Acessibilidade / Reportar erro

Saúde de travestis e pessoas trans no Rio de Janeiro e Região Metropolitana: estratégias e condições de acesso

Trans people’s health conditions and strategies of access to health services in the city of Rio de Janeiro and its Metropolitan Area

Salud de travestis y transexuales en la ciudad de Río de Janeiro y Región Metropolitana: estrategias y condiciones de acceso

Resumo

O presente artigo tem como objetivo discutir estratégias e condições de acesso à saúde de travestis e pessoas trans a partir de informações colhidas por pesquisa realizada entre 2016 e 2017, que consistiu na aplicação de questionário em 391 pessoas trans e travestis habitantes do Município do Rio de Janeiro e de sua Região Metropolitana, bem como em entrevistas realizadas com a equipe de entrevistadores/as sobre o próprio processo de aplicação do questionário. São abordadas as seguintes dimensões: estratégias de acesso à informação e ao cuidado em saúde transespecífica; processos de afirmação de gênero e modificações corporais não-invasivas e procedimentos cirúrgicos; acesso e uso de hormônios e saúde mental. Os dados coletados apontam para a precariedade no acesso aos cuidados em saúde e para a importância de os serviços de saúde procurarem acolher efetivamente a enorme demanda não atendida dessa população por tais cuidados, sem culpabilizá-la por se manter muitas vezes fora de tais serviços.

Palavras-chave:
saúde; homens transexuais; mulheres transexuais; travesti; discriminação

Abstract

This article aims to discuss strategies and conditions of access to health care for transgender people based on information collected by a survey conducted between 2016 and 2017, which consisted of applying a questionnaire to 391 transgender people living in Rio de Janeiro city and Metropolitan Area. We discuss the following dimensions: strategies for access to information and care in transgender health; processes of gender affirmation and non-invasive body modifications and surgical procedures; access to and use of hormones; and mental health. The data collected point to the precariousness of access to health care and the importance of health services seeking to effectively accommodate the enormous unmet demand of this population for such care, without blaming them for often remaining outside such services.

Key-words:
health; transgender people; transsexual men; transsexual women; discrimination

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir estrategias y condiciones de acceso a la salud de travestis y personas trans a partir de informaciones obtenidas por una investigación realizada de 2016 a 2017, que consistió en la aplicación de un cuestionario en 391 personas trans y travestis habitantes de la ciudad de Rio de Janeiro y Región Metropolitana. Se abordan las siguientes dimensiones: estrategias de acceso a la información y al cuidado en salud transespecífica; procesos de afirmación de género y modificaciones corporales no invasivas y procedimientos quirúrgicos; acceso y uso de hormonas y salud mental. Los datos obtenidos señalan la precariedad en el acceso a los cuidados en salud y la importancia de que los servicios de salud busquen efectivamente acoger la enorme demanda no atendida de esa población por tales cuidados, sin culparla por mantenerse muchas veces fuera de tales servicios.

Palavras-chave:
saúde; mujeres transexuales; hombres transexuales; travestis; discriminación

Introdução

Este artigo tem como principal objetivo discutir as estratégias de acesso à saúde por parte de travestis e pessoas trans a partir da análise dos dados colhidos em pesquisa quantitativa que buscou produzir informações acerca das condições de vida da população trans moradora no município do Rio de Janeiro e em sua Região Metropolitana. A pesquisa1 1 Equipe da pesquisa TransUERJ: Coordenação geral: Anna Paula Uziel (UERJ) e Alain Giami (INSERM); Equipe da pesquisa: Adriana Maria Shad e Balthazar, Ana Beatriz Sant’Anna Magalhães, Ana Camilla de Oliveira Baldanzi, Aureliano Lopes da Silva Junior, Carolina Gonçalves Santos de Brito, Guilherme Silva de Almeida, Jimena de Garay Hernández, João Pedro Passos de Queiroz, Luana Guimarães, Luisa Bertrami D’Angelo, Marcela Virgílio Vendramini, Mario Felipe de Lima Carvalho, Sergio Luis Carrara, Vanessa Marinho Pereira; Comitê Assessor: Alessandra Ramos Makkeda, Bárbara Aires, Daniela Murta Amaral, Denise Thaynáh Leite, Giowana Cambrone, Leila Dumaresq, Leonardo Peçanha, Lívia Casseres, Márcia Cristina Brasil Santos, Veriano Terto Junior; Equipe de entrevistadoras e entrevistadores: Artur Costa, Bárbara Aires, Beatriz Cordeiro, Breno dos Santos, Gilmara Cunha, Leonardo Peçanha, Luciana Vasconcellos, Maria Elis Costa Alencar, Shélida Ayana Dias Machado, Simon Prado, Wescla Vasconcelos; Apoio estatístico: Greice Conceição; Apoio técnico: Alice Helena do Nascimento, Marina Fernandes Filha.Entrevistadores/as receberam remuneração por questionário aplicado, mas as pessoas entrevistadas não receberam nenhum tipo de remuneração pela participação na pesquisa. do qual é fruto intitula-se, “Saúde e cidadania de pessoas trans no contexto do HIV-Aids no Brasil: uma aproximação comparativa Brasil/ França”, realizada em parceria com o INSERM (Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale/França) e financiada pela ANRS (Maladies infectieuses émergentes/França), centrou-se nos itinerários de saúde percorridos por esses sujeitos em seu processo de afirmação de gênero2 2 Uma linguagem menos comprometida com atitudes de reprovação moral e/ou sanitária das sexualidades, expressões e identidades de gênero não-convencionais ou não hetero-cisnormativas tem sido foco de atenção constante do movimento LGBTQIA+, especialmente no universo trans. Por nos parecer ser a que mais positivamente concebe o que ainda é tratado como crime, anormalidade, patologia, optamos nesse artigo por utilizar a expressão “processo de afirmação de gênero”. Em certo sentido, a expressão procura redefinir processos descritos como de “transexualização”, “transição”, “redesignação”, “adequação”, “readequação” (de sexo e/ou gênero) em uma formulação menos estigmatizante e discriminatória. e exercício de cidadania, em especial no acesso a serviços de saúde, tecnologias de modificações corporais, demandas jurídicas, situação frente ao HIV-AIDS e outras ISTs3 3 Por questões de limitação de caracteres e por avaliarmos que os dados referentes à HIV/Aids e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis merecem discussão mais aprofundada, optamos por não trabalhar com tais temas neste artigo. . Abordaremos aqui as informações mais convencionalmente compreendidas como relativas ao campo da saúde, a saber: estratégias de acesso à informação e ao cuidado em saúde transespecífica, inclusive saúde mental; processos de afirmação de gênero através de modificações corporais não-invasivas,4 4 Em contraste com procedimentos invasivos de modificação corporal, chamamos de não-invasivos procedimentos que operam nas superfícies corporais, que são em geral reversíveis e prescindem de profissional especializado para sua aplicação. de procedimentos cirúrgicos e da utilização de hormônios. A pesquisa foi aprovada pelo CONEP (CAAE 50682415.8.0000.5282).

O acesso à saúde no sistema público vem se modificando em relação aos recursos e aos desejos de homens e mulheres trans e travestis. No que tange a intervenções cirúrgicas e medicamentosas visando modificações corporais mais diretamente relacionadas à afirmação de gênero de pessoas trans no Brasil, temos como principais marcos regulatórios a Resolução 1482/1997 do Conselho Federal de Medicina (CFM)CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 1.482, de 19 de setembro de 1997. Autoriza a título experimental, a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários com o tratamento dos casos de transexualismo. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1482_1997.htm>.
http://www.portalmedico.org.br/resolucoe...
, que autorizou em caráter experimental as cirurgias de transgenitalização no país e, posteriormente, a Portaria 1707/2008 do Ministério da Saúde (MS), que instituiu o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde.5 5 Atualmente, o Processo Transexualizador é regulamentado pela Portaria n. 2803/2013 do Ministério da Saúde e contempla, no âmbito do Sistema Único de Saúde, um conjunto de ações, estratégias, equipes e serviços que visam garantir o processo de afirmação de gênero de pessoas trans e travestis, por meio de cirurgias, hormonioterapia, acompanhamento clínico, pré e pós-operatório. Estas regulamentações, as resoluções do CFM e portarias do MS subsequentes foram importantes para a inscrição da saúde específica das pessoas trans no sistema de saúde. Tal acesso à saúde, porém, ainda não tem sido garantido a toda população trans e ainda se dá muitas vezes sob uma lógica patologizante, que não garante plenamente a integralidade do cuidado (Almeida e Murta, 2013ALMEIDA, Guilherme; MURTA, Daniela. 2013. “Reflexões sobre a possibilidade da despatologização da transexualidade e a necessidade da assistência integral à saúde de transexuais no Brasil”. Sexualidad, Salud y Sociedad-Revista Latinoamericana. Agosto de 2013. no. 14, p. 380-407.; Rocon, Sodré e Rodrigues, 2016ROCON, Pablo; SODRÉ, Francis; RODRIGUES, Alexandro. 2016. Regulamentação da vida no processo transexualizador brasileiro: uma análise sobre a política pública. Revista Katálysis. Jul-set 2016. v. 19, no 2, p. 260-269.; Teixeira, 2017TEIXEIRA, Flavia. 2017. (DES)ENGANO: revisando as Portarias do Processo Transexualizador no SUS. In: UZIEL, A. P.; GUILHON, F. (Org.). Transdiversidades: práticas e diálogos em trânsitos. 1ed. Rio de Janeiro: Eduerj , v., p. 313-352.; Matos et al, 2020MATOS, A. et. al . 2020. Análise da Resolução 2265 de 20 de setembro de 2019 - Resolução produzida pelo Conselho Federal de Medicina. Disponível em http://www.fafich.ufmg.br/nuh/2020/01/24/analise-da-resolucao-cfm-2265-de-20-de-setembro-de-2019/
http://www.fafich.ufmg.br/nuh/2020/01/24...
; Bento, 2006BENTO, Berenice. A (re) invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. 1ª ed. Rio de Janeiro: GARAMOND/CLAM, 2006. 256p.). Ademais, uma vez que nem todas as pessoas podem ser absorvidas pelo sistema de saúde, seja público ou privado, por falta de acesso, por sua inexistência ou falta de vagas, o desejo e a intenção de responder aos padrões de gênero empurram parte da população trans para o mercado clandestino que, de forma precária e marcado por riscos, atende ao procurado. Assim, os processos de afirmação de gênero para pessoas trans se dão em grande medida ao largo do campo institucionalizado da saúde ou fora dos serviços oficiais de saúde, visto tais serviços não contemplarem plenamente as demandas desta população no que tange à construção do gênero e de si. Deste modo, como afirma Marco Aurélio Prado (2018PRADO, Marco. 2018. Ambulare. 1ª ed. Belo Horizonte: PPGCOM UFMG. 85p.), “as normas de gênero funcionam sustentando o mercado clandestino, a clandestinidade do cuidado e acesso para que alguém possa participar da oficialidade do serviço” (p.56).

