FISCHER, Michael. 1986. Anthropology as Cultural Critique: An Experimental Moment in the Human Sciences. Chicago: University of Chicago Press .) se encaixa no espaço entre ficção e Ciências Sociais da mesma forma que outros relatos socioautobiográficos introspectivos (Broyard, 1992BROYARD, Anatole. 1992. Intoxicated by My Illness. New York: Clarkson Potter.; Butler e Rosenblum, 1991BUTLER, Sandra; ROSENBLUM, Barbara. 1991. Cancer and The Two Voices. San Francisco: Spinsters Book Co.; Ernaux, 1991ERNAUX, Annie. 1991. A Woman’s Story - translated by Tanya Leslie. New York: Ballentine.; Frank, 1991FRANK, Arthur. 1991. At the Will of the Body: Reflections on Illness. Boston: Houghton Mifflin.; Haskell, 1990HASKELL, Molly. 1990. Love and Other Infectious Diseases: A Memoir. New York: William Morrow.; Lear, 1980LEAR, Martha. 1980. Heartsounds. New York: Simon and Schuster.; Lerner, 1978LERNER, Gerda. 1978. A Death of One’s Own. New York: Simon and Schuster .; Mairs, 1989MAIRS, Nancy. 1989. Remembering the Bone House: An Erotics of Place and Space. New York: Harper and Row.; Murphy, 1987MURPHY, Robert. 1987. The Body Silent. New York: Henry Holt.; Roth, 1991ROTH, Philip. 1991. Patrimony: A True Story. New York: Simon and Schuster .; Yalom, 1989YALOM, Irving. 1989: Love’s Executioner: And Other Tales of Psychotherapy. New York. Basic Books.; Zola, 1982aZOLA, Irving. 1982a. Missing Pieces. Philadelphia: Temple University Press.). Histórias “verdadeiras” como essas juntam a escrita etnográfica e a ficcional, o pessoal e o social, o relato autobiográfico e a compreensão sociológica, a Literatura e as Ciências Sociais.

Esta história é um estudo de caso introspectivo no campo da sociologia emocional (Ellis, 1991aELLIS, Carolyn. 1991a. “Sociological Introspection and Emotional Experience”. Symbolic Interaction. 14. p. 23-50.; 1991b). Posicionando-me reflexivamente como narradora (autora) e personagem principal da história, eu assumo que algumas experiências podem ser compreendidas apenas quando os sentimentos são uma parte significativa do processo de pesquisa. Isso é verdade para epifanias, como a descrita aqui, que “deixam marcas na vida das pessoas”, depois das quais a pessoa nunca é “exatamente a mesma” (Denzin, 1989DENZIN, Norman. 1989. Interpretative Interactionism. Newbury Park, CA: Sage., p. 15).

Neste artigo, procuro conectar a experiência vivida à pesquisa no campo da Sociologia das Emoções, para envolver os leitores em tópicos que geralmente são esquecidos pelos cientistas sociais e para mostrar uma nova forma de representação dessas práticas. Eu falo para aqueles que têm encontros emocionalmente associados à perda e para aqueles que abraçariam uma sociologia que tenta lidar com experiências emocionais que escapam às Ciências Sociais ortodoxas.

Embora os cientistas sociais tenham escrito sobre desastres, suas ênfases tendem a ser a destruição da comunidade (Bates, Fogelman, Parenton, Pittman e Tracey, 1963BATES, Frederick L.; FOGLEMAN, Charles W.; PARENTON, V. J.; PITTMAN, R. H.; G. TRACY, S. 1963. “The Social and Psychological Consequences of a Natural Disaster: A Longitudinal Study of Hurricane Audrey”. Washington: National Academy of Sciences, Pub. 1081.; Erikson, 1976ERICKSON, Kai. 1976. Everything in Its Path: Destruction of Community in the Buffalo Creed Flood. New York: Simon and Shuster.); o comportamento da comunidade durante desastres (Dynes, 1970DYNES, Russell. 1970. Organized Behavior in Disaster. Lexington. Ma.: Health Lexington Books.; Wallace, 1956WALLACE, Anthony. 1956. “Tornado in Worcester: An Exploratory Study of Individual and Community Behavior in an Extreme Situation”. Pub. 392. Washington: National Academy of Sciences .); a ordem social da comunidade (Wright, Rossi, Wright e Weber-Burdin, 1979WRIGHT, James; ROSSI, Peter; WRIGHT, Sonia; WEBER-BURDIN, Eleanor. 1979. After the Clean-Up: Long Range Effects of Natural Disasters. Beverly Hills: Sage .); e as intervenções nas crises da saúde mental da comunidade (Frederick, 1981FREDERICK, Calvin (ed.). 1981. Aircraft Accidents: Emergency Mental Health Problems. DHHS Pub.# (ADM)81-956. Rockville, MD.: National Institute of Mental Health.; Tierney, 1979TIERNEY, Kathleen. 1979. Crisis Intervention Programs for Disaster Victims: A Source Book and Manual of Smaller Communities. DHEW # (ADM) 79-675. Washington: National Institute of Mental Health.). Mas, em acidentes de avião, ao contrário da maioria dos desastres naturais, não há comunidade para sobreviventes ou famílias das vítimas. Passageiros são estranhos que vieram de muitas regiões, e os sobreviventes se dispersam rapidamente após os acidentes (Frederick, 1981).

