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Cartas para mim ou sobre mim? Notas autoetnográficas de um puerpério não silenciado

Letters to me or about me? Autoethnographic notes of an unsilenced puerperium

¿Cartas para mí o sobre mí? Notas autoetnográficas de un puerperio no silenciado

Resumo

Depois de quase uma década pesquisando partos e maternidades, tornei-me mãe. Recordo-me de, durante o meu doutoramento, ter sido interpelada, pelas mulheres com que convivia, acerca de minha sensibilidade para com as suas experiências maternas (Carneiro, 2015), já que ainda não tinha vivido na pele o que me contavam. Eu não tinha filhos e não tinha parido. Alguns anos depois, após o nascimento de meu segundo filho, passei a escrever e a publicar algumas reflexões sobre a vida no pós-parto, mas, agora, sobre a minha própria experiência, a partir de uma série intitulada Cartas de um puerpério. Escrevi sobre mim, sobre o parto, sobre o bebê e, sobretudo, sobre o resguardo, em tom pessoal e confessional, mas também antropológico, haja vista minhas reflexões dialogarem todo o tempo com a teoria posta, ou ainda em tessitura, bem como com a cultura local sobre o maternar. O meu olhar recaiu sobre o puerpério e suas interfaces com ideias de corpo, sexualidade, amizade, política, domesticidade, solidão, cansaço e, mais recentemente, pandemia. Tais Cartas foram publicadas em uma rede social virtual e, por isso, despertaram o diálogo com outras mulheres. Partindo delas, pretendo discutir como e quanto funcionaram como um diário pessoal e diário de campo; como um espaço de desague e de autorreflexão, tudo a um só tempo; mas também como lugar de produção intelectual e de olhares sócio-antropológicos para com a maternidade contemporânea. Um olhar oriundo da casa e do doméstico como espaço que inventa vida.

Palavras-chaves:
puerpério; maternidades; cartas; autoetnografia; antropologia

Abstract

After nearly a decade of researching births and maternity hospitals, I became a mother. I remember that, during my PhD, I was questioned by the women I lived with about my sensitivity to their maternal experiences (Carneiro, 2015), as I had not yet lived through what they told me. I had no children and I had not given birth. A few years later, after the birth of my second child, I started to write and publish some reflections about life in the postpartum period, but now about my own experience, from a series entitled Letters from a puerperium. I wrote about myself, about childbirth, about the baby and, above all, about being protected, in a personal and confessional, but also anthropological tone, as my reflections dialogued all the time with the theory put or still in tessitura, as well as with the local culture about the maternal. My gaze fell on the puerperium and its interfaces with ideas of the body, sexuality, friendship, politics, domesticity, loneliness, fatigue and, more recently, a pandemic. These Letters were published on a virtual social network and, therefore, sparked dialogue with other women. Starting from them, I intend to discuss how and how much they worked as a personal diary and field diary; as a space of drainage and self-reflection, all at the same time; but also as a place of intellectual production and socio-anthropological perspectives on contemporary motherhood. A look coming from the home and the domestic as a space that invents life,

Keywords:
postpartum; motherhood; letters; autoetnography; anthropology

Resumen

Después de casi una década de investigar los partos y los hospitales de maternidad, me convertí en madre. Recuerdo que, durante mi doctorado, las mujeres con las que conviví me interrogaron sobre mi sensibilidad hacia sus vivencias maternas (Carneiro, 2015), ya que aún no había vivido lo que me decían. No tenía hijos y no había dado a luz. Unos años más tarde, tras el nacimiento de mi segundo hijo, comencé a escribir y publicar algunas reflexiones sobre la vida en el posparto, pero ahora sobre mi propia experiencia, de una serie titulada Cartas de un puerperio. Escribí sobre mí, sobre el parto, sobre el bebé y sobre todo sobre el cobijo, en un tono personal y confesional, pero también antropológico, ya que mis reflexiones dialogaban todo el tiempo con la teoría puesta o aún en tesitura, así como con lo local. cultura sobre lo materno. Mi mirada se posó en el puerperio y sus interfaces con las ideas del cuerpo, la sexualidad, la amistad, la política, la domesticidad, la soledad, el cansancio y, más recientemente, una pandemia. Estas Cartas fueron publicadas en una red social virtual y, por tanto, despertaron el diálogo con otras mujeres. A partir de ellos, pretendo comentar cómo y cuánto funcionaron como diario personal y diario de campo; como espacio de drenaje y autorreflexión, todo al mismo tiempo; pero también como lugar de producción intelectual y perspectivas socio-antropológicas sobre la maternidad contemporánea. Una mirada que viene del hogar y lo doméstico como espacio que inventa la vida.

Palabras claves:
postparto; maternidades; cartas; autoetnografia; antropologia

Notas de mim e do desejo de escrever

Cartas de um puerpério 20 1 1 O presente artigo apresenta minhas Cartas de um Puerpério, as quais recorrem a uma linguagem e estrutura poética a fim de demonstrar minha corporalidade e subjetividade no puerpério, estão apresentadas no corpo do texto. Esta será a última de nós, ao menos este ano. Tanto ronda esta cabeça e este coração. Mas muito há o que fazer, limpar, acolher, ninar e simplesmente estar. Ano que vem, estas cartas seguem vívidas e talvez mais frequentes. Para darem vazão a tanta coisa que se sente por estas bandas. Será este o melhor espaço para isso? Confesso que não sei e muitas vezes tenho dúvidas. Mas, na falta de um lugar melhor, esta tela aqui fica como a mais fácil, rápida. Um espaço de desague. Um arquivo pessoal. Mas também coletivo. Feito tal parênteses. Há dois dias este corpo caminha pela mesma trilha que caminhava há um ano, quando você ainda era uma semente muito pequenina. Sair por uma hora e ficar só com este corpo, esta casa, tem sido fantástico. O corpo fala. Fala o tempo todo. Só precisamos saber escutar. Corpo leve, ágil, saudoso, sedento de movimento. Uma casa que até ontem estava pesada, plena, cheia, redonda. Um lugar hoje ansioso de si, do movimento, do fazer sentir que está vivo. A cada passada, experimentava alegria, desejo de mais passadas, suor, individualidade e amor por si mesma. Amor pelo seu feito. Neste ano fiz muita coisa: gerei, gestei, dei à luz, amparei, acolhi, ninei ... Fiz muita coisa. Este corpo cansado, mas sedento de movimento, é um corpo feliz, um corpo que fez viver e vive. Um corpo que fez muita coisa. Que venha um novo ano, todo um mundo para ser vivido, nos poros. (Sousas, 28 de dezembro de 2019).

Este artigo se dispõe a refletir sobre a casa e o doméstico como um lugar que inventa vida. Ele o fará a partir de estórias vividas e narradas por mim, uma mulher, a ser descrita em suas páginas. Esse espaço de morada será tomado também como possibilidade de criação, assim como - nada ao acaso - a gestação e o momento vivido logo após o nascimento. Nesse sentido, dialoga e se inspira em pesquisas empreendidas - também por mulheres - a respeito da agência da domesticidade. Entre elas, mais recentemente, Antonádia Borges (2013)BORGES, Antonádia. 2016. “Mulheres e suas casas: reflexões etnográficas a partir do Brasil e da África do Sul”. Cadernos Pagu, Campinas, SP, n. 40, pp. 197-227., cujos trabalhos, no Brasil e na África do Sul, nos colocam diante do fazer político feminino a partir da casa, da luta pela moradia e dos trânsitos que isso envolve; de Venna Das (2020DAS, Veena. 2020. Vida e Palavras. A Violência e sua Descida ao Ordinário. São Paulo: Editora da Unifesp.), com sua ideia de “cotidiano”, “ordinário” e “eventos críticos”, à luz do que apontam as narrativas das mulheres que foram sequestradas e violentadas no processo de partição indiano e no que tange às suas relações de parentesco e de familiares; e, ainda mais recentemente, os meus próprios estudos (Carneiro, 2015CARNEIRO, Rosamaria Giatti. 2015. Cenas de parto e políticas do corpo. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. ) sobre o lugar da casa nas experiências de parto, ao operarem como lugar de autonomia e de segurança para muitas das mulheres na atualidade, dentre tantos outros lugares que poderiam ser aqui recuperados. Sem apagar a casa também como lugar de violência e sujeição, o objetivo maior será, então, refletir sobre os saberes que circulam em espaços tidos como femininos, mas, tantas vezes, inferiorizados: a casa, o corpo grávido, o sangue do pós-parto, a placenta dequitada, o leite do peito e o bebê que chora logo depois de nascer.

Meu segundo filho nasceu no inverno brasiliense de 2019. Entrei em trabalho de parto com 40 semanas e 6 dias de gestação, quando minha bolsa estourou quase meia noite de uma lua minguante, em uma semana de dois eclipses lunares. Há dias sentia meu ventre literalmente revirar. Os movimentos eram tão bruscos que, por vezes, precisava me parar, colocar a mão na parede e esperar terminar para seguir caminhando, conversando ou fazendo qualquer outra coisa do meu dia a dia. A sensação era tão intensa, jamais antes imaginada, que podia perceber pernas e cabeças se movimentando de um lado para o outro.

Foram quatro longos dias de trabalho de parto em casa até o nascimento, entre contrações tímidas, bolsa rota e mecônio nos dois primeiros dias. Mas, depois de outros dois dias de contrações intensas, de ausência de consciência, de dor, de sangue, de lágrimas, de suor e de uma abertura do corpo que jamais poderia imaginar, depois de tanto tempo sendo “dois em um”, como pontuaria Françoise Heritier (1998HERITIER, Françoise. 1998. Masculino. Feminino: o pensamento da diferença. 1ed. Epistemologia e Sociedade.), tornamo-nos dois corpos separados, mas ainda conectados. Se é que isso é possível. O pé que eu sentia, nitidamente roçar na pele mais fina de minha barriga, agora existia do lado de fora, fora de mim. A placenta que nos unia dequitara, o cordão que nos conectava foi cortado. Mas, ao mesmo tempo, não. Naquele dia, naquela hora, soube que era um menino, mais um menino.