Duas ideias preliminares mais gerais nos parecem fundamentais para a abordagem dos processos de afirmação de gênero da população trans vivendo no Rio de Janeiro ou em sua Região Metropolitana6 6 Os principais serviços voltados para a saúde transespecífica na região metropolitana do Rio de Janeiro são os seguintes: Hospital Universitário Pedro Ernesto - HUPE/UERJ; Policlínica Piquet Carneiro, da UERJ, e Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia do Rio de Janeiro (IEDE/RJ), que possuem ambulatório para atendimento a travestis e homens e mulheres transexuais; Policlínica de Especialidades Sylvio Picanço, em Niterói, ambulatório para atendimento à população trans, mas que não existia à época da pesquisa; Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fiocruz/RJ, que a partir do projeto Transcender, coordenado por Beatriz Grinsztjen (Grinsztejn et al, 2017) tem realizado uma série de estudos e atendimento clínicos junto à travestis e mulheres transexuais. . A primeira diz respeito ao fato de os itinerários de modificação corporal, variáveis para as diferentes categorias identitárias, construírem-se a partir de atravessamentos de gênero, raça/etnia e classe, bem como do modo como o sistema de saúde tem ou não garantido o processo de afirmação de gênero com um direito. A segunda é a de que a afirmação de gênero pode ser compreendida de modo geral como uma busca por saúde. Todas as modificações corporais realizadas pelas pessoas trans - desde modificações caseiras “cosmético-estéticas” (estilo de cabelo, de vestimentas, etc.) até procedimentos cirúrgicos realizados junto a serviços de saúde - fariam, portanto, parte desse processo.

Método

A idealização e execução da pesquisa baseou-se no postulado geral de que pessoas trans e travestis apresentam marcada vulnerabilidade no domínio sanitário e que essa vulnerabilidade está fortemente determinada pelas condições de cidadania precárias, pela estigmatização e discriminação vividas no acesso ao sistema de saúde. Neste sentido, partimos da hipótese de que, de modo geral, a cidadania desta população não se efetiva plenamente em seus âmbitos social, jurídico e sanitário, o que merece maior investigação e análise. Buscando, então, conhecer melhor esta população, suas demandas sociais, jurídicas e sanitárias e os itinerários que percorre com o objetivo de maior garantia de cidadania e afirmação de si, realizamos a aplicação de um questionário7 7 Trata-se de um questionário produzido na França e que foi traduzido e adaptado para a realidade brasileira visando possíveis aproximações e comparações entre tais contextos. e analisamos seus principais resultados.

O questionário foi composto por 136 questões fechadas, com apenas duas perguntas abertas: uma indagando sobre a atividade profissional da pessoa entrevistada e outra sobre a sua auto-identificação de gênero. O instrumento foi aplicado a 391 pessoas trans e travestis habitantes da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, entre os anos 2016 e 2017. A equipe de entrevistadoras/es foi composta por pessoas trans e travestis indicadas pelo Comitê Assessor da pesquisa,8 8 Desde seu início, ou seja, desde a formulação do questionário, a pesquisa contou com um comitê assessor constituído por lideranças nacionais do movimento trans e por pessoas cisgênero que desempenham funções nevrálgicas nos serviços de atenção à população trans fluminense. Através da utilização não sistemática do método conhecido como bola de neve/snowball, as/os entrevistadoras/es acionaram suas redes de relações para acessar entrevistadas/os. Desta forma, tanto a composição da equipe de entrevistadoras/es como os nichos que procuraram acessar ativamente foram pensados no sentido de garantir a maior diversidade de perfis de pessoas trans na região, considerando faixa etária, classe social, gênero e territorialidade.

O universo de respondentes atingidos por essa metodologia mostrou-se bastante diverso. Responderam ao questionário universitários/as oriundos/as das camadas médias urbanas, pessoas sem escolaridade, moradoras/es da periferia da cidade e das favelas, pessoas em situação de rua ou vivendo em abrigos, algumas dedicadas ao trabalho sexual e/ou ao seu gerenciamento, imigrantes de outras cidades, usuárias/os e comerciantes de drogas ilícitas, pessoas vivendo com HIV/ Aids, pessoas trans com mais de 65 anos, dentre outros grupos e categorias sociais. No entanto, é importante sinalizar as limitações que essa amostragem apresenta para os resultados da pesquisa: apesar desta busca por um universo diverso de entrevistados/as, nossa amostra não se constitui como representativa de determinado universo populacional, mas sim de esforços deliberados de entrevistadores/as politicamente engajados/as no acesso a distintas redes de sociabilidade trans.

Os/as entrevistadores/as foram acompanhados/as regularmente por coordenadoras de campo com quem discutiram os aprendizados, as observações, as dificuldades, os desafios e as descobertas vividas ao longo do processo de aplicação do questionário. São aqui também incorporadas informações oriundas do registro desses encontros, bem como de entrevistas qualitativas realizadas com os/as entrevistadores/as individualmente no final da fase de aplicação dos questionários.

Quanto às identidades e expressões de gênero, indagadas através de uma questão aberta9 9 Questão 133: “No que diz respeito a sua identidade ou expressão de gênero, como você se define atualmente?” , os dados coletados revelaram uma multiplicidade de auto-identificações, com 78 diferentes respostas. Algumas delas buscavam descrever o sujeito de forma mais singularizada - como, por exemplo, “nem homem nem mulher”, “mulher transexual em construção”, “homem trans não-binário”; outras coincidiam com as categorias identitárias mais recorrentes no universo LGBTQIA+ brasileiro, como “travesti”, “homem transexual”, etc. Estas nomeações foram as mais recorrentes e forneceram a base para a construção das categorias identitárias agregadas que utilizamos para a análise dos dados. Trabalhamos assim com categorias dispostas sobre um duplo eixo. No primeiro, agregamos as auto-identificações segundo algum dos polos do binarismo de gênero (feminilidade/masculinidade) ou a nenhum deles (não-binário). No segundo eixo, dispuseram-se seis categorias agregadas: Homem (n=57); Homem Trans (n=59); Mulher (n=28); Mulher Trans (n=69); Travesti (n=145) e Não-binário (n=14)10 10 Para uma maior discussão acerca deste processo de categorização, ver: Carrara, et al (2019). . Nossa opção por utilizar categorias sem qualquer menção à expressão “trans” e a seus derivativos, como acontece com Homem e Mulher, deveu-se à insatisfação dos/as próprios/as respondentes com tais qualificativos. Almeida (2012ALMEIDA, Guilherme. 2012. ‘Homens trans’: novos matizes na aquarela das masculinidades. Revista Estudos Feministas. 2005. Vol. 20, p. 513-523.) já apontava para o fato de alguns homens trans rejeitarem o termo “transexual” por verem a transexualidade como estado transitório a ser superado pelo acesso às tecnologias médico-cirúrgicas e ao reconhecimento legal da identidade de gênero autoatribuída. Para eles, não se tratava apenas de negar o termo “transexualismo” ou “transexualidade” por seu caráter patologizante, mas da recusa de verem-se e/ou serem vistos como distintos dos demais homens.

Perguntamos às/aos respondentes há quanto tempo apresentavam-se publicamente no gênero com o qual se identificavam no momento da entrevista11 11 É importante destacar que, segundo registros da equipe de entrevistadoras/es, para várias pessoas foi difícil apontar o momento exato em que começaram a se apresentar no seu gênero, sinalizando que essa apresentação deve ser compreendida mais como um processo do que a partir de um acontecimento específico. . As pessoas que se identificaram no espectro das feminilidades mantinham sua identificação de gênero há mais tempo: 33,5% há mais de 10 anos; 21,1%, de 8 a 10 anos; e 23,6%, a até 4 anos. De outro lado, apenas 6% das pessoas situadas no espectro das masculinidades teriam começado a se apresentar no seu gênero entre 8 e10 anos atrás; 8,6%, há mais de 10 anos; e 63%, há até 4 anos. Todas as 14 pessoas Não-binárias entrevistadas começaram a se apresentar apenas há até 4 anos. Se o tempo da afirmação pública de uma identidade de gênero está obviamente atrelado à idade da/o respondente, ele também se vincula à historicidade própria a cada uma das identificações de gênero disponíveis em determinado contexto social. Assim, a emergência da categoria “transexual” e “homem trans” é, por exemplo, bem mais recente que a emergência da categoria “travesti”.

