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Autoetnografias dos entre-mundos: partindo de uma pedagogia freireana da esperança para expandir narrativas e políticas de inclusão1 1 Este artigo foi originalmente publicado sob o título “Performing Betweener Autoethnographies Against Persistent Us/Them Essentializing: Leaning on a Freirean Pedagogy of Hope” ma Qualitative Inquiry 2016, Vol. 22(7) 581-587.

Performing Betweener Autoethnographies Against Persistent Us/ Them Essentializing: Leaning on a Freirean Pedagogy of Hope

Autoetnografías de entre mundos: partiendo de la pedagogía freireana de esperanza para expandir las narrativas y políticas de inclusión

Resumo

Betweeners (palavra criada pelos autores): utilizamos essa possibilidade da língua inglesa (de tradução difícil) no decorrer desta versão em português para explicar as condições de pessoas que habitam o espaço entre mundos, entre fronteiras, concretas e socioculturais. Como escrever nossa história entrelaçada com a história de tantos humanos oprimidos, de tantas singularidades e universalidades compartilhadas? Buscamos uma autoetnografia que seja performativa e transgressora diante de desigualdades brutais, injustiças óbvias e justificativas esfarrapadas dadas por aqueles com mais privilégios e poder “para nomear o mundo”. Nós procuramos por uma forma de ser e escrever que critica, sem desculpas, as estruturas de poder que moldam e conservam tais sistemas de opressão. Buscamos em nossa autoetnografia um modelo alternativo de escrita que exponha as quebras e as fendas de nossa existência nos tempos neocoloniais. Vemos a autoetnografia de betweeners como uma maneira de ser e de nos escrever na história de resistência contra opressão, injustiça e exclusão, uma que parta de nossa comunalidade humana e de identidades que compartilhamos. Escrevemos aqui uma articulação entre autoetnografia de betweeners e representações essencialistas em constante busca por justiça social.

Palavras-chave:
autoetnografia de betweeners; descolonização; pedagogia da esperança; essencialismo

Abstract

How to write our history interlaced with the history of so many oppressed humans from so many singularities and shared universalities? We search for an autoethnography that is performative and transgressive in face of brutal inequalities, obvious injustice, and lame justifications by those with more privilege and power “to name the world.” We search for a form of being and writing that goes, without apologies, after the structures of power that shape and maintain such systems of oppression. We search in our autoethnography an alternative model of writing that exposes the breaks and cracks of our existence in neo-colonial times. We see betweener autoethnography as a way of being and writing ourselves into the history of resistance against oppression, injustice, and exclusion, one that starts from our common humanity in betweener identities. We write, here, a joint betweener autoethnography against essentialist representations in name of justice.

Keywords:
betweener autoethnography; decolonization; pedagogy of hope; essentialism

Resumen

Betweeners (palabra creada por los autores): utilizamos esta posibilidad del idioma inglés (difícil de traducir) a lo largo de esta versión portuguesa para explicar las condiciones de las personas que habitan el espacio entre mundos, entre fronteras, concreto y sociocultural. ¿Cómo escribir nuestra historia entrelazada con la historia de tantos humanos oprimidos, tantas singularidades y universalidades compartidas? Buscamos una autoetnografía performativa y transgresora frente a las desigualdades brutales, injusticias evidentes y justificativas poco convincentes de los que tienen más privilegios y poder para “nombrar el mundo”. Buscamos una forma de ser y de escribir que critique sin disculpas las estructuras de poder que dan forma y mantienen tales sistemas de opresión. Buscamos en nuestra autoetnografía un modelo de escritura alternativo que exponga las hendiduras y fisuras de nuestra existencia en la época neocolonial. Vemos la autoetnografía de los Betweeners como una forma de ser y de se escribir en la historia de la resistencia contra la opresión, la injusticia y la exclusión, que parte de nuestra comunidad humana y de identidades compartidas. Aquí escribimos una articulación entre la autoetnografía de los Betweeners y las representaciones esencialistas en constante búsqueda de la justicia social.

Palabras clave:
autoetnografía de intermediarios; descolonización; pedagogía de la esperanza; esencialismo

As palavras de Bryant Keith Alexander são um bom ponto de partida...

Questões de sobrevivência pessoal motivam a produção de conhecimento acadêmico... Estou explorando e, algumas vezes, expondo minha própria vulnerabilidade à crítica racial, de gênero e cultural como método de compreender o ‘Eu e o outro’, o ‘Eu como o outro’, enquanto me envolvo em criar performances (escritas e incorporadas) que buscam transformar as condições sociais e culturais sob as quais vivo e me ocupo. (2005, p. 433ALEXANDER, Bryant K. 2005. “Performance ethnography: The reenacting and inciting of culture”. In: DENZIN, Norman and LINCOLN, Yvonna (Eds.). Handbook of qualitative research. p. 411-442. Thousand Oaks, CA: SAGE.).

Bem como as de Paulo Freire, à medida que nos apoiamos em sua pedagogia da esperança mais e mais...

... sem sequer poder negar a desesperança como algo concreto, e sem desconhecer as razões históricas, econômicas e sociais que a explicam, não entendo a existência humana e a necessária luta para fazê-la melhor, sem esperança e sem sonho. A esperança é uma necessidade ontológica; a desesperança, esperança que, perdendo o endereço, se torna uma distorção dessa necessidade ontológica. (1995, p. 8).