Naquele 28 de julho se iniciava o meu segundo puerpério. Puerpério? Mas que palavra estranha. Uma palavra difícil que também pode ser usada como “resguardo” ou “quarentena”, como diriam as mulheres de gerações mais antigas e as parteiras tradicionais (Fleischer, 2011FLEISCHER, Soraya Resende. 2011. Parteiras, buchudas e aperreios: Uma etnografia do atendimento obstétrico não oficial em Melgaço. 1 ed. Pará. EDUNISC/PakaTatu: Santa Cruz do Sul e Belém.). De origem biomédica, essa palavra diz também da mulher mãe que passa a ser chamada de puérpera, criando-lhe uma nova identidade. De outra parte, também nos faz lembrar da temida “febre puerperal”, infecção que historicamente já matou tantas mulheres recém-paridas (Diniz, 1996DINIZ, Carmen Simone. 1996. Assistência ao parto e relações de gênero: uma releitura médico-social. Dissertação de mestrado. Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Departamento de Medicina Preventiva.). Mas, na língua popular, pode ser o “pós-parto”, o que vem depois do parto, a fase que se inicia quando o bebê nasce, quando a família cresce e quando tudo parece sair do lugar, mesmo que a criança seja muito desejada. Nesse momento, existe geralmente um bebê que chora muito, que não sabe dormir e ainda não sabe mamar. Para esse novo ser, tudo fora da barriga é novo, diferente e carente de adaptação. Isso exige tempo, dedicação e paciência daqueles que dele cuidam. Existe uma mulher cansada, perdida e procurando dar conta do bebê que ainda não conhecia, muitas vezes sem saber o que fazer exatamente. Existe uma família alterada, móveis literalmente tirados do lugar, assim como as emoções e os hormônios que circulam na casa que abriga um recém-nascido. Em algumas etnias indígenas (Tempesta, 2004TEMPESTA, Giovana. 2004. A produção continuada dos corpos: a prática do resguardo entre os Wapichana e os Macuxi. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.; Scopel, 2015DIAS-SCOPEL, Raquel Paiva. 2015. A cosmopolítica da gestação, do parto e do pós-parto: práticas de autoatenção e processos de medicalização entre os índios Munduruku. Brasília: Paralelo 15.), populações ribeirinhas, parteiras tradicionais (Fleischer, 2011) e comunidades campesinas (Del Priore, 2009DEL PRIORE. 2009. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades, mentalidades no Brasil colônia. São Paulo: Ed. Unesp.; Brenes, 1991BRENES, Anayansi Correa. 1991. “História da parturição no Brasil, século XIX”. Cadernos de Saúde Pública. Vol. 7, pp.135-149.), o resguardo é considerado assunto de mulheres, que cuidam umas das outras, geralmente mais velhas, de uma mesma família ou da vizinhança, que se deslocam para cuidar da casa e da mãe, mas também ensinar a como cuidar do bebê. Podem ocorrer esses mesmos contornos entre mulheres de camadas populares (Fonseca, 2012FONSECA, Cláudia. 2012. “Tecnologias globais de moralidade materna: as interseções entre ciência e política em programas “alternativos” de educação para a primeira infância”. In: Ciências na Vida: Antropologia da ciência em perspectiva. São Paulo: Editora Terceiro Nome.) ou entre mulheres de camadas médias de gerações mais velhas (Lins de Barros, 1987BARROS, Myrian Lins. 1987. Autoridade e Afeto: Avós, filhos e netos. Rio de Janeiro: Editora Zahar. ; Almeida, 1984ALMEIDA, Maria Isabel Mendes. 1984. Maternidade um destino inevitável?. São Paulo: Editora Campus.). Mas, em culturas urbanas, medicalizadas e mais contemporâneas, esse processo tem sido vivido no seio de famílias nucleares, de modo isolado, individual - sustentado pelo casal ou praticamente pelas próprias mulheres sozinhas (Cronemberg e Franch, 2020CRONEMBERG, Lorena; FRANCH, Monica. 2020. Ser mãe é padecer no paraíso? Narrativas de depressão pós-parto. 1ed. João Pessoa: Editora UFPB.; Silvia, 2016).


PU.ER.PÉ.RI.O Lambe-lambe, intervenção urbana. Coletivo Matriz, 20192 2 Coletivo Matriz é um grupo de artistas da cidade de Brasília que pauta o cotidiano da maternidade por meio da arte. O coletivo nasceu de uma residência de arte oferecida para artistas mães por Clarice Gonçalves, artista plástica brasiliense, com apoio de um Edital do Fundo de Apoio a Cultura do Distrito Federal. Para mais, consultar o Instagram: https://www.instagram.com/coletivomatriz/. Acesso em: 15 out. 2021. .

Cartas de um puerpério 05 Resguardo, quarentena, pós-parto São esses alguns dos nomes dados a um tempo fora do tempo. Tempo de presença. Pura e simples. Em tempos de tantas atividades virtuais e tarefas cotidianas. Muitas mulheres sentem a gestação como espaço criativo. Para mim, acho que também é. Mas o pós-parto ou o imediato pós-parto me vem como esse momento de viver o imediato, mas também de projeção, de um olhar para dentro, para as entranhas, para o fora e também adiante. O que quero para mim? Ou/e para esse pequeno ser que me pede e que hoje vive comigo aqui fora da barriga? As horas passam mais devagar. Da janela do quarto em que estamos, vejo o balançar das folhas em plena seca no Cerrado. Sigo os seus movimentos como antes não o fazia. Come-se, dorme-se quando pode, banha-se quando pode. Aleita-se, aleita-se e aleita-se. A mente é o espaço do vazio. Mas um vazio que projeta, que me faz revirar, apostar, olhar para dentro. 40 dias. Um marco. Dias de ambivalência e ambiguidade. Tempos que se encerram e retornam. Sangue de uma ferida de amor que, aos poucos, vai secando, vendo a criança crescer e chegar, assim como a mulher a pensar e ciciar. Pós-parto é sombra sim. Mas pode ser muito mais. Pode ser o que não se vive e o que se quer para si e para os seus. (Brasília, 6 de setembro de 2019).

Eu já havia passado por isso uma vez. Tinha uma vaga ideia do que representava esse período ambíguo: de felicidade (quando a criança foi desejada), de dedicação e de extremo cansaço. Em alguma medida, já tinha visitado esse “estágio liminar” (Turner, 2008TURNER, Victor. 2008. Drama, campos e metáforas. Niterói: EdUFF. ) da vida de uma mulher. Um momento do qual, no entanto, fala-se muito pouco ou quase nada3 3 Para mais, consultar a plataforma virtual: https://www.facebook.com/temosquefalarsobreisso/ . Acesso em: 27 out. 2021.Temos Que Falar Sobre Isso é uma plataforma de relatos anônimos de mães que passaram pelas mais diversas situações: depressão pós parto, transtornos ligados à saúde mental na maternidade e no período perinatal (desde a concepção até o primeiro ano do bebê), dificuldades durante a gravidez, sofrimento psíquico intenso, problemas com amamentação, perda gestacional e neonatal, partos traumáticos, prematuridade extrema, gravidez de alto risco, processo de adoção, violência obstétrica, entre outros. (...). Vamos começar já pois Temos Que Falar Sobre Isso!.Acesso em: 21 jan. 2021. À época, contava com 110 mil mulheres no grupo. . Fala-se sobre o gestar, sobre o parir e sobre o amamentar, sobre como cuidar do bebê, sobre o que comprar/não comprar, enxoval, consultas pediátricas etc. Mas não se fala sobre como pode ficar uma mulher no pós-parto, sobre suas emoções e suas percepções de um tempo em que tudo é frágil, dilatado e, por vezes, vivido como um estágio de suspensão da vida.

Pouco se fala sobre o puerpério a partir das emoções e das sensações corpóreas de quem o vive. Mas muito se fala a partir de uma série de rotinas e de interdições que lhe são impostas em diferentes tempos, espaços e grupamentos sociais: a mulher não deve lavar o cabelo (Fleischer, 2011FLEISCHER, Soraya Resende. 2011. Parteiras, buchudas e aperreios: Uma etnografia do atendimento obstétrico não oficial em Melgaço. 1 ed. Pará. EDUNISC/PakaTatu: Santa Cruz do Sul e Belém.); não deve comer comida remoza (Scopel, 2015DIAS-SCOPEL, Raquel Paiva. 2015. A cosmopolítica da gestação, do parto e do pós-parto: práticas de autoatenção e processos de medicalização entre os índios Munduruku. Brasília: Paralelo 15.; Tempesta, 2004TEMPESTA, Giovana. 2004. A produção continuada dos corpos: a prática do resguardo entre os Wapichana e os Macuxi. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.); não deve manter relações sexuais durante 40 dias (Del Priore, 2009DEL PRIORE. 2009. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades, mentalidades no Brasil colônia. São Paulo: Ed. Unesp.); e, de modo geral, precisa descansar (Cronemberg e Franch, 2020CRONEMBERG, Lorena; FRANCH, Monica. 2020. Ser mãe é padecer no paraíso? Narrativas de depressão pós-parto. 1ed. João Pessoa: Editora UFPB.). Fala-se a partir do bebê (Nascimento e Lunkes, 2019NASCIMENTO, Pedro; LUNKES, Amanda. 2019. “Saúde, cuidado e vínculo familiar: Apontamentos iniciais sobre o Programa Criança Feliz em Rio Tinto/Paraíba, Nordeste do Brasil”. Trabalho apresentado no GT 11 da Reunião de Antropologia do Mercosul de 2019. ), da necessidade de asseiá-lo e ,em alguns casos, fala-se inclusive do pai, como acontece nos casos do “couvade”, como DaMatta observou entre os Apinajé (1976)DAMATTA, Roberto.1976. Um mundo dividido: a estrutura social dos índios Apinajé. Petrópolis: Ed. Vozes. . Mas, muito pouco se fala a partir da mãe, da mulher. Essa, quando é dita, em contextos modernos e urbanos, é simbolizada a partir de uma lógica hormonal e psicologizante de mundo (Rohden, 2008RODHEN, Fabíola. 2008“O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos”. História, Ciências, Saúde-Manguinhos [online], v. 15, n. suppl, pp. 133-152. ): dos estudos e do diagnóstico médico de uma depressão pós-parto, de um baby blues ou da temida psicose puerperal (Cronemberg e Franch, 2020). E assim, então, é descrita à luz da ideia de desequilíbrio emocional, do furor uterino e da histeria tematizada pela teoria freudiana no século passado (Freud, 1974FREUD, Sigmund. 1974 [1917]. Estudos sobre a histeria. Edição Standard Brasileira de Obras Completas e de Sigmund Freud. Vol. 2. Rio de Janeiro: Imago. [1917]). Dessa maneira, o puerpério, sobretudo em contextos urbanos e de camadas médias, passou a ser vivido na chave do isolamento familiar e feminino, da hormonização e dos manuais de puericultura, perdendo - cada vez mais - a sua dimensão coletiva, alimentar, corporal e feminina.