Para analisar as estratégias e condições de acesso à saúde da população trans no município do Rio de Janeiro e em sua Região Metropolitana, utilizaremos nesse artigo sobretudo as categorias dispostas no segundo eixo mencionado acima12 12 No presente artigo, decidimos não trabalhar os dados relativos aos 14 sujeitos que se definiram como não binários uma vez que, dado seu pequeno número, um tratamento estatístico poderia produzir informações inconsistentes e inferências enviesadas. . De modo geral, como detalharemos ao longo do artigo, observou-se uma variação importante quanto aos itinerários de saúde percorridos pelas/os entrevistados/as em sua afirmação de gênero e exercício de cidadania, segundo as diferentes categorias identitárias agregadas. Homens e Homens Trans apresentaram contrastes mais marcados em relação a Mulheres, Mulheres Trans e Travestis, sobretudo às Travestis. Notaram-se também diferenças quanto a tais dimensões quando se comparam respondentes que usaram alguma referência à expressão “trans” em sua autoidentificação de gênero (agrupadas por nós como Homens Trans ou Mulheres Trans) com aqueles/as que não o fizeram, agrupadas por nós como Homens ou Mulheres.

Estratégias de acesso à informação e ao cuidado em saúde transespecífica13 13 Devido a limitações de formato, neste artigo analisamos o acesso à saúde por pessoas trans principalmente a partir do marcador de autoidentificação de gênero, o que implica assumirmos a necessidade de maiores análises deste material utilizando-se outro recortes, como de classe, escolaridade, raça, entre outros.

Na aplicação do questionário e contato com a população entrevistada, alguns/ as entrevistadores/as perceberam que muitas pessoas, especialmente aquelas no início do processo de afirmação de gênero ou em situação de maior vulnerabilidade, tinham pouca ou nenhuma informação sobre seus direitos, incluindo o direito à saúde de forma ampla e, especificamente, os direitos relativos ao acesso público ao Processo Transexualizador. Para o acesso a estas informações, os/as entrevistadores/as destacaram a importância da participação dos/as respondentes em redes de sociabilidade de pessoas trans. Quanto a tal participação, as respostas obtidas através da aplicação do questionário revelam diferenças importantes, segundo cada uma das categorias identitárias agregadas. Ao serem interrogados/ as sobre acesso a sites de associações ou fóruns trans na internet para obter informações médicas, 73,7% dos Homens e 69,5% dos Homens Trans teriam acessado tais canais, em marcado contraste com 13,8% das Travestis. Isso também se repete quando se trata de busca de informação sobre direitos. Entre Homens e Homens Trans, 71,9% e 74,6%, respectivamente, obtiveram tal informação em sites de associações ou fóruns trans, em contraste com apenas 27,6% das Travestis.

Das pessoas entrevistadas, 70,4% consideravam que suas condições de saúde eram “boas” (47,1%) ou “muito boas” (23,3%). Para tratar de questões de saúde não diretamente relacionadas ao processo de afirmação de gênero, muitas/ os entrevistadas/os fizeram uso de remédios caseiros (58%) e/ou compram medicamentos por conta própria (64%). Apenas um terço do total da amostra (32%) afirmou recorrer ao sistema oficial de saúde, porcentagem que, entre as Travestis cai para 14,5%, contrastando fortemente com Homens Trans (52,5%), Mulheres Trans (44,9%) Mulheres (35,7%) e Homens (35,1%). As Travestis são também as que menos procuram serviços de saúde privado através de planos de saúde (0,7%), contrastando novamente com Homens Trans (35,6%), Homens (31,6%), Mulheres (28,6%) e Mulheres Trans (11,6%).

Esses dados sobre a baixa procura pelos serviços públicos entre a população trans vão ao encontro da percepção de um dos entrevistadores, que ressalta a discriminação que as pessoas trans moradoras no Rio de Janeiro e em sua Região Metropolitana sofrem nos serviços de saúde de forma geral:

A questão da saúde foi muito marcada, e aí principalmente os homens trans, por conta do não acesso a determinadas especialidades, e aí ficou muito nítido que muitos estão ficando doentes porque não estão indo ao ginecologista, ou porque não estão indo ao endócrino, e as mulheres trans também, estou sentindo a mesma coisa, mas só que, no caso delas, eu percebi que elas não vão mesmo a nenhum médico, eu acho que tem mais essa questão de ter receio de sofrer transfobia, e elas não vão mesmo a médico nenhum, nem a esses acessos assim, que a gente tem, Fiocruz14 14 Devido à realização de pesquisas clínicas voltadas à prevenção ao HIV/Aids junto à população trans, a Fiocruz acabou se tornando uma referência no cuidado integral à saúde de trans, especialmente travestis e mulheres trans (Grinsztejn, 2017). e tal, que é um pouco mais sensível [...] Mas também teve pessoas que falaram que não, que vai [assim] mesmo [ao serviço], e dane-se se vai ler como homem ou como mulher, tanto os homens trans, como as mulheres trans e travestis também, pessoas que vão mesmo, e que não importa, o que importa era cuidar da saúde, e que essa pessoa ia tanto no plano de saúde, no particular, como no SUS. Teve de tudo assim, mas a maioria era de pessoas que, mesmo tendo condições financeiras pra ir até, não estavam indo porque tem medo. Então, isso é muito violento assim, forte de ouvir (Entrevistador 1, homem trans).

Mais do que uma não procura pelos serviços de saúde, o que os dados do questionário, os relatos dos/as entrevistadores/as e outras pesquisas revelam (Rocon et al, 2018ROCON, Pablo. et al. 2018. “O que esperam pessoas trans do Sistema Único de Saúde?”. Interface (Botucatu), v. 22, no 64, p. 43-53.; Rocon et al, 2019ROCON, Pablo, et al. 2019. Desafios enfrentados por pessoas trans para acessar o processo transexualizador do Sistema Único de Saúde. Interface (Botucatu ) - Comunicação, saúde e educação. 2019. Vol. 23.; Magno, Dourado e Silva, 2018MAGNO, Laio; DOURADO, Inês; SILVA, Luis. 2018. “Estigma e resistência entre travestis e mulheres transexuais em Salvador, Bahia, Brasil”. Cad. de Saúde Pública, v. 34, no 5, e00135917.) é que há uma exclusão das pessoas trans do sistema oficial de saúde. Tanto pela dificuldade de acesso decorrente da influênciade marcadores sociais como território e classe, como também pela discriminação transfóbica que sofrem ao acessar os serviços de saúde.

Apontam para essa dupla exclusão os dados acerca do auxílio ou participação de profissionais de saúde no processo de afirmação de gênero: apenas 34,8% das pessoas entrevistadas afirmaram terem tido algum auxílio profissional e, em 41,2% dos casos, o primeiro contato foi com psicólogos; em 19,9%, com psiquiatras. Neste sentido, destacamos a presença de certo discurso especialista que identifica o início do processo de afirmação de gênero mais atrelado à dimensão da saúde mental e, portanto, ao campo psi e não à saúde de forma geral. Por outro lado, é possível pensar que profissionais psi que se apoiam em perspectivas despatologizantes possam estar oferecendo um suporte importante para que as pessoas trans e travestis comecem o processo de afirmação de gênero.

Se, como vimos, um terço da amostra teve algum tipo de apoio profissional no processo de afirmação de gênero, as diferenças entre as várias categorias são marcantes. Tiveram algum apoio, 81,4% dos Homens Trans; 64,9% dos Homens, 49,6% das Mulheres Trans, 39,3% das Mulheres; 4,8% das Travestis. Em relação a psicólogos/as, apontados/as pela maior parte das pessoas como o/a profissional mais acessado/a, tal apoio foi referido por 63,6% das Mulheres, 53,2% dos Homens Trans, 42,9% das Mulheres Trans, 25% das Travestis e 16,2% dos Homens. Quando comparamos todas as identidades situadas no polo das masculinidades com as situadas no polo das feminilidades temos que 73,3 % deles relataram terem tido algum tipo de auxílio na afirmação do gênero, contra 19,0% delas que relatam o mesmo. Das pessoas que tiveram acompanhamento de profissionais da saúde no processo (19,4% do total da amostra), 56,7% receberam o diagnóstico de “transexualismo” de um/a psiquiatra.

Há importantes diferenças quanto à experiência do diagnóstico, o que corrobora a ideia de que o processo de construção das identidades interage com discursos biomédicos que regulam o acesso ao tratamento e ao cuidado no processo de afirmação de gênero. É marcado o contraste entre Homens e Travestis. Enquanto 70,3% dos Homens que declararam ter recebido algum auxílio (representando 45,6% do total de Homens entrevistados) já haviam recebido o diagnóstico de transexualidade, apenas 37,5% das Travestis que afirmaram ter recebido tal auxílio (representando 2% do total de Travestis entrevistadas) relataram o mesmo quanto ao diagnóstico. É possível observar também diferenças entre as pessoas que usaram alguma referência à expressão “trans” na sua autodefinição, agrupadas por nós nas categorias Homens Trans e Mulheres Trans, e as que não usaram, agrupadas nas categorias Homens e Mulheres. Das pessoas que responderam a esta questão, 70,3% dos Homens, 56,5% dos Homens Trans, 63,6% das Mulheres e 42,9% das Mulheres Trans foram diagnosticadas/os. É interessante notar que o acionamento de identificação de gênero que prescinde do qualificativo “trans” parece estar relacionado à experiência do diagnóstico e talvez à ideia de que se ter completado uma trajetória de reconhecimento e de incorporação às categorias de gênero polares, que podem assim ser afirmadas sem qualquer adjetivação. Ainda em relação a esse ponto, no momento da aplicação do questionário, 22,4% das pessoas estavam ainda com consultas em curso e três pessoas (duas Mulheres Trans e um Homem Trans) haviam recebido outro diagnóstico, incluindo “transtorno afetivo bipolar”.

