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Homens nas fronteiras das prisões femininas: um estudo etnográfico em dias de visita

Men on the borders of women's prisons: an ethnographic study on visiting days

Hombres en las fronteras de las cárceles femeninas: un estudio etnográfico sobre los días de visita

Resumo:

Os estudos sobre dias de visitas no cárcere são focados quase exclusivamente nas mulheres que realizam essa atividade em instituições prisionais masculinas. Com o objetivo de ampliar as análises sobre tema, procuramos, no presente manuscrito, investigar diferentes parcelas de frequentadores do cárcere feminino que performatizam o gênero masculino. Por meio de uma pesquisa etnográfica conduzida nas fronteiras externas de duas prisões de mulheres, 50 homens se tornaram interlocutores, a maioria deles familiares das privadas de liberdade. Como resultados, observamos a produção discursiva dos visitantes acerca da conjugalidade e do cuidado carcerários, como também o exercício do apoio masculino nas margens das cadeias. Tais achados permitiram análises comparativas com estabelecimentos penais masculinos, apontando para novas questões de gênero envolvidas no fenômeno das visitas em prisões.

Palavras-chave:
homens; prisões femininas; relações familiares; cuidado; redes de apoio

Abstract:

Studies on visiting days in prison focus almost only on women who carry out this activity in male prison institutions. In order to broaden the analysis on the subject, we sought, in this manuscript, to investigate different portions of the group of female prison visitors who perform the male gender. Through an ethnographic survey conducted at the external borders of two women’s prisons, 50 men became interlocutors, most of them relatives of women deprived of liberty. As a result, we observed the discursive production of visitors about conjugality and prison care, as well as the exercise of male support on the margins of prisons. Such findings allowed comparative analyses with male prison facilities, pointing to new gender issues involved in the phenomenon of prison visitation.

Keywords:
men; women’s prisons; family relationships; care; support networks

Resumen:

Los estudios relacionados con los días de visitas en las cárceles se centran casi y exclusivamente en las mujeres que realizan esa actividad en instituciones penitenciarias masculinas. Con el objetivo de ampliar los análisis del tema, investigamos diferentes grupos de frecuentadores de cárceles femeninas que performatizam el género masculino. La investigación etnográfica fue llevada a cabo en las fronteras externas de dos cárceles femeninas, 50 hombres participaron como interlocutores, la mayoría de ellos eran familiares de las detenidas. Fue observada la producción discursiva de los visitantes sobre la conyugalidad y el cuidado carcelario, así como el apoyo masculino en los márgenes de la cárcel. Estos hallazgos permitieron análisis comparativos con establecimientos penales masculinos, apuntando a nuevas cuestiones de género implicadas en el fenómeno de las visitas en prisiones.

Palabras clave:
hombres; cárceles femeninas; relaciones familiares; cuidado; redes de apoyo

Introdução

Rhodes (2001)RHODES. Lorna A. 2001. “Toward an anthropology of prison”. Annual Review of Anthropology. Vol. 30, p. 65-83. revisou os estudos sobre prisões e notou que, embora os homens presos tenham recebido maior investimento acadêmico que mulheres encarceradas, a literatura sobre sistema prisional ainda ignorava as dimensões de gênero no cárcere masculino. Anos mais tarde, Cunha (2014CUNHA, Manuela Ivone. 2014. “The Ethnography of prisons and penal confinement”. Annual Review of Anthropology. Vol. 43, p. 217-233. ) deu sequência à revisão iniciada por Rhodes, observando que gênero passou a ser uma categoria analítica em estudos sobre prisões que abrigam homens, abordando especialmente as ideologias de masculinidade que marcam a cultura reclusa. Cunha ressalta, porém, que gênero seguia sendo uma perspectiva de análise muito mais acionada em pesquisas sobre mulheres em situação de prisão.

Cúnico e Lermen (2020CÚNICO, Sabrina Daiana. LERMEN, Helena Salgueiro . 2020. “Prison from a gender perspective: a systematic review”. Psicología, Conocimiento y Sociedad. Vol. 10, nº 1, p.205-239.) também encontraram a ênfase no encarceramento feminino quando revisaram a literatura internacional sobre gênero e prisão. Ainda, notam que os pesquisadores, ao escolher os temas de investigação, muitas vezes reproduzem estereótipos de gênero, já que as relações com a prole ganham relevo em estudos sobre as mulheres presas, ao passo análises sobre a paternidade de homens encarcerados são raras na bibliografia.

As investigações nacionais sobre gênero e prisão não são diferentes e centram-se em mulheres presas ou mulheres visitantes no cárcere masculino (Lago & Zamboni, 2017LAGO, Natália; ZAMBONI, Marcio. 2017. “Políticas sexuais e afetivas da prisão: gênero e sexualidade em tempos de encarceramento em massa”. In: Mallart, F; Godoi, R. (Org.). BR 111: a rota das prisões brasileiras. 1ed. São Paulo: Veneta, 160p. ). Em relação a esse último grupo, notamos uma crescente produção acadêmica, sobretudo das visitantes que se enquadram na categoria “mulher de preso”, ou seja, aquelas que tem veiculações conjugais/sexuais com homens encarcerados (Barcinski et al, 2014BARCINSKI, Mariana et al. 2014. “Guerreiras do cárcere: uma rede virtual de apoio aos familiares de pessoas privadas de liberdade”. Temas em Psicologia. Vol. 22, nº 4, p. 929-940.; Bassani, 2011BASSANI, Fernanda. 2011. “Amor bandido: Cartografia da mulher no universo prisional masculino”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc. Vol. 4, nº 2, p. 261-280. ; Duarte, 2013DUARTE, Thais Lemos. 2013. “Amor, fidelidade e compaixão: ‘sucata’ para os presos”. Sociologia & Antropologia. Vol. 3, nº 6, p. 621 - 641.; Ferraz de Lima, 2013FERRAZ DE LIMA, Jacqueline Stefanny. 2013. Mulher fiel: as famílias das mulheres dos presos relacionados ao Primeiro Comando da Capital. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Carlos. ; Guimarães et al, 2006GUIMARÃES, Cristian Fabiano et al. 2006. “Homens apenados e mulheres presas: estudo sobre mulheres de presos”. Psicologia & Sociedade. Vol. 18, nº 3, p. 48-54.; Lago, 2017LAGO, Natália. 2017. Mulher de preso nunca está sozinha: gênero e violência nas visitas à prisão. ARACÊ - Direitos Humanos em Revista. Nº 5, p. 35-53. Spagna, 2008SPAGNA, Laiza Mara Neves. 2008. “‘Mulher de Bandido’: a construção de uma identidade virtual”. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília. Nº 7, p. 203-228. ).

Já as análises sobre homens encarcerados abordam morte, violência e sexualidade (Santos & Nardi, 2014SANTOS, Helen Barbosa; NARDI, Henrique Caetano. 2014. “Masculinidades entre matar e morrer: o que a saúde tem a ver com isso?” Physis. Vol. 24, nº 3, p. 931-949. ). Até a metade da década de 1990, os pesquisadores enfatizavam os códigos estabelecidos/impostos a partir das relações sexuais - consensuais ou forçadas - entre presos. Isso em uma época de interdição do sexo heterossexual, uma vez que as visitas íntimas não eram autorizadas nas prisões. Com a criação do Primeiro Comando da Capital (PCC), o estupro foi restringido em muitas prisões do país. Ademais, a partir de meados dos anos 1990, as visitas íntimas foram autorizadas pelos órgãos estaduais, de modo que a organização da sexualidade passou a ser regida dentro de novos códigos de conduta (Nunes Dias, 2011NUNES DIAS, Camila Caldeira. 2011. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo.).