Eu havia vivido uma gestação planejada e desejada aos 40 anos de idade. Vivida de maneira saudável, com um corpo cheio e redondo no qual me sentia bem, bonita e sensual. Pude, com os privilégios de uma professora universitária, planejar meu fim de semestre e entrar em licença profissional a partir do nascimento do bebê. Com um companheiro também professor universitário, pude contar com alguém sempre presente em minha casa e com uma logística doméstica, com comida congelada e filho mais velho na escola e em casas de amigos. Pude me planejar antes do nascimento do bebê para viver aqueles dias de resguardo de modo a descansar, me recuperar do trabalho de parto, dar tempo ao meu corpo e cuidar do bebê, estando literalmente para ele nesses primeiros dias de sua vida. Enfim, a partir de todos os meus privilégios sociais e econômicos, de uma mulher branca, heterossexual, de camada média no Brasil, moradora de um cidade grande, tinha tempo, tinha uma casa e tinha minha família ao meu redor.

E, a partir daquele dia 28 de julho, tinha também um bebê recém-nascido, com seus cheiros e fluídos. Com seu corpo pequenino, frágil e bem rosado em meus braços. Um bebê que aprendia a mamar, um corpo materno que se recuperava de um longo trabalho de parto, um filho mais velho recebendo esse novo indivíduo e uma cachorra que me olhava diariamente tentando entender quem era aquele que chorava em nossa casa. Eu tinha, sim, um companheiro em casa e, depois, a ajuda de minha mãe, que viera de São Paulo, para nos auxiliar com a comida e com a limpeza da casa por um tempo. Tinha muitas fraldas para trocar. Enquanto gestamos, vamos aonde queremos, comemos quando queremos, dormimos quando bem podemos e entendemos, ou quando a barriga nos permite. Levamos o bebê conforme o movimento do nosso corpo. Mas, quando o bebê nasce, tudo se transforma, se altera e muitos passam a ser os nossos limites, dentre eles: os subjetivos, os emocionais, os físicos e os sociais. Cada um em seu campo, mas todos limitados.

Meu segundo filho dormia muito pouco durante o dia, chorava muito mais do que o primeiro. Eu usava sling e dava banhos, mas nada adiantava. Como o comportamento dele era muito diferente do primeiro, não sabia ao certo o que fazer. Meu companheiro estava trabalhando fora da cidade em alguns dias. Então, era comum eu ficar sozinha com os dois meninos em casa ou, em alguns dias, com a ajuda de minha mãe. Eu contava também com a ajuda de amigas que levavam meu filho mais velho para a escola e me traziam comida sempre que podiam. Mas - em 24 horas de meu dia - estava sozinha com um bebê que me demandava. A questão é que os bebês sempre demandam fisicamente. Sempre demandaram.

O ponto de debate social atualmente é sobre a individualização e a sobrecarga desses cuidados na figura da mãe, ou na família nuclear. Esse, sim, é um tema recente em nossa cultura, sobremaneira entre as camadas médias dos grandes centros urbanos. Nas últimas duas décadas, temos assistido ao crescimento do ideário da “criação com apego”4 4 Para mais, sugiro consultar: http://cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/criacao-com-apego-verdades-mentiras-equivocos-e-lendas-urbanas e https://paizinhovirgula.com/criacao-com-apego-aquele-resumo-que-voce-sempre-quis/ . Acesso em: 27 out. 2021. no Brasil. Enquanto filosofia do cuidar infantil, cresceu nos Estados Unidos pelas mãos dos pediatras William e Martha Sears, que enaltecem o attachment parenting, a partir dos 7-Bs: Birth bonding; Breastfeeding; Baby wearing; Bedding close to baby; Belief in the language value of your baby’s cry; Beware of baby trainers; Balance. Mariana Pulhez (2015PULHEZ, Mariana Marques. 2015. Mulheres mamíferas: práticas da maternidade ativa. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas.) tematizou a permeabilidade de tal teoria no Brasil, a partir da discussão sobre as “maternidades mamíferas”, da ideia de apego/afeto e de sua interface com a dicotomia natureza/cultura na antropologia. Segundo suas linhas, essa ideologia atravessa sobretudo as mulheres mães de camadas médias brasileiras, dentre as quais me situo, que se dispõem a praticar cama compartilhada, amamentação livre demanda, a não terceirização dos cuidados dos filhos e uma “parentalidade positiva”. Essa é uma abordagem crítica à prática da puericultura praticada no Brasil desde o século 19, quando os médicos passaram a controlar e a determinar como alimentar e cuidar dos corpos dos bebês e das crianças (Freire Costa, 1989COSTA, Jurandir Freire. 1989. Ordem médica e norma familiar. São Paulo: Editora Graal. ), mas cujos os efeitos com relação às mães contemporâneas começam a despontar em grupos de mães e plataformas feministas que exploram o tema das maternidades5 5 Projeto “Não me chamo mãe”: fala sobre a maternidade também, mas, além dos cuidados diários de um bebê, sobre amamentação, alimentação, criação e educação. “Queremos dar voz às mulheres que (re) nasceram pós-maternidade, a relação delas com essa nova vida, do que gostam e não gostam, dos seus sonhos e angústias, dos seus trabalhos e carreiras, o que amam fazer, ouvir e pra onde querem ir”. Para saber mais sobre a plataforma e seus objetivos, recomendo visitar: https://lunetas.com.br/nao-me-chamo-mae-mulheres-na-batalha-de-ser-mae-x-ser-mulher/. Acesso em: 18 jul. 2021. . Tal sobrecarga materna, entretanto, já havia sido tematizada por Tania Salem (1987SALEM, Tania. 1987. O casal grávido: uma incursão no universo ético. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Museu Nacional. Universidade Federal do Rio de Janeiro. ), na década de 1980, em sua etnografia sobre o “casal igualitário”. Segundo a antropóloga, o projeto de “dois-em-um”, do casal carioca psicologizado e morador da Zona Sul, diante da gestação, do parto e da criação dos filhos, chocou-se rapidamente com o individualismo dumontiano sobre a ideia de pessoa da qual dispunham e de suas premissas sobre a liberdade individual. Segundo suas linhas, na falência prática de tal projeto, a mãe era quem assumia o protagonismo diante dos cuidados com as crianças.

Em que pese o debate aqui travado se concentre marcadamente nas experiências de mulheres de camadas médias como eu, parece-me importante também salientar que a centralidade materna no cuidado com os filhos também se faz presente em leituras de mães das camadas populares. Em muitas políticas públicas de saúde e de assistência social, as mães são tidas como as grandes responsáveis pela manutenção e responsabilidade filial. Entre mulheres periféricas do Recife e do Rio de Janeiro, Alfonsina Faya Robles (2015)FAYA ROBLES, Alfonsina. 2015. “As agentes comunitárias de saúde no Brasil contemporâneo: a “polícia amiga” das mães pobres”. Sex., Salud Soc. (Rio J.) [online] . n.12, pp.92-126. identifica a presença da “polícia amiga” das mães e gestantes na figura dos agentes comunitários, os quais lhes transmitem ideais de maternagem e difundem noções de risco/perigo. Claudia Fonseca (2012FONSECA, Cláudia. 2012. “Tecnologias globais de moralidade materna: as interseções entre ciência e política em programas “alternativos” de educação para a primeira infância”. In: Ciências na Vida: Antropologia da ciência em perspectiva. São Paulo: Editora Terceiro Nome.), de outra parte, descreve como o Programa Bolsa Família também engendra moralidades maternas, caminho também trilhado por Pedro Nascimento e Amanda Lunkes (2019NASCIMENTO, Pedro; LUNKES, Amanda. 2019. “Saúde, cuidado e vínculo familiar: Apontamentos iniciais sobre o Programa Criança Feliz em Rio Tinto/Paraíba, Nordeste do Brasil”. Trabalho apresentado no GT 11 da Reunião de Antropologia do Mercosul de 2019. ) ao etnografarem o cotidiano do Programa Criança Feliz, do governo federal, cujo foco na mãe lhe acresce ainda mais responsabilidades e tarefas a serem com zelo desempenhadas.

Seja entre um grupo de mulheres ou em outros, chama minha atenção o fato de o foco ser sempre o bebê e a criança e quase nunca os sentimentos e o bem-estar maternos. Desta feita, em que as experiências sejam extremamente desiguais e marcadas por diferenças de classe, raça/cor e também conjugalidades, algo de comum parece ser desvelado: a ausência da mãe em si e per si.