Quanto ao local em que foram realizadas as consultas para obter o diagnóstico, nota-se que a maioria das pessoas acessou serviços públicos, sejam hospitais públicos (36,8%) ou hospitais universitários (27,2%). Chama ainda a atenção que, entre quem acessou serviços privados, o mais frequente foi o acesso a consultórios (24,3%) e não hospitais (3,7%). Essa diferença talvez se explique pelo fato de o contato com os serviços acontecer por indicação ou encaminhamento.

Processos de afirmação de gênero e modificações corporais invasivas e não-invasivas

No processo de afirmação de si enquanto sujeito marcado por certa identificação de gênero, diversas pessoas trans e travestis se utilizam, para modificação corporal, de recursos tidos como menos invasivos (Silva Junior, 2016SILVA JUNIOR, Aureliano. 2016. “Linda, doce, fera”: a construção de corporalidades políticas no concurso de beleza Miss T Brasil. Tese de doutorado, Saúde Coletiva, UERJ.). Tais recursos são os primeiros ou os mais primários na afirmação do gênero de pessoas trans (como, aliás, parece ser o caso também para pessoas cis). A quase totalidade das pessoas entrevistadas respondeu que já havia recorrido ou pensava em recorrer a tais recursos: 94,1% à mudança na estética dos cabelos e 96,7% ao uso de roupas e acessórios. Não encontramos diferença significativa entre as feminilidades e masculinidades nestes itens, ao contrário de mudanças estéticas nas unhas, uso de maquiagem com fins estéticos e depilação definitiva, que mostraram resultados que apontam para uma maior feminização destes recursos. Já a realização de atividades físicas para desenvolvimento muscular é mais presente entre as pessoas cuja configuração identitária situa-se entre as masculinidades (92.3%) do que entre as que se situam entre as feminilidades (48.9%).

O uso de faixas (colete ou faixa/binder) ou outros recursos para apertar os seios e o uso de próteses externas (não definitivas e/ou invasivas) para realçar os seios foi relatado por 91,3% dos Homens; 94,9% dos Homens Trans; 29,6% das Mulheres; 46,9% das Mulheres Trans e 52,6% das Travestis. O uso de recursos de apresentação dos genitais, seja o uso de próteses penianas externas ou de adesivos (aquendar/tucking), foi de 96,5% entre Homens; 98,3% entre Homens Trans; 22,2% entre Mulheres; 40% entre Mulheres Trans e 37,6% entre Travestis.

Quase todas as pessoas entrevistadas realizaram uma ou mais cirurgias visando expressar corporalmente seu gênero. As cirurgias mais comuns foram aquelas realizadas nos seios. Entre Homens e Homens Trans, 26,7% já haviam realizado mamoplastia masculinizadora e 73,2% pretendiam fazê-la. Entre Mulheres, Mulheres Trans e Travestis, 31,6% já haviam feito alguma modificação feminilizadora nos seios e 42,5% pretendiam colocar prótese de silicone. Dentre todas as pessoas que fizeram intervenção cirúrgica no peito, mais da metade (57,6%) recorreu a serviços privados (no Brasil, 48,9%; no exterior, 8,7%). Note-se que mais de um quarto da amostra (27,2%) havia recorrido a serviços clandestinos. Apenas 12% recorreram a hospitais públicos, sendo que apenas 8,7% realizaram o procedimento no contexto do Processo Transexualizador do SUS. Entre os que o fizeram, destacam-se Homens e Homens Trans (19,4%) em contraste com Mulheres, Mulheres Trans e Travestis (3,5%).

Um procedimento de afirmação de gênero recorrente entre Mulheres, Mulheres Trans e, sobretudo, Travestis foi a injeção de silicone líquido industrial, cuja utilização, por apresentar graves riscos à saúde, não é autorizada pela ANVISA (2018)AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA - ANVISA. Risco à saúde: silicone industrial para uso estético. Notícias, 2018. Disponível em: http://portal.anvi-sa.gov.br/rss/-/asset_publisher/Zk4q6UQCj9Pn/content/id/4697433.
http://portal.anvi-sa.gov.br/rss/-/asset...
. Quando perguntadas se haviam feito uso de silicone líquido ou pensavam fazer, responderam afirmativamente 78,1% das Travestis, 49,2% das Mulheres Trans e 39,3% das Mulheres. Já haviam efetivamente realizado o procedimento 55,6% das Travestis, 31,8% das Mulheres Trans e 25% das Mulheres. Tais porcentagens coincidem com as encontradas no estudo de Pinto e colaboradores/as (2017PINTO, Tthiago. et al. 2017. “Silicone líquido industrial para transformar o corpo: prevalência e fatores associados ao seu uso entre travestis e mulheres transexuais em São Paulo, Brasil”. Cadernos de Saúde Pública. 2017. v. 33, no 7, e00113316.).

A recorrência no uso ou desejo pelo acesso ao silicone líquido industrial, em especial entre as Travestis, parece corroborar com a ideia de que tal procedimento ocupa historicamente um importante lugar simbólico em suas trajetórias de afirmação de gênero (Pelúcio, 2009PELÚCIO, Larissa. 2009. Abjeção e desejo. São Paulo: Annablume. 264p.; Santos, 2014SANTOS, Ailton. 2014. O gênero encarnado: modificações corporais e riscos à saúde de mulheres trans. Tese de doutorado, Saúde Coletiva, UERJ.). Além disso, entre as entrevistadas, as Travestis eram as que experimentavam maior vulnerabilidade em termos socioeconômicos e de escolaridade15 15 72,4% das Travestis entrevistadas se autodefiniu como preta, 42,8% ganhavam até um salário mínimo e 26,9% não tinha terminado o ensino fundamental. . A interação entre classe e escolaridade parece excluí-las mais facilmente do acesso à saúde, tornando-as mais expostas a procedimentos inseguros de afirmação de gênero. Como demonstrado por Boltanski (1984BOLTANSKI, Luc. 1984. As classes sociais e o corpo. São Paulo: Paz e Terra. 191p.) para o contexto francês, aqui também parece imperar a lógica de que, entre as classes dominantes, é maior a adesão aos discursos biomédicos e mais desimpedido o acesso a cuidados “oficiais” de saúde.

Apenas 9,2% das Travestis afirmaram não se interessar pelo uso do silicone líquido industrial, enquanto uma porcentagem muito maior das Mulheres (42,9%) e das Mulheres Trans (43,3%) declararam o mesmo. Poucas deixaram de recorrer a tal procedimento por não terem recursos financeiros (14,3% das Mulheres; 4,5% das Mulheres Trans; 7% das Travestis), o que parece indicar a importância desta modificação corporal tanto como espécie de investimento possível - a tal “plástica dos pobres” de Edmonds (2010EDMONDS, Alexander. 2010. Pretty modern: beauty, sex, and plastic surgery in Brazil. Duke University Press. 318p.) -, quanto um projeto de afirmação de si bastante arraigado no imaginário social travesti e cujos efeitos desejados no corpo são avaliados por elas como “melhores” do que aqueles que os serviços oficiais de saúde se dispõem a ofertar a esta população (Silva Junior, 2016SILVA JUNIOR, Aureliano. 2016. “Linda, doce, fera”: a construção de corporalidades políticas no concurso de beleza Miss T Brasil. Tese de doutorado, Saúde Coletiva, UERJ.).

Já as cirurgias genitais foram bem menos frequentes: 0,9% do grupo de Homens e Homens Trans haviam feito prolongamento de clitóris e uretra e construção de saco escrotal, mas 66,4% pretendiam fazê-lo, sendo que 31% só não haviam buscado ainda tal procedimento por não confiarem nas técnicas cirúrgicas atualmente disponíveis. Nenhum dos entrevistados realizou a faloplastia, ainda que 63,2% pretendam fazê-la; sendo que 35,1% ainda não a haviam feito também por não confiarem na qualidade das técnicas disponíveis. Nesse grupo, 10% fizeram a histerectomia, dos quais 33%, no âmbito do Processo Transexualizador disponibilizado pelo SUS. Entre Mulheres, Mulheres Trans e Travestis, apenas 3% haviam se submetido a uma vaginoplastia, mas 43,8% afirmaram pretender realizá-la. Algumas (4,9%) estavam na fila do Processo Transexualizador esperando pela disponibilização do procedimento no SUS; um número maior (35,4%) afirmou não ter recursos financeiros; outras (2,2%), não confiarem nas técnicas cirúrgicas e uma delas, por não saber como proceder para realizar esta cirurgia. Considerando todas/os respondentes, apenas 1% havia feito a cirurgia nos genitais no âmbito do Processo Transexualizador e 1,8%, em serviços privados.