Partindo de diferentes momentos em nossas carreiras profissionais, nos reunimos para escrever nossas biografias na história (Mills, 1959MILLS, Charles W. 1959. The sociological imagination. New York, NY: Oxford University Press .), criando estórias que, ao mesmo tempo, resistem e exigem serem contadas, transformando problemas pessoais em questões públicas, recusando construções hegemônicas da realidade por meio de metodologias e pedagogias reducionistas, nas quais faltam corpos oprimidos e experiências vividas, normalmente (mal) representados como exóticos, desviantes, descontextualizados ou glorificados. Como muitos outros(as) pensadores(as), anteriores e contemporâneos(as), escrevemos autoetnografia juntos para trazer problemas pessoais para a história viva com a intenção de transtornar representações essencializadoras e interpretações da experiência vivida. Nós escrevemos com a esperança de convidar grupos historicamente marginalizados para conversas sobre a descolonização da produção de conhecimento na academia. Escrevemos contra o tratamento excludente repetido do Outro a partir de nossas próprias biografias e corpos políticos.

Nossa autoetnografia, com certeza, não é melhor do que muitas outras versões que lemos em textos acadêmicos, ou ouvimos e presenciamos em salas de aula e conferências profissionais. No entanto, é singular porque resulta de uma amizade profunda e longa, marcada pelas alegrias usuais e experiências compartilhadas, e por uma preocupação particular compartilhada com as brutais desigualdades que testemunhamos enquanto crescíamos no Brasil. Não éramos espectadores inocentes, é claro. A nosso ver, ninguém é um espectador inocente em seu próprio tempo. Crescer como homens heterossexuais brancos nos localizou como agentes co-construtores das desigualdades cruéis que tanto nos incomodavam quando crianças e, depois, como homens jovens, mesmo que nossa participação na criação de nossos mundos sociais fosse um pouco indireta à criação dos sistemas de opressão e dominação à nossa volta. Nossa amizade também nos tornou poderosamente conscientes de nossas próprias diferenças de classe social. E somos enormemente gratos por termos, de alguma forma, no auge do final da adolescência e do idealismo, conseguido nos apoiar em nossa afinidade imediata e magnética para encontrar maneiras de contornar as divisões estruturais de classe, classismo e vida cotidiana. No processo de nos apoiarmos em busca de esperança para um futuro menos brutalmente desigual, seguimos caminhos educacionais e profissionais semelhantes, permanecendo o tempo todo enredados em nossos ideais juvenis de fazer o possível para avançar a pedagogia da esperança de Paulo Freire (Freire, 1995FREIRE, Paulo. 1995. Pedagogy of hope: Reliving pedagogy of the oppressed. (R. R. Barr, Trans.). New York, NY: Continuum .).

Nossa união acadêmica vai além do âmbito estritamente profissional, pois buscamos, desde o início de nossas jornadas, assumir nossos corpos políticos, já que representam uma faceta da política de exclusão de nossos tempos. Queremos que nossa autoetnografia funcione como um espelho invertido que atue nessa representação simplista do “outro”, o reflexo que cada corpo envia de volta ao mundo relacional e político em que vivemos. Queremos que nossa autoetnografia examine, desconstrua e transforme o “reflexo”, as representações que nossos corpos enviam de volta às interseções de raça, gênero, sexualidade, nacionalidade e formação de classe, em nossos encontros com estudantes, textos acadêmicos e políticas de produção de conhecimento.

Para nós, a autoetnografia é um conceito escorregadio que foge a definições rígidas e categorizações fáceis. A autoetnografia surgiu do conflito entre as ciências sociais, as humanidades e as artes. A autoetnografia acontece quando a ‘performance’ e a ‘performatividade’ colidem, no momento da performance, no corpo do pesquisador, uma vez que ele interage com o mundo, com outras pessoas, com o Outro, como se reflete no Outro em representações de pesquisa.

Por que escrevemos autoetnograficamente? Para nos colocarmos na história, para que não fique nas nossas costas Para criarmos performances de solidariedade Performances de comunidade Performances de justiça social Para todos, e não apenas para aqueles que se parecem conosco Ou acreditam no que acreditamos Justiça social inclusiva ou nada E assim performamos O volátil O mundano O humano E assim realizamos Uma virada ontológica Para um ser que é sempre político Sempre escrevendo visceralmente A experiência da vida cotidiana Do corpo E assim criamos performances que constroem Uma (re)virada epistemológica Ao universal singular de Sartre Para a imaginação sociológica de C.W. Mills. À conscientização de Freire À nepantlera2 2 N.T.: Nepantla é uma palavra nahuatl que significa “no meio” ou “meio”. de Anzaldua Para o nosso diálogo entre fronteiras Betweeners.