Afinal, escreve-se sobre a mãe desviante; aquela que não se sente feliz e disposta a cuidar do bebê prontamente; aquela que foge à regra como uma patologia, já que, nos moldes da “mãe moderna” (Badinter, 1985BADINTER, Elisabeth. 1985. Um Amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.), a mãe deve ser o “anjo consolador”; ou que, em uma leitura neoliberal americana, aquela que se realiza psiquicamente sendo mãe: a que recebe uma “renda psíquica” (Foucault, 2010FOUCAULT, Michel. 2010. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Ed. Graal. ). Escreve-se sobre ela negativamente: no registro da loucura, da depressão e da psicose. Nesse sentido, se uma mulher se sente infeliz, triste, deprimida, exausta, “cansada” (Lustosa e Fleischer, 2018LUSTOSA, Raquel; FLEISCHER, Soraya. 2018. “O que adianta conhecer muita gente e no fim das contas estar sempre só? Desafios de uma maternidade em tempos de Síndrome Congênita de Zika Vírus”. In: Revista Anthropológicas, v. 22, pp. 6-27.); se chora com o bebê nos braços, algo há de errado e é com a mulher. Pois um bebê é necessariamente alvo de alegria.

P. havia nascido há quase 1 mês. Não havíamos ainda superado o marco dos primeiros dias, mas eu precisava sair daquela casa, daquele quarto. Precisava estar no mundo. Precisava de tempo para falar comigo e falar com outras mulheres. Precisava de minutos para me sentir. Sou uma mulher que escreve. A escrita é minha forma de ocupar e provocar, mas também de estetizar o mundo. Eu precisava escrever. Lembro-me de perguntar a algumas amigas por uma plataforma virtual interessante para escrever sobre o puerpério que estava vivendo. Algumas delas me recomendaram lugares que desconhecia completamente, mas eu dispunha das redes sociais mais populares e um desejo imenso de registrar. Eu tinha ânsia de desaguar o que experimentava. Por isso, acabei transbordando em minha timeline, por falta de tempo de procurar um espaço mais interessante e pela facilidade de ali saber que poderia escrever, seria lida e poderia dialogar com outras mulheres. Poderia provocar, confessar e esperar por reações de pessoas com quem pudesse interagir. Diante disso, a escrita - depois de 30 dias de nascido meu filho - passou a ser um veículo para olhar para mim, olhar para os que me circundavam e para as culturas de maternagem operantes em nossa sociedade. Para além da escrita, algumas imagens foram por mim produzidas, em menor escala, mas tão importantes quanto, no sentido de dizerem a experiência, sua narrativa e sua relação com o mundo dentro-fora da casa, dentro-fora do puerpério.

Escrevo este artigo passado um ano e meio de toda experiência e por puro incentivo de uma antropóloga que pesquisa e escreve sobre autoetnografia, percepções e sensorialidades no Brasil e fora dele6 6 Agradeço imensamente a Fabiene Gama por ter me incentivado a pensar as Cartas como autoetnografia, apresentando-me um mundo novo para minhas produções e de possibilidades de interlocução. . Nunca foi minha intenção fazer uma autoetnografia e tampouco a partir de minha experiência de puerpério. Mas, diante de sua provocação, senti-me inclinada a pensar antropologicamente sobre minha experiência, sobre o meu desejo de narrar e sobre a narrativa em si. Com um ano e meio, o bebê já sabe andar, comer sozinho e minimamente se comunicar.

A mãe, por sua vez, começa a adquirir autonomia distante de seu filho. São horas em que poderá reaver-se um pouco consigo mesma: trabalhar, escrever, praticar alguma atividade física, ter tempo de ócio (este quase nunca!). Em meu caso, foi tempo para poder analisar a própria experiência do puerpério, a partir do que escrevi enquanto o vivia. Olhá-lo de modo antropológico, como se as Cartas por mim escritas operassem como um diário de campo, um diário de mim - tudo a um só tempo. Mas pude olhá-las, nessa oportunidade, com uma outra intenção: analiticamente, enquanto narrativa de uma experiência e de forma articulada à teoria antropológica sobre corpo e maternidades. Olhá-las em um outro tempo, depois de ter deixado de escrevê-las. O decorrer do tempo contribuiu para que, em alguma medida, pudesse me distanciar da escrita visceral que me acompanhou durante o puerpério. Sendo assim, atravessada por temporalidades diversas, considero que dois foram os momentos de tessitura deste trabalho: um primeiro momento em que, vivendo o puerpério, escrevia para desaguar, me comunicar e narrar minha experiência à luz do social, criticando-o e provocando-o a ser repensado. E um segundo ocorre, quando passado um tempo, sou provocada a reler essas Cartas e pensá-las como peças, escritos e narrativas a favor da construção de uma etnografia e de mais antropologia (Peirano, 1995PEIRANO, Mariza. 1995. A favor da etnografia. Rio de Janeiro: Dumará Editora Ltda.).

Não sei ao certo quando o puerpério termina (se é que termina!). Esse inclusive é o tema de uma de minhas últimas ‘Cartas’. Eu confesso que não tive tempo e espaço para perceber o seu fim, se é que acabou. Fomos atravessados pela pandemia de COVID-19 no Brasil e tal experiência passou a ser maior do que a que, até então, vivia. Ou ambas se misturaram. A pandemia chegou ao Brasil quando P. recém havia completado 8 meses. Eu ainda escrevia minhas Cartas, com regularidade, quando todo o mundo parecia derreter para além das minhas paredes; quando a minha casa tornou-se literalmente o meu mundo e quando as urgências se intensificaram na criação das crianças, mas também se alteraram radicalmente. Enfim, para a medicina moderna, o puerpério termina ao redor de 40 dias depois do parto, em torno de 6 semanas do nascimento do bebê. Para uma vertente da psicologia do desenvolvimento, se encerraria junto com o fim da “exterogestação” ou com 90 dias depois do parto, quando alguma rotina pode ter se instalado no cotidiano familiar. Em meu caso, isso definitivamente não aconteceu. Não sei quando o puerpério terminou e/ou quando se iniciou a quarentena no mundo em 2020. Talvez o meu segundo puerpério se encerre com a escrita destas páginas ...

Diante disso, metodologicamente, retomei as Cartas de um puerpério que escrevi e publiquei em minha timeline durante quase 1 ano depois que meu filho nasceu. Esse foi um duplo trabalho de interpretação. Enquanto as escrevia, pensava sobre mim e minha experiência a partir do que vivia, mas também a partir de tudo o que li, escrevi e pesquisei em minha trajetória profissional, pois, há mais de uma década, faço antropologia no campo de saúde sexual e reprodutiva, movimentos de mães e sexualidade. Em alguma medida, era a nativa encarnada do que até então havia investigado, e estava definitivamente no lugar “do ponto de vista do nativo”, mas com a teoria antropológica produzida também ocupando o mesmo espaço: meu corpo. Por isso, aqui o exercício será voltar a esses diários - em formato de Cartas para mim e sobre mim - e ponderar sobre autoetnografia e puerpério na contemporaneidade brasileira. Voltarei ao material publicado, analisando-o cronológica e tematicamente, mas também com as próprias Cartas, falando por si e por mim.

Das Cartas de um puerpério

Cartas de um puerpério 01 Parir a casa Eu olho para minha casa e me vem à mente uma X. que não conhecia. Uma X. em outro lugar, no ali. E, ao mesmo tempo, tão distante. Nunca estive tão dentro de mim, tão interna e tão externa da mulher que conheço e a partir de quem me reconheço. Me veem lampejos ... a mobília parece ter outro arranjo, a casa outra cor. Vejo o sofá, mas vejo muito mais do que ele. Me vejo ali, entre uma onda e outra. Me vejo em outro lugar. No meu ... Vejo as janelas e me lembro dos dias que amanheciam e as noites que chegavam de outra forma. Em um outro tempo, enquanto havia uma espera ativa. Vejo as paredes em que me apoiava e é como se elas falassem sobre o que depositei ali. Meus braços, minhas entranhas, meus não-pensamentos. Desejos e medos. A casa me parece em penumbra e é como se todo o vivido ecoasse nos meus ouvidos uma memória constante. Como se vultos passassem diante de meus olhos. Mas vultos de mim, da intensidade e da entrega. Vultos de uma mulher que seguirá comigo para sempre. De uma mulher que já me é ... A casa segue sendo a mesma, mas não mais. é outra e com ela, eu também. é uma casa dupla, assim como a minha consciência ... Agosto, 2019. Seca no Cerrado. (Brasília, 28 de agosto de 2019). Cartas de um puerpério 04 Eu te vi no fundo de uma gaveta vermelha, no criado mudo do meu quarto. Na realidade, duas de vocês rolaram, enquanto deslizei aquele pedaço de madeira esculpido. Metálicas, simples, esguias, com pontas finais e cortantes e um corpo entrelaçado. Vocês que foram postas em meu corpo, enquanto ele atravessava seus próprios limites, sentindo o que nunca havia sentido. Havia sangue, suor e lágrimas talvez. Ondas de calor e de abertura em minha lombar. Meu corpo estava aberto, abrindo-se em uma velocidade que jamais poderia imaginar. Ele (eu) estava quase lá, quando lhes colocaram em meu trapézio. Me recordo de não saber quem ao certo eu era nesse momento. Só sentia e gemia. Mas o meu corpo não as queria. Essa é a verdade. Ele por si só faria o que tinha de fazer. Pois ele sabe fazer e faz ao seu tempo. Nesses dias de puerpério, ao procurar uma fralda ou algodão, abri essa gaveta e lá as vi, te vi ... De pronto me lembrei daquele domingo, daquela manhã e daquele momento, tão especial, em que meu corpo queria somente ser ... As agulhas de acupuntura. (Brasília, 30 de agosto de 2019).