Acerca do acesso e sentidos atribuídos ao Processo Transexualizador e os serviços privados de saúde, um entrevistador afirmou que:

A maioria tinha acesso [ao serviço público de saúde] e o mais engraçado é que, mesmo tendo às vezes o acesso a esse serviço, muitos precisavam buscar a cirurgia por meios próprios porque o serviço não consegue oferecer e, em alguns tipos de cirurgia, dava pra ver assim que as técnicas aqui no país... assim, não transmitiam confiança; os médicos, as técnicas, então… também existia meio que um medo por trás de… “Como será que é feito isso no SUS?”, porque você não vê ninguém fazendo. [...] E, geralmente, quem tava no serviço era geralmente pessoas mais antigas, ou pessoas novas que conseguiram entrar porque conheciam alguém que já tinha indicado, meio que já andava sondando esse caminho pra como é chegar lá (Entrevistador 1, homem trans).

Em relação a todas as intervenções corporais que as pessoas trans entrevistadas julgam importantes para afirmação de gênero, quando se comparam os dados relativos aos procedimentos que as/os respondentes declararam já ter feito com os dados relativos aos procedimentos que ainda planejavam fazer, tem-se uma ideia inicial da extensão da demanda apresentada por essa população que não atendida ou não plenamente atendida pelos serviços de saúde.

Acesso e uso de hormônios

Das pessoas que já fizeram ou fazem uso de hormônios, apenas 2,2% declararam ter acesso aos hormônios através de instituições de saúde. Quase metade (47,8%) afirmou obter hormônios de outras pessoas trans que também os usam e 31,2% disseram obtê-los de pessoas cisgênero. De modo geral, a via institucional não garante, como se vê, o acesso à hormonioterapia. Nesse sentido, é expressivo o número de pessoas que afirmaram ter usado doses mais altas do que as medicamente prescritas e/ou recomendadas. Comparando as categorias, Travestis (93,4%) e Mulheres Trans (89,3%) aproximam-se em relação aos padrões desse uso, respondendo que utilizam hormônios além do prescrito, visando acelerar seus processos de feminilização. Entre Homens e Homens Trans, também existem diferenças, sendo muito mais recorrente o uso dessas substâncias para acelerar o processo de masculinização entre Homens (40,8%) do que entre Homens Trans (24,5%). De toda forma, entre o grupo de masculinidades parece ser muito menos recorrente o uso excessivo de hormônios do que no grupo de feminilidades. Embora pouco numerosas, chama a atenção que 7 pessoas (1 Homem, 2 Homens Trans, 2 Mulheres e 2 Travestis) informaram não saber qual a dose recomendada. Mais uma vez, este uso “abusivo” de hormônios, feito basicamente fora de serviços de saúde, aponta para o fato de a saúde integral das pessoas trans não estar sendo efetivada plenamente da forma como a população trans necessita e/ou deseja (Almeida e Murta, 2013ALMEIDA, Guilherme; MURTA, Daniela. 2013. “Reflexões sobre a possibilidade da despatologização da transexualidade e a necessidade da assistência integral à saúde de transexuais no Brasil”. Sexualidad, Salud y Sociedad-Revista Latinoamericana. Agosto de 2013. no. 14, p. 380-407.; Rocon, Sodré e Rodrigues, 2016ROCON, Pablo; SODRÉ, Francis; RODRIGUES, Alexandro. 2016. Regulamentação da vida no processo transexualizador brasileiro: uma análise sobre a política pública. Revista Katálysis. Jul-set 2016. v. 19, no 2, p. 260-269.; Teixeira, 2017TEIXEIRA, Flavia. 2017. (DES)ENGANO: revisando as Portarias do Processo Transexualizador no SUS. In: UZIEL, A. P.; GUILHON, F. (Org.). Transdiversidades: práticas e diálogos em trânsitos. 1ed. Rio de Janeiro: Eduerj , v., p. 313-352.; Matos et al, 2020MATOS, A. et. al . 2020. Análise da Resolução 2265 de 20 de setembro de 2019 - Resolução produzida pelo Conselho Federal de Medicina. Disponível em http://www.fafich.ufmg.br/nuh/2020/01/24/analise-da-resolucao-cfm-2265-de-20-de-setembro-de-2019/
http://www.fafich.ufmg.br/nuh/2020/01/24...
; Costa, et al, 2016COSTA, Angelo. et al. 2016. “Healthcare needs of and access barriers for Brazilian transgender and gender diverse people”. Journal of immigrant and minority health. 2016. v. 20, n. 1, p. 115-123.).

Em relação ao uso de hormônios em seu processo de afirmação de gênero, 80,3% das pessoas entrevistadas informaram usar ou tê-los usado. Somadas às pessoas que declararam pretender fazer uso de hormônios, elas representam 94,4% da amostra. Apesar de as porcentagens entre as categorias identitárias serem próximas, as Mulheres (92,9%) são as que mais utilizam.

Quando consideramos o universo de quem usa ou usou hormônios, muitas pessoas relataram que o acesso inicial a tais substâncias se deu através do mercado paralelo ou clandestino, especialmente Homens (44,9%) e Homens Trans (36,7%). O acesso a esse mercado clandestino é muito mais incomum entre Mulheres (23,1%), Mulheres Trans (3,6%) e Travestis (8,6%), que podem ter livre acesso a hormônios femininos sem prescrição em farmácias e drogarias. Historicamente, a garantia dos procedimentos médicos de afirmação de gênero para as transmasculinidades foi tardio em relação às mulheres trans e travestis (Rocon, et al, 2018ROCON, Pablo. et al. 2018. “O que esperam pessoas trans do Sistema Único de Saúde?”. Interface (Botucatu), v. 22, no 64, p. 43-53.). Conforme apontado por um entrevistador da pesquisa:

Tem todo um trabalho histórico de pessoas que se organizam, se organizaram para que a gente pudesse chegar até aqui, e as pessoas, elas não conhecem a história, não conhecem mesmo, e, em algumas entrevistas, ficou muito nítido isso, parece que começou naquele momento que... é como se fosse só tomar hormônio, como se o fato da pessoa estar tomando hormônio já é muita coisa; as pessoas não sabem que teve todo um movimento antes; pra se chegar a estar tomando hormônio hoje, do jeito que a gente toma hoje, teve uma história, teve uma luta política; as pessoas não entendem isso, principalmente o caso dos homens trans. Eu acho que o caso das mulheres trans e das travestis acho que é um pouco diferente, porque tem uma história mais visível, os homens trans não, os caras ainda estão comprando hormônio clandestinamente, ainda estão... e acha que é aquilo ali (Entrevistador 2, homem trans).

Metade das pessoas que usam ou usaram hormônios não teve inicialmente qualquer orientação médica. Entre Travestis, 75,3% usam ou usaram hormônios sem orientação médica. Esse tipo de uso é também significativo entre as Mulheres Trans (50,9%) e, considerando que o acesso a hormônios masculinos sem orientação médica só acontece em mercados clandestinos, muitos Homens (36,7%) e Homens Trans (23,4%) também começaram a utilização sem orientação médica. Entre os profissionais mais frequentemente citados como os que iniciaram a prescrição de hormônios figuram os endocrinologistas (21,9%). Três Homens Trans e um Homem iniciaram a utilização de hormônios com orientação de urologistas.

Às/Aos respondentes que estavam utilizando hormônios no momento da entrevista, foi perguntado sobre a posse de prescrição médica para tal. Do total de pessoas que usam hormônios, 61% não tinham prescrição médica naquele momento. As porcentagens são muito mais altas entre Mulheres (53,8%), Mulheres Trans (66,1%) e, sobretudo, Travestis (83,1%). Quando agrupamos identidades que se situam no polo das masculinidades (Homem, Homem Trans) e no polo das feminilidades (Mulher, Mulher Trans e Travestis), vemos que 34,7% deles e 74,5% delas não têm acesso à prescrição médica.

Na nossa amostra, mais da metade dos Homens (57,9%) e dos Homens Trans (50,8%) estava tomando hormônios com prescrição médica. Isso ocorre muito provavelmente pela enorme dificuldade em se conseguir testosterona sem receita, além do fato de que que o perfil sociológico de Homens e Homens Trans os situa, em maior número, nas camadas medias da sociedade brasileira. Grande parte dos Homens (47,5%) e dos Homens Trans (54,4%) adquiriam ou haviam adquirido hormônios em farmácias com acompanhamento médico. Quando comparamos com os dados de Maranhão Filho e Nery (2015NERY, João; MARANHÃO FILHO, Eduardo. 2015. “Trans-homens: a distopia nos tecno-homens”. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na Saúde. 1ª ed. Brasília: Ministério da Saúde, p. 25-36.), percebemos que poucos Homens (5,3%) e Homens Trans (5,1%) entrevistados disseram que estavam tendo acesso aos hormônios através de academias de ginástica, em veterinárias (1,8% dos Homens e 1,7% dos Homens Trans) ou de outras pessoas que também os utilizavam (8,8% dos Homens e 11,9% dos Homens Trans). Não sabemos se isso é devido a algum um bias de nossa amostra ou se, de fato, houve uma mudança nesse aspecto desde 2015, ano em que Maranhão e Nery publicaram seu trabalho. Em contraste, as Travestis (67,6%), Mulheres Trans (55%), Mulheres (42,9%) declararam aceder a hormônios por conta própria em proporções muito maiores. Entre as Travestis, apenas 2,1% tinham acesso através de prescrição médica. Grande parte das Travestis entrevistadas adquirem os hormônios por meios alternativos, com outras pessoas trans que também usam (66,9%) ou em farmácias por conta própria (67,6%)16 16 Em pesquisa realizada no Distrito Federal com mulheres trans e travestis por Kruger e colaboradores (2019, p.6), “84% das participantes referiram adquirir os hormônios diretamente nas farmácias, sem receituário médico. Mais da metade delas relatou ter recebido orientações sobre o uso do medicamento, grande parte por meio de seus pares (outras mulheres transexuais e travestis), ou de algum profissional de saúde”. Isto vai ao encontro da afirmação de Angelo Brandelli Costa e colaboradores (2016) de que mulheres trans e travestis, na medida em que têm acompanhamento médico mais precário e escasso, ao mesmo tempo que têm maior acesso aos hormônios sem prescrição, apresentam-se como grupo de maior vulnerabilidade no cuidado em saúde. . Ou, ainda, se submetem a opções menos seguras, como adquiri-los através de sites na internet (24,8%), o mesmo acontecendo com as outras categorias (10% dos Homens; 15,3% dos Homens Trans; 7,1% das Mulheres e 7,2% das Mulheres Trans), correndo um maior risco de adquirirem produtos falsificados.