Nos anos 2010 emergiram estudos de gênero sobre populações não heterossexuais em prisões masculinas, destacando performances masculinas distantes dos valores do “mundo do crime” (Lago & Zamboni, 2017LAGO, Natália; ZAMBONI, Marcio. 2017. “Políticas sexuais e afetivas da prisão: gênero e sexualidade em tempos de encarceramento em massa”. In: Mallart, F; Godoi, R. (Org.). BR 111: a rota das prisões brasileiras. 1ed. São Paulo: Veneta, 160p. ). Outras masculinidades também foram sinalizadas pelos autores, em alguns homens que visitam as companheiras presas, embora tenham sido menos investigadas.

Exatamente esse segmento do sistema prisional que exploramos em um artigo anterior (Lermen & Silva, 2018LERMEN, Helena Salgueiro; SILVA, Martinho. 2018. “Masculinidades no cárcere: homens que visitam suas parceiras privadas de liberdade”. Psicologia: Ciência e Profissão. Vol. 38, nº spe2, p. 74-87.). De acordo com a literatura, homens não realizam visitas, apenas as recebem (Bassani, 2011BASSANI, Fernanda. 2011. “Amor bandido: Cartografia da mulher no universo prisional masculino”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc. Vol. 4, nº 2, p. 261-280. ; Duarte, 2013DUARTE, Thais Lemos. 2013. “Amor, fidelidade e compaixão: ‘sucata’ para os presos”. Sociologia & Antropologia. Vol. 3, nº 6, p. 621 - 641.; Spagna, 2008SPAGNA, Laiza Mara Neves. 2008. “‘Mulher de Bandido’: a construção de uma identidade virtual”. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília. Nº 7, p. 203-228. ). Em nossa pesquisa, problematizamos a questão, ao entrevistarmos quatro desses raros sujeitos. Nos resultados, notamos que, por um lado, as narrativas apontavam para relações desiguais de poder nos casais, constituídos por homens que garantiam a provisão material das parceiras presas, e de mulheres que dependiam emocional e financeiramente dos companheiros, seus únicos visitantes. Por outro lado, os entrevistados se construíram discursivamente como homens que exerciam o cuidado não apenas das parceiras, mas também de seus progenitores e/ou filhos (Lermen & Silva, 2018), em um exercício da masculinidade que se distancia do que é socialmente atribuído aos homens, sobretudo no contexto prisional (Santos & Nardi, 2014SANTOS, Helen Barbosa; NARDI, Henrique Caetano. 2014. “Masculinidades entre matar e morrer: o que a saúde tem a ver com isso?” Physis. Vol. 24, nº 3, p. 931-949. ).

No presente estudo, buscamos ampliar as análises sobre o fenômeno das visitas em prisões, investigando diferentes parcelas de frequentadores do cárcere feminino que performatizam o gênero masculino. Nossa intenção é estender as análises sobre masculinidades que não se localizam no “mundo do crime” (Lago & Zamboni, 2017LAGO, Natália; ZAMBONI, Marcio. 2017. “Políticas sexuais e afetivas da prisão: gênero e sexualidade em tempos de encarceramento em massa”. In: Mallart, F; Godoi, R. (Org.). BR 111: a rota das prisões brasileiras. 1ed. São Paulo: Veneta, 160p. ), distanciando-nos das temáticas mais convencionais sobre homens e prisão observadas por Cúnico e Lermen (2020CÚNICO, Sabrina Daiana. LERMEN, Helena Salgueiro . 2020. “Prison from a gender perspective: a systematic review”. Psicología, Conocimiento y Sociedad. Vol. 10, nº 1, p.205-239.). Nosso estudo não se restringe somente àqueles que visitam, mas inclui também os que fazem parte das redes de apoio das visitantes, como explicaremos a seguir.

Sobre a pesquisa nas fronteiras das prisões femininas

Esta pesquisa etnográfica foi realizada por cinco meses, entre os anos de 2017 e 2018, nas fronteiras de duas prisões femininas de regime fechado da região sul do país. O trabalho de campo foi conduzido pela primeira autora, que em dias de visita circulava entre as filas de espera e os comércios que margeiam as cadeias.

A pesquisadora interagiu com 118 visitantes, sendo 45 deles homens. E eles não eram os únicos que demarcavam a presença masculina nos arredores das cadeias femininas. Havia um grupo que não visitava, mas que prestavam ajuda às pessoas que desejavam entrar nas instituições prisionais. As formas de auxílio masculino aos visitantes eram variadas, alguns garantiam o transporte de ida e volta às prisões, outros guardavam pertences que não podiam entrar nas cadeias. Cinco desses homens, que chamamos de apoiadores de visitantes, igualmente foram interlocutores do estudo. Assim, a pesquisadora acessou um conjunto masculino variado, visitantes em sua maioria, mas também homens que não entravam na prisão. Esses 50 interlocutores formavam um grupo composto, majoritariamente, por homens com mais de 35 anos.

Destacamos que o trabalho de campo foi conduzido por uma mulher branca, na casa dos 30 anos, que usava um crachá e se apresentava como uma estudante que pesquisava visitas em prisões. O crachá, além do nome, informava que era estudante da UERJ, o que suscitava conversas com visitantes sobre o Rio. Alguns homens ficavam curiosos com a presença da pesquisadora e seu crachá, iniciando uma conversa com facilidade. Esses costumavam ser os interlocutores mais frequentes, que semanalmente a procuravam na fila de espera, contavam episódios diversos de suas trajetórias e atualizavam-na sobre os últimos eventos de suas vidas. Já outros só conversaram com a pesquisadora depois de vê-la por algumas semanas nos arredores das prisões. Assim, a frequência da interação variava entre os interlocutores, com alguns foi de apenas um dia, com outros durou semanas ou mesmo meses.

Os tipos de interação também variavam. Como informamos anteriormente, a pesquisadora entrevistou quatro homens que visitavam as parceiras encarceradas. Tais entrevistas ocorreram individualmente em uma cafeteria, localizada quase ao lado de uma das prisões estudadas (Lermen & Silva, 2018LERMEN, Helena Salgueiro; SILVA, Martinho. 2018. “Masculinidades no cárcere: homens que visitam suas parceiras privadas de liberdade”. Psicologia: Ciência e Profissão. Vol. 38, nº spe2, p. 74-87.). Com os demais, as interações aconteceram nas filas de espera das prisões. Ou seja, com exceção do quarteto entrevistado, não houve qualquer script que conduzisse as conversas, de modo que os conteúdos que emergiam foram variados. Ainda assim, alguns assuntos eram recorrentes.

De modo geral, entre os homens visitantes, as narrativas giravam em torno de três temas: a familiaridade (ou não) com o cárcere, a constituição do relacionamento conjugal com a mulher presa e o exercício do cuidado. Entre os apoiadores de visitantes, as falas tratavam das formas de aproximação deles com o cárcere. Tornamos esses temas as nossas categorias de análise, dividindo as narrativas de nossos interlocutores em quatro eixos temáticos, que serão apresentados na sequência. Assim, realizamos análise de conteúdo do tipo categorial qualitativo (Bardin, 2010BARDIN, Laurence. 2010.Análise de conteúdo. Lisboa: Edições, 280p.), por meio da aglomeração de conteúdos em quatro categorias analíticas. Ainda, por serem tópicos comuns em estudos sobre mulheres que visitam homens presos, foi possível estabelecer análises comparativas entre os resultados obtidos em nosso estudo com os achados de pesquisas que foram conduzidas por outras pesquisadoras em prisões masculinas.