Mesmo quando os cientistas sociais estudaram reações a este tipo de morte anônima e súbita, suas ênfases foram na comparação de fragmentos da experiência, tais como o modo como as famílias são notificadas (Caplan, 1976CAPLAN, Gerald. 1976. “Organization of Support Systems for Civilian Populations.” In: CAPLAN, Gerald and KILLILEA, Marie. (ed.). Support Systems and Mutual Help. New York: Grune and Stratton, p. 273-315.), e na análise de reações generalizadas da experiência de morte súbita e crônica; ou entre mortes naturais e violentas, tais como a duração e a evolução do luto, ou os níveis de perturbação emocional dos sobreviventes (Parkes e Weiss, 1983PARKES, Colin M; WEISS, Robert. 1983. Recovery from Bereavement. New York. Basic Books.). Este trabalho fornece conhecimento categórico do que ocorre após famílias serem informadas sobre uma morte súbita, mas os leitores aprendem pouco sobre como dramas familiares são promulgados após essa perda. Até mesmo o trabalho feito sobre os efeitos psicossociais de desastres tende a ser baseado em entrevistas codificadas e dados quantitativos (Gleser, Green e Winget, 1981GLESER, Goldine; GREEN, Bonnie; WINGET, Carolyn. 1981. Prolonged Psychosocial Effects of Disaster: A Study of Buffalo Creek. New York: Academic Press.), com ênfase em “síndromes” e modelos de espaço-tempo (Wallace, 1956WALLACE, Anthony. 1956. “Tornado in Worcester: An Exploratory Study of Individual and Community Behavior in an Extreme Situation”. Pub. 392. Washington: National Academy of Sciences .), em vez da experiência vivida.

As práticas de pesquisa das ciências sociais ortodoxas não encorajam os estudiosos a documentarem esses eventos em suas próprias vidas ou mesmo falar sobre si mesmos (Krieger, 1991KRIEGER, Susan. 1991. Social Science and the Self: Personal Essays on an Art Form. New Brunswick: Rutgers University Press.). Somos inibidos pelo preconceito de que NÓS os estudamos, acreditando que, de alguma forma, como sociólogos, nós podemos escapar dos processos sociais que buscamos tão ansiosamente categorizar sobre a vida dos outros (Ellis, 1991bELLIS, Carolyn. 1991b. “Emotional Sociology.” In: DENZIN, N. (ed.). Greenwich Studies is Symbolic Interaction. Vol. 12,. CT: JAI, p. 123-145.; Gouldner, 1970GOULDNER, Alvin. 1970. The Coming Crisis of Western Sociology. New York: Avon Books.). Assim, poucos cientistas sociais lidaram, em seus estudos, com o impacto da morte em suas vidas e trabalho. Uma exceção é o reconhecimento de Rosaldo (1989ROSALDO, Renato. 1989. Culture and Truth: The Remaking of Social Analysis. Boston: Beacon Press.) de que, ao compreender sua raiva em resposta à morte repentina de sua esposa, veio a entender a raiva expressa no ritual pós-morte de caçar cabeças dos Ilongot. Outros, como Krieger (1991), mencionam que a morte de um membro da família inspirou seus estudos.

Como cientistas sociais, consideramos o “após a morte” um momento sagrado e privado, um momento no qual trabalhos e estudos são postos de lado, pois sua intensidade emocional está fora do alcance do que nós estudamos (Ellis, 1991bELLIS, Carolyn. 1991b. “Emotional Sociology.” In: DENZIN, N. (ed.). Greenwich Studies is Symbolic Interaction. Vol. 12,. CT: JAI, p. 123-145.). Não esperamos que os sobreviventes relatem, reflitam sobre ou analisem os eventos enquanto eles ocorrem em tais epifanias, nem que tenham uma estrutura interpretativa para dar sentido a suas experiências (Denzin, 1991DENZIN, Norman. 1991. “Representing Lived Experiences in Ethnographic Texts.” In: Studies in Symbolic Interaction. Vol. 12. Greenwich, CT: JAI, p. 59-70.). Comprovações de que eles, de fato, tentam, no entanto, manifestam-se nos diários privados e nas memórias públicas que são escritas por pessoas que passaram pela morte de entes queridos. Aprendemos sobre as reações emocionais à morte principalmente por meio desses relatos pessoais (Lewis, 1963LEWIS, Clive Staples. 1963. A Grief Observed. Greenwich, CT: Seabury Press.; Lerner, 1978LERNER, Gerda. 1978. A Death of One’s Own. New York: Simon and Schuster .), de filmes (Sargent, 1980SARGENT, Alvin. 1980. Ordinary People, based on a book Ordinary People by Judith Guest. Hollywood, CA.: Paramount Home Video.), poesias e da Literatura (Agee, 1938AGEE, James. 1938. A Death in the Family. Toronto: Bantam.). A partir dessas fontes, fica claro que a morte é um evento que muda o significado da vida dos que ficam vivos para sempre. No entanto, continua a ser uma experiência sobre a qual os cientistas não sabem falar.