A autoetnografia surgiu no movimento pós-estruturalista das décadas de 1980 e 1990 nas ciências humanas e sociais americanas, possibilitada pela ‘crise da representação’ (Clifford e Marcus, 1986CLIFFORD, James; MARCUS, George. 1986. Writing culture: The poetics and politics of ethnography. Los Angeles: University of California Press.; Denzin e Lincoln, 1994DENZIN, Norman, & LINCOLN, Yvonna. 1994. The handbook of qualitative research. 1st ed. Thousand Oaks, CA: SAGE .; Turner e Bruner, 1986TURNER, Victor.; BRUNER, Edward. 1986. The anthropology of experience. Chicago: University of Illinois Press.). Dentro do campo dos estudos da performance, a autoetnografia está situada nas interseções do “’feminismo do Terceiro Mundo’, do pós-colonialismo, dos estudos culturais e da pedagogia crítica (Denzin, 2003DENZIN, Norman. 2003. Performance ethnography: Critical pedagogy and the politics of culture. Thousand Oaks, CA: SAGE .; Pineau, 1998PINEAU, Elyse L. 1998. “Performance studies across the curriculum: Problems, possibilities and projections”. In: DAILEY, Sheron J. (Ed.). The future of performance studies: Visions and revisions. p. 128-135. Annandale, VA: National Communication Association.). Ela trabalha para desestabilizar e subverter a supremacia nas dicotomias do corpo e da mente, da teoria e da prática, do pessoal e da política, do pesquisador e do sujeito tão difundidos nos contextos acadêmicos. Sempre perguntamos: como escrevemos nossas estórias? Nossa história? Como escrevemos nossa história entrelaçada com a história de tantos humanos oprimidos, de tantas singularidades e universalidades compartilhadas (Crittenden, 1998CRITTENDEN, Paul. 1998. “The singular universal in Jean-Paul Sartre”. Literature & Aesthetics, 8, p. 29-42.; Sartre, 1963SARTRE, Jean-Paul. 1963. Search for a method. (H. E. Barnes, Trans.). New York, NY: Alfred A. Knopf.)? Por isso, buscamos repetidamente uma autoetnografia performativa e transgressora, que inclua sentimentos de raiva, sofrimento, compaixão e a totalidade de emoções que sentimos quando confrontados com as desigualdades brutais, com a injustiça óbvia e com as justificativas e desculpas esfarrapadas daqueles com mais privilégios e poder ‘para nomear o mundo’ (Freire, 1970FREIRE, Paulo. 1970. Pedagogy of the oppressed. (20th anniversary ed.) (M. Bergman Ramos, Trans.). New York, NY: Continuum.). Buscamos uma autoetnografia que refute uma leitura/um olhar superficial de nossa ansiedade em relação às posições extremas de injustiça que encontramos todos os dias. Buscamos uma forma de ser, escrever e pensar que critica, sem desculpas, as estruturas de poder que moldam e mantêm tais sistemas de opressão. Buscamos em nossa autoetnografia um modelo alternativo de escrita que, como nossos corpos fronteiriços (betweeners), expõe as lacunas (nos discursos dominantes, narrativas oficiais) de nossa existência nestes tempos neocoloniais. Recorremos à autoetnografia para procurar uma escrita que honre estórias e histórias de corpos oprimidos que, na maioria das vezes, habitam a posição de sujeitos honoráveis, e não a de pesquisadores e formadores de conhecimento (Diversi e Moreira, 2009DIVERSI, Marcelo; MOREIRA, Claudio. 2009. Betweener talk: Decolonizing knowledge production, pedagogy, and praxis. Walnut Creek, CA: Left Coast Press .). Nós vemos a autoetnografia como uma maneira de ser e escrevermos a história da resistência contra a opressão, a injustiça e a exclusão, que parte de nossa humanidade comum, de nossas identidades entre fronteiras (betweeners) para desafiar a preferência acadêmica pela sofisticada análise foulcaultiana do poder, ao invés de honrar as narrativas ordinárias marcadas de sangue e profanações.

Queremos agir sobre o mundo Como Betweeners Convocando a intimidade humana comum de todos Escrevendo do coração (Pelias, 2004PELIAS, Ronald. 2004. A methodology of the heart: Evoking academic and daily life. Walnut Creek, CA: Altamira Press.) Contra ideologias de dominação (hooks, 1994HOOKS, Bell. 1994. Outlaw culture. New York, NY: Routledge.).

Talvez, pensamos que autoetnografias de betweeners, do espaço entre fronteiras, possam nos ajudar a imaginar um futuro mais justo para mais pessoas, ajudando-nos a afastar as poderosas ‘garras do essencialismo’, do determinismo, das interpretações binárias de representações da experiência vivida, de ver, pensar e entender o mundo inevitavelmente preso em noções essencializadoras de Nós e Deles. Pensamos que devemos nos livrar das visões essencializadoras do Outro por uma questão de princípio, pois só então podemos começar a perceber, realmente, que estamos todos, cada um de nós, no mesmo barco. À medida que nossos números aumentam exponencialmente, nossas economias se tornam cada vez mais entrelaçadas, nossa fome de energia cresce a passos largos e a tecnologia transforma a globalização da experiência vivida cada vez mais presente, nossos destinos e nossas culturas ficam cada vez mais complexos e interdependentes. Em um futuro próximo, flutuaremos ou afundaremos juntos. Portanto, achamos imperativo voltar repetidamente ao princípio básico, o de encontrar orientação e esperança em nossa humanidade comum, para descobrir maneiras de escrever essa humanidade comum na vanguarda da pedagogia e da produção de conhecimento. Nesse espírito, as críticas aos sistemas de opressão e às ideologias de dominação precisam ser fundamentadas, em nossa opinião, em uma mudança ontológica que valorize nossa humanidade comum, nossos desafios comuns, nossos dilemas comuns e nossas esperanças comuns.