Visita na cadeia: um evento de família para muitos e familiar para alguns

No estado onde conduzimos a pesquisa, os órgãos de administração penitenciária criaram regras que dividiram os visitantes em três categorias. Trata-se de um sistema de hierarquização, que favorece a presença e a frequência de parentes no cárcere e que impacta no perfil de quem visita.

Dentre os 45 homens visitantes com quem a pesquisadora conversou, mais da metade era constituída por companheiros das presas (24), seguidos por filhos (9), pais (8), irmãos (2) e amigos (2) daquelas que estão detidas. Muito diferente foi a composição do grupo feminino de interlocutoras visitantes, formado por mães (36), filhas (12), irmãs (10), companheiras (6), amigas (5), tias (2) e madrastas (2) das encarceradas. Assim, entre os homens, prevaleceram os laços de afinidade e entre as mulheres os vínculos de consanguinidade com as presas.

A partir das normativas estatais e do grupo de interlocutores, podemos pensar que ir à prisão feminina é um evento de família para a maioria dos visitantes. Mas a prisão é também um local familiar para parte dos interlocutores, seja por se tratarem de visitantes de longa data, seja pelas experiências anteriores de visita a outras cadeias, seja pela vivência de privação de liberdade. As histórias abaixo exemplificam tais familiaridades com o cárcere.

Para pequena parte de nossos interlocutores, a visita na prisão se tornou um evento familiar, no sentido de uma atividade que se tornou habitual, desenvolvida por muitos anos. Glauco, jovem adulto, foi um caso de visitante experiente. Sua trajetória começou na infância, quando ia ao encontro de seus pais presos. Tais experiências permitiram que ele estabelecesse comparações entre o número de frequentadores das prisões masculinas e femininas e observasse o “abandono das mulheres na cadeia”.

Glauco ainda contou que, quando criança, ia às prisões na companhia de suas avós. Mulheres como essas, mães de pessoas presas, são apontadas como presenças frequentes em prisões masculinas (Mestre, 2016MESTRE, Simone de Oliveira. 2016. “Mães guerreiras”: Uma etnografia sobre mães de jovens encarcerados em Porto Velho/RO. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. ), como também as principais responsáveis pela manutenção das relações entre as filhas presas com a prole no cárcere (Pereira, 2016PEREIRA, Éverton Luís. 2016. “Famílias de mulheres presas, promoção da saúde e acesso às políticas sociais no Distrito Federal, Brasil”. Ciência & Saúde Coletiva. Vol. 21, nº 7, p. 2123-2134.).

As figuras paternas, por sua vez, não costumam ser observados em cadeias de homens ou mulheres (Mestre, 2016MESTRE, Simone de Oliveira. 2016. “Mães guerreiras”: Uma etnografia sobre mães de jovens encarcerados em Porto Velho/RO. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. ). Ainda assim, encontramos um pai que frequentava ambos espaços. Geromel era um visitante novato, sem experiência anterior com a prisão, mas que vivia intensamente as visitas ao cárcere como eventos de família. Pelas manhãs, acompanhado de sua esposa, encontrava a filha detida. No mesmo dia, pela tarde, visitava sozinho o filho preso.

Entre os familiares de presas, os irmãos foram os menos acessados nas prisões investigadas, além de raramente serem citados pela literatura. Mas Tadeu fugia à regra. Quando a pesquisadora o conheceu, ele já havia acumulado três anos de experiência como visitante da irmã encarcerada. Disse que a cadeia era um local desconhecido para ele e sua família, e que o cotidiano como visitante mudou a percepção que tinha sobre o cárcere: “antes, eu era contra as visitas e o auxílio reclusão. A gente lê cada coisa por aí. Tem coisa que tu só aprende vivendo”.

Situação semelhante ocorreu com Gregório, que ficou surpreso com as dificuldades da vida no cárcere e com o “abandono” das mulheres. Após a prisão de sua parceira, Gregório começou a ler sobre o sistema prisional e descobriu que são poucos os homens que visitam suas companheiras, dado que comprovou em seu cotidiano carcerário. Nós também acessamos estudos semelhantes, que posicionam os familiares e, em especial, os cônjuges, como aqueles que abandonam as mulheres nas cadeias (Bassani, 2011BASSANI, Fernanda. 2011. “Amor bandido: Cartografia da mulher no universo prisional masculino”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc. Vol. 4, nº 2, p. 261-280. ; Duarte, 2013DUARTE, Thais Lemos. 2013. “Amor, fidelidade e compaixão: ‘sucata’ para os presos”. Sociologia & Antropologia. Vol. 3, nº 6, p. 621 - 641.; Spagna, 2008SPAGNA, Laiza Mara Neves. 2008. “‘Mulher de Bandido’: a construção de uma identidade virtual”. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília. Nº 7, p. 203-228. ).

Gregório se junta a outros três homens que tiveram a primeira aproximação com o cárcere após o aprisionamento de suas companheiras. Embora a saga semanal de visitas estivesse longe do fim, pois todas elas receberam penas altas, nenhum dos quatro dizia ter a intenção de deixar de ir à prisão, atividade que já desempenhavam há anos. Essas narrativas são incomuns na literatura sobre visitantes de presídios femininos, mas são frequentes em cadeias masculinas, onde não faltam histórias sobre mulheres “guerreiras” (Barcinski et al, 2014BARCINSKI, Mariana et al. 2014. “Guerreiras do cárcere: uma rede virtual de apoio aos familiares de pessoas privadas de liberdade”. Temas em Psicologia. Vol. 22, nº 4, p. 929-940.) ou “fiéis” (Ferraz de Lima, 2013FERRAZ DE LIMA, Jacqueline Stefanny. 2013. Mulher fiel: as famílias das mulheres dos presos relacionados ao Primeiro Comando da Capital. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Carlos. ), que por anos (até mesmo décadas), mantêm rotinas exaustivas de visitas aos seus companheiros presos.

Encontramos enredos ainda mais particulares que esses. Hugo visitava Mafalda, sua amiga e comadre. Para poder ir em todas as visitas e não apenas no “Dia do Amigo” , ele obteve uma declaração de união estável com essa mulher, apesar de afirmar que nunca tiveram qualquer relação amorosa ou sexual. Hugo, o falso companheiro, adquiriu um documento que o tornou oficialmente um familiar de presa.

Já outros interlocutores não estavam familiarizados em realizar visitas, mas sim em recebe-las. Tratam-se dos egressos do sistema prisional que viraram visitantes. Dentre os homens que já tiveram experiência de privação de liberdade, apenas um, Apolo, entendia que o confinamento em cárcere feminino era melhor que em um masculino: “Aqui (prisão feminina) é barbada, é um hotel três estrelas. Onde eu caí preso, quando tinha revista, a gente tinha que ir pro pátio. Quando chovia, a gente ficava com água até a canela”. Egresso do sistema prisional, ele passou a ser visitante da mãe.