Este artigo traz esse tipo de experiência à tona, permitindo-nos conversar sobre o tema e tentar entendê-lo. Como tal, cumpre o que Rorty (1982RORTY, Richard. 1982. Consequences of Pragmatism. Minnesota: University of Minnesota Press.) diz que devemos esperar dos cientistas sociais: “atuar como intérpretes para aqueles com quem não temos certeza de como falar” (ver também Bourdieu e Wacquaint, 1992BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loic. 1992. An Invitation to Reflexive Sociology. Chicago: University of Chicago Press., p. 206). Isso é, afinal, o que “esperamos de nossos poetas, dramaturgos e romancistas” (Rorty, 1982, p. 202). Os cientistas sociais não deveriam ser capazes de resolver o problema descrito de forma tão vívida por C. S. Lewis em sua resposta à morte de sua esposa?

Um estranho subproduto da minha perda é que estou ciente de que ela é um constrangimento para todos que eu encontro. No trabalho, no clube, na rua, eu vejo as pessoas, enquanto se aproximam de mim, tentando decidir se eles vão ‘dizer algo sobre isso’ ou não. Eu odeio se o fazem, e se não o fazem ... Talvez os enlutados devam ser isolados em assentamentos especiais como leprosos. (1963, p. 13).

Escrever e ler a história

Toda memória autobiográfica é verdadeira.

Cabe ao intérprete descobrir em que sentido, onde, para qual propósito. ( Passerini, citado em Personal Narratives Group, 1989 PERSONAL NARRATIVES GROUP. 1989. Interpreting Women’s Lives: Feminist Theory and Personal Narratives. Bloomington: Indiana University Press . ).

Escrever esta história é uma tentativa de me ver entre outros, como um caso entre casos, um exemplo que registra uma passagem difícil de experiência vivida em expressividade verbal (Bochner e Ellis, 1992BOCHNER, Arthur; ELLIS, Carolyn. 1992. “Personal Narrative as a Social Approach to Interpersonal Communication”. Communication Theory 2: 165-172.; Geertz, 1983GEERTZ, Clifford. 1983. Local Knowledge: Further Essays in Interpretative Anthropology. New York: Basic Books .; Scarry, 1985SCARRY, Elaine. 1985. The Body in Pain: The Making and Unmaking of the World. New York. Oxford University Press.). Esse projeto incorpora o que Jackson (1989JACKSON, Michael. 1989. Paths Toward a Clearing: Radical Empiricism and Ethnographic Inquiry. Bloomington: Indiana University Press.) chama de “empirismo radical” (em homenagem a William James), uma metodologia em que “nos tornamos sujeitos do experimento e tratamos nossas experiências como dados primários” (p. 4).

Meu relato sobre a morte de Rex conta uma história possível, não a única. Uma forma de saber sobre as experiências íntimas dos outros é refletir sobre as nossas. “Nós não podemos viver a vida de outras pessoas”, mas podemos “criar” a nossa própria (Geertz, 1986GEERTZ, Clifford. 1986. “Making Experiences, Authoring Selves.” In: TURNER, Victor and BRUNER, Edward (ed.). The Anthropology of Experience. Urbana: University of Illinois Press . p. 373-380., p. 373). Como cientistas sociais, não saberemos se as experiências íntimas dos outros são semelhantes ou diferentes até oferecermos nossas próprias histórias e prestarmos atenção em como os outros respondem, assim como fazemos no dia a dia da vida. A “verdade” desta história reside na forma como é contada e na possibilidade de que haja outros no mundo que ressoam com esta experiência. Provavelmente, minha história é única o suficiente para fornecer comparações, mas universal o suficiente para evocar a identificação.

Como uma descrição densa (Geertz, 1973GEERTZ, Clifford. 1973. The Interpretation of Cultures: Selected Essays. New York: Basic Books.) da experiência vivida emocionalmente, esta história inclui uma narrativa densa e detalhada que mostra o que aconteceu, e as intenções e os significados que se desdobram tanto durante a interação quanto durante meu relato da experiência. Para escrevê-la, usei um processo de “recordação emocional”, semelhante ao “método” de atuação de Lee Strasberg no Actors ‘Studio (Bruner, 1986BRUNER, Edwad. 1986. “Experience and Its Expressions”. In: TURNER, Victor and BRUNER, Edward (ed.). The Anthropology of Experience. Urbana: University of Illinois Press. p. 3-30.). Para apresentar uma performance convincente e autêntica, o ator revive em detalhes uma situação na qual ele sentiu anteriormente, a emoção a ser encenada. Eu me coloquei de volta nas situações, evocando detalhes até que eu estivesse emocionalmente imersa no evento. Porque a recordação aumenta quando o conteúdo emocional, no momento da recuperação, se assemelha à experiência a ser recuperada (Bower, 1981BOWER, Gordon H. 1981. “Mood and Memory”. American Psychologist 36: p. 129-148 ; Ellis e Weinstein, 1986ELLIS, Carolyn; WEINSTEIN, Eugene. 1986. “Jealousy and Social Psychology of Emotional Experience”. Journal of Social and Personal Relationship 3: p. 337-357.), esse processo estimula a memória a oferecer mais detalhes. Escrevi esta história em 1985, logo após a morte de meu companheiro Gene, quando eu estava novamente imersa nas emoções de morte e a distância emocional a ser percorrida para escrever não era grande.