Eu escrevia do celular, enquanto amamentava. Ou do computador, quando P. raramente dormia durante o dia. Algumas das ‘Cartas’ foram escritas à noite, nas madrugadas, quando me despertava para amamentar e não conseguia retomar o sono. Mas sempre foram escritas no calor de minhas emoções, por isso não tinham uma periodicidade rígida. Mas eram frequentes. Poderia escrever duas seguidas ou esperar por mais dias. Assim como as datas e os dias, os assuntos também tornavam-se linhas conforme assolavam meu corpo e minha mente. Em comum não tinham quase nada, a não ser a sequência numérica que as nominava.

Esse desejo genuíno brotou também a partir de minhas reflexões como antropóloga dedicada teoricamente ao mesmo tema: partos e maternidades. Vi-me saturada de sensações, ideias e pensamentos, entre a experiência pessoal e minha trajetória intelectual (Mills, 1965MILLS, Charles W. 1965. A imaginação sociológica. 1.a ed. Rio de Janeiro: Editora Zahar .). Precisava colocá-los para fora, fazer circular, narrar, mas também registrar o vivido. Passei, portanto, a escrever em primeira pessoa, às vezes em prosa, crônica, em tom mais etnográfico ou mesmo em bilhetes pessoais, narrando o que vivia e ainda vivo em minha casa, em meu corpo, em meu tempo e em minhas relações mais próximas, de modo a problematizar ideias sociais e pessoais sobre essa experiências. Diante de todo cenário, pretendo pensar as ‘Cartas’ enquanto veículo auto-investigativo; sobre a sua temporalidade e sobre as relações que se estabeleciam entre o meu corpo, a minha mente e o processo de narrativa diante das telas e de suas linhas.

As primeiras ‘Cartas’ trazem à tona as emoções do parto e a memória física de antes do nascimento e do parto em si. Em alguma medida, denotam a passagem abrupta do corpo que é um e torna-se dois, em uma mudança repentina. A primeira Carta anuncia a intensidade do viver um parto em casa, do quanto a experiência corporal e visceral de um trabalho de parto altera não somente a leitura do corpo daquela mulher, do que ela entende que pode fazer a partir de seu corpo, mas também de como o ambiente doméstico se vê depois dessa experiência redesenhado, como aponta a etnografia de Heloisa Souza (2004SOUZA, Heloisa. 2004. A arte de nascer em casa: a arte, a estética e a ética no parto domiciliar contemporâneo. Dissertação de mestrado. Programa de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina. ) sobre a estética e o nascer em casa, em Florianópolis, a partir da antropologia da performance. Aborda também experiências de morte-vida trabalhadas por George Bataille ao nos remeter à sua ideia de “experiência interior” e à noção de partolândia, enquanto estado alterado de consciência que mescla o sagrado e o profano durante o parto por mim analisados (Carneiro, 2015CARNEIRO, Rosamaria Giatti. 2015. Cenas de parto e políticas do corpo. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. ). Essas primeiras Cartas retomam a dor do trabalho de parto; o flerte com a morte; e a espera longa que, naquele momento, com o bebê nos braços, não fazia mais tanto sentido. Elas também questionam ditames médicos hegemônicos sobre o corpo e o parto.

Aos poucos tomei distância do parto e me aproximei daquele momento presente, do resguardo e do que ele abriga, em termos de presença e de sangue. O sangue da ferida da placenta começava a rarear, a cicatriz a se desenhar e assim acontecia um fechamento simbólico de um ciclo. Exploro a potencialidade da placenta, órgão do qual pouco se fala e que parece quase descartável; do puerpério como possibilidade de abertura para a reflexão sobre si e sobre a potencialidade do corpo feminino de gerar, fazer nascer, dequitar e parar de sangrar.

Cartas de um puerpério 06 De onde vem o sangue? Sangramos e sangramos. Ele brota de uma ferida, da separação do órgão mais amoroso que pode existir nesse mundo, que nutre e acolhe, que conecta mãe e filho. Sim, a placenta. Esse pedaço de carne tão potente, tão único e ambivalente. Que conecta, nutre, separa, isola, protege, faz respirar e que depois vem junto. A placenta também nasce. E, ao nascer, se separa de um corpo que chora essa separação. Separa-se do útero que a viu crescer e ficar forte. São várias camadas. Várias camadas de maternidade. O corpo-útero materna a placenta, que materna o bebê e que depois materna a todos. Ao se separarem, fica uma ferida de amor. Uma ferida que sangra, que chora. Aos poucos, devagarinho. Sentindo e vivendo o que é preciso. Não ao acaso, na tal da quarentena, resguardo e pós-parto. Esse sangue deixa o corpo para compor o mundo, que um dia o maternou e o materna. O sangue funciona então como a linha que costura todas essas existências. Mas que privilégio sangrar! Chorar pelas entranhas. Sangue, sangue meu ... te agradeço pelos caminhos percorridos, pelas vidas geradas e pela possibilidade de ciclar. Sou só amor por ser mulher, ser corpo, ser mãe e ter gerado duas placentas, duas vidas e ter depois me alimentado de ambas delas. Ó sangue meu, quanta sabedoria carrega o sangrar. Despeço-me de ti prenha de muito mais de mim. (Brasília, agosto de 2019). Cartas de um puerpério 10 A invasão silenciosa (ou não) de nossos corpos O puerpério é uma fase de recolhimento, em que nossos corpos não devem ser muito tocados, manuseados. Ao contrário da gestação e do parto, a depender de quem nos assista. No puerpério sangramos, amamentamos, escorremos leite, lágrimas e suor. O movimento é de dentro para fora. Somos menos invadidas. Penso eu. Há um quê de deixe estar. Mas, de repente, sem nem mesmo imaginarmos, quando ainda achamos que esse momento não acabou. O tal resguardo. Nossos corpos começam de novo a ser invadidos ... Por espéculos, ultrassonografias, Papanicolau (quem foi afinal essa pessoa?), seringas e dosagens. Puerpério é descanso, presença, contato com o bebê, ensimesmamento. Pois cada vez mais me convenço ... cada corpo é um corpo. Não nos deixemos invadir, saibamos do nosso corpo. Conheçamos nossa pele, entranhas e dores. Vivamos a quarentena com vagar, a vagar com nosso tempo. (Brasília, 20 de setembro de 2019).

Na mesma linha de reflexões, setembro me invade e, junto com ele, um novo movimento se inicia: de ida ao mundo e de crítica a como se vê socialmente tanto esse momento quanto nossos corpos. A partir dessa saída para o mundo, ou início dela, as relações com os outros, para além da estabelecida com o bebê, também começam a tomar contornos e a ganhar novamente destaque, ainda que sejam pelo conflito. Foi nessa toada que me vi criticando o olhar biomédico a respeito de meu corpo, que então deveria passar por mais uma consulta médica que me vasculharia, duvidando de minha força, mesmo tendo gestado, parido e que estivesse a aleitar uma outra pessoa. Mas me vi igualmente às voltas com outros lutos, com o reacomodar de relações amorosas e familiares, com novos lugares que passaram a ser ocupados por mim, como mãe de dois e como mãe de um filho mais velho, de quem sentia saudade, dada a intensidade da demanda com o bebê, que também esperava e ansiava pela mãe.

Cartas de um puerpério 08 Filhos e humores Uma coisa que pouco nos contam é o que acontece quando o filho torna-se o filho mais velho. Mas que confusão de sentimentos. O menino perde espaço, território e atenção. A mãe sente loucamente saudade do filho mais velho. De ter tempo só para ele. Ele sente falta da mãe. Mas, ao mesmo tempo, o amor aumenta na casa. Aquele bebê delicioso se faz apaixonado pela mãe, pelo pai e pelo filho mais velho. Junto com o amor, vem o ciúme, a saudade, a solidão. Nem sempre a mãe consegue dar conta de atender o mais velho, que inevitavelmente é posto em espera. Já vou, filho. Deixa só eu trocar essa fralda. Deixa só eu pegar o seu irmão. Ele está chorando ... Ultimamente tenho pensado em como isso chega nele. Por vezes, o vejo baixando a cabecinha e resmungando algo. Me corta o coração. Mas entendo (racionalmente) que talvez esse seja o primeiro corte de uma vida. Corte que representa a outridade, a espera, o respeito e não ser o umbigo do mundo. Qualidades que considero bem importantes em uma pessoa. E que portanto desejo para um filho vida adiante. Mas nem sempre é fácil, nem sempre são flores. Tem raiva, tem desafio do filho mais velho para com a mãe. Tem muito choro. Muita conversa. Muito abraço. Um abraço bem forte e apertado depois de uma crise de choro intensa, do nada - que precisa SIM ser compreendida como manifestação de todos esses sentimentos que invadem a família que cresceu. Hoje mais cedo li que cada puerpério é um puerpério. Será que a cada filho mais velho que nasce, também tudo se torna singular? Penso que sim. Só se acumulam as camadas de “mais velho” e de sentimentos a serem acomodados no puérperio. Por hoje, meu amor, tenho saudade de ti, só da gente juntinho. Mas estou cá, ampliada e aberta, para o choro, a raiva, o desejo de querer ser bebê e de amar a todos nós de maneira multiplicada. ps.: entendedoras entenderão a que me refiro ... (Brasília, 13 de setembro de 2019).

Os conflitos também passam a despontar ao redor de minha identidade. Dessa mulher nascida depois do ritual de passagem que é um parto, como bem pontua Van Gennep (2011GENNEP, Arnold Van. 2011. Os ritos de passagem. 2. ed., Trad. Mariano Ferreira. Petrópolis: Vozes. ). Ser mãe e ser mulher, papéis distintos, mas tão confusos em tempos de resguardo. Em uma de minhas Cartas, dialogo com uma mala de roupas que não me servia mais durante a gestação, por conta da barriga imensa que fiz, mas para qual tinha receio de voltar, por não saber mais quanto de mim ainda era aquela mulher. A mulher de antes. Recordo-me quanto medo e desejo sentia, ao me ver diante da sobreposição de tarefas que as mulheres mães e profissionais carregam ultimamente.