Os demais egressos que consultamos tinham parceiras presas e não faziam comparações entre as condições estruturais, mas administrativas entre prisões que confinam homens e mulheres. Sebastião e Ciro, que estiveram presos na mesma cadeia, comentaram, em entrevista com a pesquisadora, sobre as facilidades que encontravam para burlar as regras institucionais. Ambos ainda se diziam surpresos com os tramites burocráticos impostos no cárcere feminino para realização da visita íntima, etapas que, segundo eles, incluíam aval da assistente social da cadeia e agendamento quinzenal para “tirar a íntima” (Lermen & Silva, 2018LERMEN, Helena Salgueiro; SILVA, Martinho. 2018. “Masculinidades no cárcere: homens que visitam suas parceiras privadas de liberdade”. Psicologia: Ciência e Profissão. Vol. 38, nº spe2, p. 74-87.). É uma realidade bem diferente da que eles conheciam. Ciro contou que em nove anos de detenção, sua vida sexual teve pouco controle institucional e que recebeu visitas de diferentes companheiras. Para além do atestado de sua virilidade, a narrativa sobre as frequentes visitas íntimas o posicionava como alguém de prestígio e poder no cárcere, cujo “status de homem” era reforçado “pela capacidade de conquistar e/ou manter” uma parceira (Bassani, 2011BASSANI, Fernanda. 2011. “Amor bandido: Cartografia da mulher no universo prisional masculino”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc. Vol. 4, nº 2, p. 261-280. : 270). Como visitante em prisão feminina, entretanto, Ciro experimentou a regulação muito mais rígida de sua sexualidade, pois não tinha obtido autorização para ter encontros íntimos com a parceira presa. Já Sebastião condenava a direção da cadeia feminina, que permitia apenas um dia de visita social por semana, e não dois, como costumava ter quando estava detido. A partir dessas memórias e das diferenças por eles experenciadas entres prisões masculinas e femininas, Sebastião e Ciro entendiam que visitar era mais penoso que estar preso.

Como visitante, Sebastião ainda foi surpreendido com o pequeno número de pessoas que encontrou na fila de espera e concluiu: “as mulheres dão valor para os homens, os homens não dão valor para as mulheres. Mulheres não abandonam, homens sim”. Por esse ponto de vista, tantas ausências nas cadeias de mulheres não seriam em função da incapacidade feminina de “conquistar” ou “manter” visitantes, como ocorre no cárcere masculino (Bassani, 2011BASSANI, Fernanda. 2011. “Amor bandido: Cartografia da mulher no universo prisional masculino”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc. Vol. 4, nº 2, p. 261-280. ; Nunes, 2011NUNES DIAS, Camila Caldeira. 2011. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo.), mas sim uma falha moral dos homens, que não vão às prisões.

Assim, apesar de o grupo de interlocutores ter distintas trajetórias e familiaridades com o cárcere, muitos deles falavam sobre o abandono das mulheres presas. Essas observações eram ainda mais comuns entre aqueles que tinham parceiras presas. Justamente as histórias deles que apresentaremos no próximo tópico, narrativas que, de modo geral, destoam do que comumente é escrito sobre homens que têm cônjuges nas prisões.

Conjugalidade carcerária

A literatura aponta que os enlaces amorosos heterossexuais raramente são mantidos após o encarceramento feminino (Guimarães et al, 2006GUIMARÃES, Cristian Fabiano et al. 2006. “Homens apenados e mulheres presas: estudo sobre mulheres de presos”. Psicologia & Sociedade. Vol. 18, nº 3, p. 48-54.; Pereira, 2016PEREIRA, Éverton Luís. 2016. “Famílias de mulheres presas, promoção da saúde e acesso às políticas sociais no Distrito Federal, Brasil”. Ciência & Saúde Coletiva. Vol. 21, nº 7, p. 2123-2134.). Segundo Cordeiro (2013CORDEIRO, Fabiola. 2013. Female criminality in Brazil: a study on gender and sexuality in a women’s prison. In: Wieringa, S.; Sívori, H. (Eds). The Sexual History of the Global South. 1ed. Nova York: Zed Book, 288p. ) as presas costumam começar relacionamentos com homens desconhecidos, por meio de telefonemas ou cartas destinadas a eles. Quando os pretendentes também estão detidos, são os trabalhadores das prisões que mediam essas comunicações. Já com aqueles que não estão encarcerados, elas contam com a ajuda de amigos ou de parentes para fazer essa ponte com os homens.

No cárcere masculino, tal tarefa de mediação é comumente desempenhada pelas mães que buscam companheiras para seus filhos (Bassani, 2011BASSANI, Fernanda. 2011. “Amor bandido: Cartografia da mulher no universo prisional masculino”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc. Vol. 4, nº 2, p. 261-280. ; Mestre, 2016MESTRE, Simone de Oliveira. 2016. “Mães guerreiras”: Uma etnografia sobre mães de jovens encarcerados em Porto Velho/RO. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. ). Já os pais não pareciam ter atribuição semelhante. Nenhum interlocutor contou sobre a procura por um parceiro para a filha presa, mas um deles, Wando, foi quem anunciou o término da relação da filha com ex genro, após esse último não ter comparecido à prisão feminina: “Cheguei aqui no domingo passado e minha filha disse que o namorado dela não tinha vindo na prisão. Aí, ela pediu pra eu desligar ele.

As narrativas da maioria dos interlocutores contrariam os achados de Cordeiro (2013CORDEIRO, Fabiola. 2013. Female criminality in Brazil: a study on gender and sexuality in a women’s prison. In: Wieringa, S.; Sívori, H. (Eds). The Sexual History of the Global South. 1ed. Nova York: Zed Book, 288p. ) anteriormente elencados. Dentre os 24 companheiros, apenas cinco haviam iniciado o relacionamento com uma mulher já presa. Anderson e Djalma são exemplos desses casos. Eles costumavam ir à prisão para encontrar suas parentes, irmã e mãe, respectivamente. No pátio da cadeia feminina, em dia de visita, eles tiveram o primeiro contato com as mulheres que se tornaram suas namoradas. Fenômeno semelhante é observado em prisões masculinas, em estudos sobre mulheres que conheceram seus parceiros em dias de visita a familiares presos (Bassani, 2011BASSANI, Fernanda. 2011. “Amor bandido: Cartografia da mulher no universo prisional masculino”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc. Vol. 4, nº 2, p. 261-280. ) ou que propositalmente buscaram companheiros dentro do cárcere (Guimarães et al, 2006GUIMARÃES, Cristian Fabiano et al. 2006. “Homens apenados e mulheres presas: estudo sobre mulheres de presos”. Psicologia & Sociedade. Vol. 18, nº 3, p. 48-54.).

O local de início da relação amorosa pode ter relevância para as visitantes. As interlocutoras de Ferraz de Lima (2013FERRAZ DE LIMA, Jacqueline Stefanny. 2013. Mulher fiel: as famílias das mulheres dos presos relacionados ao Primeiro Comando da Capital. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Carlos. ), dividiam as “mulheres de preso” em duas categorias: as que “amam o preso” e as que “gostam do ladrão”. As primeiras seriam as mulheres “fiéis”, que já mencionamos anteriormente, cuja trajetória é marcada pelo amor, cuidado e não abandono dos parceiros, por enfrentarem a “caminhada do início ao fim”. Nesse sentido, as relações que haviam começado antes do cárcere eram hierarquizadas em comparação aos relacionamentos de mulheres que “gostam de ladrão”, que costumavam conhecer os parceiros já presos, e que estariam em busca de status e poder. Entre nossos interlocutores, também notamos a construção de uma hierarquia entre os homens visitantes, mas que não era definida pelo lugar onde a relação conjugal foi iniciada, mas sim pela frequência de visitas. Eram narrativas que idealizavam os homens “de fé” que realizavam visitas semanalmente, e desprezavam os que só compareciam à prisão feminina quinzenalmente, em dia de visita íntima (Lermen & Silva, 2018LERMEN, Helena Salgueiro; SILVA, Martinho. 2018. “Masculinidades no cárcere: homens que visitam suas parceiras privadas de liberdade”. Psicologia: Ciência e Profissão. Vol. 38, nº spe2, p. 74-87.).