Embora os cientistas sociais debatam o preconceito emocional (Isen, 1984ISEN, Alice M. 1984. “Toward an Understanding of the Role of Affect in Cognition”. In: WYER, Robert S. e SRULL Thomas K. (ed.). Hillsdale Handbook of Social Cognition, Vol. 3, NJ: Erlbaum. p. 179-236.) e em relação à memória (Loftus, Smith, Klinger e Fiedler, 1992LOFTUS, Elizabeth; SMITH, Kyle; KLINNGER, Mark; FIEDLER, Judith. 1992. “Memory and Mismemory for Health Events.” In: TANUR J. (ed.). Questions about Questions: Inquiries into the Cognitive Bases of Surveys. New York: Russel Sage Foundation. p. 102-137.) nas Ciências Sociais tradicionais, não vejo a necessidade de me desapegar desta experiência a fim de transmitir seus significados, nem desconfio da vivacidade de minha memória emocional. Embora a memória esteja fragmentada, parece haver “uma ordem simples de sucessão (…) [que] constitui uma espécie de crônica duradoura, fixada em minha memória, do curso temporal de minha experiência” (Crites, 1971CRITES, Stephen. 1971. “The Narrative Quality of Experience”. Journal of the American Academy of Religion. p. 291-311., p. 299).

Quando eu me coloco de volta nessa epifania emocional, encontro a maioria dos detalhes dos eventos experimentados e as palavras ditas quase tão claras como quando as escrevi. O que eu descrevo aqui é um relato parcial da maneira como esse evento “realmente” aconteceu? Ou minhas palavras escritas têm agora assumido uma realidade maior do que o evento, de modo que não posso separá-las da recordação emocional ou da memória cognitiva do que ocorreu? Quanto do que escrevo é interpretado da minha posição atual? Uma vez que a compreensão não está embebida nos eventos pessoais, mas é alcançada por meio de uma “experimentação contínua da experiência “(Ellis e Bochner, 1992ELLIS, Carolyn; BOCHNER, Arthur. 1992. “Telling and Performing Personal Stories: The Coinstraints of Choice in Abortion”. In: ELLIS, Carolyn and FLAHERTY, Michael. (ed.). Investigating Subjectivity: Research on Lived Experience. Newbury Park: Sage. p. 79-101.), talvez não importe.

Como etnógrafa, tenho trabalhado a partir de um “pressuposto da verdade em vez de um pressuposto da ficção” (Webster, 1982WEBSTER, Steven. 1982. “Dialogue and Fiction in Ethnography”. Dialectical Anthropology. 7, p. 91- 114.), o que significa que não fabriquei deliberadamente detalhes e me limitei a eventos dos quais me lembro. No entanto, como uma contadora de histórias, me preocupo primeiramente mais com a evocação do que com a “representação verdadeira” (Marcus, 1986MARCUS, George. 1986. “Contemporary Problems of Ethnography in the Modern World System”. In: CLIFFORD, J. & MARCUS, G. (ed.). Writing Culture. Berkeley: University of California Press. p. 165 -193.; Tyler, 1986TYLER, Steven. 1986. “Post Modern Ethnography: From Document of the Occult to Occult Document”. In: CLIFFORD, J. & MARCUS, G. (ed.). Writing Culture. Berkeley: University of California Press . p. 122-140.). Em meu texto, “aprender sobre” integra dimensões emocionais e cognitivas e enfatiza “participar com” em vez de “descrever para” o outro (Bochner e Waugh, in pressBOCHNER, Arthur; WAUGH, Joanne. (in press). “Talking-With as a Model for Writing-About: Implications of Rortian Pragmatism for Communication Theory”. In: LANGSDORF, Lenore and SMITH, Andrew (ed.). Recovering Pragmatism’s Voice: The Classical Tradition, Rorty and the Philosophy of Communication. Albany: SUNY Press.). Em vez de privilegiar o conhecimento cognitivo e a “teoria do conhecimento do espectador”, em que conhecer é equiparado exclusivamente a observar à distância (Dewey, 1980DEWEY, John. 1980. The Quest for Certainty: A Study of the Relation of Knowledge and Action. New York: Perigree Books.; Jackson, 1989JACKSON, Michael. 1989. Paths Toward a Clearing: Radical Empiricism and Ethnographic Inquiry. Bloomington: Indiana University Press.), este artigo incorpora sentimento e experiência participativa como dimensões de saber.