Os motivos mais frequentemente citados para não usar hormônios foram: problemas financeiros (23,3%) e a ausência de desejo (23,3%). Este último motivo foi sinalizado por 32,3% das Mulheres Trans e 34,5% das Travestis que não estavam usando hormônios no momento da entrevista. Os problemas de saúde citados pelas cinco pessoas que informaram ser esse o motivo para não usar hormônios foram: trombose, siderose hepática, pressão alta, linfoma de burkitt e enjoo.

Destacamos que Homens Trans (81,4%) e Homens (75,4%) fazem uso de hormônio injetável em maior número quando comparados a Mulheres (35,7%), Mulheres Trans (49,3%), e Travestis (58,6%). Destacamos que 85,9% das Travestis que usam hormônios injetáveis recorrem a amigas/os ou parentes para injetá-los, sendo que, com exceção das Mulheres Trans (47,1%), essas porcentagens caem entre Homens (21,4%), Mulheres (20%) e Homens Trans (14,6%). Talvez se possa relacionar o recurso a outrem para aplicação de hormônio entre as Travestis como parte de certa tradição iniciática presente entre elas, como também acontece com aplicação de silicone líquido industrial (Pelúcio, 2009PELÚCIO, Larissa. 2009. Abjeção e desejo. São Paulo: Annablume. 264p.; Santos, 2014SANTOS, Ailton. 2014. O gênero encarnado: modificações corporais e riscos à saúde de mulheres trans. Tese de doutorado, Saúde Coletiva, UERJ.). Quem faz uso de hormônio injetável nas demais categorias o injeta sozinho/a, prática referida por 70% das Mulheres, 52,4% dos Homens; 39,6% dos Homens Trans. No geral, apenas 3,1% dos/as respondentes afirmaram compartilhar seringa para injetar hormônio.

Como proposto por Rocon et al. (2016ROCON, Pablo; SODRÉ, Francis; RODRIGUES, Alexandro. 2016. Regulamentação da vida no processo transexualizador brasileiro: uma análise sobre a política pública. Revista Katálysis. Jul-set 2016. v. 19, no 2, p. 260-269.), consideramos fundamental criticar os discursos individualizantes e culpabilizantes que muitas vezes recaem sobre as pessoas trans e travestis, responsabilizadas pelos processos de adoecimento resultantes do uso excessivo de hormônios (ou até mesmo do silicone industrial). Tais processos remetem-se a um contexto social e político, muito mais vasto do qual os próprios serviços de saúde e seu funcionamento fazem parte.

Saúde mental

No que tange à dimensão da saúde mental, 65,7% das pessoas entrevistadas afirmaram não ter buscado acompanhamento psicológico durante seu processo de afirmação de gênero, sendo que esta porcentagem chega a 85% entre Travestis. Entre os Homens Trans, de um total de 46% que estavam sendo acompanhados por algum profissional psi no momento da entrevista, 28% buscaram consultório privado. Sobre esta temática, um entrevistador apontou na folha de observações após a aplicação de um questionário:

A entrevistada relata que fez acompanhamento psiquiátrico e psicológico para questões relacionadas à depressão e transtorno de ansiedade, e não para o acompanhamento relacionado à sua identidade de gênero. Coloca ainda que por mais que a questão de gênero perpasse sua vida de forma essencial e conjunta à sua condição de saúde mental, esses são tratados como problemas de saúde sem relação. Ao que pude perceber, a usuária não considera a sua condição de gênero como influenciadora da depressão ou do transtorno de ansiedade.

Cabe destacar que, apesar de o campo psi no Brasil vir se pautando tanto institucionalmente, como em suas mais diversas práticas, pela crítica da lógica patologizante e classificatória que, baseada no poder médico-psiquiátrico, circunda as vivências das pessoas trans (CFP, 2019CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. 2019. Despatologização das identidades trans e travestis. Disponível em: https://despatologizacao.cfp.org.br/sobre/
https://despatologizacao.cfp.org.br/sobr...
; Despatologização CFP; Uziel e Guilhon, 2017UZIEL, Anna; GUILHON, Flávio. (Org.). 2017.Transdiversidades: práticas e diálogos em trânsitos. 1ed. Rio de Janeiro: Eduerj . 504p.; Murta, 2013MURTA, D. 2013. Entre o transexualismo verdadeiro e a diversidade das experiências trans: uma discussão crítica sobre a produção da identidade transexual universal. In: SILVA, D. A. et al. (Org.). Feminilidades: corpos e sexualidades em debate. Rio de Janeiro: Eduerj, p. 63-82.), é inegável que tal lógica ainda perpassa o campo psi (Tenório e Prado, 2016TENÓRIO, L. F. P.; PRADO, M. A. M. 2016. As contradições da patologização das identidades trans e argumentos para a mudança de paradigma. Revista Periódicus. 2016 v. 1, no. 5, p. 41-55.; Dumaresq, 2016DUMARESQ, Leila. 2016. “Ensaio (travesti) sobre a escuta (cisgênera)”. Revista Periodicus. Maio-out 2016. v. 1, n. 5, p. 121-131.).

As taxas de ideação suicida e tentativas de suicídio mostraram-se extremamente altas na população entrevistada, principalmente quando comparadas às da população em geral. Segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SinanBRASIL. 2016. Secretaria de Vigilância à Saúde. Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan. Disponível em: https://portalsinan.saude.gov.br/
https://portalsinan.saude.gov.br/...
), do Ministério da Saúde, no ano de 2016 foram notificados

1.582 casos de lesão autoprovocada entre a população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (n=11.835.705, segundo Censo de 2010 do IBGE), o que corresponde a 0,01% dessa população. Entre a população trans e travesti entrevistada, 40,5% (n=47) dos Homens e Homens Trans, 56% (n=135) das Mulheres, Mulheres Trans e Travestis já haviam tentado suicídio, número que cresce consideravelmente quando se questiona sobre ideações suicidas. Já haviam desejado a própria morte 83,6% (n=97) dos Homens e Homens Trans e 74% (n=179) das Mulheres, Mulheres Trans e Travestis.

Ressaltamos que, do nosso ponto de vista, os dados encontrados na pesquisa sobre o acompanhamento psicológico de pessoas trans dizem mais sobre sua dificuldade de acesso a um cuidado integral em saúde do que sobre uma suposta necessidade de um profissional psi no processo de afirmação de gênero. Nesse sentido, apoiamos as orientações contidas na Resolução nº 01/2018 do Conselho Federal de Psicologia que afirma que “as psicólogas e os psicólogos, no exercício profissional, não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização das pessoas transexuais e travestis”, bem como “reconhecerão e legitimarão a autodeterminação das pessoas transexuais e travestis em relação às suas identidades de gênero” (CFP, 2018CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. 2018. Resolução Nº 1, de 29 de janeiro de 2018. Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/resolucao_cfp_01_2018.pdf
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
). Fora da chave patologizante, os saberes psi podem ser cruciais no cuidado integral à saúde e/ou saúde mental das pessoas trans, desde que orientados no sentido apontado por Sousa e Cavalcanti (2016SOUSA, Diogo; CAVALCANTI, Ceu. 2016. “Entre normas e tutelas: pensando (im) possibilidades da Psicologia em interface com transgeneridades”. In: DENEGA, A.; ANDRADE, D. S. V.; SANTOS, H. M. (Orgs.). Gênero na psicologia: Saberes e práticas. Salvador, BA: CRP-03. p. 126-139 ) ao interpelarem as/os psicólogos/ as: “é urgente redimensionarmos nossos fazeres e considerarmos o valor da fala e da escuta como instrumentos capazes de produzir potentes relações e intervenções junto às pessoas trans” (p.137).

Considerações finais

Apesar de haver variações significativas segundo as diferentes categorias identitárias e de reconhecer os efeitos da escolha de entrevistadores/as e da composição da amostra da pesquisa, que não atendeu a um método sistemático ou probabilístico, podemos afirmar que os dados coletados apontam para a precariedade no que diz respeito ao acesso e ao cuidado em saúde. À guisa de conclusão, gostaríamos de insistir na não individualização dessa problemática. Ou seja, apontamos para a necessidade de não culpabilizar pessoas trans e travestis por não se aproximarem aos serviços de saúde, mas destacar a importância de que esses serviços, bem como as pesquisas, procurem atender de fato as suas demandas de cuidado em saúde, buscando, por exemplo, estratégias de aproximação nos territórios. Para tanto, parece-nos fundamental a criação de disciplinas específicas sobre a saúde da população trans nos cursos de medicina, enfermagem e psicologia, bem como tratar da temática de forma transversal na formação em saúde de forma geral. Formar profissionais de saúde sensibilizados/as às demandas em saúde da população trans poderia garantir seu acolhimento e cuidado mais efetivos nos diversos dispositivos de saúde.