Teodoro era um dos homens que criticavam aqueles que só “tiraram a íntima”. Ele também viu sua parceira pela primeira vez dentro do presídio feminino. Em 2011, foi à prisão como membro de uma congregação religiosa. Como não era padre nem pastor, só pôde atuar no projeto de evangelização por quatro dias. Foi nesta quarta e ida que viu Dinorá. O namoro dos dois ficou restrito às ligações telefônicas até ela ser enviada ao regime semiaberto, quando finalmente oficializaram a união. Casaram e moraram juntos por alguns anos. Ela retornou ao regime fechado em 2017 e, assim, Teodoro se tornou visitante.

O celular também era o modo pelo qual Michel e sua parceira Martina se comunicavam. Aliás, foi através de um aplicativo de namoro - que ela acessava de dentro da prisão - que eles se conheceram. Tempos depois a relação deixou de ser somente virtual, quando Michel virou visitante.

Portanto, os celulares possibilitam o contato de mulheres presas com seus parentes para além do momento semanal da visita. O mesmo é documentado no cárcere masculino. Dentre as possibilidades de vias de comunicação não institucionalizadas, Godoi (2015GODOI, Rafael. 2015. “Vasos comunicantes, fluxos penitenciários: entre dentro e fora das prisões de São Paulo”. Vivência. N°46, p. 131-142. ) menciona os telefones móveis e destaca que, embora sejam sim meios utilizados para fins criminais, os telefonemas frequentemente são usados para “fins ordinários”, como aproximar homens presos de suas famílias ou propiciar o início de um relacionamento amoroso, como fizeram Martina e Michel. O contato telefônico torna-se, assim, veículo de transgressões simultâneas das normas e das fronteiras da prisão.

Já o relacionamento amoroso entre Cosme e Dalila começou por intermédio de Madalena, amiga em comum do casal, que visitava Dalila na prisão. Durante meses, via Madalena, Cosme trocou cartas com a namorada presa: “Um dia, me enchi de coragem e vim aqui (penitenciária) conhecer ela”.

Diferentemente do Brasil, onde os telefonemas ocorrem por meio ilegal, nos Estados Unidos, há possibilidade de realizar ligações a cobrar de telefones públicos localizados dentro do cárcere. Por ser uma prática institucionalizada, vigiada e cara, é meio de comunicação pouco utilizado pelas pessoas presas e seus familiares. Eles acabam recorrendo às cartas, igualmente inspecionadas, mas muito mais baratas se comparadas às ligações. Além da comunicação, a carta é percebida como “substituto do corpo” para aqueles que pouco se encontram nas prisões. O papel, muitas vezes perfumado, no qual juras de amor são escritas, torna-se a materialidade do corpo da pessoa amada e distante (Comfort, 2007COMFORT, Megan. 2007. “‘Partilhamos tudo o que podemos’: a dualização do corpo recluso nos romances através das grades”. Análise Social. Vol. 42, n°. 185, p. 1055-1079.). São casos parecidos com o de Cosme que, por algum tempo, tinha apenas as correspondências como meio de aproximação com a Dalila.

Para os demais companheiros que foram encontrados em campo, a relação conjugal foi continuada após o aprisionamento da parceira. A pesquisadora conheceu 19 homens que, à época da condução da pesquisa de campo, eram visitantes novatos nas prisões. Dentre eles, estão os interlocutores egressos do sistema prisional, como os casos já mencionados de Sebastião e Ciro, que visitavam suas novas parceiras, mulheres que eles não conheciam enquanto estavam presos. Já Rui e Lauro, outros egressos, recebiam visitas das mesmas mulheres das quais se tornaram visitantes. Para eles, ir à prisão era uma forma de retribuição às companheiras, que não os abandonaram quando estiveram detidos. No caso de Lauro, foi preciso ainda uma autorização judicial para que pudesse ser visitante. Como usava tornozeleira eletrônica, um Juiz permitiu que ele saísse de casa somente aos domingos, das 5 às 17 horas, para encontrar a companheira encarcerada.

Reforçamos que todas essas histórias foram relatadas por interlocutores pouco usuais na literatura (Bassani, 2011BASSANI, Fernanda. 2011. “Amor bandido: Cartografia da mulher no universo prisional masculino”. Dilemas, Rev. Estud. Conflito Controle Soc. Vol. 4, nº 2, p. 261-280. ; Duarte, 2013DUARTE, Thais Lemos. 2013. “Amor, fidelidade e compaixão: ‘sucata’ para os presos”. Sociologia & Antropologia. Vol. 3, nº 6, p. 621 - 641.; Spagna, 2008SPAGNA, Laiza Mara Neves. 2008. “‘Mulher de Bandido’: a construção de uma identidade virtual”. Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília. Nº 7, p. 203-228. ). Baseados nesses estudos, achámos que seria difícil encontrar homens que visitavam as parceiras presas, mas localizamos 24 deles, o que corresponde a 20% dos visitantes com quem a pesquisadora interagiu em campo. Também para nossa surpresa, a agente penitenciária Aline, através do registro de entrada em dias de visita, informou porcentagem ainda maior. Segundo ela, companheiros das presas correspondiam a “30% dos visitantes” .

Mesmo assim, para os interlocutores, os cônjuges ainda eram muito poucos nas prisões femininas. Alguns criavam hipóteses para justificar tal ausência masculina: “Eu acho que a maioria das gurias tem marido com rabo preso. Eu tive que apresentar bons antecedentes pra visitar minha mulher. Aí os caras não vão, não porque não querem, mas porque não podem”, afirmou Licurgo. Tal percepção corrobora os achados de Lima (2006LIMA, Marcia de. Da visita íntima à intimidade da visita: a mulher no sistema prisional. 2006. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo. ), que pontua as dívidas com a justiça como uma das razões pelas quais homens não visitam as parceiras presas.

Ainda, pelas falas dos interlocutores, notamos que o amor era a principal motivação para eles realizarem as visitas. Contudo, alguns afirmavam que não estavam dispostos a seguir indo a prisão, caso suas companheiras fossem novamente encarceradas. São homens como Licurgo, que elencou as condições para ser visitante, incluindo além do amor, o sacrifício, a religião e uma aposta em reciprocidade: “Quem ama se sacrifica. Eu já fui muito cristão e Jesus se sacrificou, porque tinha muito amor pelas pessoas. Se a gente ama é na boa e na ruim. Um dia eu posso estar na ruim (...) mas ela se aprontar outra, pode ser a maior santa, não venho mais!” Licurgo e outros companheiros isentam suas parceiras de qualquer culpa, afirmam que elas foram presas injustamente. As visitas que eles realizavam significavam o reconhecimento da inocência delas. Trata-se de uma gramática moral, que define mulheres que merecem ser visitadas a partir da ausência de culpa. Consequentemente, seguindo essas mesmas prescrições morais, há mulheres que talvez não mereçam ser visitadas, por serem culpadas, ou por reincidirem no crime.