Talvez, pensamos, a autoetnografia de betweeners-fronteiriça possa nos ajudar a encontrar maneiras de criticar o status quo enquanto, ao mesmo tempo, o fazemos dentro da ética do cuidado e do perdão, com “boas intenções” (Diversi e Henhawk, 2012DIVERSI, Marcelo.; HENHAWK, Dan. 2012. “Indigenous qualitative inquiry: (Re) awakening, together, from a long colonizing slumber”. International Review of Qualitative Research, 5, p. 51-72.). Quando finalmente vermos o Outro, os diferentes, incluindo opostos, como irmãos e irmãs, a violência como um meio de ganho pessoal pode deixar de ser tão predominante. Encontrarmo-nos no meio do caminho, nos espaços entre mundos, nas fronteiras, entre Nós/Eles, especialmente quando se é mais difícil de fazê-lo, pois, talvez, seja essa a única maneira de avançar em direção à justiça, à igualdade e à liberdade. A autoetnografia de betweeners, para nós, é uma maneira de criar textos e performances de possibilidades para um mundo que pode se encontrar unido na causa comum da sobrevivência, da alegria e do alívio da dor. Achamos que a autoetnografia pode ser uma maneira de co-criar imaginações coletivas sobre unidade e união, conectando os pontos entre o biográfico e o histórico, movendo-se continuadamente entre o pessoal e o político (Holman Jones, 2005HOLMAN JONES, Stacy. 2005. “Autoethnography: Making the personal political”. In: Norman, Denzin and Lincoln, Yvonna (Eds.). Handbook of qualitative research. Thousand Oaks, CA: SAGE , p. 763-791.), ao realizar essa conexão em sala de aula e na nossa produção de conhecimento (Diversi e Moreira, 2009).

Na ‘performance de possibilidades’, responsabilidades morais e excelência artística culminam em uma intervenção ativa para romper fechamentos injustos, refazer a possibilidade de novas aberturas e trazer as margens para o centro compartilhado... [Ela] não assume arrogantemente que estamos dando voz aos silenciados, pois entendemos que eles falam e têm falado em espaços e lugares muitas vezes estranhos a nós (Madison, 2005MADISON, D. Soyini Madison. 2005. Critical ethnography: Method, ethics, and performance. Thousand Oaks, CA: SAGE ., p. 178).

A dificuldade reside na necessidade premente de estudiosos para descolonizar e desconstruir essas estruturas [de poder] dentro da academia ocidental que privilegia sistemas de conhecimento ocidentais e suas epistemologias... O projeto descolonizador reverte essa equação, ao fazer dos sistemas ocidentais de conhecimento o objeto de pesquisa (Denzin, 2005DENZIN, Norman. 2005. “Emancipatory discourses and the ethics and politics of interpretation”. In: N. Denzin & Y. Lincoln (Eds.). Handbook of qualitative research (p. 933-958). Thousand Oaks, CA: SAGE ., p. 936).

Autoetnografia de Betweeners como Atos Descolonizantes

A essencialização do ‘Outro’ tem sido uma estratégia colonizadora. O reducionismo do ‘Outro’ em uma única categoria, em uma única história, pode levar a opressão a acontecer sem muito conflito interno para o opressor. A insistência em representar o ‘Outro’ como selvagem, como não-civilizado, leva à dominação com pouca resistência. Pode-se encontrar evidências da essencialização como ato colonizador desde as origens da palavra escrita. A colonização europeia das Américas, da África, da Oceania e da Ásia estava profundamente enraizada na noção de que o ‘Outro’ era um monstro, na melhor das hipóteses, um ser subumano (para exemplos pungentes, ver Adichie, 2009ADICHIE, Chimamanda N. 2009. The danger of a single story (Filmed at TEDGlobal). Disponível em: Disponível em: http://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_ single_story/transcript?language=en#t-291968 . Acesso em: 26 out. 2021.
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; Arjana, 2015ARJANA, S. R. 2015. Muslims in the Western imagination. New York, NY: Oxford University Press.) e, portanto, pronto para ser usado e violado para os ganhos e propósitos dos colonizadores. Embora as potências imperiais europeias não tenham inventado a colonização, grande parte do mundo hoje continua sendo moldada pelos sistemas de poder e pelas macroestruturas resultantes de seus 500 anos de ocupação, pilhagem, genocídio e exploração. Os povos indígenas continuam sendo deslocados pelo ímpeto colonial da ocupação e da exploração econômica de recursos energéticos em todos os lugares (Diversi, 2014DIVERSI, Marcelo. 2014. “Damming the Amazon: The postcolonial march of the wicked West. Cultural Studies”. Critical Methodologies, 14, p. 242-246.; Indian Country, 2015INDIAN COUNTRY. 2015. “Yankton Sioux lead fight against TransCanada and Keystone XL in South Dakota”. Indian Country Today Media Network. Disponível em: Disponível em: http://indiancountrytodaymedianetwork.com/2015/01/05/yanktonsioux-lead-fight-against-transcanada-and-keystone-xl-southdakota-158562 Acesso em: 26 out. 2021.
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).

A descolonização, assim, continua a ser uma convocação de todos para as lutas no século XXI. Conforme anteriormente escrevemos, na definição de nosso trabalho deste manuscrito, vemos nossas autoetnografias betweeners como atos descolonizantes, como nossa tentativa de nos escrevermos na construção da história(s) de nossos tempos. Tentamos, por meio de nossas autoetnografias, juntar o apelo revolucionário em direção ao imaginário descolonial (Perez, 1999PEREZ, Emma. 1999. The decolonial imaginary: Writing Chicanas into history. Bloomington: Indiana University Press.), examinando a história da colonização, conforme expressam corpos e sistemas de opressão atuais, para resistir à atual colonização de mentes, corpos e terras, e oferecer histórias alternativas de ser, estar e saber além do persistente imaginário presente na dicotomia Nós/Eles. Tentamos seguir os passos de Gloria Anzaldua (1981ANZALDUA, Gloria. 1981. “La Prieta. In C. Moraga & G. Anzaldua (Eds.)”. This bridge called my back: Writings by radical women of color. p. 198-209. New York, NY: Kitchen Table: Women of Color Press., 1999ANZALDUA, Gloria. 1999. Borderlands/La Frontera: The new mestiza. San Francisco, CA: Aunt Lute Books.) e abraçar as fronteiras onde todos podemos nos identificar com as feridas da discriminação, onde todos nós podemos encontrar maneiras de mover o mundo em direção a uma maior inclusão.