Procuro reposicionar leitores em relação aos autores de textos de pesquisa em ciências sociais, evocando sentimento e identificação, bem como processamento cognitivo. Enquanto vocês leem esta história, alguns de vocês podem ter sentido empatia por mim, como se estivessem assistindo a um filme “realista”; alguns de vocês podem ter se lembrado de paralelos em suas próprias vidas, como na leitura de um bom romance. Talvez a leitura do meu trabalho tenha evocado em você uma experiência emocional que você poderia, então, examinar, ou tenha o levado a lembrar de outras situações emocionais das quais você participou. Reconhecer um potencial para leituras opcionais dá aos leitores licença para fazer parte de uma experiência que pode revelar a eles não só como foi para mim (a autora), mas como poderia ser ou já foi uma vez para eles (Ellis e Bochner, 1992ELLIS, Carolyn; BOCHNER, Arthur. 1992. “Telling and Performing Personal Stories: The Coinstraints of Choice in Abortion”. In: ELLIS, Carolyn and FLAHERTY, Michael. (ed.). Investigating Subjectivity: Research on Lived Experience. Newbury Park: Sage. p. 79-101.; Turner, 1986TURNER, Victor. 1986. The Anthropology of Performance. New York. PAJ Publications.).

Escrevo esta narrativa como um exemplo de uma forma que permitirá aos pesquisadores e leitores reconhecerem e darem voz às suas próprias experiências. Eu também escrevo para motivar os cientistas sociais, para encorajar sujeitos etnográficos (co-autores) a também reivindicarem e escreverem suas próprias vivências, o ordinário e o cotidiano (ver Zola, 1982bZOLA, Irving. Ed. 1982b. Ordinary Lives: Voices of Disability and Disease. Cambridge: Apple-wood Books.), bem como o horrendo e o trágico descrito aqui. Como diz Richardson, de forma eloquente:

A narrativa é a melhor forma de compreender a experiência humana, porque é a forma como os humanos entendem suas próprias vidas... Se quisermos entender o mais profundo e o mais universal das experiências humanas, se quisermos que nosso trabalho seja fiel às experiências vividas pelas pessoas, se quisermos uma união entre a poética e a ciência, se desejamos alcançar uma variedade de leitores, ou se desejarmos usar nossos privilégios e habilidades para capacitar as pessoas que estudamos, então precisamos colocar em primeiro plano, não suprimir, a narrativa dentro das Ciências Humanas. (1990, p. 65RICHARDSON, Laurel. 1990. Writing Strategies: Reaching Diverse Audiences. Newbury Park: Sage .).

Ao escrever suas próprias histórias, os sujeitos podem ser capazes de recuperar sua experiência das abstrações sem vida, das tipologias e das categorias de ciências sociais, dando significado a suas próprias vidas (Bertaux-Wiame, 1981BERTAUX-WIAME, Isabelle. 1981. “The Life History Approach to the Study of Internal Migration.” In: BERTAUX, Daniel. (ed.). Biography and Society: The Life History Approach in the Social Sciences. Beverly Hills: Sage. p. 249-265.; Bruner, 1986BRUNER, Edwad. 1986. “Experience and Its Expressions”. In: TURNER, Victor and BRUNER, Edward (ed.). The Anthropology of Experience. Urbana: University of Illinois Press. p. 3-30.; Polkinghorne, 1988POLKINGHORNE, Donald. 1988. Narrative Knowing and the Human Sciences. Albany: State University of New York Press.). Contar uma história, como assinala Crites (1971CRITES, Stephen. 1971. “The Narrative Quality of Experience”. Journal of the American Academy of Religion. p. 291-311., p. 311), “torna possível recuperar um passado vivido e acreditar novamente no futuro, para realizar atos que tenham significado para a pessoa que age”.

Cada escrita e leitura do meu texto me permitiu reviver a morte do meu irmão a uma distância estética (Scheff, 1979SCHEFF, Thomas. 1979. Catharsis in Healing Ritual and Drama. Berkeley. University of California Press.), um lugar que me permitiu experienciar a experiência, mas com a consciência de que não estou realmente de novo dentro desta situação e, assim, reúno a coragem para seguir com meu processo de luto. Esse processo pode não ser atraente para todos. Frequentemente era doloroso para mim, tão doloroso que, mesmo agora, em 1992, dez anos depois, experimento intensas emoções de perda quando leio esta história. Na verdade, minhas reações emocionais ao longo dos anos foram tão pronunciadas que às vezes as tinha observado enquanto as editava. Por exemplo:

Enquanto escrevo isto em 1986, meu estômago se agita e minhas mãos tremem. Nauseante, um nó se forma em minha garganta. Mais de quatro anos depois, a morte de Rex pode ter quase o mesmo impacto em mim que no dia em que aconteceu.

Por que estou fazendo isso comigo mesma? Eu me pergunto em 1988. Cada vez que edito isso, soluço. Eu tenho tocado na dor não resolvida. Isso pode ser resolvido?