Novamente, há uma aproximação da fala de Licurgo com os estudos sobre as visitantes “fiéis” ou “guerreiras” do cárcere masculino, que amam, se sacrificam e não abandonam. Contudo, as mulheres não parecem condicionar as visitas à inocência do parceiro ou ao fato de eles serem réus primários (Ferraz de Lima, 2013FERRAZ DE LIMA, Jacqueline Stefanny. 2013. Mulher fiel: as famílias das mulheres dos presos relacionados ao Primeiro Comando da Capital. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Carlos. ). Ademais, para as “guerreiras”, visitar era também o compromisso do cuidado (Barcinski et al, 2014BARCINSKI, Mariana et al. 2014. “Guerreiras do cárcere: uma rede virtual de apoio aos familiares de pessoas privadas de liberdade”. Temas em Psicologia. Vol. 22, nº 4, p. 929-940.), fator que tem alguma correspondência com as trajetórias de nossos interlocutores, como mostraremos a seguir.

Exercício do cuidado

O cuidado emergiu nas falas de diferentes modos. Como já apontado, entre os companheiros, o cuidado é entendido, primordialmente, como oposição ao abandono das parceiras nas prisões. Nesse sentido, a visita demarca a condição de homem que cuida. E esse cuidado não costumava ser dividido, visto que os companheiros, assim como a maioria dos homens interlocutores, não tinham companhia de outros adultos em dias de visita, somente crianças acompanhavam alguns deles.

Dentre o grupo paterno, apenas dois visitavam as filhas junto com esposas. A partir das conversas e das observações em campo, ficamos com a impressão que a maior parte dos pais se tornava visitante na ausência das mães das mulheres encarceradas. A questão ficava mais evidente quando observada a enorme quantidade de mães em filas de cadeias, contrastada com o pequeno número de pais nos mesmos espaços, indicando quem comumente assume o cuidado carcerário parental. Para Mestre (2016MESTRE, Simone de Oliveira. 2016. “Mães guerreiras”: Uma etnografia sobre mães de jovens encarcerados em Porto Velho/RO. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. : 103), o cuidado materno com os filhos detidos em prisões masculinas pode manifesto de quatro formas:

i) o cuidado em agradar o filho, como é o caso das caseiras ; ii) o cuidado em se fazer presente para que o filho não pense que foi abandonado; iii) o cuidado em mediar as relações afetivas do filho, como é o caso da mãe que corteja a esposa para o filho e acompanha a situação dos amigos dele; e iv) principalmente, o cuidado como sua responsabilidade de mãe.

Como mencionado anteriormente, pais parecem não buscar parceiros para as filhas presas. Mas as três outras formas de cuidado elencadas por Mestre foram observadas nos discursos de nossos interlocutores. No grupo paterno de interlocutores, a “sacola” era indispensável para realizar a visita. Apenas Iberê não tinha tal responsabilidade, pois seu genro, que também era visitante, ficou responsável pelo transporte de insumos para dentro da prisão feminina. Iberê, porém, fez questão de mencionar à pesquisadora: “Eu também cozinho. Não me considero menos homem por causa disso!”.

Já Wando e Júlio não podiam contar com a colaboração dos namorados das filhas presas. Para o primeiro, a dificuldade, já descrita, foi o sumiço do então genro. Para o segundo, a parceria era impossível, pois o parceiro da filha estava detido.

Esse trio de pais não eximiam as filhas da culpa pelo aprisionamento. Eles disseram que sabiam e reprovavam o envolvimento delas com o tráfico de drogas, bem como entendiam que visitar era uma obrigação paterna: “eu sou pai, tenho que vir. Mas também se não fosse pai, não vinha de jeito nenhum!”, resumiu Iberê. Tal obrigação ainda parece conectada a outro ponto em comum em suas trajetórias: os três assumiram os cuidados da prole após se divorciarem. Disseram que as ex-companheiras eram pouco ou nada presentes na vida dos filhos, o que novamente pareceria favorecer com que fossem eles os visitantes das filhas presas. Iberê era o caso mais extremo, seus nove filhos foram criados por ele após a separação conjugal: “Eu fui pai e mãe dos meus filhos. Eu criei, e não criei pra fazer coisa errada”, disse tentando reafirmar seu papel de cuidador, mas também sua isenção de culpa pela prisão da filha.

As mães não parecem ter a mesma facilidade de se descolarem da culpa. O rótulo de “mães de bandidos” condena moralmente essas mulheres, tidas como principais responsáveis pelo aprisionamento dos filhos. O suposto fracasso parental seria exclusivo delas, uma vez que o cuidado da prole é tarefa socialmente atribuída às mulheres. Assim, além de depositárias da culpa, elas também são incumbidas do dever de visitar, uma obrigação inerente à condição de mães. Diante desses construtos sociais, não surpreende que “pais de bandidos” não seja uma categoria acionada para condenar homens (Mestre, 2016MESTRE, Simone de Oliveira. 2016. “Mães guerreiras”: Uma etnografia sobre mães de jovens encarcerados em Porto Velho/RO. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. ).

Os pais não se vinculam à culpa pela prisão das filhas, mas se associam discursivamente ao cuidado exercido fora e dentro da prisão. E eles não são os únicos que se posicionam como cuidadores. Como já pontuado, em nosso estudo anterior havíamos destacado que o quarteto entrevistado descreveu trajetórias de cuidado anteriores ao encarceramento de suas parceiras (Lermen & Silva, 2018LERMEN, Helena Salgueiro; SILVA, Martinho. 2018. “Masculinidades no cárcere: homens que visitam suas parceiras privadas de liberdade”. Psicologia: Ciência e Profissão. Vol. 38, nº spe2, p. 74-87.). Dois deles, Teodoro e Gregório, assim como Júlio, Iberê e Wando, também ficaram com a guarda dos filhos após a separação com suas primeiras esposas. A diferença é que os dois primeiros visitavam as companheiras e não as filhas presas como os demais.

A monoparentalidade associada aos familiares de pessoas presas já havia sido documentada em relação a muitas mães de homens presos (Mestre, 2016MESTRE, Simone de Oliveira. 2016. “Mães guerreiras”: Uma etnografia sobre mães de jovens encarcerados em Porto Velho/RO. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais. ), mas não encontramos dados que se assemelhem às narrativas de nossos interlocutores. Na realidade, esse é um arranjo familiar minoritário no país, constituído por homens que assumiram o cuidado da prole, sem auxílio de cônjuge, representando somente 1,5% das famílias brasileiras, número bem menor que as famílias monoparentais femininas (12, 2%) (IBGE, 2010IBGE. 2010. Censo demográfico 2010 - Famílias e domicílios - resultados da amostra. Brasília. ).

Outros interlocutores se posicionavam como cuidadores, mas tal cuidado foi assumido após o aprisionamento das mulheres. Rui criava os quatro filhos enquanto a esposa estava presa. Tadeu, ficou com guarda das duas sobrinhas após o encarceramento de sua irmã Fátima. Até mesmo Hugo, o falso companheiro, assumiu a criação do filho caçula da comadre. Os três garantiam que as crianças tivessem contato com as mães, levando-as à prisão em dias autorizados.