No entanto, muitas vezes nos encontramos confrontados por narrativas de descolonização que parecem partir do essencialismo usado nos atos colonizadores. Alguns argumentam que a descolonização não é uma metáfora e que os colonos de todos os lugares precisam se retirar, literalmente (Tuck & Yang, 2012TUCK, Eve; YANG, K. Wayne. 2012. “Decolonization is not a metaphor”. Decolonization: Indigeneity. Education & Society, 1, p. 1-40.). Alguns argumentam que a descolonização só pode ser feita pelos povos indígenas (Barker, 2011BARKER, Adam. J. 2011. “What does “Decolonize Oakland” mean? What can “Decolonize Oakland” mean? ”. Tequila Sovereign. Disponível em: Disponível em: http://tequilasovereign. blogspot.ca/2011/10/whatdoesdecolonize-oakland-mean-what.html . Acesso em: 26 out. 2021.
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). Então, quem determinará a identidade aqui? Quem são os colonos na imaginação de Tuck e Yang (2012)? Quem determina a autenticidade nesses casos? Quem delega o poder de essencializar o Outro? Quem tem a moral para reduzir os corpos miscigenados em identidades únicas de colonos ou nativos? A maioria de nós, se não todos, é híbrida e mestiça de uma forma ou de outra. Com o povos originários incluídos. Todos nós já nos misturamos com vizinhos, amigos, aliados e inimigos muito antes dessas ideias de pureza e autenticidade, ou mesmo do essencialismo, nos serem transmitidas pela primeira vez.

Para onde voltaríamos nessa visão da descolonização? Que parte de nossos corpos miscigenados, betweeners, devemos deixar para trás? Que partes devemos levar de volta para nossos lares pré-colonizadores? Para onde iriam todos os híbridos, hifenizados e vira-latas? Como uma remoção em massa de pessoas de terras nativas nos ajudaria a avançar em nossos tempos globais? Como um novo etnocídio remediaria genocídios de conquistadores anteriores?

A questão da “autenticidade” reivindicada pelas formas essencializadas de descolonização tem sido, por si só, uma das ferramentas mais poderosas da colonização. Somos capazes de entender e ter empatia com qualquer pessoa aborígene que gostaria que os colonos, os opressores e os colonizadores deixassem suas terras indígenas. Parece que, em alguns lugares recentemente conquistados, isso pode até acontecer em termos práticos. Mas, em nível global, esse tipo de visão essencialista da descolonização perde ou ignora as muitas décadas de experiência vivida, conhecimento acadêmico e ativismo pós-colonial (Bhabha, 1994BHABHA, Homi K. 1994. The location of culture. London, England: Routledge.; Denzin, 2003DENZIN, Norman. 2003. Performance ethnography: Critical pedagogy and the politics of culture. Thousand Oaks, CA: SAGE .; Fanon, 1952/2008FANON, Franz. 2008. Black skin, white masks. (Translated from the French by R. Philcox). New York, NY: Grove Press ., 1963/2004FANON, Franz. 2004. The wretched of the earth. (Translated from the French by R. Philcox). New York, NY: Grove Press.; Freire, 1970FREIRE, Paulo. 1970. Pedagogy of the oppressed. (20th anniversary ed.) (M. Bergman Ramos, Trans.). New York, NY: Continuum.; Said, 1978SAID, Edward. 1978. Orientalism. London, England: Penguin Modern Classics.). Sem mencionar que, até onde sabemos, todos os povos indígenas eram/são migrantes. A menos que alguém se apoie na ideia do nobre selvagem, todos nós temos que nos confrontar com uma história sanguinolenta de luta pela ocupação da terra que engloba também as histórias que, e daqueles que, sobreviveram.

Sim, concordamos que a impaciência e a determinação com as quais os povos historicamente deslocados resistem e desafiam o neocolonialismo são centrais para nutrir o movimento de descolonização, à medida que este movimento avança contra grandes poderes oficiais. Admiramos e honramos a citação de Tuck e Yang (2012TUCK, Eve; YANG, K. Wayne. 2012. “Decolonization is not a metaphor”. Decolonization: Indigeneity. Education & Society, 1, p. 1-40., p. 10): “fornecemos essa estrutura para que possamos ser mais impacientes um com o outro, menos propensos a aceitar gestos e meios-passos e mais dispostos a pressionar por atos que perturbem a inocência...”. Gostamos da ideia de sermos mais impacientes um com o outro, ao procurarmos mudanças ontológicas, epistemológicas e éticas em direção à descolonização. Mas as categorias fixas de nativos, escravos e colonos não correspondem ao imaginário descolonial em uma existência cada vez mais globalizada. A maioria de nós vive cada vez mais no ‘terceiro espaço’ de Homi Bhabha3 3 N.T.: O Terceiro Espaço é uma teoria sociolinguística pós-colonial de identidade e comunidade realizada por meio da linguagem ou da educação. O conceito é atribuído a Homi K. Bhabha. A Terceira Teoria do Espaço explica a singularidade de cada pessoa, ator ou contexto como um “híbrido”. , em identidades transnacionais, em uma justaposição pós-colonial bagunçada, caótica, híbrida e ‘entre fronterias’. Categorias fixas de identidade do ‘Outro’ deturpam a experiência humana como suas complexidades de identidades, sempre em formação, sempre em relação aos outros. Categorias ‘corrigidas’ reescrevem todos nós de volta à polarização Nós/Eles.