A partir dos dados levantados e discutidos previamente, percebemos que as Travestis compõem o grupo com os índices mais precários de acompanhamento profissional, seja no que diz respeito ao processo de afirmação de gênero, seja quanto ao acesso à saúde como um todo. Associando com os dados sociodemográficos, podemos afirmar que as pessoas que, em nossa mostra, compuseram o grupo das Travestis são também as mais pobres, as mais negras, as com menor grau de instrução e as com menor acesso a dispositivos de saúde voltados para o acompanhamento de seu processo de afirmação de gênero, como para a promoção da saúde de forma geral. A falta de preparo dos/as profissionais do sistema de saúde tem sido apontada pelo movimento trans, como formulou uma de suas principais lideranças nacionais, Keila Simpson (2015SIMPSON, Keila. 2015. Transexualidade e travestilidade na saúde. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na Saúde. Brasília: Ministério da Saúde , p. 9-16.), em publicação do Ministério da Saúde voltada para a defesa do direito à saúde de pessoas trans:

O processo de automedicação acontecia porque elas já sabiam que seriam discriminadas nos serviços. Por este motivo, nem procuravam os serviços de Saúde para constatar a veracidade da informação. (...) Muitas faziam uso abusivo e indiscriminado de diversos hormônios, muitas vezes orientadas por outras trans mais velhas que já haviam utilizado esse ou aquele hormônio e sabiam que um era bem melhor que o outro, etc. (Simpson, 2015: p.11-12SIMPSON, Keila. 2015. Transexualidade e travestilidade na saúde. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na Saúde. Brasília: Ministério da Saúde , p. 9-16.).

As pesquisas também apontam na mesma direção. Kruger e colaboradoras (2019KRÜGER, Alicia. et al. 2019. “Características do uso de hormônios por travestis e mulheres transexuais do Distrito Federal brasileiro”. Rev. bras. epidemiol. vol.22, supl1, E190004.supl.1) afirmam, por exemplo, que “os serviços de saúde, públicos e particulares, precisam ampliar o acesso de pessoas trans. Isso se traduz em aumento do número de serviços, descentralização do cuidado para outros pontos da rede de atenção à saúde e maior sensibilização dos profissionais” (p. 11). Costa e colaboradores/as (2016COSTA, Angelo. et al. 2016. “Healthcare needs of and access barriers for Brazilian transgender and gender diverse people”. Journal of immigrant and minority health. 2016. v. 20, n. 1, p. 115-123.) também identificaram barreiras na promoção de ações protetivas e políticas públicas inclusivas para pessoas trans e gênero-diversas. Por sua vez, Baccarim e Tagliamento (2020BACCARIM, Roberta; TAGLIAMENTO, Grazielle. “Acesso de Pessoas Trans à Saúde: uma Análise das Práticas de Profissionais”. Psicol Argum. out./dez. 2020. Vol. 38, no102, p. 604-625) em pesquisa com profissionais de saúde pública de Curitiba/PR, concluiram que as pessoas trans sofrem de prejuízo no campo da saúde pública, a partir das categorias analíticas de aceitabilidade, acessibilidade, qualidade e disponibilidade.

A carência de serviços e de atendimento profissional mais acolhedor no sistema público de saúde tem levado a população trans e travesti brasileira a correr riscos acrescidos de adoecimento por diferentes razões, entre as quais se destacam a compra e utilização de hormônios sem acompanhamento médico e o recurso a modificações corporais fora do sistema oficial de saúde. Essa carência se traduz em crescente demanda por políticas públicas de saúde sólidas e capilarizadas nos territórios, que tenham como objetivo dar maior visibilidade a essas pautas, garantindo o pleno reconhecimento de pessoas trans e travestis como sujeitos de direitos.