Cartas de um puerpério 09 Tem dias que dói ... Conforme minha barriga crescia, decidi guardar em uma mala vermelha as roupas que não me serviam. Uma mala grande. Aos poucos ela foi ficando cheia. Mas sabia que seria temporário. Pois um dia o bebê nasceria, a barriga partiria e as roupas que antes me serviam voltariam ao meu dia a dia. Nela estão as minhas roupas de uma mãe mais independente, que já não amamentava mais, e de uma mulher que aos poucos reencontrou a si mesma em seus muitos papéis sociais. Mãe, profissional, pesquisadora, amiga, companheira, amante etc. São tantos... Estou cá às voltas com o abrir essa mala e começar a guardar as roupas de grávida. Mas por que tem sido tão difícil? Por que tenho procrastinado esse reencontro? Que mal pode existir na mala vermelha? Nela existe um pouco de mim que já não existe mais. Não sou mais aquela e tampouco tão livre. O cotidiano de cuidados intensos com um bebê nos pede muito de nós. É natural, é visceral. Não tem escapatória, por mais autocuidado que tenhamos. Que mulher sou eu ou é essa que nasce junto com um bebê? Um mãe, mas uma mulher que foi um pouco ontem, é hoje, mas também quer ser amanhã. Tudo junto e misturado. Por tudo isso, tem dias que dói. Dói o não vivido. O vivido que não volta mais. Não saber ao certo quem se é no aqui e agora. Tem dias que dói e quem nos cerca não tem como acompanhar. Tem dias que dói. Para depois renascer. Esperamos nós, mulheres ... Será um sinal de nossos tempos e de uma suposta independência alimentada? Ou um sintoma-sentimento que muitas de nós alimentaram e alimentam em um silêncio social? Só sei que na mala vermelha tem muito de nós. Mas que esse momento pode ser sim um momento de reinvenção. É preciso coragem para abri-la, olhá-la e olhar-se. Para recriar-se ... (Brasília, 15 de setembro de 2019).

Foram 28 Cartas de um puerpério ao longo de quase 12 meses; que, depois, se tornaram raras Cartas de uma mãe em quarentena a partir de março de 2020. Em grandes linhas, as Cartas versaram sobre aspectos fisiológicos e emocionais gerados pela chegada do bebê e pela separação de corpos; mas que, pouco a pouco, passaram a pautar o tempo/espaço do puerpério, que é uma fase de resguardo, em que pouco se vê pessoas e em que muitos são os cuidados com o outro, ao mesmo tempo em que novas relações sociais são estabelecidas: com os outros filhos, com o parceiro/a, consigo mesma e perante o mundo. Ou, então, a partir das quais, em suas múltiplas fricções, as mulheres puérperas precisam se redefinir diante do mundo. Penso que esse movimento é cíclico e que as Cartas passam a oscilar entre o tempo para si, o cotidiano de trabalho, a urgência do autocuidado, sobre criação de filhos, redes de solidariedade entre mulheres, privilégios, sono materno e corpo de mãe até chegarem em uma pandemia, que, primeiro, me fez ter vergonha de escrever, mas que, depois, me instigara ainda mais a refletir, escrever e publicar sobre o trabalho com a vida, reprodutivo e doméstico.

Cartas de um puerpério 22 Hoje à tarde estava só com meus meninos no parquinho de nosso bairro. Um no colo e outro brincando na gangorra. Eram muitas crianças. Balanço, Escorrega, Escadas e Trepa-trepa. De repente, olhei de relance e vi/senti meu maior chorando. Ao vê-lo, escutei: Mamãeeeee, Mamãeeee ... Sai correndo com o mais novo nos braços. Me ajoelhei perto dele e o abracei. Ele havia se machucado na gangorra. Uma mulher apareceu ao meu lado. Quer que segure o pequeno para você acalentá-lo? Fiquei abraçada com os dois, achando que daria conta. Mas então vi que a perna estava realmente machucada. Com pequenos cortes e já roxeada. Se até então não havia passado o pequeno para aqueles outros braços, naquele momento ... olhei para a mulher. Você pode segurá-lo? E, então, abracei meu mais velho bem forte, respiramos juntos e ficamos coladinhos até sentarmos em um banco do parquinho. Ele aos poucos parou de chorar e assim retomei o mais novo nos braços. Quanto nós, puérperas, aceitamos de ajuda? Quanto achamos que daremos conta de tudo sozinhas? Como reconhecemos nossos limites? Foram muitas as sacadas. Com dois filhos, não dá para segurar a onda sozinha. Temos somente dois braços. As mulheres podem sim ajudar umas as outras e é muito bonito. Nossos filhos realmente são do mundo. Mas não estamos sozinhas. No final, de um modo muito louco, acaba ficando tudo mais leve. (João Pessoa, 13 de janeiro de 2020). Cartas de um puerpério 25 Mães e morcegos Me sinto como uma morcega neste exato momento. Quando eles dormem, a caverna escurece e saímos para trabalhar, cuidar de nós mesmas, namorar, comer e respirar, tudo ao mesmo tempo. Para nos escutarmos. Pena (ou não, sobrevivência!) que nossos olhos nos traem e logo o escuro nos convida à cama. Afinal, logo mais estaremos de pé e a caverna terá sido um momento. Um momento mágico. Saudade de nós, de um pedaço nosso. Mas somos tantos pedaços, não? (João Pessoa, 4 de fevereiro de 2020).

Do puerpério: fazer antropologia a partir de si e do contemporâneo

Para Raimondi (2019RAIMONDI, Gustavo Antonio. 2019. Corpos que (não) importam na prática médica: uma autoetnografia performática sobre o corpo gay na escola médica. Campinas, SP : [s.n.]. Tese de doutorado. Faculdade de Medicina. Departamento de Saúde Coletiva. Universidade Estadual de Campinas. ), a autoetnografia é uma “escrevivência”, na qual o corpo do pesquisador está envolvido. O conceito de “escrivivência”, no entanto, é de autoria da escritora brasileira negra Conceição Evaristo. Enquanto ideia, aparece pela primeira vez em “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita” (2007). Em suas linhas, Evaristo nos conta que sua mãe, com um toco de madeira, riscava o chão batido de onde viviam, com todo o seu corpo, ao fazer o desenho de um sol, que precisava sair para que as roupas que havia lavado secassem e, assim, não se perdesse um dia de trabalho. Sua casa estava cheia de roupas das patroas que precisavam secar e, por essa razão, sua mãe recorria ao desenho-grafia que era também uma simpatia. Aos olhos de Evaristo, ainda criança, aquela era uma escrita corporal, todo o corpo de sua mãe se envolvia naquele ato, cochas, bacia, pernas, singularizando-o a partir de seu cotidiano. Sua mãe escrevia no papel-chão. Ao se recordar desse momento, Evaristo parece alinhavar a ideia de “escriviência”, a partir de duas importantes perguntas que aparecem no texto: “é preciso comprometer a vida com a escrita ou é o inverso? Comprometer a escrita com a vida?”7 7 Esse texto de Conceição Evaristo foi publicado no seguinte endereço virtual: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-dos-lugares-de-nascimento-de-minha-escrita/. Acesso em: 15 out. 2021. Em seguida, em: Representações Performáticas Brasileiras: teórias, práticas e suas interfaces. Marcos Antônio Alexandre (org.). Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p 16-21. (Evaristo, 2007EVARISTO, Conceição. 2007. “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita”. In: Alexandre, Marcos A. (org.) Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, pp. 16-21. ).

Enquanto escrevia as Cartas, posso dizer que vivia corporal e emocionalmente o puerpério, de modo a refletir ali visceralmente sobre minha experiência e sua relação com o mundo. Desafiava, em alguma medida, o silêncio social sobre o puerpério e sobre a vida das mulheres nesse momento. Havia assim dois movimentos: um pessoal, de auto-reflexão, mas também um político, social e comunitário. Em alguma medida, fazia uma grafia de mim, mas também de nossa cultura em seus ocos e ecos. Por meio da escrita do self, tematizava as relações de poder e escrevia sobre a cultura, ainda que circunscrita às experiências de algumas mulheres, iguais ou próximas a mim. Por isso, segundo Raimondi:

… a autoetnografia não é uma prática solitária e egoísta, mas relacional, visto que problematiza as representações da cultura ao localizar a experiência individual em diálogo, em tensão, com expressões de dominação, de poder hegemônico. Por isso, ela evoca a natureza corporal, sensorial e política da experiência, ao propor uma teoria e um método de pesquisa que conecte a política, a pedagogia e a ética em ação no mundo. Movendo-se do pessoal para o político, explicita-se que as emoções são importantes para a teorização e o entendimento das relações do self, do poder e da cultura. Sendo que estes elementos postulam o desafio do movimento e do ato de equilíbrio, não estático, entre eles ao longo do processo de reflexão e escrita, promovendo um pensar e repensar de nossas posições e compromissos. (2019; p.72).

Ao mesmo tempo, o autor salienta que a autoetnografia, quando e enquanto é lida, opera como um convite para o outro afetar-se, pensar sobre si mesmo. Estou convencida de que tinha esse desejo ao escrever Cartas, que pressupõem também um envio a outrem, um diálogo e uma resposta. Não ao caso receberam o nome de Cartas, que sempre evocam uma partilha, uma díade: entre o remetente e o destinatário. Ou, no mínimo, a leitura de alguém. Era assim um quê de escrita confessional, mas também dialógica. Foucault (1985FOUCAULT, Michel. 1985. História da Sexualidade 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Ed. Graal.), no que alguns chamam de sua última fase, reflete sobre o “cuidado de si” e as “técnicas de si”, entre os gregos e os romanos, quando o cuidado consigo consistia em uma ética que derivava da própria “estetização da existência”. Nessa fase, o cuidado consigo era articulado ao cuidado com o mundo; cuidar de si era atravessado pelo cuidar dos outros. Para isso, os antigos recorriam a muitas técnicas de si, como meditação, cuidados com o corpo e, a que mais me interessa neste momento, tinham na escrita uma ferramenta de cuidado de si. Escrevia-se sobre si e sobre o cotidiano como modo de se refletir sobre o mundo.