Em 1990, quando edito isso, uma voz diz: Ah, não. Eu não quero reviver isso. Surpresa pela força do meu sentimento, estou ansiosa, sem vontade de ler as palavras da página. Ainda não são “apenas dados”. Talvez nunca sejam. Eu me recuso a reviver aquele tempo, e tento ler as frases para ver o estilo. Eu não consigo. Mas é tarde demais para voltar atrás. Estou comprometida com este projeto. Minhas mãos tremem e estou de volta a essa cena ligando para as companhias aéreas.

Apesar da minha agonia, minha interação com este texto enriquece minha vida ao provocar em mim experiências emocionais intensas. Ao sentir a dor da perda, também me sinto apegada ao meu irmão e à minha família. Como diz Arthur Frank (1991FRANK, Arthur. 1991. At the Will of the Body: Reflections on Illness. Boston: Houghton Mifflin., p. 41): “sofrer bem é valorizar o que você perdeu. Quando você valoriza até mesmo o sentimento de perda, você valoriza a própria vida, e você começa a viver de novo”. Ao escrever sobre meu irmão, ele novamente se torna parte do meu mundo (ver Ernaux 1991ERNAUX, Annie. 1991. A Woman’s Story - translated by Tanya Leslie. New York: Ballentine., p. 31).

Escrever, ler, contar e refletir sobre minha história me ajuda a entender melhor a posição na qual vivo e falo agora neste e em todo o meu trabalho acadêmico. Como uma pessoa culta, valorizo a compreensão que vem do pensamento abstrato. Estou ainda conectada às minhas raízes da classe trabalhadora, em que o significado inerente à experiência concreta, às histórias e ao diálogo foram privilegiados em relação ao teórico e ao geral. Voltando a essa forma agora, encontro um lugar para integrar meus interesses sociológicos e pessoais sobre comunidades, etnografia, família, relacionamentos e emoções.

A perda repentina do meu irmão ameaçou, como nada antes, o significado que eu tinha socialmente construído para minha vida, que era o de que a vida era, por definição, significativa. Conectando minha vida e meus vários interesses acadêmicos nesta história, mostrando como minhas escritas biográficas e sociológicas são mutuamente influenciadas (Zola, 1983ZOLA, Irving. 1983. Socio-Medical Inquiries: Recollections, Reflections and Reconsiderations. Philadelphia: Temple University Press .) e compartilhando a unidade e integridade da experiência vivida com outros, forneço uma maneira de reconstruir minha vida.

Escrever nossas próprias histórias cria uma maneira pela qual nós, como autores, podemos interagir e interpretar nossas próprias vidas (Parry, 1991PARRY, Alan. 1991. “A Universe of Stories”. Family Process. 30: p. 37-54.). No processo, podemos tornar verdadeiro um enredo no qual desempenhamos um papel e retornamos na cena, os verdadeiros “sobreviventes”.

Agradecimentos

Agradeço a Arthur Bochner e Laurel Richardson por me encorajarem a escrever este artigo. Eu agradeço suas respostas e também os comentários de Norman Denzin, Douglas Harper, Susan Krieger e Michal McCall. Eu dedico esta história a Rex.