Nossa leitura de Paulo Freire, cuja pedagogia da esperança continua guiando nossas ‘autoetnografias de betweeners’ em nossa tentativa de descolonizar nossas salas de aula, sugere que ele, Freire, seria o primeiro a reconhecer a impossibilidade e a futilidade da busca por autenticidade ou pureza, ou qualquer outra filosofia ou filosofia binária de ser e saber. Freire (1970) cita Fanon enquanto desenvolve suas ideias sobre como superar a mentalidade nós/eles, em que a subjugação é um destino inescapável, o status quo é o modo como a vida sempre foi e a noção de mudança é tola e fútil. Achamos que a filosofia de Freire ofereceu esperança para todos nós nos darmos bem, independentemente de nossas origens tribais e alianças efêmeras.

A abordagem essencialista de descolonização de Tuck e Yang (2012TUCK, Eve; YANG, K. Wayne. 2012. “Decolonization is not a metaphor”. Decolonization: Indigeneity. Education & Society, 1, p. 1-40.) nos remete a um sistema relacional dicotômico, que torna impossível a colaboração e a cooperação descoloniais, mesmo indesejáveis. Eles escrevem:

... o colonizador intelectual que hibridiza o pensamento descolonial com as tradições críticas ocidentais (metaforizando a descolonização) emerge superior aos intelectuais nativos e aos teóricos continentais simultaneamente. Com seu olho de falcão crítico, ele novamente vê a crítica melhor do que ninguém e vê o mundo de uma estação mais alta. (p. 16).

Como aprendemos com Denzin (2005DENZIN, Norman. 2005. “Emancipatory discourses and the ethics and politics of interpretation”. In: N. Denzin & Y. Lincoln (Eds.). Handbook of qualitative research (p. 933-958). Thousand Oaks, CA: SAGE ., 2010DENZIN, Norman. 2010. The qualitative manifesto: A call to arms. Walnut Creek, CA: Left Coast Press.), a descolonização vai além da política de identidade e se concentra nas críticas das epistemologias ocidentais na produção de conhecimento. Os modos de produção do conhecimento acadêmico têm que ser expostos como objetos de investigação. Como Deloria (1969DELORIA, Vine. 1969. Custer died for your sins: An Indian manifesto. New York, NY: Macmillan.) nos ensinou, invocar uma noção de pureza era em si um pretexto colonizador dos colonos que chegavam à América. Ao fundamentar o apelo à descolonização nas noções essencialistas do Outro, os estudiosos parecem reforçar a mesma opressão que pretendem criticar. Linda T Smith (2005SMITH, Linda Tuhiwai. 2005. “On tricky ground: Researching the native in the age of uncertainty”. In: DENZIN, Norman and LINCOLN, Yvonna (Eds.). Handbook of qualitative research. 3rd ed., p. 85-107. Thousand Oaks, CA: SAGE .) também ecoa Deloria na questão do essencialismo:

O desejo do colonizador de definições “puras”, não contaminadas e simples sobre os nativos é frequentemente um desejo de continuar a conhecer e definir o Outro, enquanto o desejo do nativo de se autodefinir e nomear pode ser lido como um desejo de ser livre, de escapar da definição, de ser complicado, de desenvolver e mudar e de ser considerado como totalmente humano. Entre esses desejos estão identidades e hibrididades múltiplas e mutáveis, que colocam muito mais nuances sobre o que constitui identidades nativas, comunidades nativas e conhecimento nativo nos tempos anti/ pós-coloniais. (p. 86).

Novamente, perguntamos: como o essencialismo descolonizante pode nos ajudar a seguir em frente? Como o essencialismo descolonizador nos ajuda a entender o hibridismo cultural de nossos tempos pós-coloniais? De acordo com o essencialismo descolonizador, nós somos colonos nos Estados Unidos, que deveriam voltar para o Brasil e descobrir como voltar para nossas terras ancestrais conhecidas e desconhecidas antes da colonização europeia, nos lugares onde nascemos? Até onde sabemos, temos ascendência africana, portuguesa, indígena (tribos desconhecidas no que é hoje o Brasil), italiana, escocesa e espanhola. Para onde voltaríamos? Como a abordagem da descolonização essencialista de Tuck e Yang lidaria com os milhões e milhões de betweeners e híbridos nascidos na terra em que eles querem que seja devolvida aos povos nativos? Eles usam o trabalho de Frantz Fanon para justificar uma abordagem essencialista da descolonização, mas ignoram o fato de que ele era casado com uma francesa, tinha filhos híbridos, escreveu na língua do colonizador. Eles permanecem nos ombros de Audre Lorde, mas ignoram seu ponto de vista entre mulheres negras nascidas em Nova York, cujos ancestrais foram trazidos pelos europeus como escravos da África para colonizar as ilhas do Caribe ocupadas por povos indígenas. A descolonização não precisa de fronteiras reificadas por identidades essencialistas, mas, sim, de mais áreas nebulosas para que toda a humanidade se encontre.