Referências

  • AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA - ANVISA. Risco à saúde: silicone industrial para uso estético. Notícias, 2018. Disponível em: http://portal.anvi-sa.gov.br/rss/-/asset_publisher/Zk4q6UQCj9Pn/content/id/4697433
    » http://portal.anvi-sa.gov.br/rss/-/asset_publisher/Zk4q6UQCj9Pn/content/id/4697433
  • ALMEIDA, Guilherme. 2012. ‘Homens trans’: novos matizes na aquarela das masculinidades. Revista Estudos Feministas 2005. Vol. 20, p. 513-523.
  • ALMEIDA, Guilherme; MURTA, Daniela. 2013. “Reflexões sobre a possibilidade da despatologização da transexualidade e a necessidade da assistência integral à saúde de transexuais no Brasil”. Sexualidad, Salud y Sociedad-Revista Latinoamericana Agosto de 2013. no 14, p. 380-407.
  • BACCARIM, Roberta; TAGLIAMENTO, Grazielle. “Acesso de Pessoas Trans à Saúde: uma Análise das Práticas de Profissionais”. Psicol Argum out./dez. 2020. Vol. 38, no102, p. 604-625
  • BENTO, Berenice. A (re) invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual 1ª ed. Rio de Janeiro: GARAMOND/CLAM, 2006. 256p.
  • BRASIL. Portaria nº 2803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial União, 2013. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html.
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html.
  • BRASIL. 2016. Secretaria de Vigilância à Saúde. Sistema de Informação de Agravos de Notificação - Sinan. Disponível em: https://portalsinan.saude.gov.br/
    » https://portalsinan.saude.gov.br/
  • BOLTANSKI, Luc. 1984. As classes sociais e o corpo. São Paulo: Paz e Terra. 191p.
  • CARRARA, Sergio. et al. “A construção do corpo e itinerários de saúde: um estudo entre travestis e pessoas trans no Rio de Janeiro, Brasil”. Cadernos de Saúde Pública 2019. Vol. 35, no 4, e00110618
  • CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 1.482, de 19 de setembro de 1997. Autoriza a título experimental, a realização de cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia, neofaloplastia e ou procedimentos complementares sobre gônadas e caracteres sexuais secundários com o tratamento dos casos de transexualismo. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1482_1997.htm>.
    » http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/1997/1482_1997.htm
  • CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. 2018. Resolução Nº 1, de 29 de janeiro de 2018. Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/resolucao_cfp_01_2018.pdf
    » https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/resolucao_cfp_01_2018.pdf
  • CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. 2019. Despatologização das identidades trans e travestis. Disponível em: https://despatologizacao.cfp.org.br/sobre/
    » https://despatologizacao.cfp.org.br/sobre/
  • COSTA, Angelo. et al. 2016. “Healthcare needs of and access barriers for Brazilian transgender and gender diverse people”. Journal of immigrant and minority health 2016. v. 20, n. 1, p. 115-123.
  • DUMARESQ, Leila. 2016. “Ensaio (travesti) sobre a escuta (cisgênera)”. Revista Periodicus Maio-out 2016. v. 1, n. 5, p. 121-131.
  • EDMONDS, Alexander. 2010. Pretty modern: beauty, sex, and plastic surgery in Brazil Duke University Press. 318p.
  • GRINSZTEJN, Beatriz et al. Unveiling of HIV dynamics among transgender women: a respondent-driven sampling study in Rio de Janeiro, Brazil. The Lancet HIV, v. 4, n. 4, p. e169-e176, 2017.
  • KRÜGER, Alicia. et al. 2019. “Características do uso de hormônios por travestis e mulheres transexuais do Distrito Federal brasileiro”. Rev. bras. epidemiol vol.22, supl1, E190004.supl.1
  • MAGNO, Laio; DOURADO, Inês; SILVA, Luis. 2018. “Estigma e resistência entre travestis e mulheres transexuais em Salvador, Bahia, Brasil”. Cad. de Saúde Pública, v. 34, no 5, e00135917.
  • MATOS, A. et. al . 2020. Análise da Resolução 2265 de 20 de setembro de 2019 - Resolução produzida pelo Conselho Federal de Medicina Disponível em http://www.fafich.ufmg.br/nuh/2020/01/24/analise-da-resolucao-cfm-2265-de-20-de-setembro-de-2019/
    » http://www.fafich.ufmg.br/nuh/2020/01/24/analise-da-resolucao-cfm-2265-de-20-de-setembro-de-2019/
  • MURTA, D. 2013. Entre o transexualismo verdadeiro e a diversidade das experiências trans: uma discussão crítica sobre a produção da identidade transexual universal. In: SILVA, D. A. et al. (Org.). Feminilidades: corpos e sexualidades em debate. Rio de Janeiro: Eduerj, p. 63-82.
  • NERY, João; MARANHÃO FILHO, Eduardo. 2015. “Trans-homens: a distopia nos tecno-homens”. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na Saúde 1ª ed. Brasília: Ministério da Saúde, p. 25-36.
  • PELÚCIO, Larissa. 2009. Abjeção e desejo. São Paulo: Annablume. 264p.
  • PINTO, Tthiago. et al. 2017. “Silicone líquido industrial para transformar o corpo: prevalência e fatores associados ao seu uso entre travestis e mulheres transexuais em São Paulo, Brasil”. Cadernos de Saúde Pública 2017. v. 33, no 7, e00113316.
  • PRADO, Marco. 2018. Ambulare. 1ª ed. Belo Horizonte: PPGCOM UFMG. 85p.
  • ROCON, Pablo. et al. 2018. “O que esperam pessoas trans do Sistema Único de Saúde?”. Interface (Botucatu), v. 22, no 64, p. 43-53.
  • ROCON, Pablo; SODRÉ, Francis; RODRIGUES, Alexandro. 2016. Regulamentação da vida no processo transexualizador brasileiro: uma análise sobre a política pública. Revista Katálysis Jul-set 2016. v. 19, no 2, p. 260-269.
  • ROCON, Pablo, et al. 2019. Desafios enfrentados por pessoas trans para acessar o processo transexualizador do Sistema Único de Saúde. Interface (Botucatu ) - Comunicação, saúde e educação 2019. Vol. 23.
  • SANTOS, Ailton. 2014. O gênero encarnado: modificações corporais e riscos à saúde de mulheres trans Tese de doutorado, Saúde Coletiva, UERJ.
  • SILVA JUNIOR, Aureliano. 2016. “Linda, doce, fera”: a construção de corporalidades políticas no concurso de beleza Miss T Brasil Tese de doutorado, Saúde Coletiva, UERJ.
  • SIMPSON, Keila. 2015. Transexualidade e travestilidade na saúde. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Transexualidade e travestilidade na Saúde Brasília: Ministério da Saúde , p. 9-16.
  • SOUSA, Diogo; CAVALCANTI, Ceu. 2016. “Entre normas e tutelas: pensando (im) possibilidades da Psicologia em interface com transgeneridades”. In: DENEGA, A.; ANDRADE, D. S. V.; SANTOS, H. M. (Orgs.). Gênero na psicologia: Saberes e práticas Salvador, BA: CRP-03. p. 126-139
  • TEIXEIRA, Flavia. 2017. (DES)ENGANO: revisando as Portarias do Processo Transexualizador no SUS. In: UZIEL, A. P.; GUILHON, F. (Org.). Transdiversidades: práticas e diálogos em trânsitos 1ed. Rio de Janeiro: Eduerj , v., p. 313-352.
  • TENÓRIO, L. F. P.; PRADO, M. A. M. 2016. As contradições da patologização das identidades trans e argumentos para a mudança de paradigma. Revista Periódicus 2016 v. 1, no 5, p. 41-55.
  • UZIEL, Anna; GUILHON, Flávio. (Org.). 2017.Transdiversidades: práticas e diálogos em trânsitos 1ed. Rio de Janeiro: Eduerj . 504p.
  • 1
    Equipe da pesquisa TransUERJ: Coordenação geral: Anna Paula Uziel (UERJ) e Alain Giami (INSERM); Equipe da pesquisa: Adriana Maria Shad e Balthazar, Ana Beatriz Sant’Anna Magalhães, Ana Camilla de Oliveira Baldanzi, Aureliano Lopes da Silva Junior, Carolina Gonçalves Santos de Brito, Guilherme Silva de Almeida, Jimena de Garay Hernández, João Pedro Passos de Queiroz, Luana Guimarães, Luisa Bertrami D’Angelo, Marcela Virgílio Vendramini, Mario Felipe de Lima Carvalho, Sergio Luis Carrara, Vanessa Marinho Pereira; Comitê Assessor: Alessandra Ramos Makkeda, Bárbara Aires, Daniela Murta Amaral, Denise Thaynáh Leite, Giowana Cambrone, Leila Dumaresq, Leonardo Peçanha, Lívia Casseres, Márcia Cristina Brasil Santos, Veriano Terto Junior; Equipe de entrevistadoras e entrevistadores: Artur Costa, Bárbara Aires, Beatriz Cordeiro, Breno dos Santos, Gilmara Cunha, Leonardo Peçanha, Luciana Vasconcellos, Maria Elis Costa Alencar, Shélida Ayana Dias Machado, Simon Prado, Wescla Vasconcelos; Apoio estatístico: Greice Conceição; Apoio técnico: Alice Helena do Nascimento, Marina Fernandes Filha.Entrevistadores/as receberam remuneração por questionário aplicado, mas as pessoas entrevistadas não receberam nenhum tipo de remuneração pela participação na pesquisa.
  • 2
    Uma linguagem menos comprometida com atitudes de reprovação moral e/ou sanitária das sexualidades, expressões e identidades de gênero não-convencionais ou não hetero-cisnormativas tem sido foco de atenção constante do movimento LGBTQIA+, especialmente no universo trans. Por nos parecer ser a que mais positivamente concebe o que ainda é tratado como crime, anormalidade, patologia, optamos nesse artigo por utilizar a expressão “processo de afirmação de gênero”. Em certo sentido, a expressão procura redefinir processos descritos como de “transexualização”, “transição”, “redesignação”, “adequação”, “readequação” (de sexo e/ou gênero) em uma formulação menos estigmatizante e discriminatória.
  • 3
    Por questões de limitação de caracteres e por avaliarmos que os dados referentes à HIV/Aids e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis merecem discussão mais aprofundada, optamos por não trabalhar com tais temas neste artigo.
  • 4
    Em contraste com procedimentos invasivos de modificação corporal, chamamos de não-invasivos procedimentos que operam nas superfícies corporais, que são em geral reversíveis e prescindem de profissional especializado para sua aplicação.
  • 5
    Atualmente, o Processo Transexualizador é regulamentado pela Portaria n. 2803/2013BRASIL. Portaria nº 2803, de 19 de novembro de 2013. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial União, 2013. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt2803_19_11_2013.html.
    http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
    do Ministério da Saúde e contempla, no âmbito do Sistema Único de Saúde, um conjunto de ações, estratégias, equipes e serviços que visam garantir o processo de afirmação de gênero de pessoas trans e travestis, por meio de cirurgias, hormonioterapia, acompanhamento clínico, pré e pós-operatório.
  • 6
    Os principais serviços voltados para a saúde transespecífica na região metropolitana do Rio de Janeiro são os seguintes: Hospital Universitário Pedro Ernesto - HUPE/UERJ; Policlínica Piquet Carneiro, da UERJ, e Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia do Rio de Janeiro (IEDE/RJ), que possuem ambulatório para atendimento a travestis e homens e mulheres transexuais; Policlínica de Especialidades Sylvio Picanço, em Niterói, ambulatório para atendimento à população trans, mas que não existia à época da pesquisa; Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas, da Fiocruz/RJ, que a partir do projeto Transcender, coordenado por Beatriz Grinsztjen (Grinsztejn et al, 2017GRINSZTEJN, Beatriz et al. Unveiling of HIV dynamics among transgender women: a respondent-driven sampling study in Rio de Janeiro, Brazil. The Lancet HIV, v. 4, n. 4, p. e169-e176, 2017.) tem realizado uma série de estudos e atendimento clínicos junto à travestis e mulheres transexuais.
  • 7
    Trata-se de um questionário produzido na França e que foi traduzido e adaptado para a realidade brasileira visando possíveis aproximações e comparações entre tais contextos.
  • 8
    Desde seu início, ou seja, desde a formulação do questionário, a pesquisa contou com um comitê assessor constituído por lideranças nacionais do movimento trans e por pessoas cisgênero que desempenham funções nevrálgicas nos serviços de atenção à população trans fluminense.
  • 9
    Questão 133: “No que diz respeito a sua identidade ou expressão de gênero, como você se define atualmente?”
  • 10
    Para uma maior discussão acerca deste processo de categorização, ver: Carrara, et al (2019)CARRARA, Sergio. et al. “A construção do corpo e itinerários de saúde: um estudo entre travestis e pessoas trans no Rio de Janeiro, Brasil”. Cadernos de Saúde Pública. 2019. Vol. 35, no 4, e00110618.
  • 11
    É importante destacar que, segundo registros da equipe de entrevistadoras/es, para várias pessoas foi difícil apontar o momento exato em que começaram a se apresentar no seu gênero, sinalizando que essa apresentação deve ser compreendida mais como um processo do que a partir de um acontecimento específico.
  • 12
    No presente artigo, decidimos não trabalhar os dados relativos aos 14 sujeitos que se definiram como não binários uma vez que, dado seu pequeno número, um tratamento estatístico poderia produzir informações inconsistentes e inferências enviesadas.
  • 13
    Devido a limitações de formato, neste artigo analisamos o acesso à saúde por pessoas trans principalmente a partir do marcador de autoidentificação de gênero, o que implica assumirmos a necessidade de maiores análises deste material utilizando-se outro recortes, como de classe, escolaridade, raça, entre outros.
  • 14
    Devido à realização de pesquisas clínicas voltadas à prevenção ao HIV/Aids junto à população trans, a Fiocruz acabou se tornando uma referência no cuidado integral à saúde de trans, especialmente travestis e mulheres trans (Grinsztejn, 2017GRINSZTEJN, Beatriz et al. Unveiling of HIV dynamics among transgender women: a respondent-driven sampling study in Rio de Janeiro, Brazil. The Lancet HIV, v. 4, n. 4, p. e169-e176, 2017.).
  • 15
    72,4% das Travestis entrevistadas se autodefiniu como preta, 42,8% ganhavam até um salário mínimo e 26,9% não tinha terminado o ensino fundamental.
  • 16
    Em pesquisa realizada no Distrito Federal com mulheres trans e travestis por Kruger e colaboradores (2019, p.6), “84% das participantes referiram adquirir os hormônios diretamente nas farmácias, sem receituário médico. Mais da metade delas relatou ter recebido orientações sobre o uso do medicamento, grande parte por meio de seus pares (outras mulheres transexuais e travestis), ou de algum profissional de saúde”. Isto vai ao encontro da afirmação de Angelo Brandelli Costa e colaboradores (2016) de que mulheres trans e travestis, na medida em que têm acompanhamento médico mais precário e escasso, ao mesmo tempo que têm maior acesso aos hormônios sem prescrição, apresentam-se como grupo de maior vulnerabilidade no cuidado em saúde.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2021
  • Aceito
    28 Out 2021
Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ) R. São Francisco Xavier, 524, 6º andar, Bloco E 20550-013 Rio de Janeiro/RJ Brasil, Tel./Fax: (21) 2568-0599 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: sexualidadsaludysociedad@gmail.com