Penso que a autoetnografia guarda semelhanças com esse processo de escrita, em que pese seja notadamente contemporânea. Em meu caso, as Cartas nutriam também esse aspecto de refletir sobre minha existência, mas pensando no meu entorno e em nossa cultura. Segundo Foucault, a escrita de si e o cuidado de si, de maneira geral, tornaram-se confessionais e ditados externamente com o advento do “poder pastoral” e de uma moral cristã, perdendo assim a sua característica ética e auto-reflexiva. Com o advento da modernidade, no entanto, o cuidado de si retorna ao centro, sobretudo a partir do racionalismo, do individualismo e do cartesianismo; mas não mais lastreado pela coletividade, como o filósofo percebia na antiguidade clássica.

Diante dessa breve recuperação de suas ideias, não quero aqui sustentar que a autoetnografia consista em uma escrita de si à moda dos antigos, mas sugerir que a sua reflexão sobre o self, uma vez lastreada pela descrição do etno, pode, sim, envolver, de maneira singular, essas duas esferas da vida social, consistindo talvez em uma outra modalidade de escrita de si contemporânea. Como bem pontua Gama (2020GAMA, Fabiene. 2020. “A autoetnografia como método criativo: experimentações com a esclerose múltipla”. Anuário Antropológico. v. 45, n. 2, pp. 188-208 (maio-agosto/2020), Universidade de Brasília.), ainda que não exista um conceito definido de autoetnografia, ainda que seja muito mais um campo de estudos, parte-se da premissa de que “não se escreve sobre dados, mas sobre experiências, o que faz com que não tenhamos uma preocupação em concluir ou chegar a algum lugar” (p.191). De minha parte, as Cartas comungam com todas essas premissas, sempre procurei muito mais abrir e provocar do que fechar qualquer conclusão sobre o puerpério. Na realidade, o meu objetivo maior era trabalhar com/a partir de minhas emoções e romper com o silenciamento e a patologização social sobre o puerpério.

Para Motta e Barros (2015MOTTA, Pedro M. R; BARROS, Nelson F. 2015. Resenha. Cadernos de Saúde Pública , v. 31, pp. 1339-1340., p.1339), uma autoetnografia adquire contornos quando, em suas linhas, nos vemos diante: da visibilidade para si ou da reflexividade; de engajamentos políticos; das vulnerabilidades de quem escreve; e da rejeição às conclusões. Ao voltar às minhas Cartas, mas também enquanto as escrevia, reconheço todas essas características. Por isso, inclusive, aceitei o convite e a provocação de pensá-las como uma autoetnografia. Essa confiança também decorrera, no entanto, de O artesanato intelectual, do sociólogo Mills (1965MILLS, Charles W. 1965. A imaginação sociológica. 1.a ed. Rio de Janeiro: Editora Zahar .); escrito em que nos recomenda arduamente a somatória da vida profissional à vida pessoal. São páginas em que, na verdade, frisa-se ser impossível dissociar uma esfera da outra, tanto no que tange ao que escolhemos pesquisar como no que tange a como desenvolvemos nossos trabalhos.

Suely Kofes, renomada estudiosa das vidas e de suas grafias, ao trabalhar com estórias de vida de empregadas domésticas e patroas em sua tese de doutorado, assevera que as estórias de vida, aqui tomadas propositadamente de modo diferente de histórias de vida, devem ser tomadas analiticamente a partir de três dimensões: “como fontes de informação (falam de uma experiência que ultrapassa o sujeito que relata); como evocação (transmitem a dimensão subjetiva e interpretativa do sujeito); e como reflexão (contêm uma análise sobre a experiência vivida)” (2007, p. 120KOFES, Suely. 2007. “Experiências sociais, interpretações individuais: Histórias de vida, suas possibilidades e limites”. Cadernos Pagu , Campinas, SP, n. 3, pp. 117-141.). Para ela, o próprio entrevistado articula evocação à reflexão. Considerando que uma autoetnografia parte de textos pessoais, mas que são também uma narrativa, uma estória de parte de uma vida, nela se vê também a evocação e a reflexão. Nesse caso, sobre os acontecimentos, mas também a partir de sua bagagem antropológica, da teoria que o acompanha na vida vivida e que constitui o seu modo de ver o mundo.

Em meu caso, ao voltar às Cartas, vi-me tomando-as como evocação e reflexão, algo possível somente por conta do tempo decorrido e de certo distanciamento do momento da expressão. Nesse caso, trabalhei a partir de minha estória de vida, de um trecho seu, por isso, não uma autobiografia, que toma a vida como um todo e sem alinhavar necessariamente a reflexão do individual ao cultural, ponto singular de uma autoetnografia. Segundo Kofes e Piscitelli (2001KOFES, Suely.; PISCITELLI, Adriana. 2001. “Memórias de histórias femininas, memórias e experiências”. Cadernos Pagu , Campinas, SP, n. 8/9, pp. 343-354. ), as narrativas seriam experiências que, enquanto tais, envolvem ação e reflexão por parte de quem narra, nunca deixando de ponderar sobre o meio que as fabricam.

Daniela Versiani (2013VERSIANI, Daniela B. 2013. “Autoetnografia: uma alternativa conceitual”. In: Letras De Hoje, 37(4).) sustenta que as autobiografias deixaram de se desenvolver necessariamente por meio de histórias lineares, de sujeitos metafísicos e individuais. Sofreram críticas, como o que se percebe nos escritos de Julia Watson, no sentido de que são também atravessadas pela alteridade, pela figura do outro. Para a autora, um processo semelhante também aconteceu com a teoria sobre a escrita da etnografia, sobretudo, a partir dos anos de 1980, e por pressão da antropologia pós-moderna americana. A escrita etnográfica também foi criticada em seu modelo clássico, distante e monográfico, de modo a envolver a subjetividade dos etnógrafos em todo o processo. Desse ponto, em sua compreensão, passaram ambos os modos de escrita pela mesma crítica, a da alteridade. Dessa semelhança, teria despontado a autoetnografia, com um outro gênero de escrita, cujo foco é a compreensão processual e dialógica da construção da pessoa a partir do social e do que lhe informa.

Suely Kofes e Daniela Manica, em Vidas e Grafias (2015MANICA, Daniela; KOFES, Suely. 2015. Vida e grafias: narrativas antropológicas, entre biografia e etnografia. Lamparina.), empreendem o debate sobre o lugar das biografias e autobiografias na antropologia e para a etnografia. Segundo seu argumento, o conceito de experiência é fundamental para entendermos tal relação, haja vista ser a narrativa da experiência a dimensão social e estrutural da experiência vivida. É nessa articulação, inclusive, que a antropóloga percebe a diferença entre a autobiografia e a etnografia, ao comentar que:

A expressão da experiência conteria relações, conexões, movimentos da vida, experiência social e reflexão dos próprios sujeitos, conteria a expressão da experiência que não prescinde da sua expressão narrativa. A estrutura da experiência conectaria a experiência vivida e os sentidos dados e criados pelos sujeitos. De certa maneira, com Turner, escapamos tanto da crítica de Joan Scott (1999) ao conceito de experiência de Thompson (1978) como da crítica do próprio Thompson (1978), sem descartar a noção de experiência. (p.36).

Dessa maneira, fazer antropologia a partir de meu puerpério parece-me possível e importante, ainda que me seja tão desafiador. Voltar às Cartas e tomá-las como uma narrativa da experiência costura-me às relações e às concepções sobre puerpério e torna, assim, a minha própria narrativa também, nos moldes de Kofes e Manica (2015MANICA, Daniela; KOFES, Suely. 2015. Vida e grafias: narrativas antropológicas, entre biografia e etnografia. Lamparina.), estrutura e agência, a um só tempo. Desta feita, a biografia e a autobiografia são demasiadamente próximas da etnografia e, portanto, também do campo (ainda sem ser conceito!) da autoetnografia.

Se o pós-parto é pouco estudado e descrito nas ciências da saúde, nas ciências sociais, menos ainda. Contamos com etnografias produzidas em sociedades indígenas que abordam o pós-parto, suas rotinas e tabus quando toda a temática do nascimento é discutida. Mas, em contextos urbanos, raras são tais investidas. Quase inexistentes. Nesse universo, é possível encontrar duas importantes e recentes contribuições ao debate sobre o puerpério na antropologia brasileira, a de Silva (2016SILVA, Martha Militão. 2016. Significados da maternidade: um olhar antropológico sobre a experiência do pós-parto. Dissertação de mestrado. Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo.) e a de Cronemberg e Franch (2020CRONEMBERG, Lorena; FRANCH, Monica. 2020. Ser mãe é padecer no paraíso? Narrativas de depressão pós-parto. 1ed. João Pessoa: Editora UFPB.). Em ambos os textos nos deparamos com relatos de solidão e de cansaço, com o “que ninguém conta para gente”, pois constata-se que pouco ou quase nada se diz sobre o pós-parto. Em ambas as etnografias, foram acompanhadas mulheres de camadas médias, em São Paulo, Recife e João Pessoa, respectivamente. As autoras estiveram pelos grupos virtuais que abordam o pós-parto e os problemas com a amamentação do bebê, entre outros assuntos. Como bem pontuam ambas, mesmo no interior da antropologia, pouco ou quase nada se produziu sobre esse momento especificamente.