Rumo à Descolonização Inclusiva

Os representantes latino-americanos negavam a mim atribuir a condição de educador. Pelo menos eu não era um educador no que dizia respeito a eles. Criticavam a mim o que lhes parecia ser minha “politização” exagerada... Eles não percebiam, porém, que, ao negarem minha posição de educador, por ser demasiado político, eram tão políticos como eu. Certamente, contudo, numa posição contraria a minha. Neutros é que não eram nem poderiam ser. (Freire, 1995FREIRE, Paulo. 1995. Pedagogy of hope: Reliving pedagogy of the oppressed. (R. R. Barr, Trans.). New York, NY: Continuum ., p. 7).

Nos voltamos a Paulo Freire sempre que confrontados com abordagens essencialistas de libertação e descolonização. Freire baseia todo o seu trabalho na conscientização e em sua conexão direta com os sistemas de opressão. A conscientização é uma abordagem profundamente histórica, cultural e contextual da pedagogia e da produção de conhecimento, pois é um processo de conscientização pessoal sobre as próprias conexões com a história, que se torna cada vez mais consciente de como sua própria vida foi moldada e informada por maiores sistemas de poder e de imaginação cultural. Freire escreve especificamente sobre como o opressor e o oprimido vieram da mesma experiência colonizadora no Brasil, onde os europeus chegaram em busca de ouro, pedras preciosas, escravos, madeira e qualquer outra coisa que os enriquecesse e aos cofres europeus, tudo às custas dos nativos, dos marinheiros e da terra. Ele sabe que a colonização do Brasil pelos europeus começou quase 500 anos antes de seu próprio nascimento. São mais de 15 gerações de estupro colonial e subsequente miscigenação de pessoas. Parece lógico que Freire não esteja falando de libertação como uma tentativa de enviar portugueses, holandeses, ingleses, espanhóis e franceses de volta para casa. Ele entende perfeitamente que 500 anos de colonização trouxeram hibridez e mistura étnica. Embora os primeiros encontros tenham sido violentos e puramente opressivos, a maioria das pessoas no Brasil atual resultam de relacionamentos amorosos entre povos altamente misturados.

Os oprimidos, no livro seminal de Freire (1970FREIRE, Paulo. 1970. Pedagogy of the oppressed. (20th anniversary ed.) (M. Bergman Ramos, Trans.). New York, NY: Continuum.), Pedagogia do Oprimido, eram os mestiços, os matutos, os caboclos, os mais claros que os negros e os mais escuros que os brancos, o produto do estupro colonial, o fruto do encontro de nativos e escravos, ou, como Wolf (1982WOLF, Eric R. 1982. Europe and the people without history. Berkeley: University of California Press.) coloca, as pessoas sem história. Freire era do nordeste brasileiro, a região mais oprimida e mais pobre do país. Ele vem da terra seca, de onde os nordestinos historicamente migraram para o sul em busca de sobrevivência. Os brasileiros das regiões sul recebem bem a mão de obra barata, mas culpam os nordestinos por todos os problemas sociais, chamando-os de gente pequena e preguiçosa e de cabeças grandes, aratacas, mais escuras que as pessoas brancas, mas não tão negras e interessantes quanto as negras africanas do carnaval, do futebol e da tradição musical. O próprio Freire era um corpo branco híbrido, no conceito de hibridez de Bhabha, não apenas como a mistura “aceitável e regulada” de raças, forçada principalmente por estupros e sistemas destrutivos de dominação, mas uma mistura que vai além das restrições biológicas e científicas. Emprestando de Bhabha (1994):

Hibridismo é o sinal da produtividade do poder colonial, suas forças e fixações inconstantes; é o nome da reversão estratégica do processo de dominação por rejeição (que é a produção de identidades discriminatórias que garantem a identidade ‘pura’ e original de autoridade). O hibridismo é a reavaliação da suposição de identidade colonial por meio da repetição de efeitos discriminatórios de identidade. Ele exibe as deformações e os deslocamentos necessários de todos os locais de discriminação e dominação. Desestabiliza as demandas miméticas ou narcísicas do poder colonial, mas reimplica suas identificações em estratégias de subversão que voltam o olhar do discriminado para os olhos do poder. (p. 112).

Freire e seus trabalhadores culturais arriscaram suas vidas em sua missão de ajudar os oprimidos a “ler o mundo”. Ele teve que deixar o Brasil após o golpe militar de 1964 para não perder a vida. Exílio, migração forçada, diásporas não são convites. São imposições excludentes baseadas em noções essencializadoras e rotuladoras de outras pessoas. Com certeza, estamos cientes de algumas das deficiências de Freire em questões de gênero, raça e assim por diante. Mas não seríamos todos, com algumas variações, os produtos de nosso próprio tempo histórico e político? Não seria a afirmação de Freire de que apenas os oprimidos podem libertar os oprimidos muito próxima dos princípios do pensamento do feminismo negro? Não há líderes nesta revolução. Então, por ser branco, ela ou ele não pode fazer parte do projeto descolonizador? Ou temos que reivindicar a cor da pele de um avô mais negro para provar que pertencemos ao imaginário descolonial? Apoiamos e estimamos muitas versões da imaginação descolonizadora, mas não aceitamos representações e rotulagens essencializadoras como parte da descolonização libertária. Devemos rejeitar os binários ontológicos essencialistas, pois eles foram os “instrumentos dos mestres” (Lorde, 1984LORDE, Audre. 1984. Sister outsider. New York, NY: Crossing Press.) da colonização e da opressão, e devemos encontrar o caminho para a emancipação inclusiva e cooperativa de nossa história colonial.