Referências Bibliográficas

  • AGEE, James. 1938. A Death in the Family Toronto: Bantam.
  • BATES, Frederick L.; FOGLEMAN, Charles W.; PARENTON, V. J.; PITTMAN, R. H.; G. TRACY, S. 1963. “The Social and Psychological Consequences of a Natural Disaster: A Longitudinal Study of Hurricane Audrey”. Washington: National Academy of Sciences, Pub. 1081.
  • BERTAUX-WIAME, Isabelle. 1981. “The Life History Approach to the Study of Internal Migration.” In: BERTAUX, Daniel. (ed.). Biography and Society: The Life History Approach in the Social Sciences Beverly Hills: Sage. p. 249-265.
  • BOCHNER, Arthur; ELLIS, Carolyn. 1992. “Personal Narrative as a Social Approach to Interpersonal Communication”. Communication Theory 2: 165-172.
  • BOCHNER, Arthur; WAUGH, Joanne. (in press). “Talking-With as a Model for Writing-About: Implications of Rortian Pragmatism for Communication Theory”. In: LANGSDORF, Lenore and SMITH, Andrew (ed.). Recovering Pragmatism’s Voice: The Classical Tradition, Rorty and the Philosophy of Communication Albany: SUNY Press.
  • BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loic. 1992. An Invitation to Reflexive Sociology Chicago: University of Chicago Press.
  • BOWER, Gordon H. 1981. “Mood and Memory”. American Psychologist 36: p. 129-148
  • BROYARD, Anatole. 1992. Intoxicated by My Illness New York: Clarkson Potter.
  • BRUNER, Edwad. 1986. “Experience and Its Expressions”. In: TURNER, Victor and BRUNER, Edward (ed.). The Anthropology of Experience Urbana: University of Illinois Press. p. 3-30.
  • BUTLER, Sandra; ROSENBLUM, Barbara. 1991. Cancer and The Two Voices San Francisco: Spinsters Book Co.
  • CAPLAN, Gerald. 1976. “Organization of Support Systems for Civilian Populations.” In: CAPLAN, Gerald and KILLILEA, Marie. (ed.). Support Systems and Mutual Help New York: Grune and Stratton, p. 273-315.
  • CRITES, Stephen. 1971. “The Narrative Quality of Experience”. Journal of the American Academy of Religion p. 291-311.
  • DENZIN, Norman. 1989. Interpretative Interactionism Newbury Park, CA: Sage.
  • DENZIN, Norman. 1991. “Representing Lived Experiences in Ethnographic Texts.” In: Studies in Symbolic Interaction Vol. 12. Greenwich, CT: JAI, p. 59-70.
  • DEWEY, John. 1980. The Quest for Certainty: A Study of the Relation of Knowledge and Action New York: Perigree Books.
  • DYNES, Russell. 1970. Organized Behavior in Disaster. Lexington Ma.: Health Lexington Books.
  • ELLIS, Carolyn. 1991a. “Sociological Introspection and Emotional Experience”. Symbolic Interaction 14. p. 23-50.
  • ELLIS, Carolyn. 1991b. “Emotional Sociology.” In: DENZIN, N. (ed.). Greenwich Studies is Symbolic Interaction Vol. 12,. CT: JAI, p. 123-145.
  • ELLIS, Carolyn; BOCHNER, Arthur. 1992. “Telling and Performing Personal Stories: The Coinstraints of Choice in Abortion”. In: ELLIS, Carolyn and FLAHERTY, Michael. (ed.). Investigating Subjectivity: Research on Lived Experience Newbury Park: Sage. p. 79-101.
  • ELLIS, Carolyn; WEINSTEIN, Eugene. 1986. “Jealousy and Social Psychology of Emotional Experience”. Journal of Social and Personal Relationship 3: p. 337-357.
  • ERICKSON, Kai. 1976. Everything in Its Path: Destruction of Community in the Buffalo Creed Flood New York: Simon and Shuster.
  • ERNAUX, Annie. 1991. A Woman’s Story - translated by Tanya Leslie New York: Ballentine.
  • FRANK, Arthur. 1991. At the Will of the Body: Reflections on Illness Boston: Houghton Mifflin.
  • FREDERICK, Calvin (ed.). 1981. Aircraft Accidents: Emergency Mental Health Problems DHHS Pub.# (ADM)81-956. Rockville, MD.: National Institute of Mental Health.
  • GEERTZ, Clifford. 1973. The Interpretation of Cultures: Selected Essays New York: Basic Books.
  • GEERTZ, Clifford. 1983. Local Knowledge: Further Essays in Interpretative Anthropology New York: Basic Books .
  • GEERTZ, Clifford. 1986. “Making Experiences, Authoring Selves.” In: TURNER, Victor and BRUNER, Edward (ed.). The Anthropology of Experience Urbana: University of Illinois Press . p. 373-380.
  • GLESER, Goldine; GREEN, Bonnie; WINGET, Carolyn. 1981. Prolonged Psychosocial Effects of Disaster: A Study of Buffalo Creek New York: Academic Press.
  • GOULDNER, Alvin. 1970. The Coming Crisis of Western Sociology New York: Avon Books.
  • HASKELL, Molly. 1990. Love and Other Infectious Diseases: A Memoir New York: William Morrow.
  • ISEN, Alice M. 1984. “Toward an Understanding of the Role of Affect in Cognition”. In: WYER, Robert S. e SRULL Thomas K. (ed.). Hillsdale Handbook of Social Cognition, Vol. 3, NJ: Erlbaum. p. 179-236.
  • JACKSON, Michael. 1989. Paths Toward a Clearing: Radical Empiricism and Ethnographic Inquiry Bloomington: Indiana University Press.
  • KRIEGER, Susan. 1991. Social Science and the Self: Personal Essays on an Art Form New Brunswick: Rutgers University Press.
  • LEAR, Martha. 1980. Heartsounds New York: Simon and Schuster.
  • LERNER, Gerda. 1978. A Death of One’s Own New York: Simon and Schuster .
  • LEWIS, Clive Staples. 1963. A Grief Observed Greenwich, CT: Seabury Press.
  • LOFTUS, Elizabeth; SMITH, Kyle; KLINNGER, Mark; FIEDLER, Judith. 1992. “Memory and Mismemory for Health Events.” In: TANUR J. (ed.). Questions about Questions: Inquiries into the Cognitive Bases of Surveys New York: Russel Sage Foundation. p. 102-137.
  • MAIRS, Nancy. 1989. Remembering the Bone House: An Erotics of Place and Space New York: Harper and Row.
  • MARCUS, George. 1986. “Contemporary Problems of Ethnography in the Modern World System”. In: CLIFFORD, J. & MARCUS, G. (ed.). Writing Culture Berkeley: University of California Press. p. 165 -193.
  • MARCUS, George; FISCHER, Michael. 1986. Anthropology as Cultural Critique: An Experimental Moment in the Human Sciences Chicago: University of Chicago Press .
  • MURPHY, Robert. 1987. The Body Silent New York: Henry Holt.
  • PARKES, Colin M; WEISS, Robert. 1983. Recovery from Bereavement New York. Basic Books.
  • PARRY, Alan. 1991. “A Universe of Stories”. Family Process 30: p. 37-54.
  • PERSONAL NARRATIVES GROUP. 1989. Interpreting Women’s Lives: Feminist Theory and Personal Narratives Bloomington: Indiana University Press .
  • POLKINGHORNE, Donald. 1988. Narrative Knowing and the Human Sciences Albany: State University of New York Press.
  • RICHARDSON, Laurel. 1990. Writing Strategies: Reaching Diverse Audiences Newbury Park: Sage .
  • RORTY, Richard. 1982. Consequences of Pragmatism Minnesota: University of Minnesota Press.
  • ROSALDO, Renato. 1989. Culture and Truth: The Remaking of Social Analysis Boston: Beacon Press.
  • ROTH, Philip. 1991. Patrimony: A True Story New York: Simon and Schuster .
  • SARGENT, Alvin. 1980. Ordinary People, based on a book Ordinary People by Judith Guest Hollywood, CA.: Paramount Home Video.
  • SCARRY, Elaine. 1985. The Body in Pain: The Making and Unmaking of the World New York. Oxford University Press.
  • SCHEFF, Thomas. 1979. Catharsis in Healing Ritual and Drama Berkeley. University of California Press.
  • TIERNEY, Kathleen. 1979. Crisis Intervention Programs for Disaster Victims: A Source Book and Manual of Smaller Communities DHEW # (ADM) 79-675. Washington: National Institute of Mental Health.
  • TURNER, Victor. 1986. The Anthropology of Performance New York. PAJ Publications.
  • TYLER, Steven. 1986. “Post Modern Ethnography: From Document of the Occult to Occult Document”. In: CLIFFORD, J. & MARCUS, G. (ed.). Writing Culture Berkeley: University of California Press . p. 122-140.
  • WALLACE, Anthony. 1956. “Tornado in Worcester: An Exploratory Study of Individual and Community Behavior in an Extreme Situation”. Pub. 392. Washington: National Academy of Sciences .
  • WEBSTER, Steven. 1982. “Dialogue and Fiction in Ethnography”. Dialectical Anthropology 7, p. 91- 114.
  • WRIGHT, James; ROSSI, Peter; WRIGHT, Sonia; WEBER-BURDIN, Eleanor. 1979. After the Clean-Up: Long Range Effects of Natural Disasters Beverly Hills: Sage .
  • YALOM, Irving. 1989: Love’s Executioner: And Other Tales of Psychotherapy New York. Basic Books.
  • ZOLA, Irving. 1982a. Missing Pieces Philadelphia: Temple University Press.
  • ZOLA, Irving. Ed. 1982b. Ordinary Lives: Voices of Disability and Disease Cambridge: Apple-wood Books.
  • ZOLA, Irving. 1983. Socio-Medical Inquiries: Recollections, Reflections and Reconsiderations Philadelphia: Temple University Press .
  • 1
    Este artigo foi originalmente publicado com o título “There Are Survivors”: Telling a Story of Sudden Death na The Sociological Quarterly, 34(4), 711-730, em 1993. O texto original está disponível em http://www.jstor.org/stable/4121376. Acesso em 29 de outubro de 2021.
  • 2
    Tradução: Natânia Lopes
  • 3
    Revisão técnica: Larissa Araújo, Beatriz Assis e Silva e Fabiene Gama
  • Errata