A sensação de solidão experimentada durante o pós-parto foi um tema que também se mostrou relevante na vivência das mulheres pesquisadas. Essa sensação é, em parte, decorrente da ideologia individualista moderna que acentua a percepção de que não há mais um sentido coletivo na vivência da maternidade, uma vez que a tarefa de elaboração da experiência é apresentada como uma incumbência de ordem individual. Outro fator que contribuiria para essa sensação seria a expectativa social em relação às emoções esperadas/atribuídas ao puerpério. Sentir-se triste e angustiada em um momento em que se ‘deve’ estar feliz gera um conflito subjetivo que faz com que as mulheres se sintam ainda mais solitárias.

O modelo da família, composto pelo casal e pelos filhos, com pouco contato diário com outros membros da família, também contribui para a experiência da maternidade ser mais isolada e menos compartilhada presencialmente. A responsabilidade pelas crianças é de exclusividade dos pais, que delegam à escola de tempo integral o cuidado dos filhos durante os dias de semana. (Silva, 2016SILVA, Martha Militão. 2016. Significados da maternidade: um olhar antropológico sobre a experiência do pós-parto. Dissertação de mestrado. Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo., p.16).

Entre as mulheres de camadas médias adeptas de uma ideário do “parto mais natural” e da “teoria da criação com apego”, com as quais convivi durante minha pesquisa de doutoramento (Carneiro, 2015CARNEIRO, Rosamaria Giatti. 2015. Cenas de parto e políticas do corpo. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. ), vigora um adágio popular que diz mais ou menos assim: “é preciso uma tribo inteira para cuidar das crianças”. No entanto, o que se vê atualmente, nos contextos urbanos de camadas médias, assim como pontuado acima, são famílias nucleares responsáveis pelos cuidados com as crianças, pais e mães que se dividem entre trabalho, vida profissional, casa e cuidado com os filhos. Por vezes, contam com ajuda das avós, pagam babás e escolas para terem tempo além desses cuidados, mas é constante (e, também, justamente por isso) a queixa da sobrecarga, da sobreposição do trabalho produtivo e reprodutivo em uma só pessoa: geralmente as mães. O puerpério, em que toda essa linha de cuidados se inicia, não é diferente. Falta a tribo, falta o coletivo e a partilha das tarefas, sobretudo, entre as mulheres que dizem assumir uma “maternidade ativa”, ancorada nessa noção de apego. Talvez, justamente por isso, para uma das informantes de Silva (2016SILVA, Martha Militão. 2016. Significados da maternidade: um olhar antropológico sobre a experiência do pós-parto. Dissertação de mestrado. Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo., p. 100), “o puerpério só acaba quando a mulher se coloca em primeiro plano novamente”.

Para Cronemberg e Franch (2020CRONEMBERG, Lorena; FRANCH, Monica. 2020. Ser mãe é padecer no paraíso? Narrativas de depressão pós-parto. 1ed. João Pessoa: Editora UFPB.), que ouviram mulheres sobre depressão pós-parto, muito dessas emoções se deve a um “dispositivo da maternidade”, que prescreve atualmente modos de comportamento de como maternar, das maneiras mais expressas às mais sutis que se poderia imaginar, tornando-o uma prática normativa e de poder. Esse dispositivo desencadeia, na leitura das autoras, um “projeto de maternidade”, muitas vezes idílico e irreal, que contribuiu para “perturbações físico-morais” (Duarte, 1986) entre as mulheres que se tornaram mães e que rapidamente foram capturadas pela medicalização da vida. Por isso, para elas, a leitura antropológica representa um diferencial: uma leitura social e não medicalizada das experiências femininas de puerpério.

Partindo dessa leitura, reforço a importância de uma autoetnografia sobre puerpério, que mais mulheres sejam escutadas e digam de suas experiências, denunciando a perversidade de projetos de maternidade impossíveis e, por vezes, extremamente violentos. De minha parte, ao escrever sobre o que vivia, procurava também fazer vazar tais impressões e contribuir para o descortinamento de tais impressões. Espero que mais Cartas sejam escritas, mais narrativas sejam produzidas, mais mulheres sejam entrevistadas e que, assim, conheçamos mais sobre essa fase liminar, ritualística e muito potente.

Para nada concluir

Cartas de um puerpério em quarentena Tenho resistido a vir aqui escrever. Por mil razões. Me sinto muito privilegiada, isso me incomoda muito. Quase chego a ter vergonha de escrever algo. São muitas as informações. Um bombardeio e fico muito perdida. Realmente não sei como as pessoas conseguem opinar, filtrar, ponderar nesse momento, no calor dessa hora. Porque sinto medo, muito medo, quase todos os dias. Porque me falta tempo. Se já faltava antes, agora não tenho nenhum. Nenhum. Estrangeira em um novo estado, com bebê pequeno e agora em uma pandemia. Enfim, por tudo isso, não tenho desejado escrever. Ao menos não a partir de meu universo mais pessoal, o que tenho feito nos últimos anos de minha vida. Poderia então escrever “profissionalmente”, “cientificamente”. Mas acontece que não sei e não quero fazer isso, sem alinhavar com o que vivo, sinto e penso. Não faria sentido para mim. Não me sentiria cômoda. Como estou toda incômoda, talvez por isso não consiga. Mas, de todo modo ... gostaria de ponderar sobre o nosso novo universo doméstico de cada dia. Novo? Não sei. Mas repaginado, com certeza. Vemos dicas e tutoriais de aulas, ioga, meditação, brincadeiras divertidas, dança, filmes liberados, livros liberados. Quantas famílias têm conseguido viver isso? Se você está sozinho. Talvez. Me atrevo a pensar então que algo diferente nos acomete quanto à vivência familiar. Como as famílias e as mães têm vivido tudo isso? O excesso de teoria de como criar nossos filhos, o que comer para imunidade, que brincadeiras propor, como acolher o seu choro etc. ... certamente renderão para a mães marcas não tão suaves futuramente. Sinto medo. Muito medo. Está tudo bem SENTIR MEDO. Famílias juntas, sim e necessariamente, o que podemos nos mostrar quanto à conjugalidade, às relações de gênero, ao afeto, à intimidade? E a quarentena, o que nos contará sobre a saúde das mães que precisam cozinhar, cuidar, limpar e trabalhar, tudo junto com a vivência do medo que têm sentido? Estou exausta. Não exausta da lida da casa. Mas daquilo que não consigo fazer. Que perdi. Da positividade que não alcancei, do bumbum duro, de ter que suar, dar mamá e ainda estar minimamente bem, confiante. Trabalhar. Publicar e pesquisar como nunca. De não poder sentir medo. A casa não é refúgio, mas retrato de cobranças e da falta de tempo. Lugar também do medo. Não tenho conseguido fazer nada disso. (João Pessoa, abril de 2020 - 1 mês de pandemia de COVID-19 no Brasil).

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  • VERSIANI, Daniela B. 2013. “Autoetnografia: uma alternativa conceitual”. In: Letras De Hoje, 37(4).
  • 1
    O presente artigo apresenta minhas Cartas de um Puerpério, as quais recorrem a uma linguagem e estrutura poética a fim de demonstrar minha corporalidade e subjetividade no puerpério, estão apresentadas no corpo do texto.
  • 2
    Coletivo Matriz é um grupo de artistas da cidade de Brasília que pauta o cotidiano da maternidade por meio da arte. O coletivo nasceu de uma residência de arte oferecida para artistas mães por Clarice Gonçalves, artista plástica brasiliense, com apoio de um Edital do Fundo de Apoio a Cultura do Distrito Federal. Para mais, consultar o Instagram: https://www.instagram.com/coletivomatriz/. Acesso em: 15 out. 2021.
  • 3
    Para mais, consultar a plataforma virtual: https://www.facebook.com/temosquefalarsobreisso/ . Acesso em: 27 out. 2021.Temos Que Falar Sobre Isso é uma plataforma de relatos anônimos de mães que passaram pelas mais diversas situações: depressão pós parto, transtornos ligados à saúde mental na maternidade e no período perinatal (desde a concepção até o primeiro ano do bebê), dificuldades durante a gravidez, sofrimento psíquico intenso, problemas com amamentação, perda gestacional e neonatal, partos traumáticos, prematuridade extrema, gravidez de alto risco, processo de adoção, violência obstétrica, entre outros. (...). Vamos começar já pois Temos Que Falar Sobre Isso!.Acesso em: 21 jan. 2021. À época, contava com 110 mil mulheres no grupo.
  • 4
    Para mais, sugiro consultar: http://cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/criacao-com-apego-verdades-mentiras-equivocos-e-lendas-urbanas e https://paizinhovirgula.com/criacao-com-apego-aquele-resumo-que-voce-sempre-quis/ . Acesso em: 27 out. 2021.
  • 5
    Projeto “Não me chamo mãe”: fala sobre a maternidade também, mas, além dos cuidados diários de um bebê, sobre amamentação, alimentação, criação e educação. “Queremos dar voz às mulheres que (re) nasceram pós-maternidade, a relação delas com essa nova vida, do que gostam e não gostam, dos seus sonhos e angústias, dos seus trabalhos e carreiras, o que amam fazer, ouvir e pra onde querem ir”. Para saber mais sobre a plataforma e seus objetivos, recomendo visitar: https://lunetas.com.br/nao-me-chamo-mae-mulheres-na-batalha-de-ser-mae-x-ser-mulher/. Acesso em: 18 jul. 2021.
  • 6
    Agradeço imensamente a Fabiene Gama por ter me incentivado a pensar as Cartas como autoetnografia, apresentando-me um mundo novo para minhas produções e de possibilidades de interlocução.
  • 7
    Esse texto de Conceição Evaristo foi publicado no seguinte endereço virtual: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-dos-lugares-de-nascimento-de-minha-escrita/. Acesso em: 15 out. 2021. Em seguida, em: Representações Performáticas Brasileiras: teórias, práticas e suas interfaces. Marcos Antônio Alexandre (org.). Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p 16-21.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2021
  • Aceito
    23 Jun 2021
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