Nosso mundo não está mais dividido entre nativos e colonos. Talvez nunca tenha sido estático, nítido ou fixo. Para que a descolonização ocorra, o foco mais relevante deve estar no diferencial de poder entre os povos mais dominantes e os mais oprimidos, e não em qualquer categoria ontológica prescrita e reducionista. Nesse contexto histórico, a libertação precisa ocorrer primeiro nos níveis “interno” e “mental” que as abordagens essencialistas parecem desconsiderar (Barker, 2011BARKER, Adam. J. 2011. “What does “Decolonize Oakland” mean? What can “Decolonize Oakland” mean? ”. Tequila Sovereign. Disponível em: Disponível em: http://tequilasovereign. blogspot.ca/2011/10/whatdoesdecolonize-oakland-mean-what.html . Acesso em: 26 out. 2021.
http://tequilasovereign. blogspot.ca/201...
; Tuck e Yang, 2012TUCK, Eve; YANG, K. Wayne. 2012. “Decolonization is not a metaphor”. Decolonization: Indigeneity. Education & Society, 1, p. 1-40.). Como Paulo Freire, muitos estudiosos que falam a partir de suas posições entre, in between, fronteiras, contra formas variadas de ontologias e epistemologias essencialistas, tais estudiosos encontram uma causa comum na luta contra as ideologias de dominação e os sistemas de opressão, exclusão e privilégio que a dominação constrói, mantém e apoia. Encontramos consolo, esperança e inspiração nas noções de descolonização que trabalham em direção à cura, à unidade e à cooperação entre todos os povos do planeta, e não nas proclamações de exclusão e novas diásporas.

Em vez de mais representações e interpretações essencialistas da experiência vivida em nossos tempos globalizados e pós-coloniais, procuramos narrativas de vidas vividas, aqui e ali, nos espaços entre - in between - as identidades fixas. Estamos à procura de performances incorporadas (embodied) que falem com corpos que vivem em situações pós-coloniais de injustiça e estejam famintas por uma “maneira intensamente sensual de saber” (Conquergood, 1991CONQUERGOOD, Dwight 1991. Rethinking ethnography: Towards a critical cultural politics. Communication Monographs, 58, p. 179-194., p. 180). O trabalho de Freire nos dá essa possibilidade. Pesquisadores que escrevem e ensinam a partir dos espaços entre (in between) identidades e mundos nos dão essa possibilidade. As ‘autoetnografias de betweeners, fronteiriças’ nos dão essa possibilidade.

Fronteiras, legados e injustiças devem ser transgredidos Nossos corpos betweeners devem ser transgressivos como forma de conhecimento Sentimos o dever de Manipular e transformar A estória da colonização Usando nossas vidas como fonte para mostrar Com um propósito político Experiências dentro e fora do in-between, entre fronteiras O objetivo é expandir a sacralidade da vida Além das fronteiras essencializadoras

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  • 1
    Este artigo foi originalmente publicado sob o título “Performing Betweener Autoethnographies Against Persistent Us/Them Essentializing: Leaning on a Freirean Pedagogy of Hope” ma Qualitative Inquiry 2016, Vol. 22(7) 581-587.
  • 2
    N.T.: Nepantla é uma palavra nahuatl que significa “no meio” ou “meio”.
  • 3
    N.T.: O Terceiro Espaço é uma teoria sociolinguística pós-colonial de identidade e comunidade realizada por meio da linguagem ou da educação. O conceito é atribuído a Homi K. Bhabha. A Terceira Teoria do Espaço explica a singularidade de cada pessoa, ator ou contexto como um “híbrido”.
  • 7
    Tradução: Bernardo Carlos S. C. M. de Oliveira
  • Financiamento: Os autores não receberam apoio financeiro para a pesquisa, a autoria e/ou a publicação deste artigo.
  • Errata

    Errata (e21304): No artigo “Autoetnografias dos entre-mundos: partindo de uma pedagogia frei- reana da esperança para expandir narrativas e políticas de inclusão”, dos autores Marcelo Diversi e Claudio Moreira, com número de DOI: 10.1590/1984-6487.sess.2021.37.e21304.a, publicado no periódico Sexualidad, Salud y Sociedad, sem volume, número 37, 2021, p. 1-19, e21304, na página 1:
    Onde se lia:
    Marcelo Diversi1
    > diversi@wsu.edu
    ORCID: 0000-0001-5644-8996
    Claudio Moreira2
    > cmoreira@comm.umass.edu
    ORCID: 0000-0003-3048-5726
    Bernardo Carlos S. C. M. de Oliveira3
    > oliveira.bernardo@gmail.com
    ORCID: 0000-0002-4783-3486
    1Washington State University Vancouver, Vancouver, Estados Unidos
    2University of Massachusetts Amherst, Amherst, Estados Unidos
    3City College of New York, Nova Iorque, EUA
    Tradução: Bernardo Carlos S. C. M. de Oliveira
    Leia-se:
    Marcelo Diversi1
    > diversi@wsu.edu
    ORCID: 0000-0001-5644-8996
    Claudio Moreira2
    > cmoreira@comm.umass.edu
    ORCID: 0000-0003-3048-5726
    1Washington State University Vancouver Vancouver, Estados Unidos
    2University of Massachusetts Amherst Amherst, Estados Unidos
    Tradução: Bernardo Carlos S. C. M. de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2021
  • Aceito
    27 Set 2021
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