    Errata (e21301): No artigo “‘Há Sobreviventes’: contando uma história de morte súbita”, da autora Carolyn Ellis, com número de DOI: 10.1590/1984-6487.sess.2021.37.e21301.a, publicado no periódico Sexualidad, Salud y Sociedad, sem volume, número 37, 2021, p. 1-31, e21301, na página 1:
    Onde se lia:
    Carolyn Ellis1
    > cellis@usf.edu
    ORCID: 0000-0002-3160-8436
    Natânia Lopes2
    > natanialopes@id.uff.br
    ORCID: 0000-0003-3326-4814
    1University of South Florida, Flórida, Estados Unidos
    2Universidade Federal Fluminense Rio de Janeiro, Brasil
    Tradução: Natânia Lopes
    Revisão técnica: Larissa Araújo, Beatriz Assis e Silva e Fabiene Gama
    Leia-se:
    Carolyn Ellis1
    > cellis@usf.edu
    ORCID: 0000-0002-3160-8436
    1University of South Florida, Flórida, Estados Unidos
    Tradução: Natânia Lopes
    Revisão técnica: Larissa Araújo, Beatriz Assis e Silva e Fabiene Gama

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2021
  • Aceito
    23 Jun 2021
Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) R. São Francisco Xavier, 524, 6º andar, Bloco E 20550-013 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel./Fax: (21) 2568-0599 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: sexualidadsaludysociedad@gmail.com