Esses homens - fossem eles pais, cônjuges, irmão ou compadre das mulheres presas -, diziam contar com o apoio de pelo menos uma mulher para os cuidados com as crianças. Esse acionamento de redes de apoio feminino é comum em famílias monoparentais masculinas (Abade & Romanelli, 2018ABADE, Flávia; ROMANELLI, Geraldo. 2018. “Paternidade e paternagem em famílias patrifocais”. Estudos Feministas. Vol. 26, n° 2, p. 1-18. ). Apenas Gregório mencionou a ajuda de outros homens, como seu pai e irmão, além do apoio de sua mãe e irmã nos cuidados de sua filha. Sobre o suporte masculino, ele afirmou: “Na minha família não tem a ideia machista de que homem não cuida”.

Para Miller (1986MILLER, Jean. 1986. Towards a new psychology of women. Boston: Beacon Press, 154p.) os homens até podem desenvolver o desejo de atender e oferecer seus serviços aos outros, porém isso acontece quando eles já preencheram os quesitos básicos inerentes à masculinidade. Ou seja, depois de corresponder aos padrões masculinos exigidos socialmente (de independência e provisão material), o sujeito pode escolher atender ou servir aos outros (família, amigos, mulheres, etc.).

Em nosso estudo anterior, destacamos justamente que nosso quarteto entrevistado era composto por homens financeiramente estáveis, além de consideravelmente mais velhos que suas parceiras presas (Lermen & Silva, 2018LERMEN, Helena Salgueiro; SILVA, Martinho. 2018. “Masculinidades no cárcere: homens que visitam suas parceiras privadas de liberdade”. Psicologia: Ciência e Profissão. Vol. 38, nº spe2, p. 74-87.). Não podemos fazer qualquer inferência sobre a renda do restante de nossos interlocutores, apenas os quatro entrevistados nos forneceram tais informações. Tampouco sabemos a idade das mulheres que eles visitam. Mas foi possível observar que 17 dos 24 companheiros de presas localizados em campo eram adultos maduros, o que nos leva a pensar questões geracionais em relação aos homens que frequentam o cárcere feminino. Somando os grupos de companheiros e de pais das mulheres presas, notamos que a maioria dos homens visitantes eram mais velhos, parte deles posicionados discursivamente como cuidadores. Eram ainda homens de mais idade aqueles que garantiam apoio às visitantes, que discutiremos na sequência.

Apoio fronteiriço

Como informado, os apoiadores de visitantes ficavam nos arredores das prisões para auxiliar quem adentrava as prisões. Eles tinham diferentes tipos de aproximação com o cárcere e a com as mulheres presas, mas nenhum visitava. Eram homens como Bento, Cristian e Carlos que ajudavam como motoristas que conduziam as parceiras até a prisão, ou guardando eventuais itens da “sacola” barrados pela equipe de segurança prisional. Suas companheiras eram irmãs de mulheres presas, logo, entre os três apoiadores e as privadas de liberdade havia um grau de parentesco.

Nenhum dos três homens tinha familiaridade com a prisão até suas parceiras se tornarem visitantes. Moacir, por sua vez, já tinha experiência como visitante de uma prisão mista, onde encontrava sua parceira Iracema. O casal estava separado, mas reatou o romance durante o período de detenção dela. Essa é mais uma história incomum quando novamente acionamos a literatura sobre encarceramento feminino e seus poucos visitantes (Pereira, 2016PEREIRA, Éverton Luís. 2016. “Famílias de mulheres presas, promoção da saúde e acesso às políticas sociais no Distrito Federal, Brasil”. Ciência & Saúde Coletiva. Vol. 21, nº 7, p. 2123-2134.; Varella, 2017VARELLA, Drauzio. 2017. Prisioneiras. 1ed. São Paulo: Companhia das Letras, 296p.). De egressa, Iracema passou a ser visitante da filha na prisão feminina e contava com o apoio de Moacir, que não ingressava no presídio para ver a enteada.

César também apoiava a companheira visitante, mas diferentemente dos demais, possuía laços de consanguinidade com a mulher presa, sua filha. Ele não tinha a intenção de adentrar à prisão feminina: “Eu visitei vários anos meu filho, mas lá eu passava na frente de todo mundo, porque tinha pouco homem na fila, aí era rápido. Aqui não, eu entro na fila normal, por isso não quero visitar”. Esse relato leva a pensar três pontos. Primeiro, que não seriam tão poucos os homens visitantes de cadeias femininas. Segundo, que o funcionamento específico de cada prisão pode ser um fator relevante na decisão de visitar. Terceiro, que César parece não considerar que o longo tempo na fila lhe confere uma valorização especial, ao contrário do que comumente ocorre entre as visitantes, socialmente reconhecidas e valoradas pelos sacrifícios que realizam em dias de visitas (Barcinski et al, 2014BARCINSKI, Mariana et al. 2014. “Guerreiras do cárcere: uma rede virtual de apoio aos familiares de pessoas privadas de liberdade”. Temas em Psicologia. Vol. 22, nº 4, p. 929-940.).

Cunhados, padrasto ou pai das presas, esses homens apoiavam somente mulheres. Eles eram uma minoria, visto que as ações de ajuda observadas em campo costumam acontecer entre as visitantes, corroborando a literatura sobre as redes de apoio e sociabilidades femininas formadas nas prisões (Barcinski et al, 2014BARCINSKI, Mariana et al. 2014. “Guerreiras do cárcere: uma rede virtual de apoio aos familiares de pessoas privadas de liberdade”. Temas em Psicologia. Vol. 22, nº 4, p. 929-940.; Pereira, 2016PEREIRA, Éverton Luís. 2016. “Famílias de mulheres presas, promoção da saúde e acesso às políticas sociais no Distrito Federal, Brasil”. Ciência & Saúde Coletiva. Vol. 21, nº 7, p. 2123-2134.). Já no caso dos cárceres masculinos, o apoio fronteiriço dos homens é descrito apenas através dos serviços de transporte pago para as visitantes (Ferraz de Lima, 2013FERRAZ DE LIMA, Jacqueline Stefanny. 2013. Mulher fiel: as famílias das mulheres dos presos relacionados ao Primeiro Comando da Capital. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Carlos. ; Lago, 2017LAGO, Natália; ZAMBONI, Marcio. 2017. “Políticas sexuais e afetivas da prisão: gênero e sexualidade em tempos de encarceramento em massa”. In: Mallart, F; Godoi, R. (Org.). BR 111: a rota das prisões brasileiras. 1ed. São Paulo: Veneta, 160p. ).

Os cinco apoiadores ofereciam seus serviços gratuitamente. Com o tempo, eles desenvolveram expertises relacionadas às prisões, dominavam as regras institucionais, sabiam o que era permitido na sacola e viabilizavam que suas parceiras se tornassem visitantes. Tal apoio fronteiriço por eles oferecido configurava um outro meio de permear a fronteiras porosas do cárcere (Cunha, 2014CUNHA, Manuela Ivone. 2014. “The Ethnography of prisons and penal confinement”. Annual Review of Anthropology. Vol. 43, p. 217-233. ), pois mesmo que não adentrassem o cárcere, faziam parte do dia da visita.

Considerações finais

Com o objetivo de estender as análises sobre os personagens que compõe o dia de visita ao cárcere, procuramos, no presente estudo, investigar parcelas de frequentadores de duas prisões femininas que performatizam o gênero masculino, a maioria deles familiares das presas. Pelas narrativas de 50 interlocutores, observamos a produção discursiva dos homens visitantes acerca da conjugalidade e do cuidado carcerários, como também o exercício do apoio masculino nas margens das cadeias.

A familiaridade com a prisão pareceu relevante aos interlocutores. As comparações entre prisões masculinas e femininas, além de relatos sobre os privilégios dos homens visitados ou visitantes em cadeias masculinas, são importantes para pensar o modo desigual e assimétrico como o sistema prisional trata as mulheres - privadas de liberdade ou não.

Quando comparamos nossos achados com a literatura sobre visitas em cárcere masculino, notamos que não é exatamente a familiaridade com o cárcere que se destaca, mas sim os três sentidos de “família” atribuídos pelas “mulheres fiéis”: “O primeiro, família como sinônimo de visita. O segundo, família como uma qualidade positiva atribuída ao apenado (ter-família). E, o terceiro, família como uma característica negativa associada às mulheres (ser-família)” (Ferraz de Lima, 2013FERRAZ DE LIMA, Jacqueline Stefanny. 2013. Mulher fiel: as famílias das mulheres dos presos relacionados ao Primeiro Comando da Capital. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Carlos. : 63). Em nosso estudo, igualmente pontuamos a correspondência entre visita e família, visto que as normativas estaduais favoreciam que parentes se tornem visitantes. Do mesmo modo, observamos que ser familiar de presa tinha implicações negativas nas vidas dos interlocutores. Já o conceito positivo de “ter-família” parece potencializado no cárcere feminino, uma vez que a bibliografia e os próprios interlocutores informavam sobre o comum abandono das mulheres na prisão.

Para alguns interlocutores, tal abandono era comentado como meio de se diferenciarem de uma maioria masculina que não visita. Assim, eles se posicionavam como sujeitos amorosos, abnegados e resilientes, diferentemente dos demais, que seriam ingratos por deixar as parceiras no cárcere. Mas houve ainda narrativas que justificam a ausência de homens, que estariam impossibilitados legalmente de visitar, como também histórias sobre casais que se conheceram ou se reaproximaram após o aprisionamento das mulheres.

Pelos relatos, entendemos que a visita não configura a única forma de manutenção dos vínculos com as presas, uma vez que telefonemas ou cartas eram vias de acesso ao interior do cárcere. Ademais, se levarmos em consideração apenas os visitantes, os 24 cônjuges formaram mais da metade do grupo masculino de interlocutores. Todos esses aspectos precisam ser levados em consideração antes de taxarmos as ausências em dias de visita como abandono.

Seriam nossos interlocutores os “homens fiéis” em cadeias femininas? É uma equivalência complexa de traçar. As histórias mais comuns foram as de homens que mantiveram o relacionamento com as parceiras após o encarceramento delas. Eles eram, porém, visitantes novatos, com pouco tempo de experiência de visita, e não sabemos se eles continuaram frequentes nas prisões após o término do trabalho de campo. Ademais, não podemos ignorar as relações desiguais de poder entre homens e mulheres na sociedade (Scott, 1990SCOTT, Joan. 1990. “Gênero: Uma categoria útil de análise histórica”. Educação e Realidade. Vol. 16, n.2, p. 71-99.). Na literatura, são descritos atos simultâneos de submissão e de protagonismo das mulheres visitantes no cárcere masculino, no qual o exercício de poder feminino é existente, mas limitado (Ferraz de Lima, 2013FERRAZ DE LIMA, Jacqueline Stefanny. 2013. Mulher fiel: as famílias das mulheres dos presos relacionados ao Primeiro Comando da Capital. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Carlos. ; Barcinski et al, 2014BARCINSKI, Mariana et al. 2014. “Guerreiras do cárcere: uma rede virtual de apoio aos familiares de pessoas privadas de liberdade”. Temas em Psicologia. Vol. 22, nº 4, p. 929-940.). Também em nosso estudo anterior, havíamos destacado que as mulheres visitadas possuíam trajetórias de múltiplas vulnerabilidades, de modo que o confinamento parecia favorecer a dependência e submissão delas aos homens que as visitavam (Lermen & Silva, 2018LERMEN, Helena Salgueiro; SILVA, Martinho. 2018. “Masculinidades no cárcere: homens que visitam suas parceiras privadas de liberdade”. Psicologia: Ciência e Profissão. Vol. 38, nº spe2, p. 74-87.). Tudo isso favorece a cautela, antes de qualquer rotulação aos interlocutores.

Em contrapartida, destacamos a produção discursiva da masculinidade que se distancia dos padrões hegemônicos, em narrativas sobre o desempenho de atividades domésticas e do cuidado. São relatos que se contrabalançavam a todo momento, pois os mesmos homens se posicionavam como cuidadores, acionavam redes femininas que os apoiassem nessas tarefas. Já a ausência de companhias femininas também se mostrou relevante, especialmente entre o grupo paterno, que parecia mais frequente na prisão quando as mães não visitavam as filhas encarceradas.

Notamos também o apoio de homens a suas parceiras visitantes, mas reforçamos que as redes de sociabilidade observadas em campo eram majoritariamente femininas, constituídas principalmente pelas familiares de presas. Já entre os homens visitantes acessados, o cuidado carcerário não costumava ser dividido.

Ainda, no grupo de “cuidadores” - composto por pais, cônjuges, irmão, amigo/compadre, cunhados ou padrasto das mulheres presas -, nenhum tinha menos de 35 anos, enquanto as mulheres presas abaixo dessa faixa etária correspondem a 68% da população prisional feminina (Brasil, 2018BRASIL. 2018. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen Mulheres. 2ed. Brasília). Varella (2017VARELLA, Drauzio. 2017. Prisioneiras. 1ed. São Paulo: Companhia das Letras, 296p.) já havia reparado que homens nas prisões femininas costumam ser mais velhos. A diferença entre as observações do famoso médico e as nossas, é que encontramos um número maior de cônjuges nas filas de espera, ao passo que Varella sinaliza que seriam os pais e avôs das mulheres detidas os poucos homens em dias de visita. Não fica claro se o famoso médico conversou com esses homens que observava, ou se a diferença etária o fez conjecturar que eles teriam laços de consanguinidade e não de afinidade com as mulheres presas. Ainda, essas diferenças constatadas podem apenas estar relacionadas às especificidades das prisões investigadas.

Nossos resultados também apontam para divergências entre esses interlocutores. Os pais diziam não carregar a culpa pela prisão das filhas, mas sim a obrigação de visita-las. Já entre os companheiros, a visita não era um dever, mas um reconhecimento de que as parceiras eram inocentes ou dignas do investimento e do cuidado conjugal masculino.

Em suma, para nossos interlocutores, as idas às prisões femininas podem representar uma longa e familiar trajetória, uma nova experiência, uma obrigação, um reconhecimento, uma forma de cuidado ou um meio fornecer apoio. Em comparação com histórias das visitantes do cárcere masculino, observamos algumas semelhanças, como também diferenças, que levam a pensar sobre novas questões de gênero envolvidas no fenômeno das visitas em prisões, especialmente sobre o gerenciamento e a divisão sexual do cuidado. Sabemos que nossos achados são limitados e estão longe de qualquer generalização. São apenas algumas análises iniciais sobre homens em prisões femininas, um grupo social relevante no campo prisional, que carece de maior investimento acadêmico.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2020
  • Aceito
    28 Mar 2022
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